ARTIGOS DE REVISÃO
Exercício profissional do Assistente Social: as metodologias da educação popular como estratégia de intervenção
Social Work professional activity of social workers: popular education methodology as an intervention strategy
Ejercicio profesional del Asistente Social: las metodologías de la educación popular como estrategia de intervención
Exercício profissional do Assistente Social: as metodologias da educação popular como estratégia de intervenção
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 20, núm. 3, 2018
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 02 Diciembre 2017
Aprobación: 24 Mayo 2018
Resumo: O presente trabalho levanta uma discussão acerca das metodologias das práticas de educação popular no exercício profissional dos assistentes sociais. O manuscrito decorre de reflexões acerca dos estudos de autores da área, relacionados aos desafios postos aos assistentes sociais em direcionarem seu exercício profissional de acordo com os princípios do projeto ético-político do Serviço Social. O artigo teve como objetivo refletir de que forma as atividades desenvolvidas pelos assistentes sociais, se fundamentadas em metodologias da educação popular, podem se direcionar para a formação de sujeitos críticos acerca da realidade social. Diante dos novos desafios apresentados pela atual conjuntura, de intensificação das estratégias de dominação do capital e do Estado burguês sob a ótica neoliberal, a busca por alternativas de intervenção em consonância com as lutas da classe trabalhadora se apresenta como um ponto de discussão necessário à categoria. As análises aqui apresentadas têm como matriz teórica o marxismo dialético, e foram construídas a partir de estudos de autores como Paulo Freire, Faleiros, Barroco e Gramsci. A metodologia utilizada foi a revisão de literatura, tendo como resultados discussões sobre exercício profissional, projeto ético-político e educação popular. O estudo conclui que, por sua intervenção conter uma dimensão política e educativa, o assistente social pode colaborar com a organização das classes subalternizadas, “orientando-as” para que se reconheçam como sujeitos histórico-sociais, capazes de “fazer” revolução.
Palavras-chave: Educação Popular, Exercício Profissional do Assistente Social, Projeto Ético-Político.
Abstract: This work raises a discussion concerning the popular education methodology used by social work professionals. It is a result of observations concerning authors related to this area and the challenges that professionals face to work according to the ethical-political project of social service. Our objective was to evaluate how the activities of social work professionals is based on popular education methodologies aimed at the education of individuals critical of their social reality. In the face of current challenges, including reinforcement of capital dominant strategies and the neoliberal perspective of the bourgeois state, the search for alternative interventions according to the working-class struggles emerge as a necessary point of discussion to social work. The analyses presented in the study have, as theoretical framework, the dialectical materialism and were based on investigation of authors such as: Paulo Freire, Faleiros, Barroco and Gramsci. We did a literature review resulting in discussions concerning social work activities, the ethical-political project and popular education. In conclusion, social work professionals can collaborate with the orientation of underprivileged classes to be recognized as social-historical individuals capable of creating a social revolution.
Keywords: Popular Education, Social Work Practice, Ethical-Political Project.
Resumen: El presente trabajo plantea una discusión acerca de las metodologías de las prácticas de educación popular en el ejercicio profesional de los asistentes sociales. El manuscrito surge como consecuencia de reflexiones acerca de los estudios de autores del área, relacionados a los desafíos puestos a los profesionales en dirigir su ejercicio profesional de acuerdo con los principios del proyecto ético-político del Servicio Social. El artículo tuvo como objetivo reflexionar de qué forma las actividades desarrolladas por los asistentes sociales, si fundamentadas en metodologías de la educación popular, pueden dirigirse hacia la formación de sujetos críticos acerca de la realidad social. Ante los nuevos desafíos presentados por la actual coyuntura, de intensificación de las estrategias de dominación del capital y del Estado burgués bajo la óptica neoliberal, la búsqueda de alternativas de intervención en consonancia con las luchas de la clase trabajadora se presenta como un punto de discusión necesario a la categoría. Los análisis aquí presentados tienen como matriz teórica el marxismo dialéctico, y fueron construidas a partir de estudios de autores como Paulo Freire, Faleiros, Barroco y Gramsci. La metodología utilizada fue la revisión de literatura, teniendo como resultados discusiones sobre ejercicio profesional, proyecto ético-político y educación popular. El estudio concluye que la intervención del asistente social contiene una dimensión política y educativa, por lo tanto puede colaborar con la organización de las clases subalternas, "orientándolas" para que se reconozcan como sujetos histórico-sociales, capaces de "hacer" revolución.
