ARTIGOS ORIGINAIS

Um estudo sobre a paisagem acústica de dois fragmentos de restinga da Região dos Lagos/RJ

A study about the soundscape of two fragments of restinga in the Região dos Lagos (Brazil)

Estudio sobre el paisaje acústico de dos fragmentos de restinga en la Región de los Lagos (Brasil)

Juliane Telles Moreira Bezerra de Jesús 1
Brasil
Murilo Minello 2
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Brasil
Fábio Contrera Xavier 3
Brasil

Um estudo sobre a paisagem acústica de dois fragmentos de restinga da Região dos Lagos/RJ

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 21, núm. 3, 2019

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2019 pelos Autores

Recepción: 25 Enero 2019

Aprobación: 02 Diciembre 2019

Resumo: A ecologia acústica, considerada uma nova ciência, estuda os padrões sonoros de um ambiente, através da análise dos fatores biofônicos, geofônicos e antropofônicos da paisagem acústica, que podem ser quantificados e qualificados. Neste trabalho, foi desenvolvido um sistema autônomo para captura e gravação da paisagem acústica de dois fragmentos de restinga do Rio de Janeiro, e elaborado um pequeno catálogo com a caracterização primária da paisagem acústica dessas áreas. Este trabalho permitiu iniciar um banco de dados para futuro monitoramento da qualidade ambiental da restinga da Região dos Lagos, além de apontar algumas sugestões de pesquisas futuras.

Palavras-chave: Ecoacústica, Restinga, Monitoramento acústico.

Abstract: Ecoacoustics, considered a new Science, studies the sound patterns of an environment through the analysis of the biophonic, geophonic and anthrophony from soundscape, indicating patterns that can be quantified and qualified. An automatic system has been developed in this study to capture and record data at two restinga fragments from Rio de Janeiro, and formed a mini catalog of a primary characterization from the soundscape of the areas studied. This study allowed starting a database for future monitoring of environmental quality in areas of restinga in Região dos Lagos (Brazil), in addition to suggesting the direction for future research.

Keywords: Ecoacoustics, Restinga, Acoustic monitoring.

Resumen: La ecología acústica, considerada una nueva ciencia, estudia los patrones de sonido de un entorno mediante el análisis de los factores biofónicos, geofónicos y antropofónicos del paisaje acústico, que se pueden cuantificar y calificar. En este trabajo, se desarrolló un sistema autónomo para capturar y registrar el paisaje acústico de dos fragmentos en un área de restinga de Río de Janeiro, y se elaboró un pequeño catálogo con la caracterización primaria del paisaje acústico de estas áreas. Este trabajo nos permitió comenzar una base de datos para el monitoreo futuro de la calidad ambiental de la restinga de la Región de los Lagos, además de señalar algunas sugerencias para futuras investigaciones.

Palabras clave: Ecoacústica, Restinga, Monitoreo acústico.

1 Introdução

Considerada por Pijanowski et al. (2011a) uma nova ciência que estuda os sons de origem biótica e abiótica de um ambiente, a paisagem acústica, de acordo com Krause (1987), é composta pela biofonia, geofonia e antropofonia (Figura 1).

Composição da paisagem acústica
Figura 1.
Composição da paisagem acústica
Fonte: Adaptado de Pijanowski et al. (2011b)

A geofonia trata dos sons naturais do ambiente, como a chuva caindo num rio, o vento mexendo as folhas das árvores, som de trovoadas etc., enquanto a antropofonia é constituída por sons produzidos por objetos construídos pelo homem, como exemplo dos veículos automotores. A biofonia está relacionada aos sons produzidos pelos animais, como insetos, aves e mamíferos (PIJANOWSKI et al., 2011b) representando funções biológicas diversificadas (BLUMSTEIN et al., 2011; PIJANOWSKI et al., 2011b; VIELLIARD, 1987): defesa do território; reprodução; localização de alimentos; comunicação; dentre outras.

Pijanowski et al. (2011b) elaboraram um modelo conceitual acerca da possível relação entre os elementos da paisagem acústica. Como pode ser visualizado na Figura 2, os distintos ambientes apresentam diferentes níveis de ruído antrópico, e quanto mais elevado o nível dessa antropofonia, menor é o nível da biofonia.

