Artigos originais
A conjuntura política atual e as formas de resistência: um estudo sobre a educação ambiental e do campo
The current political conjuncture and the forms of resistance: a study on environmental and rural education
La actual coyuntura política y las formas de resistencia: un estudio sobre educación ambiental y rural
A conjuntura política atual e as formas de resistência: um estudo sobre a educação ambiental e do campo
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 21, núm. 1, 2019
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 29 Noviembre 2017
Aprobación: 25 Febrero 2019
Resumo: O artigo objetiva abordar o ambientalismo latino-americano, representado nas lutas contra-hegemônicas da educação ambiental e do campo. Após a crise econômica de 2008, os EUA voltaram suas atenções para a América Latina, interessados na exploração de recursos primários. Neste contexto, a educação ambiental e a educação do campo têm um importante papel na criação da consciência crítica dos indivíduos e de um saber ambiental. A primeira parte analisa o ambientalismo como um movimento de resistência. Depois, enfatiza-se o caráter emancipatório da educação ambiental e da educação do campo. Para finalizar, propõe-se uma educação do campo oposta ao modelo do agronegócio.
Palavras-chave: Ambientalismo, Educação ambiental, Educação do campo.
Abstract: The article aims to address Latin American environmentalism, represented in the counter-hegemonic struggles of environmental and rural education. After the 2008 financial crisis, the US turned its attention to Latin America, interested in the exploitation of primary resources. In this context, environmental education and rural education have had an important role in creating critical awareness of individuals and environmental knowledge. The first part analyzes environmentalism as a resistance movement. Then, the emancipatory character of environmental education and rural education is emphasized. Finally, it is proposed a rural education opposed to the agribusiness model.
Keywords: Environmentalism, Environmental education, Rural education.
Resumen: El artículo tiene como objetivo abordar el ambientalismo latinoamericano, representado en las luchas contrahegemónicas de la educación ambiental y rural. Después de la crisis financiera de 2008, los Estados Unidos dirigieron su atención a América Latina, interesados en la explotación de los recursos primarios. En este contexto, la educación ambiental y la educación rural han desempeñado un rol importante en la creación de conciencia crítica de las personas y de conocimiento ambiental. La primera parte analiza el ambientalismo como un movimiento de resistencia. Luego, se enfatiza el carácter emancipatorio de la educación ambiental y de la educación rural. Finalmente, se propone una educación rural opuesta al modelo de agronegocios.
Palabras clave: Ambientalismo, Educación ambiental, Educación rural.
1 Introdução
Considerando a conjuntura geopolítica contemporânea da América Latina, tomamos como marco temporal o estouro da bolha imobiliária dos Estados Unidos em 2008, entendendo que suas repercussões marcam um (re)direcionamento na estratégia estadunidense em relação à sub-região. Como resultante desse reordenamento geopolítico evidenciam-se interferências diretas e indiretas sobre os governos eleitos com o voto popular e suas políticas públicas, gerando respostas locais através de movimentos sociais de resistência.
Neste artigo pretende-se traçar considerações mais específicas sobre uma abordagem do ambientalismo latino-americano à luz da corrente denominada por Alier (2007) como ecologismo popular, entendido aqui como um movimento social emergente, traduzido nas lutas contra-hegemônicas propostas pela educação ambiental crítica e pela educação do campo.
Podemos considerar que as respostas do movimento social do ambientalismo advêm da posição fortemente contrária à elevação dos preços dos recursos naturais e primários no mercado internacional, dos investimentos externos diretos (IED) e da lucratividade das empresas desse setor (FERREIRA, 2016, p. 1), reagindo às ações dos representantes dos interesses estadunidenses que direcionaram, com grande ênfase, seus esforços diplomáticos e geoestratégicos para a exploração dos recursos primários latino-americanos de energia, como petróleo e gás.
Nesta conjuntura há uma mudança de localização desses mesmos investimentos externos diretos, pois, anteriormente, a Europa era o principal destino dos IED dos Estados Unidos, mas depois da eclosão da crise de 2008, “a América do Sul deu um salto, chegando, em 2010, a ficar muito próxima da Ásia e do Pacífico e acima da Europa” (FERREIRA, 2016, p. 3).
A geopolítica e a economia andam sempre juntas e, neste caso, tal mudança econômica vem ao cargo da necessidade dos Estados Unidos de “diversificar suas fontes de fornecimento, para diminuir sua dependência em relação aos países do Oriente Médio” (FIORI, 2007, p. 8).
Esse contexto histórico reforça o fato de que “essa luta se desdobrou em diferentes estratégias políticas e empresariais, desde intervenção militar direta, passando pelo apoio a forças militares locais em guerra civil, até campanhas políticas de desestabilização de governos” (FERREIRA, 2016, p. 1).
Essas campanhas políticas de desestabilização de governos adequam-se ao conceito apresentado por Lemoine (2014), que as nomeia como “Golpes Light” ou “Golpes Brandos” uma evolução dos antigos métodos sangrentos pelo uso da força, adotados durante o século passado, uma vez que substitui o uso das Forças Armadas pelo uso da ação psicológica empreitada pelos veículos de informação/comunicação de massa. Por isso, conclui-se que essas “psyops” (operações psicológicas) seriam destinadas “a manipular ou desestabilizar internamente os governos-alvos e a fornecer uma imagem negativa deles no exterior” (LEMOINE, 2014, p. 3).