Palabras clave: Educación Popular, Ejercicio Profesional del Asistente Social, Proyecto Ético-Político.
1 Introdução
Este artigo propõe uma discussão sobre o exercício profissional dos assistentes sociais e os desafios que se apresentam à concretização do projeto ético-político ora hegemônico no Serviço Social. A atual conjuntura é marcada por intensos ataques às classes subalternas através do cerceamento de direitos historicamente conquistados e de estratégias de despolitização, e de fragmentação destas, dirigidos pela grande burguesia e o Estado sob a ótica neoliberal.
As transformações que vêm ocorrendo no campo econômico, político, social e cultural desde o avanço da ideologia neoliberal – a partir da década de 1970 no cenário mundial e, particularmente, em finais dos anos 1980 e início dos anos 1990 no Brasil –, bem como a crise do capital e os processos dela decorrentes, são responsáveis pela instauração de um cenário no qual os problemas sociais e as expressões da desigualdade gerada pelo modo de produção capitalista se intensificam. No contexto contemporâneo, o capital, resguardado pelo Estado burguês, faz uso de estratégias cada vez mais fortes, tencionando o enfraquecimento das lutas empreendidas pelos trabalhadores e setores populares a eles aliados, acarretando a desconstrução e perda de direitos, reforçando a exploração sobre esta classe, assim como efeitos devastadores dela decorrentes.
Ainda que nos dias atuais seja hegemônico entre a categoria um projeto voltado para a construção de uma nova ordem societária, os profissionais estão, desde o surgimento da profissão, atrelados aos objetivos das instituições que os requisitam, logo fazem parte dos meios de manutenção da ordem utilizados pela burguesia. Isso porque as instituições reproduzem, cada uma a sua maneira, um ideário já legitimado socialmente. Pela natureza do Estado no modelo de sociedade vigente, essas instituições regidas pela ideologia da classe dominante terão como fundamento a manutenção do status quo, fato que se busca camuflar (FALEIROS, 2011b).
Assim é que se apresenta como problema desta pesquisa o seguinte questionamento: de que modo os assistentes sociais podem, através da sua intervenção embasada nas práticas da educação popular, contribuir com a construção de uma nova hegemonia?
O assistente social, enquanto trabalhador assalariado e inscrito na divisão sociotécnica do trabalho, submete seu saber ao poder institucional, o que o leva muitas vezes a agir, no seu exercício profissional, em favor da reprodução da ideologia dominante (FALEIROS, 2011b). Desse modo, torna-se um desafio para esses profissionais encontrar estratégias que lhes permitam utilizar seus conhecimentos (assim como os recursos institucionais) em favor dos usuários. Concorda-se com Iamamoto quando esta aponta a relativa autonomia que possui o assistente social no seu exercício profissional como um desafio às práticas que estejam direcionadas à efetivação do projeto profissional. Também alinha-se com as constatações de Faleiros (2011b) acerca das instituições sociais se configurarem como “aparelhos” da ideologia dominante e como espaços de contra-hegemonia, tema suscitado por Gramsci no século XX.
A relevância da discussão se justifica por propor uma alternativa de intervenção que tem como horizonte a emancipação política, moral, econômica e cultural dos sujeitos. A educação popular é levantada aqui como alternativa de intervenção por conter uma postura classista e de transformação social.
Este trabalho tem como objetivo analisar de que modo o exercício profissional dos assistentes sociais, embasado na educação popular, pode promover nos usuários a criticidade acerca do contexto social vivenciado cotidianamente. Parte-se do pressuposto defendido por Maciel (2011, p. 342) que a “educação popular deve ser realizada em diferentes espaços, por meio de atividades formais ou não formais, sendo um produto de práticas sociais”.