Relação entre os elementos da paisagem acústica, com redução dos níveis de biofonia onde há elevação dos níveis de antropofonia
Figura 2.
Relação entre os elementos da paisagem acústica, com redução dos níveis de biofonia onde há elevação dos níveis de antropofonia
Fonte: Adaptado de Pijanowski et al. (2011b)

A paisagem acústica é uma característica única de qualquer lugar e através do monitoramento acústico é possível prever como um ecossistema pode ser afetado caso haja alteração de um de seus componentes (biofonia, geofonia ou antropofonia) (KRAUSE, 1987). Ratificando, Halfwerk et al. (2011) e Slabbekoorn e Boer-Visser (2006) afirmaram que a poluição sonora interfere no sucesso reprodutivo de aves, mascarando os sons emitidos durante a corte, prejudicando a escolha da fêmea. O estresse causado pelo ruído exige maior atenção empregada aos predadores, diminuindo a atenção aos filhotes e a identificação e atendimento da necessidade dos mesmos (HALFWERK et al., 2011).

Caorsi et al. (2017) mostram fortes evidências sobre o efeito do ruído do tráfego no comportamento de anuros e possivelmente na distribuição das espécies em ambientes próximos às estradas. Em outro estudo, Caorsi et al. (2019) sugerem que a poluição sonora pode afetar o descanso de aves selvagens próximas às áreas urbanas. Apesar de ser um tema ainda pouco explorado, principalmente em populações selvagens, é algo a ser considerado. Em sua tese de doutoramento, Caorsi (2018) reúne diversos exemplos e apresenta uma revisão sobre como a poluição sonora afeta o comportamento animal, além de indicar a necessidade de outras investigações e de legislação sobre o tema.

Com o desenvolvimento de tecnologias para captura dos sons (gravadores portáteis e outras) houve um avanço considerável nesse ramo de pesquisa, possibilitando estudos referentes ao comportamento animal e à interação deles com seus habitat (BLUMSTEIN et al., 2011), porém o custo dessas tecnologias ainda é bastante elevado.

Muitos pesquisadores realizam o monitoramento de fauna por meio de observação in loco, o que exige muito tempo e diversas visitas a campo. O monitoramento passivo autônomo da biofonia permite gravar os sons sem a presença do pesquisador e sem estímulos aos animais. Assim, a análise da biofonia pode auxiliar no monitoramento de fauna, diminuindo o impacto da presença humana e reduzindo os custos de logística de campo, como deslocamentos até a área de estudo, por exemplo. Essa é uma metodologia pouco invasiva para monitoramento dos ecossistemas, ainda mais interessante para ambientes sensíveis, de relevante interesse e Unidades de Conservação de Proteção Integral, que visam preservar ambientes naturais.

A biofonia costuma formar padrões relacionados aos hábitos da fauna, com maior intensidade biofônica nos períodos do amanhecer e do anoitecer, tanto no ambiente terrestre, quanto no ambiente marinho (PIJANOWSKI et al., 2011b; CAMPBELL et al., 2017; CAMPBELL et al., 2019). Com o desenvolvimento de um banco de dados da paisagem acústica de um local é possível identificar as alterações nos padrões da biofonia, realizar o monitoramento das dinâmicas e funções e avaliar a qualidade ambiental (BLUMSTEIN et al., 2011), além de permitir que as gerações futuras tenham acesso e conhecimento da paisagem acústica dos ambientes ainda preservados atualmente, que correm risco de ser alterados e de não retornar ao seu estado de equilíbrio, devido à poluição sonora.

Desta forma, o objetivo geral deste trabalho consistiu em desenvolver uma metodologia para o estudo da paisagem acústica em ambientes de restinga e os objetivos específicos constituíram-se na proposição de uma metodologia com melhor custo-benefício para gravação da paisagem acústica, devido aos elevados custos dos equipamentos e falta de financiamento, além de fomentar um banco de dados acústicos de ambientes terrestres e classificar primariamente as paisagens acústicas registradas.