A nova estratégia implantada pelos EUA se resume ao financiamento de grupos de oposição, tanto para campanhas eleitorais quanto para “protestos pacíficos”, os quais, na verdade, não têm o objetivo de serem tão pacíficos, pois trata-se de uma estratégia de fazer correr sangue, [seja] pela ‘violência espontânea’ ou pela repressão governamental dessa ‘violência espontânea’. A partir dessa condição caótica de desestabilização, o país ficaria cada vez mais ingovernável, tanto para a opinião pública nacional quanto internacional, e consequentemente tornando aceitável a demissão forçada ou afastamento do presidente oficial (LEMOINE, 2014, p. 5).
Diante desse quadro, na América Latina nota-se a presença de um “neoimperialismo ianque” (LEMOINE, 2014, p. 5), embora ele não tenha ocorrido com a mesma intensidade ou sucesso nas diferentes áreas da região.
A construção e a implantação dos territórios latino-americanos é propriamente uma história política: lutas pela reapropriação cultural da natureza e dos territórios de vida dos povos. Essas lutas vão se configurando dentro do marco de uma crítica dos modelos de desenvolvimento implantados tradicionalmente desde a época da conquista e da colônia. As lutas pela reapropriação da natureza passam pela descolonização do saber que implica a desconstrução de ideias de progresso e desenvolvimento econômico (no qual se enquadra o discurso do desenvolvimento sustentável).
Os movimentos sociais emergentes afiançados na legitimação de novos direitos culturais e ambientais estão desafiando o sistema jurídico para a construção de novos direitos coletivos aos bens comuns. Entendemos, como Leff (2016), que o ambientalismo emerge em uma transformação na compreensão do mundo, na concepção teórica do real, na ética política das relações sociais e nas normas sociais do comportamento humano. O campo socioambiental, as lutas sociais e as teorias ambientais são de caráter eminentemente epistêmico-político.
Experiências agroflorestais das reservas extrativas e das reservas campesinas vêm refletindo-se em importantes transformações no Estado. Por exemplo, podemos citar o caso da Bolívia, que se refundou como Estado plurinacional, e também o Equador, que introduziu os direitos da natureza em sua constituição.
Esse quadro geopolítico pelo viés socioambiental se expressa hoje nos conflitos de territorialidades entre os projetos culturais e civilizatórios alternativos, confrontados por seus interesses na apropriação da natureza, entre o poder hegemônico do sistema-mundo e a emancipação dos povos originários indígenas (LEFF, 2016).
À raiz da crise ambiental, a natureza está sendo revalorizada por suas funções ecológicas reguladoras, à geopolítica da conservação da biodiversidade contrapomos a luta pela (re)existência dos povos latino-americanos, mobilizados pelos movimentos socioambientais.
Portanto, partindo-se da tese de que se vivencia o neoimperialismo ianque em nosso território latino-americano e de que o mesmo a cada acontecimento histórico mostra a sua força, através de seus instrumentos, como grandes mídias sociais e de comunicação de massa, exércitos paramilitares, sanções econômicas ardilosamente bem manipuladas a ponto de parecerem imbatíveis, de que modo pode-se acabar com essa sensação de que a América Latina sempre “anda-se em círculos” no que diz respeito a livrar-se desse malfadado destino que nos foi conferido sem a nossa anuência, de ser um quintal norte-americano ou de suas vontades políticas e econômicas? Neste artigo procuramos as resistências possíveis engendradas pelos movimentos sociais vinculados ao ambientalismo, à educação ambiental e à educação do campo, dando ênfase a esta última.
A crise do capital deve ser considerada endêmica e permanente, na qual o sistema encontra com seus próprios limites intrínsecos. Em seu caráter ambiental, assistimos à “mercantilização da natureza por atacado” (HARVEY, 2004, p. 123) explicitando-se a questão materializada por inúmeros problemas ambientais decorrentes de múltiplas formas de incorporação da natureza a partir do seu valor econômico. Em relação a um trabalho educativo, parte-se da tese de que a destruição ambiental, ou a chamada “crise ambiental”, é uma manifestação da lógica destrutiva do processo de produção e acumulação do capital. A educação ambiental e a educação do campo, nessa perspectiva, têm um papel decisivo na ampliação da consciência crítica dos indivíduos para a necessidade de construção coletiva de uma nova ordem sociometabólica sustentável e de um saber ambiental. Isto significa uma opção pela educação para além do capital (MESZAROS, 2002), seja ela identificada como ambiental ou como do campo, transformadora e emancipatória, que vai para além de “ensinar” bons comportamentos em relação à natureza e ao meio ambiente. É uma educação comprometida com as mudanças de valores e a transformação da sociedade (PINTO; ZACARIAS, 2009).
Considerando esses elementos introdutórios, este artigo, na primeira parte, busca analisar o ambientalismo como um movimento de resistência na América Latina. A seguir, busca-se enfatizar o caráter emancipatório da educação ambiental, e, mais centralmente, da educação do campo. Para finalizar, propõe-se contrapor o modelo do agronegócio à proposta de educação do campo.
2 América Latina, movimentos socioambientais e resistências
No que tange aos movimentos sociais cabe, pois, um esforço analítico para compreender como foi estabelecido o posicionamento desses movimentos no sentido da resistência às imposições e as interferências constituídas no bojo da ação intervencionista da política externa estadunidense.