O estudo adota um caráter exploratório, realizado por meio de uma pesquisa bibliográfica. O mesmo desenvolveu-se através de uma pesquisa qualitativa, que, para Deslandes et al. (2007, p. 21), “aprofunda-se no mundo dos significados das criações e relações humanas”. Assim, a pesquisa tem como finalidade o aprofundamento na subjetividade dos sujeitos alvos das abordagens e/ou a compreensão acerca de determinado fenômeno social. Para a revisão de literatura foram utilizados livros e artigos de periódicos nos temas: educação popular, pedagogia do oprimido, projeto ético-político do Serviço Social, intervenção profissional e instituições empregadoras.
Após a análise do material selecionado, o trabalho foi dividido em duas partes nas quais foram discutidas categorias: A emancipação humana como horizonte da Educação Popular; e Instituições empregadoras e a relativa autonomia do Assistente Social, desafios da materialização do projeto ético-político. A discussão e análise das categorias tiveram o marxismo como matriz teórica, que nas palavras de Chagas representa “a teoria social que busca entender os fenômenos sociais em sua essência, em sua totalidade” (2015, p. 172), envolvendo, também, um conjunto de ideias acerca do sistema econômico capitalista e das relações sociais dele decorrentes.
2 A emancipação humana como horizonte da Educação Popular
Apesar de ser unânime entre os estudiosos do tema que o surgimento do que denominamos aqui de educação popular originou-se, no Brasil, nos primeiros anos da década de 1960, no bojo dos movimentos das Campanhas Nacionais de Alfabetização, tendo seu auge com a sistematização do método do educador Paulo Freire, autores como Brandão1 (1986) sugerem que anos antes já era possível vislumbrar práticas que podem assim ser denominadas.
Brandão (1986) define que, após a Segunda Grande Guerra, ocorreu no país a luta pela laicização da educação e pelo ensino público universal, inaugurando a prática político-pedagógica em discussão. Porém, uma parcela maior de estudiosos define que é só a partir da década 1960, no âmbito dos movimentos estudantis, sociais, intelectuais, que a “educação popular” se apresenta, de fato, tendo atingido seu auge com a sistematização do método pedagógico de Paulo Freire.
Gadotti (2012) e Brandão (1986) discutem o período acima citado e os movimentos que emergiram, entre os quais estão: a Ação Popular (AP), ligada à Igreja Católica, o Movimento de Educação de Base (MEB), o Centro Popular de Cultura (CPC), criado pela União Nacional dos Estudantes (UNE) em abril de 1961, e o Movimento de Cultura Popular (MCP), criado em maio de 1960 com o apoio da Prefeitura de Recife em um ambiente de grandes embates no campo político, econômico e social em nível nacional e internacional.
Discute-se que o método proposto por Paulo Freire no início dos anos 60, apesar de ter sido aplicado em um programa de nível nacional (antes do Golpe de 64, com a instituição do Plano Nacional de Alfabetização), não é uma outra forma da educação de adultos ligada ao ensino formal, uma vez que ele concebe as práticas educativas que tem como único objetivo o mero repasse das informações que todos devem saber, como instrumentos de opressão e alienação. Suas ideias se diferenciam pelo caráter transformador e questionador que apresentam.
O modelo de sociedade injusta, desigual, que gera círculos de pobreza e de preconceitos, que divide os homens entre grupos e classes, que funda e fortalece uma visão de superioridade versus inferioridade das classes e dos grupos, sendo a violência de uma classe sobre as outras ou de um grupo sobre os outros vista como algo natural, precisa ser superado. Trata-se de uma realidade concreta que não é intransponível, uma vez que são estes mesmos homens que a criam e, sendo assim, tal realidade pode ser recriada, transformada também por eles. A questão é que, para Freire (2016), essa tarefa cabe, primordialmente, àqueles que sofrem a opressão, pois são os principais interessados na mudança. Mas, para que isso ocorra, eles precisam não apenas reconhecer inicialmente sua condição de marginalizados e explorados pela classe dominante, mas refletir sobre ela e agir para transformá-la, realizando sua práxis libertadora.