2 Materiais e métodos

2.1 Áreas de estudo

O estudo de caso foi realizado a partir de dados obtidos em remanescentes de restinga ainda preservados nos municípios de Arraial do Cabo e Cabo Frio (Figura 3), localizados na região das Baixadas Litorâneas do Estado do Rio de Janeiro, apresentando superfícies planas e sedimentos não consolidados gerados a partir da transgressão e regressão marinha que ocorreram no período Quaternário (CPRM, 2000). Essas áreas possuem características geomorfológicas e condições climáticas determinantes para a formação da vegetação, mais especificamente a vegetação de restinga, que é definida pela Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) como:

vegetação que recebe influência marinha, presente ao longo do litoral brasileiro, também considerada comunidade edáfica, por depender mais da natureza do solo do que do clima. Ocorre em mosaico e encontra-se em praias, cordões arenosos, dunas e depressões, apresentando de acordo com o estágio sucessional, estrato herbáceo, arbustivo e arbóreo, este último mais interiorizado (BRASIL, 1993, p. 165).

As duas áreas de estudo selecionadas podem ser identificadas: Arraial do Cabo e Cabo Frio, RJ
Figura 3.
As duas áreas de estudo selecionadas podem ser identificadas: Arraial do Cabo e Cabo Frio, RJ
Fonte: Software Google Earth

A respeito do ecossistema de restinga pode-se observar um grande número de pesquisas realizadas acerca da fitofisionomia e florística no Centro de Diversidade Vegetal1 da região de interesse do presente trabalho, contudo não foram encontrados muitos estudos referentes à fauna associada à esta vegetação, portanto é fundamental que sejam realizadas pesquisas sobre essa fauna para melhor compreensão das relações bióticas na restinga.

Foram selecionadas duas áreas de estudo abrangidas por uma Unidade de Conservação (UC) de Proteção Integral existente na região, o Parque Estadual da Costa do Sol (PECS), que possui 43 fragmentos, criado pelo Decreto 42.929 de 18 de abril de 2011 e gerido pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA). A UC tem o objetivo de proteger a fauna e flora ameaçadas dos remanescentes do bioma Mata Atlântica, considerado Patrimônio Nacional, e possuindo diversos ecossistemas na Região dos Lagos (Decreto 42.929, 2011).

As áreas de estudo possuem vegetação arbustiva aberta, com adensamento urbano à aproximadamente 500 m de distância, em média; à 57 m de distância, aproximadamente, de salinas desativadas; em torno de 487 m das rodovias e ambos locais são margeados por corpo hídrico. O fragmento localizado na Restinga do Foguete também se encontra à aproximadamente 1,5 km do Aeroporto Internacional de Cabo Frio. As duas áreas de estudo podem ser melhor analisadas nas Figuras 4 e 5.

Área 1 – Restinga do Piano / Praia do Pontal – Arraial do Cabo – UTM 23 k 803462.00 m E / 7459035.00 m N
Figura 4.
Área 1 – Restinga do Piano / Praia do Pontal – Arraial do Cabo – UTM 23 k 803462.00 m E / 7459035.00 m N
Fonte: Software Google Earth

Área 2 – Restinga do Foguete – Cabo Frio – UTM 23 K 803099.00 m E / 7462629.00 m N
Figura 5.
Área 2 – Restinga do Foguete – Cabo Frio – UTM 23 K 803099.00 m E / 7462629.00 m N
Fonte: Software Google Earth

2.2 Equipamento de coleta

Foi desenvolvido um sistema autônomo de aquisição de sinais acústicos composto por um microfone Yoga HT-320A com cápsula condensada e resposta de frequência linear entre 100 e 1.600 Hz, de acordo com sua especificação (na prática, foi capturada frequência de até 8.000 Hz, aproximadamente), uma placa de áudio da marca Creative Labs SB1290 Sound Blaster, modelo 70SB129000000 (Frequência de amostragem de 44.1 kHz), um microcomputador da marca Raspberry PI 3-B, e dois power banks da marca Pineng, modelo PN-999, 20.000 mAh e saída 5 V 2.1A (Figura 6).