Para tentar compreender essa luta entendemos ser necessário discutir algumas dimensões recorrentes na caracterização dos movimentos sociais. Como já estabelecido pelo campo da sociologia, há uma certa novidade recorrente desses movimentos que se distinguem das formas tradicionais de atuar na política (partidos e sindicatos) e propõem formas específicas de participação, porque afirmam novas identidades sociais. Nota-se seu caráter de resistência à dominação vigente, sendo muitas vezes, formas de luta que desafiam o Estado.
Diante dessas características, podemos considerar que essas manifestações coletivas trazem para a cena política uma nova potencialidade de resistências antissistêmicas se contrapondo à ação expansionista estadunidense, ou seja, ao neoimperialismo ianque.
Os movimentos sociais latino-americanos questionam de forma vigorosa a lógica global do capital a partir das peculiaridades e especificidades do âmbito local. Para isso, a interconexão dos movimentos adota crescentemente a estruturação em forma de redes como estratégia, mas sem perder nunca, como tentaram enfatizar vários autores hiperglobalistas, os referenciais territoriais/espaciais. Muito pelo contrário, o território e o lugar são os grandes trunfos de uns movimentos sociais que não podem ser entendidos separadamente do processo de reorganização societário em curso no mundo.
Isto nos obriga a pensar o lugar de cada questão específica, assim como a questão do lugar no contexto das transformações globais que envolvem uma complexa imbricação de escalas: entre o local, o regional, o estatal, o nacional e o mundial; entre a cidade e o campo; entre o que é rural e o que é urbano. O que acontece na escala mundial não é a soma do que sucede nas escalas local, regional e nacional, senão o contrário, já que se constituem dentro de umas relações multidimensionais (BRINGEL, 2007).
Os movimentos sociais são fenômenos históricos, resultado de lutas sociais que transformam e inserem mudanças na sociedade, e passam por estágios diferentes conforme as sociedades vão se modificando. É na ação deles que se apresentam as demandas sociais de determinadas classes, se realizando em atividades de manifestações, provocando a sensibilização na consciência dos demais indivíduos. Como aponta Gohn (2011, p. 336): “ao realizar essas ações, projetam em seus participantes sentimentos de pertencimento social. Aqueles que eram excluídos passam a se sentir incluídos em algum tipo de ação de um grupo ativo”.
Para André Gunder Frank e Marta Fuentes (1989, p. 19), os movimentos sociais estão pautados em um “sentimento de moralidade e (in)justiça e num poder social baseado na mobilização social contra as privações (exclusões) e pela sobrevivência e identidade”.
Existem diferenças entre movimentos sociais e protestos sociais. Ainda que mobilize um grande número de manifestantes e contenha representantes de movimentos sociais, uma ação esporádica não pode ser caracterizada necessariamente como um movimento. Essas ações tanto podem ser fruto da ação de atores sociais, como podem incluir cidadãos comuns que não estão ligados aos movimentos organizados.
Alguns exemplos ilustram essa forma de organização, incluindo vários setores de participantes como a Marcha Nacional pela Reforma Agrária, de Goiânia a Brasília (maio de 2005), que foi organizada por articulações de base como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Grito dos Excluídos e o próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), além de outras organizações de atuação internacional, como a Via Campesina. Também se realizaram articulações com universidades, comunidades e igrejas, através do encaminhamento de debates prévios à marcha. A Parada do Orgulho Gay tem aumentado expressivamente a cada ano, desde seu início em 1995 no Rio de Janeiro, fortalecendo-se através de redes nacionais, como a ABGLT, de grupos locais e simpatizantes. A Marcha da Reforma Urbana, em Brasília (outubro de 2005), resultou não só da articulação de organizações de base urbana (Sem Teto e outras), mas também de uma integração mais ampla com a Plataforma Brasileira de Ação Global contra a Pobreza. A Marcha Mundial das Mulheres (MMM) tem sido integrada por organizações civis de todos os continentes (SCHERER-WARREN, 2006, p. 112).
Gohn define movimento social como “ações coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e se expressar em suas demandas” (2011, p. 13). Entretanto, essa definição não é absoluta, e varia de acordo com os autores e teorias analisados.
Surgido nos anos 1970, entre as classes médias intelectualizadas, o ambientalismo, considerado como um movimento histórico multissetorial, parecia ter por finalidade a aceitação de suas ideias e de sua identidade enquanto grupo mais do que a transformação da sociedade no geral. Os ecologistas proliferaram após a conferência Eco-92, dando origem a diversas organizações não governamentais inscritas no universo do terceiro setor, voltadas para a execução de políticas de parceria entre o poder público e a sociedade (GOHN, 2011).
A causa ambientalista é uma organização de diversos corpos sociais que se organizam em uma única luta, diferente de outros movimentos. Eles propõem uma ideologia que se contrapõe aos valores pregados pela lógica da sociedade capitalista de produção, questionando o modo de vida atual da civilização e, ao mesmo tempo, atraindo uma enorme quantidade de críticos defensores do status atual, assim como céticos. Tres (2006) identifica o movimento na sua práxis de resistência e luta política.