Em seu livro Pedagogia do Oprimido, Freire (2016) apresenta o diálogo como ponto fundamental para que se torne possível dar início a um processo de transformação. Concordando com Freire, o diálogo ainda se constitui em um caminho possível para a transformação dos sujeitos entre si e destes com o mundo. Nas palavras de Costa e Furtado (2015, p. 5), "... a tônica da visão freiriana é que será através do diálogo que o homem problematizará sua realidade, negando a existência de um ser abstrato, desligado do mundo. Defende, pois, a pedagogia problematizadora na qual será construída com o oprimido, na luta incessante para o resgate da sua humanidade há tempo perdida."
Outra questão discutida no método freiriano é a descoberta dos temas que serão trabalhados entre o educador e o educando, que serão elaborados através do que o autor chamou de conteúdo programático. Ao contrário do que foi dito sobre o sistema de educação formal, o qual o educador denominou de educação bancária, o conteúdo a ser elaborado no método de Freire é construído com os educandos, não impondo a eles algo preestabelecido. É somente a partir da construção do conteúdo programático que surgirão os temas geradores, que nada mais são do que as questões significativas que ganharão evidência através da relação dialógica que se estabelece entre educador e educando. O conjunto formado por esses temas em interação formará o universo temático, que expressa características sobre a existência do sujeito em determinado contexto. Esse processo dialógico-reflexivo-crítico e também histórico é demasiado significativo, pois os homens são seres que constroem seu universo material e espiritual e são ao mesmo tempo construídos por eles. Logo, refletir sobre seu mundo sensível é debruçar-se sobre si mesmo, fato que lhes dá capacidade de vislumbrar e compreender que nenhuma situação é impossível de ser transformada, uma vez que são eles que as criam. Isto nos insere em um ponto fundamental da discussão, qual seja, a ultrapassagem das situações limites, que: “[...] são dimensões concretas e históricas de uma dada realidade, ou seja, são obstáculos, barreiras que precisam ser vencidas, superadas frente ao mundo” (FREIRE apud COSTA; FURTADO, 2015, p. 4).
A educação popular ultrapassa a luta no campo da educação e se estabelece como uma prática cujo objetivo principal é a transformação da correlação de forças; à educação é conferido um sentido político, de luta em favor das classes populares. Freire (2016, p. 103-105) a define como a que
[...] substantivamente democrática, jamais separa do ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade. É a que estimula a presença organizada das classes sociais populares na luta em favor da transformação democrática da sociedade, no sentido da superação das injustiças sociais. É a que respeita os educandos, não importa qual seja sua posição e classe e, ao mesmo tempo, leva em consideração, seriamente, o seu saber de experiência feito, a partir do qual trabalha o conhecimento com rigor de aproximação aos objetos. [...] É a que não considera suficiente mudar apenas as relações entre educadora e educandos, amaciando essas relações, mas, ao criticar e tentar ir além das tradições autoritárias [...] critica também a natureza autoritária e exploradora do capitalismo.
Assim, de acordo com Brandão (1986), “[...] a possibilidade concreta de produção de uma nova hegemonia popular no interior da sociedade classista é o horizonte da educação popular”, e não exclusivamente e fundamentalmente o trabalho de alfabetização alternativo ao modelo formal de ensino.
Entre os desafios a serem enfrentados, as tentativas de despolitização e fragmentação das classes populares por parte da classe dominante é talvez um dos mais difíceis, uma vez que, sem posicionamento crítico acerca do modelo de sociedade vigente e buscando cada um seus próprios interesses, se a luta é travada individualmente, não haverá um movimento forte o suficiente para alterar a correlação de forças vigente, ou seja, não haverá revolução. Logo, a árdua tarefa é precisamente resistir aos artifícios utilizados pelos opressores para desmobilizar a luta, fragmentando-a e intentando a cooptação dos oprimidos aos interesses do grande capital e da ideologia dominante.
3 Instituições empregadoras e a relativa autonomia do Assistente Social: desafios da materialização do projeto ético-político
A discussão acerca das instituições sociais terá por fundamento os estudos de Antônio Gramsci, Vicente de Paula Faleiros e Louis Althusser, todos defensores do marxismo, ainda que apresentem pontos de divergência entre seus pensamentos. As instituições sociais são, para os três autores, aparatos que difundem a ideologia dominante. Contudo, à exceção de Althusser, Faleiros e Gramsci as compreendem também como locus de luta e de construção da contra-hegemonia da classe dominada. Althusser acreditava que as instituições teriam, exclusivamente, a função de reforçar a dominação, discurso com o qual discordamos neste trabalho, uma vez que se colocará em discussão o profissional de Serviço Social enquanto um dos possíveis promotores de ações contra-hegemônicas no seu exercício profissional nestes aparelhos.