O sistema foi acoplado a uma placa de alumínio para melhor dissipação do calor, caso houvesse superaquecimento do sistema, e inserido num cano PVC de 100 mm. Como forma de proteção contra a chuva, um colar elisabetano também foi adaptado em uma das extremidades para proteção do microfone, resultando num equipamento de aproximadamente 2,200 kg e 60 cm, batizado de Estetoscópio Ambiental 1 (EA-1) que pode ser observado no item 4 da Figura 7, onde aparece o equipamento finalizado.

Esquema do EA-1: A primeira imagem apresenta a visão total do equipamento, em seguida a simulação de um corte transversal e por último, a visão interna do equipamento após o corte transversal
Figura 6.
Esquema do EA-1: A primeira imagem apresenta a visão total do equipamento, em seguida a simulação de um corte transversal e por último, a visão interna do equipamento após o corte transversal
Fonte: Os autores (2018)

Fases de montagem do EA-1. 1 – Fixação dos componentes do equipamento; 2 – Componentes inseridos no cano PVC; 3 – Pintura/camuflagem do EA-1; 4 – Equipamento finalizado com colar elisabetano, em pesagem
Figura 7.
Fases de montagem do EA-1. 1 – Fixação dos componentes do equipamento; 2 – Componentes inseridos no cano PVC; 3 – Pintura/camuflagem do EA-1; 4 – Equipamento finalizado com colar elisabetano, em pesagem
Fonte: Os autores (2018)

O software do EA-1 foi escrito em linguagem de scripts (shell) e utiliza uma ferramenta do Linux que permite agendamento de comandos ou execução de processos em horários preestabelecidos (nesse caso, aquisição de áudio). Além disso, ele possui um sistema emergencial de correção de falhas (watch dog) que reinicia o sistema de gravação quando algum erro de processamento é detectado.

O sistema desenvolvido consiste em um protótipo, que, devido ao curto período em que foi desenvolvido e à falta de recursos, não foi calibrado, resultando em valores de medição não absolutos.

2.3 Coleta e análise dos dados

Para seleção da Restinga do Foguete como área de estudo levou-se em consideração a segurança do equipamento, pois sua localização permitiu que o equipamento fosse verificado diariamente pela equipe. Na Figura 8 consta a imagem da Restinga do Foguete e, em evidência, está circulada a moita em que o equipamento foi instalado.

Nas figuras 9 e 10 é possível verificar a forma como o equipamento foi instalado, com o microfone voltado para baixo para protegê-lo da chuva, fixado com corda à vegetação, para evitar seu movimento e pancadas em galhos, o que poderia gerar ruídos desnecessários. Na Restinga do Piano o EA-1 foi instalado a aproximadamente 1,70 m do solo e na Restinga do Foguete, por volta de 40 cm do solo. Para a altura em que o equipamento foi instalado, levou-se em conta a altura da vegetação encontrada nos locais: na primeira área o equipamento foi instalado em uma árvore com mais de 3 m (Casuarina sp.) e na Restinga do Foguete o EA-1 foi fixado em uma moita de vegetação nativa, um arbusto de aproximadamente 2 m de altura.

Local de instalação do EA-1 na restinga do Foguete
Figura 8.
Local de instalação do EA-1 na restinga do Foguete
Fonte: Os autores (2018)

Equipamento de aquisição instalado na vegetação da Restinga do Piano, com o microfone voltado para baixo
Figura 9.
Equipamento de aquisição instalado na vegetação da Restinga do Piano, com o microfone voltado para baixo
Fonte: Os autores (2018)

Equipamento de aquisição instalado na vegetação da Restinga do Foguete, com o microfone voltado para baixo
Figura 10.
Equipamento de aquisição instalado na vegetação da Restinga do Foguete, com o microfone voltado para baixo
Fonte: Os autores (2018)

O EA-1 foi programado para realizar as gravações por 1 minuto, a cada 5 minutos (12 min/h). Portanto, uma gravação iniciada às 08:00h, encerrou-se às 08:01h. Após um intervalo de 4 minutos entre as gravações, iniciou-se a seguinte às 08:05, finalizando às 08:06, e assim sucessivamente.