No Brasil, as primeiras alianças entre grupos ambientalistas se estabeleceram em fins dos anos 1970. Ao atribuir as causas dos problemas ambientais ao “modelo brasileiro de desenvolvimento” implementado pelo regime político autoritário, a mobilização ambientalista se conectou diretamente com a campanha pela redemocratização do país. Foi esse o caso da Campanha pela Defesa da Amazônia (1978), que se opôs aos planos do governo federal de permitir a exploração da Floresta Amazônica por empresas internacionais. Liderada pela APPN (Associação Paulista de Proteção Natural) e ligada à Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural) e ao Mape (Movimento Arte e Pensamento Ecológico), a campanha ganhou o apoio do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e se transformou no Movimento em Defesa da Amazônia, englobando dezoito estados e o Distrito Federal.
Outro exemplo de aliança foi a Campanha contra a Utilização de Energia Nuclear, em 1980, que incluiu as mesmas associações da campanha anterior e também atraiu novos aliados, como o movimento estudantil, movimentos sociais populares, movimentos culturais, cientistas, políticos e religiosos (ALONSO; COSTA; MACIEL, 2007). Em ambas as campanhas a presença de aliados nos âmbitos político e social facilitou as conexões entre esses grupos ambientalistas, criando uma rede de ativismo.
Os movimentos sociais não são instituições, portanto necessitam inventar ou se apropriar de organizações e canais de ação para sua expressão coletiva. Tais estratégias de mobilização incluem “desde bases mais estáveis para o ativismo, como as associações, partidos, sindicatos e instituições públicas, até estratégias informais, como eventos de protesto […]” (ALONSO; COSTA; MACIEL, 2007, p. 160).
É a partir dessas organizações que o movimento ambiental se firma como um instrumento de resistência às intervenções estatais e das corporações econômicas no meio ambiente. Essa resistência é proporcionada pelo processo de racionalização – construído através de interações sociais, que permitem entendimentos em relação à realidade física, social e subjetiva de cada indivíduo.
Entendemos que, assim como a educação ambiental, a educação do campo tem se constituído como uma alternativa contra-hegemônica proposta pelos movimentos sociais em defesa da terra e por melhorias na qualidade de vida dos sujeitos do campo.
O campo é um território palco de disputas e conflitos, onde as relações de poder e saber necessitam ser analisadas, principalmente na esfera da educação. Caldart (2005) ressalta que a educação do campo tem como característica o vínculo com sujeitos sociais concretos e com um recorte específico de classe, sem deixar de incluir a universalidade – antes de tudo, ela é educação, formação de seres humanos. Segundo a autora, a educação do campo conversa com a realidade particular dos camponeses, atentando-se também para a educação do conjunto da população trabalhadora do campo e, de forma mais ampla, com a formação humana.
De acordo com Moreira (2005, p. 16), os valores culturais típicos da “cultura hegemônica (metropolitana, citadina e globalizada), constroem um outro não hegemônico (o rural e o agrícola) sob seu domínio (…)”.
Essa percepção mostra a necessidade de uma educação que materialize os valores socioculturais dos habitantes do campo, de modo que, com o conhecimento, a compreensão e valorização do seu meio possam desenvolver um sentimento de pertencimento (CRIBB; CRIBB, 2007).
A inclusão de tal perspectiva permite que esses atores se sintam sujeitos de sua história, protagonistas na formação de cidadãos conscientes, ativos e responsáveis. A educação ambiental é uma ferramenta fundamental nas escolas do campo, contribuindo no resgate de valores de grande importância para uma visão ética, ecológica, econômica, política, social, histórica, cultural e tecnológica. Tais valores são imprescindíveis no preparo de cidadãos quanto à natureza, as desigualdades sociais, a degradação ambiental.
3 A educação ambiental diante da epistemologia da educação do campo como movimentos de emancipação social
Discussões acerca da educação do campo no contexto atual só se firmaram no Brasil a partir dos anos 80 e 90, com a promulgação da nova constituição e da Lei de Diretrizes Bases da Educação Nacional (LDB), e a realização dos primeiros encontros nacionais, conferências e seminários para discussão, com a devida participação de ONGs ambientalistas e dos movimentos sociais do campo, em especial o MST.
Em relação à produção acadêmica, Loureiro (2006) aponta que desde a década de 1970 já existem teorias acerca da educação ambiental. Dois grandes blocos político-pedagógicos se destacam e se confrontam em suas formulações: um denominado conservador/comportamentalista1 e outro transformador/crítico/emancipatório2.
O pensamento transformador/crítico/emancipatório propõe a educação do campo como um processo permanentemente ligado a: pedagogia do conflito (participação direta dos movimentos sociais), consciência social, cotidiano, coletividade e uma ligação direta com o trabalho e a natureza, possibilitando consequentemente uma transformação da realidade social e movimentos emancipatórios. A visão holística, diferentemente, está centrada no indivíduo, como ele próprio responsável por alcançar uma condição harmônica com a natureza, sendo uma pedagogia não do conflito, mas de autoconsciência. Estimula assim o potencial de religação cósmica existente em cada um, aceitando a ordem social estabelecida na sociedade como uma condição dada (LOUREIRO, 2006).