A autonomia que aqui discutimos diz respeito à limitação que possuem os profissionais de Serviço Social no cotidiano da sua atuação, posto que, enquanto profissionais assalariados, devem se submeter a um empregador, diga-se aqui, às instituições dirigidas pela burguesia, sejam elas estatais, privadas, ou aquelas que fazem parte do Terceiro Setor. Logo, ainda que haja uma lei que regulamenta a profissão (Lei nº 8.662/93) e que os caracteriza como profissionais liberais2 e, ainda que pautem suas ações em um Código de Ética (CE, 1993) cujos princípios devem intentar concretizar, não possuem total liberdade no exercício da profissão. Barroco e Terra (2012, p. 122), ao discorrerem sobre o primeiro princípio do CE, que apresenta a liberdade como valor ético central, ressaltam que:
[...] a perspectiva do Código de Ética do assistente social, cuja concepção ‘contém em si mesma uma projeção de sociedade – aquela em que se propicie aos trabalhadores um pleno desenvolvimento para invenção e vivência de novos valores, o que evidentemente supõe a erradicação de todos os processos de exploração, opressão e alienação’ (CFESS, 1993), se contrapõe à visão de “liberdade individual” que tem sido pensada no sistema normativo capitalista. A “liberdade”, na sociedade de classes, nem se concretiza, efetivamente, na vida real dos indivíduos, nem tão pouco no sistema legal vigente, que traduz, ao contrário, a negação da liberdade, na medida em que as escolhas são relativas, individualistas, alienadas (grifo nosso).
Em vista disso, podemos argumentar que o projeto profissional já pressupõe limites ao trabalho dos profissionais dentro do modelo de sociedade capitalista, pois sua atuação se realiza no bojo de instituições comandadas pelo Estado burguês e vai de encontro ao projeto societário hegemônico na ordem atual. Dessa forma, se, como Marx, afirmamos ser o capitalismo produtor e reprodutor das desigualdades e das injustiças sociais, afirmamos também que nenhuma instituição, política ou projeto que sejam traçados pela classe que defenda este sistema econômico objetivará subjugá-lo. Entretanto, ainda que relativa, essa autonomia possibilita práticas comprometidas com a classe trabalhadora. É essa discussão que se seguirá adiante.
Marx (apud IANNI; FERNANDES, 1980) apontou que não é a consciência do sujeito que determina a realidade social em que ele vive, ao contrário, é a sua realidade social concreta que determina a sua consciência. O materialismo histórico tem como discussão central a estrutura econômica da sociedade. Dividindo-a em duas classes principais: proletariado e burguesia, Marx apontou como polo de antagonismo entre elas o modo de produção capitalista. Para ele, as contradições inerentes ao próprio sistema levariam, de uma forma ou de outra, a uma revolução empreendida pelo proletariado, o que acabaria por culminar em um novo modelo de sociedade, a socialista (ARON, 2008). Esta inevitável revolução teorizada por Marx não ocorreu. Ao contrário, ao passo em que há a elevação da capacidade de produção de riqueza, há o agravamento e a intensificação da desigualdade e da dominação de uma classe sobre a outra.
Inseridas na estrutura da sociedade e na dinâmica entre essas classes (proletariado e burguesia) encontram-se as instituições sociais, as quais são definidas como um conjunto de entidades formadas historicamente pelos sujeitos ao longo do processo de construção e desenvolvimento de uma sociedade. Por serem constituídas por indivíduos subjetivos e dotados de capacidade teleológica, trazem imbuídas em sua estrutura diferentes concepções de mundo, as quais tencionam ser difundidas em todo o tecido social pelos sujeitos que as compõem. Moraes (2010, p. 57) assinala que Gramsci, em conformidade com o seu conceito de bloco histórico, as inserem no seio da sociedade civil, a qual o mesmo define como: "[...] o conjunto de instituições responsáveis pela elaboração e propagação de ideologias enquanto concepções de mundo, compreendendo o sistema escolar, a Igreja, os partidos políticos, as organizações profissionais, os sindicatos, os meios de comunicação, as instituições de caráter científico e artístico, etc."