Os áudios foram gravados num intervalo de 72 horas e 20 minutos nos dois períodos de coleta (16 a 17 de julho de 2018 na Restinga do Piano e 21 a 24 de setembro de 2018 na Restinga do Foguete), totalizando, aproximadamente, 17 horas de gravação (1.011 minutos, equivalente a 20% de permanência no campo).

Após a retirada do equipamento dos locais de coleta houve a recuperação dos dados, com sua transferência para o computador para análise. O software Raven Pro 1.5 permite selecionar cada assinatura acústica (PIJANOWSKI et al., 2011b) do espectrograma, para reprodução do áudio apenas do intervalo selecionado, assim as outras fontes sonoras não interferem na interpretação dos elementos da paisagem acústica. Essa é uma forma de facilitar a análise quando há muitas fontes sonoras numa mesma paisagem, sendo necessário isolá-las para que possam ser ouvidas e identificadas corretamente, pelo mesmo motivo todos os áudios foram reproduzidos com amplificação de 30 dB para correlação audiovisual, pois sem a amplificação não seria possível distinguir precisamente os sons. Ademais, os espectrogramas foram gerados utilizando overlap de 50%, Janela de Hanning e resolução da FFT de 1.024.

Também foi realizada uma análise da evolução temporal da potência média da paisagem acústica da Restinga do Foguete na faixa entre 0,1 kHz a 1,5 kHz, através do software Raven Pro 1.5. Essa faixa de frequência foi selecionada por estar relacionada à resposta de frequência do microfone utilizado.

3 Resultados e discussão

Através da análise dos espectrogramas foi possível identificar as assinaturas acústicas de algumas classes de animais, bem como de elementos da geofonia e da antropofonia. A identificação visual das assinaturas permitiu a associação delas a cada áudio, o que tornou a análise mais confiável, dando melhor suporte às informações sonoras.

Foi notado que algumas fontes sonoras ocupavam constantemente determinadas faixas de frequência, como exemplo os anfíbios costumavam ocupar a faixa entre 2 e 8 kHz, o som do vento, a faixa até 1 kHz, normalmente, e motocicletas ocupavam entre 0,5 e 2 kHz, aproximadamente.

Não foi possível caracterizar detalhadamente a biofonia das áreas de estudo no curto período em que foi realizada a pesquisa, porém foi elaborado um pequeno catálogo com o que foi observado, conforme o Quadro 1.

Quadro 1.
Catálogo contendo as informações obtidas nos áudios das áreas de estudo
Catálogo contendo as informações obtidas nos áudios das áreas de estudo
Fonte: Os autores (2018)

Na Restinga do Piano houve predominância de anfíbios e insetos em sua biofonia, devido a sua proximidade a um significativo corpo hídrico. Na Restinga do Foguete, os dados demonstraram a predominância de aves e insetos em sua biofonia. Esse local está próximo a um pequeno corpo hídrico com pouco volume de água, o que provavelmente não atrai a mesma abundância de anfíbios quanto o local da Restinga do Piano. Também se observou na Restinga do Foguete a presença frequente de antropofonia, como aeronaves e veículos automotores, devido à proximidade com o Aeroporto de Cabo Frio e com a Rodovia Estadual (RJ-140).

Essa catalogação juntamente a outras técnicas de quantificação de poluição sonora é importante para avaliação de ambientes impactados. Por exemplo, Farina e Morri desenvolveram o Índice de Complexidade Acústica (ICA), que é uma medida que extrai da paisagem sonora a informação acerca de alterações em sua composição, monitorando sua dinâmica e permitindo verificar a extensão do impacto antrópico sobre a mesma (PIERETTI; FARINA; MORRI, 2011). Pieretti, Farina e Morri (2011) utilizaram o mesmo índice para isolar a biofonia da paisagem acústica e conseguiram identificar um número de espécies de aves menor do que o esperado para o ambiente que analisaram, devido ao sobrevoo de aeronaves na região, que ocasionou a redução do número de vocalizações, e que aparentemente não seriam influenciadas se não houvesse a perturbação. Esse índice representa um importante avanço para a Ecologia Acústica, pois permite gerar informações matemáticas a partir da paisagem acústica de um ambiente, monitorar a biodiversidade e compreender os impactos na biofonia, causados pela antropofonia.