Agora na perspectiva do movimento do campo, para Caldart, a educação e o movimento do campo nasceram como reivindicação de acesso dos trabalhadores do campo à educação. Depois sua crítica evoluiu para uma educação que levasse em conta sua própria realidade, remetendo necessariamente ao trabalho. Grande influência de movimentos sociais, como o MST, destaca-se na busca por uma educação nas áreas de reforma agrária. Essa luta nasceu de uma crítica prática de “lutas sociais pelo direito a educação, configuradas desde a realidade da luta pela terra, pelo trabalho, pela igualdade social, por condições de uma vida digna de seres humanos no lugar em que ela aconteça” (CALDART, 2009, p. 39). Segundo Caldart (2009), a educação do campo
É um movimento real de combate ao “atual estado das coisas”: movimento prático, de objetivos e fins práticos, de ferramentas práticas, que expressa e produz concepções teóricas, críticas a determinadas visões de educação, de política de educação, de projetos de campo e de país, mas que são interpretações da realidade construídas em vista de orientar ações/lutas concretas (CALDART, 2009, p. 40).
Essa crítica prática acabou se tornando teórica, agregando em sua teoria as formulações da educação ambiental do bloco político-pedagógico transformador/crítico/emancipatório de base marxista, por meio de suas concepções de teoria crítica e práxis revolucionária. Pode-se dizer que “a educação do campo não nasceu como uma crítica apenas de denúncia: já que surgiu como contraponto de práticas, construções de alternativas, de políticas, como crítica projetiva de transformações” (CALDART, 2009, p. 40).
A teoria que embasa a própria educação do campo, e que acaba a transformando em uma potencial forma de emancipação e de autoconsciência por parte de seus sujeitos pode ser interpretada a partir da Teoria Crítica de Marx e sua formulação de práxis social.
A teoria crítica de Marx, em suma, procura trazer um diagnóstico das potencialidades das possíveis condições emancipatórias existentes dentro da própria sociedade capitalista, que podem trazer uma transformação social e uma consequente práxis emancipatória, ou seja, uma relação bem-sucedida entre teoria e prática3 (MELO, 2011).
Em resultado do estágio do capitalismo monopolista hoje existente e com uma consequente intervenção do Estado e das próprias empresas na vida dos indivíduos, criam-se “condições favoráveis para a implementação de um mundo totalmente administrado. Encontra-se obstruída, portanto, toda a possibilidade de emancipação e, por sua vez, a própria relação entre teoria e práxis” (HORKHEIMER apud MELO, 2011, p. 254).
Marx defende o trabalho como veículo de transformação social e emancipatória, mais precisamente um “trabalho concreto”4, propondo que é preciso libertá-lo de suas formas sociais retificadas, para que assim, ele seja transformado em “auto atividade produtiva” (MELO, 2011). Assim:
Marx entendeu a forma de socialização não capitalista segundo categorias de trabalho, ou seja, a capacidade que um sujeito socializado possui para dispor dos meios e dos processos materiais que configuram sua própria vida. Nessa linha de interpretação, a autonomia ou autoatividade produtiva dos indivíduos ou das classes só poderia ser alcançada quando os trabalhadores se apropriassem coletivamente da totalidade da produção, identificando, assim, emancipação e desenvolvimento das forças produtivas (LANGE, 1980). (…) A revolução do capitalismo visava à possibilidade de constituição de uma reorganização social fundada novamente no trabalho, mesmo que de outro tipo. (MELO, 2011, p. 256)
O real projeto de emancipação é aquele no qual se tenta resgatar um projeto de Democracia Radical, muito presente nas pautas dos movimentos sociais, ou seja, “o resgate de um projeto de autodeterminação e de auto realização pelo qual os próprios cidadãos seriam capazes de se organizar de forma livre e igual” (MELO, 2011, p. 258). Para que este projeto de fato aconteça, é preciso que aqui seja formulada a teoria da práxis em Marx e sua relação com os três tipos de atividades humanas fundamentais.
A origem do termo Práxis pode ser buscada na Grécia Antiga. Para Aristóteles existiam três tipos de atividades humanas fundamentais: a práxis, a poiésis, e a theoria. A práxis era vista/interpretada como atividade ética e política5; a atividade produtiva era a chamada poiésis; e a theoria era exclusivamente a busca pela verdade (KONDER, 1992 apudBATISTA, 2007, p. 174).
Marx foi importante na sua época, pois repensou a relação entre a práxis e a poiésis (vista, desde então, sempre como dois conceitos totalmente distintos, sendo que nas sociedades daquela época exaltava-se muito mais a poiésis, pois se vinculava mais com a produção econômica do que a práxis, uma vez que esta última tinha sua ação mais relacionada com o indivíduo político e moral)6. Segundo Batista (2007):
A práxis no sentido que Marx atribui, ação transformadora revolucionária, transcende a condição de simples ação. Contudo, não expressa qualquer ação transformadora, posto que está aprofundada numa concepção dialética da história e da sociedade, une pensamento conscientee ação real, com vistas a transformação radical da sociedade. Isso porque, a práxis torna possível a passagem da teoria à prática, essencialmente, uma práticatransformadora, revolucionária. (BATISTA, 2007, p. 177)
Nessa perspectiva, a educação do campo pode ser considerada como emancipatória, principalmente a partir da tentativa de unir e sintetizar essas três atividades humanas fundamentais (theoria, poiésis e práxis) dentro de sua educação, formando assim a práxis emancipatória que Marx tinha como tese.