Faleiros (2011b) aponta que as instituições têm como objetivo manter sob controle as classes subalternas e esconder a violência característica do sistema, uma vez que o atendimento às necessidades da população por meio da oferta de serviços sociais não significa que haja preocupação com as sequelas provenientes do capitalismo. Logo, se vivemos sob o poderio de um Estado burguês, se essas instituições têm como objetivo básico favorecer apenas um lado dos interesses em disputa, apenas uma ideologia, que se faz hegemônica, será reproduzida e encarada como natural por uma parcela significativa da sociedade: a ideologia burguesa.
Diante dessas análises, importa ressaltar duas questões. Primeira: o fundamento do Serviço Social são as expressões da questão social, que nas palavras de Yazbek (2009, p. 6) é “a matéria-prima” e a justificativa da constituição do espaço do Serviço Social na divisão sociotécnica do trabalho e na construção e atribuição da identidade da profissão”. Assim, a categoria atua no enfrentamento das suas manifestações, ainda que não tenha sido assim na gênese da profissão. Segunda questão a ser considerada: as instituições sociais – aqui destacadas as de cunho assistencial – tendem a perpetuar o modelo de sociedades da qual são frutos, como salientado linhas atrás. Posto isso, questiona-se de que modo os assistentes sociais poderão, no cotidiano profissional, defender um projeto comprometido com a transformação social, uma vez que sua atuação é limitada pelas instituições contratantes e também pelas políticas com as quais trabalham.
Assim é que a atuação dos profissionais de Serviço Social na perspectiva da emancipação humana dentro das instituições empregadoras se torna um difícil desafio, em especial em tempos de governos guiados pelas ideologias neoliberais. As políticas com as quais trabalham são focalistas e seletivas, da mesma forma o são os serviços institucionais, que oferecem às classes populares aquilo que elas são impossibilitadas de ter acesso através do seu trabalho. O que o salário não é capaz de suprir, é fornecido de forma precária e insuficiente para que vivam em condições dignas. As instituições assistenciais não são dissociadas das engrenagens do sistema econômico pelo simples fato de não estarem diretamente ligadas ao processo de produção (FALEIROS, 2011b, p. 32). Como já citado anteriormente, capital e trabalho são polos intrínsecos; um só existe em função do outro. Portanto, a classe hegemônica forçosamente cria estratégias para que, ao mesmo tempo em que possibilitem a manutenção da mão de obra, mantenham-na sob a condição de classe explorada.
A categoria profissional, inserida na dinâmica desta correlação de forças, optou por direcionar sua intervenção em favor das classes subalternas. Ainda que se apresentem limites visíveis a tal posicionamento, defende-se a busca por práticas transgressoras, conforme apontam Iamamoto e Carvalho (2009, p. 94):
A instituição Serviço Social, sendo ela própria polarizada por interesses de classes, contrapostas, participa, também, do processo social, reproduzindo e reforçando as contradições básicas que conformam a sociedade do capital, ao mesmo tempo e pelas mesmas atividades em que é mobilizada para reforçar as condições de dominação, como dois pólos inseparáveis de uma mesma unidade. É a existência e compreensão desse movimento contraditório que, inclusive, abre possibilidade para o Assistente Social colocar-se a serviço de um projeto de classe alternativo àquele para o qual é chamado a intervir.
Da mesma maneira, ao debater a subalternidade profissional ante o poder institucional, Faleiros (2011a, p. 44) aponta como uma estratégia possível de ação a “transformação da correlação de forças institucionais”. O autor propõe a articulação entre os diferentes profissionais que atuam dentro de um mesmo aparelho e o público-alvo deste, ou seja, os grupos aos quais se destinam os serviços da instituição e as ações dos assistentes sociais e demais técnicos. É nesta perspectiva que se concorda com Gramsci (apud Moraes, 2010) quando o mesmo argumenta que a luta em favor da contra-hegemonia das classes subalternizadas deve se iniciar pelos aparelhos que reproduzem a ideologia, a violência disfarçada e a dominação.