Muitas das espécies encontradas na restinga podem ocorrer em outras formações vegetais da Mata Atlântica ou mesmo em outros biomas (CERQUEIRA, 2000; ROCHA et al., 2003), porém, a partir dos estudos de Rocha et al. (2003) e Reis e Gonzaga (2000), é possível destacar que algumas espécies com ocorrência restrita às restingas do referido estado apresentam grande possibilidade de ocorrência no Parque Estadual da Costa do Sol, e, principalmente, nas áreas de estudo, como: Liolaemus lutzae, Scinax littoreus, Formicivora littoralis e Mimus gilvus antelius.

Também foi possível analisar a variação da potência média na faixa de 0,1 kHz a 1,5 kHz no período de 21 a 24 de setembro de 2018, na Restinga do Foguete, como mostra a Figura 11. Como os áudios evidenciaram maior ocorrência de antropofonia e geofonia na faixa selecionada, nota-se que os picos (dB) se relacionaram, na maioria das vezes, a essas duas fontes de sinal.

Potência média(y) x mês-dia e hora (x) contendo picos de potência registrados de geofonia e antropofonia no período de 21 a 24 de setembro de 2018, na Restinga do Foguete obtidos na faixa de 0,1 - 1,5 kHz
Figura 11.
Potência média(y) x mês-dia e hora (x) contendo picos de potência registrados de geofonia e antropofonia no período de 21 a 24 de setembro de 2018, na Restinga do Foguete obtidos na faixa de 0,1 - 1,5 kHz
Fonte: Os autores (2018)

Na mesma figura pode-se observar picos de potência média entre 0h e 12h do dia 22/09, que coincidiram com a grande ocorrência de sons antrópicos observados, como os frequentes sobrevoos de helicópteros que ocorreram nesse período e, no período das 12h do dia 22/09, à 0h do dia 23/09, os picos coincidiram com aumento do fluxo de motocicletas que passaram pela rodovia próxima da área de estudo. O pico de potência média do dia 23/09, no período de 12h à 0h do dia 24/09, também está relacionado à intensidade dos sons dos helicópteros e motocicletas que foram gravados.

Na faixa de frequência demonstrada nessa figura, há o ruído quase permanente de vento, no entanto não ocorreu nenhum episódio atípico que revelasse pico de potência. Os ruídos de origem biótica não ocorreram em quantidade significativa nessa mesma faixa de frequência.

O período em que o EA-1 permaneceu na Restinga do Piano não foi suficiente para realização de uma análise temporal similar à realizada na Restinga do Foguete, porém, em sua análise audiovisual, foi possível fazer algumas singelas considerações.

No dia 16 de julho de 2018, às 16:35h, na Restinga do Piano, foram detectados ruídos de insetos entre 4,5 e 7,5 kHz, de anfíbios entre 2 e 4,5 kHz e o som do vento na faixa até 1 kHz aproximadamente, como pode ser observado na Figura 12, através de seu espectrograma, no qual a frequência é dada pelo eixo y, o tempo pelo eixo x e a cor indica a potência média.

Espectrograma da Restinga do Piano, às 16:35h do dia 16/07/2018 com predominância da biofonia entre 2 e 7,50 kHz. Abaixo encontra-se a escala de cores da Potência (dB)
Figura 12.
Espectrograma da Restinga do Piano, às 16:35h do dia 16/07/2018 com predominância da biofonia entre 2 e 7,50 kHz. Abaixo encontra-se a escala de cores da Potência (dB)
Fonte: Os autores (2018)

Na Figura 13 há o espectrograma da paisagem acústica da Restinga do Piano, no mesmo dia, às 19:50h, onde se pode verificar a presença de ruídos de insetos na faixa entre 4,5 e 7 kHz, de anfíbios entre 1 e 5 kHz, o som do vento na faixa até 1 kHz e o som de motocicleta entre 1 e 2 kHz, por volta dos 32-60 segundos da gravação.