Dentro da educação do campo, pode ser considerada theoria toda pedagogia do movimento que é implantada a partir da influência dos movimentos sociais, afirmando e caracterizando a educação como sendo mais do que a escola propriamente dita, vinculando-a às lutas sociais e organizações coletivas, por uma humanização mais plena (CALDART, 2009). Dentro da perspectiva marxista, esse diálogo constante com os movimentos sociais camponeses propicia um diagnóstico crítico da própria sociedade (consciência), que aqui pode ser encarada como a própria educação vinculada aos problemas da comunidade/classe social/movimentos sociais do campo.
A poiésis seria a própria relação diferenciada que os trabalhadores do campo têm com seu trabalho e com a própria educação, sendo a dimensão educativa vista não como “a educação preparando para o trabalho” (perspectiva capitalista), mas “o trabalho como formação desde a educação” (perspectiva socialista). Assim, a relação entre educação e produção funcionaria a partir de que, nos mesmos processos que produzimos produtos para uso tanto individual quanto coletivo, nós nos produzimos como ser humano! (CALDART, 2009). Dentro do marxismo isso funcionaria como autoatividade produtiva em si, ou seja, o trabalho concreto, emancipado e desenvolvido das forças produtivas.
A própria práxis também está presente na educação do campo, a partir da participação ativa de seus cidadãos em atos políticos e éticos nos movimentos sociais do campo, na busca por reivindicações da própria classe que representa.
A fusão dessas três atividades humanas fundamentais dentro da educação do campo pode propiciar a formação de uma práxis emancipatória, aos moldes do que Marx demonstrava, abrindo a possibilidade para abertura de um processo de transformação social vinda do campo e, quem sabe, para a cidade.
4 As práticas pedagógicas emancipatórias da educação do campo na resistência ao projeto de educação do agronegócio
Dada a origem da educação do campo, conduzida pelos próprios camponeses organizados em torno dos movimentos sociais e dos processos de luta pela terra, pode-se visualizar a implementação de uma pedagogia que dialoga com a práxis do campo, estabelecendo vínculos simbólicos e materiais da educação com a segurança e a soberania alimentar. A educação do campo, a partir de discussões práticas sobre a elaboração de matrizes educacionais do campo, atravessadas pelas óticas dos povos tradicionais e da agroecologia, reafirma sua capacidade emancipatória.
A Educação do campo retoma a discussão e a prática de dimensões ou matrizes de formação humana que historicamente constituíram as bases, os pilares da pedagogia moderna mais radicalmente emancipatória, de bases socialista e popular e de referencial teórico marxista, trazendo de volta o sentido de uma ‘modernidade da libertação’. (WALLERSTEIN, 2002 apudCALDART, 2009, p. 42)
A partir das práticas pedagógicas emancipatórias, os movimentos sociais e outros agentes da sociedade civil organizada se reúnem em torno de uma educação do campo – feita por camponeses – e conseguem se contrapor à forma de organização da educação no campo proposta pelos agentes do neoimperialismo estadunidense. Através do exercício de tensões políticas nas fissuras do governo estatal, da explicitação das contradições geradas pelas mazelas do sistema capitalista, os movimentos sociais retomam questões antigas e formulam novas interrogações à política educacional e à teoria pedagógica (CALDART, 2009).
Os movimentos sociais junto a setores da sociedade civil organizada inauguram uma nova frente de batalha, a Educação do campo, dos trabalhadores sem terra, dos camponeses, da pedagogia do oprimido. Não a pedagogia para o campo ou exercida no campo. Uma simples preposição foi motivo de muita luta, muito sangue camponês caído no chão de terra improdutiva, muitas vidas, histórias e culturas de povos tradicionais que se foram, mesmo assim, os movimentos sociais, hoje, engrossam as trincheiras de luta por direito a autodeterminação, habitação e educação. Fornecendo capilaridade à formação dos sujeitos coletivos, batalhando para se constituírem como sujeitos políticos capazes de incidir nas dinâmicas sociais e nas decisões políticas do estado, os movimentos sociais configuram uma nova forma de fazer frente à expansão ianque sobre a América Latina, como corroborado por Caldart (2009, p. 41): “O vínculo de origem da Educação do campo é com os trabalhadores ‘pobres do campo’, trabalhadores sem-terra, sem trabalho, mas primeiro com aqueles já dispostos a reagir, a lutar, a se organizar contra ‘o estado da coisa’".
Na luta por uma educação emancipadora do campo, os movimentos sociais criticam a pedagogia moderna liberal e sua vinculação com as demandas por mão de obra do sistema capitalista. Há um vínculo significativo entre educação e trabalho em todas suas esferas, e no campo não é diferente. Enquanto a pedagogia moderna liberal aponta o desenvolvimento industrial e a necessidade de suprir as demandas estadunidenses como a materialização deste vínculo, a contrapartida dos movimentos sociais é a luta pela desalienação do trabalho. A pedagogia emancipatória dos movimentos sociais concebe de forma crítica a escola ocidental, é contra os epistemicídios eurocentristas, contra a homogenização do conhecimento e transcende os limites da teoria, desempenhando atividades práticas por justiça curricular e representatividade. A escola para a educação do campo tem base na pedagogia do oprimido de Paulo Freire, coloca em prática a escola feita de camponeses para camponeses, repassando não só conhecimento teórico “formal” – como as disciplinas curriculares oficiais – mas também conhecimento técnico – saberes do cotidiano dos moradores do campo, seja em pequenas cidades, vilas e aldeias ou em assentamentos conquistados por movimentos sociais.