Os princípios e valores que fundamentam o projeto ético-político do Serviço Social são: o compromisso com a liberdade e a emancipação humana dos sujeitos, o que pressupõe o compromisso com a construção de uma ordem social justa e igualitária. Por conseguinte, são estes também os princípios e valores que baseiam as práticas da educação popular. Em ambos apresenta-se o compromisso com a libertação das classes oprimidas, e por essa razão estabelecemos essa relação. Essa práxis transformadora encerra em si uma dimensão classista e ideológica, objetiva o desvelamento da realidade e a construção de uma consciência de classe dos grupos populares, de modo a promover a participação política destes, visando a superação de todas as formas de exploração e dominação a que são submetidos cotidianamente, estejam estas relacionadas à esfera econômica ou não.
Com base nessas reflexões, defendemos a articulação entre intervenção profissional e educação popular como uma estratégia significativa no processo de materialização do projeto ético-político do Serviço Social. Logo, apesar da relação entre estas duas categorias não ser nova nos debates da profissão, pouco tem sido discutido não apenas sobre a utilização de metodologias dialógicas e descodificadoras de situações-limites no exercício profissional, mas sobretudo de atitudes transgressoras no cotidiano dos profissionais, que articulem a garantia de direitos com a organização e mobilização dos setores populares.
Partimos da ideia de que a intervenção profissional possui uma dimensão política e ideológica, bem como um caráter educativo, elementos que constituem o fazer profissional desde os primórdios da profissão. Partimos ainda da seguinte premissa: como profissional comprometido com os valores éticos que norteiam a profissão, o mesmo defende nos espaços sócio-ocupacionais que é chamado a atuar, os interesses do público das instituições contratantes. Entendendo que a profissão surge com vistas a atender aos interesses do capital e que, por essa razão desde sempre esteve polarizada por interesses conflituosos, uma vez que a classe que demanda seus serviços não é a mesma a qual estes se destinam, o profissional de Serviço Social acaba por adquirir um papel político, podendo atender a um ou outro grupo em disputa pela hegemonia no seio da sociedade classista.
O caráter educativo resulta do fato de que sua atuação na população interfere no modo de pensar e agir dos indivíduos. Abreu (2004) ressalta essa dimensão inerente à atuação dos assistentes sociais ao discutir o processo de refilantropização da questão social, bem como das demais consequências, algumas já citadas ao longo desta discussão, decorrentes do neoliberalismo no Brasil, que rebatem no exercício profissional. A autora salienta que os profissionais são capazes de defender sua autonomia relativa e seu protagonismo, indo contra a onda neoliberal. Para isso, ela destaca a necessidade de uma postura crítica e investigativa da realidade, que se objetiva na construção de novas estratégias pedagógicas que visem à emancipação das classes subalternas. De acordo com Machado (2012), o assistente social pode colaborar com a organização das classes subalternizadas orientando-as para que se reconheçam como sujeitos histórico-sociais, capazes de fazer revolução.
A simples decisão da categoria em tentar defender os interesses dos usuários não garante que práticas que se orientam nesta perspectiva sejam possíveis de se concretizarem, e os profissionais sozinhos não são capazes de transformar as estruturas institucionais e tampouco as bases que sustentam a ordem injusta vigente. Por esse motivo, considera-se imprescindível a busca por alternativas de intervenção que fortaleçam os sujeitos e que os possibilitem o desvelamento da realidade opressora e desigual e a mudança do status quo, pois como aponta Yazbek (2014, p. 686):
[...] a profissão é interpelada e desafiada pela necessidade de construir mediações políticas e ideológicas expressas sobretudo por ações de resistência e de alianças estratégicas no jogo da política em suas múltiplas dimensões, por dentro dos espaços institucionais e especialmente no contexto das lutas sociais. Isso porque, como sabemos, questão social é luta, é disputa pela riqueza socialmente construída.