Espectrograma da Restinga do Piano, às 19:50h do dia 16/07/2018, com a escala de cores abaixo. 1, 2 e 3: insetos; 4, 5 e 6: anfíbios; 7: geofonia (vento); 8: antropofonia (motocicleta)
Figura 13.
Espectrograma da Restinga do Piano, às 19:50h do dia 16/07/2018, com a escala de cores abaixo. 1, 2 e 3: insetos; 4, 5 e 6: anfíbios; 7: geofonia (vento); 8: antropofonia (motocicleta)
Fonte: Os autores (2018)

No dia 21 de setembro de 2018, às 13:45h, na Restinga do Foguete, como pode ser visualizado na Figura 14, foi verificado que entre 5,5 e 7 kHz houve a expressão sonora de insetos e na faixa até 1,5 kHz consta a frequência do som do vento.

Espectrograma da Restinga do Foguete, às 13:45h do dia 21/09/2018. A faixa superior (1) (entre 5,5 e 8 kHz) apresenta insetos e a faixa inferior (2) (0 a 1,5 kHz) apresenta a geofonia (vento)
Figura 14.
Espectrograma da Restinga do Foguete, às 13:45h do dia 21/09/2018. A faixa superior (1) (entre 5,5 e 8 kHz) apresenta insetos e a faixa inferior (2) (0 a 1,5 kHz) apresenta a geofonia (vento)
Fonte: Os autores (2018)

Ao observar a Figura 15, na qual há o espectrograma da paisagem acústica da Restinga do Foguete, às 14:40h do dia 21 de setembro de 2018, é possível identificar duas assinaturas bioacústicas, em que aos 15 - 20 segundos, na faixa entre 2 e 8 kHz há a biofonia de uma ave e entre 45-60 segundos, na faixa 6,5-7 kHz há a assinatura de um inseto, que não foi possível ser identificado, e que, no entanto, apareceu diversas vezes em outros espectrogramas do mesmo local.

Duas assinaturas bioacústicas às 14:40h do dia 21/09/2018, na Restinga do Foguete. Em amarelo, a biofonia de uma ave e em preto, de um inseto
Figura 15.
Duas assinaturas bioacústicas às 14:40h do dia 21/09/2018, na Restinga do Foguete. Em amarelo, a biofonia de uma ave e em preto, de um inseto
Fonte: Os autores (2018)

Na Figura 16, no dia 22 de setembro de 2018, às 17:25h, na Restinga do Foguete, foram identificadas ao menos três assinaturas biofônicas (itens 1, 2 e 3) e uma motocicleta foi identificada até os 25 segundos, aproximadamente, na faixa de 0,5-2 kHz (item 4). Na Figura 17 pôde ser verificada a presença de uma espécie de ave na faixa entre 3 e 7 kHz e a assinatura de um helicóptero, na faixa até 1,5 kHz, no espectrograma do dia 23 de setembro de 2018, às 05:15h, na Restinga do Foguete.

Espectrograma da Restinga do Foguete, às 17:25h do dia 22/09/2018, contendo biofonia nos itens 1, 2 e 3, antropofonia (moto) no item 4 e geofonia (vento) no item 5
Figura 16.
Espectrograma da Restinga do Foguete, às 17:25h do dia 22/09/2018, contendo biofonia nos itens 1, 2 e 3, antropofonia (moto) no item 4 e geofonia (vento) no item 5
Fonte: Os autores (2018)

Restinga do Foguete, às 05:15h do dia 23/09/2018, apresentando a assinatura acústica de uma ave (bioacústica) na faixa amarela e helicóptero (antropofonia) na faixa vermelha
Figura 17.
Restinga do Foguete, às 05:15h do dia 23/09/2018, apresentando a assinatura acústica de uma ave (bioacústica) na faixa amarela e helicóptero (antropofonia) na faixa vermelha
Fonte: Os autores (2018)

Ainda no dia 23 de setembro de 2018, às 16:15h, na Restinga do Foguete (Figura 18), foi constatada a ocorrência de uma intensa assinatura, que foi identificada como um avião, aos 5-22 segundos e na faixa de 0-9 kHz. Na faixa de 6,6-7,5 kHz houve a identificação de um inseto, porém seu ruído foi interrompido aos 7 segundos da gravação, aproximadamente, devido à presença do avião que, aparentemente, ocupou sua faixa de frequência. Pôde-se observar, também, que alguns segundos após a desocupação dessa frequência o inseto retornou sua atividade acústica.