Dentre esses conhecimentos técnicos, encontra-se a difusão da agricultura camponesa do século XXI, que trabalha o direito dos povos tradicionais à terra, o direito dos povos às sementes, à água e a ter cooperações autônomas organizadas pelos praticantes de agroecologia (CALDART, 2009). A agricultura campesina mostra que é possível o homem do século XXI se relacionar com a natureza de outra forma, uma forma que não a olhe simplesmente como “recursos naturais”, que ao menos não naturalize o desenvolvimento sustentável, ou qualquer instrumento usado pelo neoimperialismo para justificar a usurpação de nossas riquezas naturais.
Todavia, no Estado estão presentes interesses referentes à acumulação do capital e às reivindicações dos trabalhadores (HÖFLING, 2001), portanto há disputa dentro do estado e na elaboração de políticas públicas, entre a Educação do campo e a Educação para o campo.
Podemos observar de forma clara a manipulação por parte do capital nacional e estrangeiro, materializado na figura do agronegócio, na elaboração de políticas educacionais no campo. Através de uma bancada expressiva no poder legislativo brasileiro e nas instituições estatais, os agentes subordinados ao agronegócio abriram campo para a criação de vários cursos de graduação em universidades públicas, visando atender a demanda do capital por mão de obra qualificada. Almejando gerir a intervenção dos grandes proprietários no manejo de seus latifúndios, cursos de Engenharia de Agronegócios e de Gestão de Agronegócios foram difundidos em pontos estratégicos do território brasileiro. Dentre eles se destacam o curso de Gestão de Agronegócios da Universidade de Brasília (UnB), Agronegócio da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Engenharia de Agronegócio da Universidade Federal Fluminense (UFF) e por último, mas não menos preocupante, encontra a grande maioria dos cursos da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) vinculada à Universidade de São Paulo (USP).
A Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), instituição associadas a diversos bancos, multinacionais e veículos de comunicação como o Banco Itaú, a Bayer S/A e a Rede Globo, desenvolve um projeto de inserção do agronegócio na escola por meio do programa “Agronegócio na Escola”, o programa abrange escolas públicas de alguns municípios no estado de São Paulo e visa discutir a educação ambiental sobre o olhar do agronegócio (http://www.abagrp.org.br/atividadesAgronegocioEscola.php)
A implementação de programas como este em conjunto com os governos municipais e estaduais nos mostra de forma clara como a atuação do estado na educação no campo está impondo a lógica industrial e de mercado nas escolas do campo.
O agronegócio, através dos instrumentos estatais, está moldando a futura força de trabalho rural para ingressar, sem questionamentos, nos campos de colheita e pastoreio dos latifúndios, homogeneizando a produção de mercadorias do setor primário, concentrando a produção do campo na mão da propriedade privada, reproduzindo a lógica de domesticação política exercida pelos países centrais sobre os países periféricos e reafirmando a lógica impositora do capital internacional e a injusta Divisão Internacional do Trabalho (DIT), que limita o espaço ocupado por países periféricos na produção de tecnologia (manufaturas com maior valor agregado) e na elaboração das regras do mercado internacional.
As políticas públicas que regulamentam a educação no campo podem ser visualizadas como um espaço de disputa. Os agentes a favor da acumulação de capital pela propriedade privada e os agentes em prol das organizações populares vivem em constante conflito. A disputa travada entre os agentes perpassa o conteúdo programático das plataformas e currículos nacionais elaborados pelo Ministério da Educação (MEC), as diferentes legislações em nível de unidade da federação, os processos de escolhas de prestação de serviços educacionais ao estado e a prática da educação do campo.
Não é apenas o setor representativo que difere os agentes produtores da educação do campo dos produtores da educação para o campo, suas estruturas e financiamento são extremamente diferentes, este fator é importante balizador para analisar qual é a real proposta de educação que cada agente defende. Agentes financiados pelo patronato rural (propriedade privada) e por seus grupos de investimento licenciados pelo governo federal põem em prática formação técnica, visando conhecimentos de ordem mecânica e sem nenhuma discussão sobre os diversos usos da terra.
Uma ferramenta que o governo federal utiliza para oferecer a sociedade treinamento profissional, educação de origem técnica, consultoria e diversos outros serviços, é o “Sistema S”. O sistema é formado por um compilado de instituições privadas separadas por segmentos. São pertencentes do “Sistema S” as seguintes entidades: Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Serviço Social do Comércio (Sesc), Serviço Social da Indústria (Sesi) e Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac). Existem ainda os seguintes: Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop) e Serviço Social de Transporte (Sest).
Em 2016, a Receita Federal repassou R$ 16 bilhões arrecadados de tributos para nove entidades privadas do chamado Sistema S, como Sesi, Senac, Sesc e Sebrae. O valor equivale a cerca de metade do Orçamento do Bolsa Família de 2017. O volume expressivo de recursos por vezes atrai a atenção de gestores públicos e parlamentares, que gostariam de utilizá-los em outras finalidades, mas enfrentam o lobby organizado da indústria, do comércio e do agronegócio, que controlam as entidades do sistema.[…] Essas organizações são sustentadas com dinheiro arrecadado pelo governo, por meio de contribuições que as empresas são obrigadas a pagar sobre o valor da sua folha de pagamento, mas são entidades de direito privado. Por isso, são chamadas de “paraestatais”. As indústrias, por exemplo, recolhem 1% ao Senai, 1,5% ao Sesi, sobre a folha de pagamento. As empresas do comércio recolhem 1,5% ao Sesc. O dinheiro arrecadado pelo governo é distribuído integralmente para as entidades (O QUE…, 2017).