Argumenta-se ainda que o assistente social deve pautar suas ações em práticas educativas libertadoras, uma vez que interfere diretamente no modo de pensar e agir dos sujeitos, pois o assistente social precisa expressar que caminhamos profissionalmente junto aos nossos usuários, levando em conta o papel estratégico da comunicação e da informação para mostrar que não se está só na luta” (YAZBEK, 2014, p. 687) e, para aqueles inconscientes e alheios à realidade opressora que os cerca, mostrar-lhes a necessidade do engajamento na defesa de uma nova ordem social. Dentro dos limites e possibilidades que se apresentam à atuação desses trabalhadores dentro das instituições empregadoras, a educação popular e o objetivo a que ela se propõe configuram-se como uma estratégia de organização, mobilização, politização e emancipação dos oprimidos.
4 Considerações finais
O debate em torno de novas práticas que contribuam para o fortalecimento dos usuários no cotidiano do exercício profissional é fundamental para o fortalecimento do projeto profissional, uma vez que os profissionais têm a responsabilidade, ainda que não exclusivamente, de dar-lhe direcionamento, e isso se faz, sobretudo, no exercício das suas atividades cotidianas, nos diferentes espaços sócio-ocupacionais em que são chamados a atuar. Por sua intervenção conter uma dimensão política e educativa, o assistente social pode colaborar com a organização das classes subalternizadas, orientando-as para que se reconheçam como sujeitos histórico-sociais capazes de “fazer” revolução. Destarte, dentro das possibilidades e limites que se interpõem a esses profissionais, a educação popular se apresenta como uma importante aliada.
O compromisso desses trabalhadores é com a construção de uma sociedade justa e igualitária, sem dominação, exploração ou qualquer tipo de discriminação. Contudo, isto não depende unicamente da vontade desses sujeitos, posto que sobrepujar a hegemonia capitalista não é tarefa fácil. Portanto, são necessárias estratégias de intervenção que promovam a emancipação dos usuários alvos dos serviços sociais em cada instituição, e que fortaleça a luta no campo social em favor dos marginalizados e oprimidos, que é o horizonte do projeto profissional.
Por essa razão, acredita-se que o assistente social tem um papel fundamental no processo de libertação desses sujeitos. Os profissionais lidam cotidianamente com diversas manifestações da questão social. Grande parte dos usuários vivem situações nas quais se apresentam não apenas uma, mas múltiplas vulnerabilidades que necessitam ser atendidas. Entretanto, em tempos estes em que as políticas sociais são guiadas pela ótica neoliberal, os serviços se apresentam fragmentados, focalizados e seletivos, e são vistos pelos usuários como benevolência do Estado. Assim, suas mazelas se naturalizam, não havendo nenhum agente causador específico das misérias sociais.
Desse modo, por as propostas da educação popular convergirem com os valores do projeto ético-político do Serviço Social, apresentamos a educação popular como uma forma alternativa de intervenção profissional, pois acreditamos que aqueles capazes pela transformação social é a maioria que vive marginalizada e inconsciente dessa situação. Por essa razão discutimos que um dos desafios à materialização do projeto citado é a relativa autonomia que possuem os assistentes sociais em seu exercício profissional, uma vez que as instituições sociais funcionam como aparelhos de manutenção do status quo, assim como as políticas com as quais trabalham esses profissionais. Todavia, abordamos que as instituições sociais são também espaços de contra-hegemonia, logo há a possibilidade de práticas que alterem a correlação de forças e que favoreçam a autonomia e a plena expansão dos indivíduos sociais.
Nesta perspectiva, o profissional deve lançar mão de práticas que não se limitem à viabilização de recursos financeiros ou ao acesso aos serviços assistenciais, focalizando sua atuação meramente na tentativa de executar aquilo exigido pela instituição contratante. Os assistentes sociais devem inteirar-se que seu exercício profissional possui uma dimensão político-ideológica, e que por esse motivo pode interferir profundamente na construção de uma nova hegemonia, que é o horizonte do projeto construído pela categoria, compromissada com a construção de uma nova ordem social.
Referências
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BARROCO, M. L. S; TERRA, S. H. Código de ética do/a assistente social comentado. Conselho Federal de Serviço Social, CFESS (Org.). São Paulo: Cortez, 2012.
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Notas
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