Paisagem acústica da Restinga do Foguete às 16:15h do dia 23/09/2018, indicando biofonia (inseto) em amarelo e antropofonia (avião), em vermelho
Figura 18.
Paisagem acústica da Restinga do Foguete às 16:15h do dia 23/09/2018, indicando biofonia (inseto) em amarelo e antropofonia (avião), em vermelho
Fonte: Os autores (2018)

4 Considerações finais

A partir das gravações obtidas foi possível gerar a caracterização primária da paisagem acústica dos fragmentos analisados, em que foi observada a predominância de insetos, aves e anfíbios, na biofonia, aeronaves e motocicletas na antropofonia, além de chuva e vento, na geofonia. É importante salientar que a caracterização realizada se refere à paisagem acústica dos áudios obtidos nos períodos em que houve coleta dos dados para elaboração desta pesquisa, portanto, para caracterização definitiva das paisagens acústicas, seria necessário um monitoramento de, no mínimo dois anos, e uma pesquisa mais aprofundada para que fosse possível caracterizar os locais e até mesmo definir suas paisagens acústicas.

A experimentação do Estetoscópio Ambiental 1 (EA-1) confirmou sua eficácia em obter dados acústicos, transformando-o rapidamente numa opção de melhor custo-benefício para a coleta de informações acústicas e seus estudos, sendo uma alternativa de menor custo em comparação aos equipamentos que existem no mercado. Esta pesquisa fomenta a formação de um banco de dados das áreas de restinga, através da relevância demonstrada na realização dos estudos acerca da paisagem acústica, para que no futuro seja possível fazer o monitoramento e a análise ambiental dessas áreas.

Associando o EA-1 aos inúmeros softwares existentes para a análise dos dados obtidos, é possível equipar-se de uma ferramenta acessível para diversas áreas de estudo. A metodologia empregada pode ser associada a diferentes tipos de pesquisa, como o monitoramento ambiental, a investigação dos impactos que a antropofonia pode ocasionar à biofonia, mensurando o impacto sonoro causado por visitação desordenada em Unidades de Conservação de Proteção Integral, por exemplo.

Como sugestões de trabalhos futuros aponta-se a utilização da metodologia empregada para:

Os estudos sobre a paisagem acústica contribuem e ainda poderão contribuir para a conservação, preservação e recuperação ambiental e auxiliarão a compreender ambientes ainda pouco estudados no aspecto faunístico ou sobre os impactos sonoros num determinado ambiente.

Referências

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Notas

1 O Centro de Diversidade Vegetal de Cabo Frio foi apontado dessa forma pela IUCN (International Union for Conservations of Nature) e pela WWF (World Wide Fund for Nature) em 1997, por apresentar importante riqueza de espécies da flora na região de Cabo Frio, Rio de Janeiro (ARAUJO et al., 2009).

Notas de autor

1 Especialista em Ciências Ambientais em Áreas Costeiras pelo IFRJ Campus Arraial do Cabo/RJ – Brasil. E-mail: julianetelles@hotmail.com.
2 Mestre em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor de Ecologia em regime de dedicação exclusiva do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) Campus Arraial do Cabo/RJ – Brasil. E-mail: murilo.minello@ifrj.edu.br.
3 Mestre em Engenharia Oceânica pela COPPE/UFRJ (2016) e Doutorando em Biotecnologia Marinha pelo Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira (IEAPM/UFF) – Arraial do Cabo/RJ – Brasil. E-mail: fabio.contrera@marinha.mil.br.
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