Há uma problematização a ser feita a respeito deste fato: em vez de a Receita Federal repassar um valor exorbitante para empresas privadas desempenharem serviços públicos, o governo federal poderia atribuir as tarefas das diferentes áreas aos seus respectivos ministérios, para que os serviços públicos sejam produzidos por entidades públicas. A partir da criação de políticas públicas e benefícios que sejam efetivos em prestar retorno aos impostos pagos pela sociedade, é possível possuir programas sociais que atendam a demanda nacional por serviços.
É preciso observar as ações dos diferentes agentes na produção de educação do campo. Propomos observar a atuação do SENAR, entidade paraestatal vinculada ao “Sistema S”. Com o objetivo de proporcionar formação profissional, ensino técnico e de nível médio, o SENAR foi criado pela Lei nº 8.315 de 23/12/91, vinculado à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e mantida financeiramente pela classe patronal rural. É uma empresa privada e expressa abertamente em seu site oficial seu vínculo com o patronato rural.
Afinal, precisamos, enquanto estado nação, definir qual conhecimento queremos dar aos alunos do campo, o conhecimento tecnicista e industrial financiado pelo agronegócio e o neoimperialismo, ou o conhecimento que preza pelas riquezas nacionais e a emancipação dos povos.
É possível visualizar essa disputa entre os agentes produtores da educação do campo como uma relação de poder, essas relações são definitivamente assimétricas (FOUCAULT, 1977). Neste sentindo, os agentes financiados pelo patronato rural, largam na frente na disputa por espaço de construção da educação do campo, enquanto a sociedade civil, organizada em seus diversos movimentos, luta por justiça e inclusão curricular.
Por via de pressão política sobre o estado, bem caracterizado no vínculo entre a teoria e a prática exercida pelos movimentos sociais, grandes atos de massa, fiscalização e denúncia sobre as instâncias de poder estatais e elaboração de saídas políticos pedagógicos, como a educação do campo e a agricultura campesina, os movimentos sociais seguem sobrevivendo nessa disputa desigual, e fazendo frente aos interesses da propriedade privada.
5 Considerações finais
No caso aqui estudado observamos um embate entre modelos de educação. Um é pautado no agronegócio, tem como mentor o próprio Estado e seus interesses ligados a uma burguesia brasileira caracterizada por ser exportadora de commodities. Este modelo de educação é pautado em uma visão de trabalho abstrato no qual se baseia fundamentalmente na visão da própria força de trabalho como uma mercadoria, que detém um valor de capital (salário), além de manter “a função das estruturas objetivas e impessoais sobre as relações concretas dos indivíduos” (MELO, 2011, p. 251), a saber, “uma educação que prepara para o trabalho” (perspectiva capitalista).
O capital, em meio a acumulação flexível globalizada dos dias atuais, atua sobre a educação aprofundando a dualidade Trabalho-Educação, pois o mercado exclui a força de trabalho formal para depois incluí-la novamente por meio de uma precarização (KUENZER, 2004, 2007 apud LIMA et al., 2013), ou seja, “um sistema de educação e formação profissional que inclui para excluir ao longo do processo, seja pela expulsão ou precarização dos processos pedagógicos que conduzem a uma certificação desqualificada” (LIMA et al., 2013, p. 2.973).
Em contrapartida, o modelo de origem dos trabalhadores do campo vê “o trabalho como formação desde a educação” (perspectiva socialista). Assim, a educação do campo possibilita a transformação do simples aluno em um sujeito ativo e consciente da problemática da classe no qual está inserido, portando uma visão crítica propiciada por uma teoria científica e uma prática do real, das necessidades reais do seu contexto familiar e local, aproximando-se, assim, da visão de Marx sobre práxis, que “une pensamento consciente e ação real, com vistas a transformação radical da sociedade. Isso porque, a práxis torna possível a passagem da teoria à prática, essencialmente, uma prática transformadora, revolucionária” (BATISTA, 2007, p. 177).
A educação ambiental e a educação do campo, nessa perspectiva, têm um papel decisivo porque contribui para ampliar a consciência crítica dos indivíduos para a necessidade de construção coletiva de uma nova ordem sociometabólica sustentável e de um saber ambiental. Isto significa uma opção pela educação para além do capital (MESZAROS, 2002), seja ela identificada como ambiental ou como do campo, transformadora e emancipatória que vai para além de “ensinar” bons comportamentos em relação à natureza e ao meio ambiente. É uma educação comprometida com as mudanças de valores e a transformação da sociedade (PINTO; ZACARIAS, 2009).
Concluímos, ao longo do texto, que dentro da visão trazida por Marx de práxis emancipatória, a educação do campo pode ser considerada transformadora e emancipatória, principalmente por unir e sintetizar três atividades humanas fundamentais (theoria, poiésis e práxis), formando assim a práxis emancipatória que Marx tinha como tese, abrindo a possibilidade para abertura de um processo de transformação social vinda do campo e, quem sabe, para a cidade.
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Notas
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