ARTIGOS ORIGINAIS

Hip-Hop sem Lentes: Estudo de Caso Partindo da Experiência dos Bboys de Curitiba

Hip-Hop without Lens: a Case Study on the Curitiba's Bboys Experience

Hip-hop sin lentes: estudio de caso a partir de la experiencia de los Bboys de Curitiba

Gabrielle de Souza Santos 1
Brasil
Dalvani Fernandes 2
Instituto Federal do Paraná, Brasil

Hip-Hop sem Lentes: Estudo de Caso Partindo da Experiência dos Bboys de Curitiba

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 21, núm. 2, 2019

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2019 pelos Autores

Recepción: 12 Febrero 2019

Aprobación: 26 Mayo 2019

Resumo: A cultura Hip-hop organizou-se nos guetos estadunidenses em 1970 e, com o processo de globalização, logo chegou às periferias brasileiras. Tomando como referência a cidade de Curitiba, verifica-se que os mesmos agentes que criminalizam o Hip-hop, como a grande mídia, apropriam-se e utilizam-se de seus elementos na indústria cultural em prol de interesses próprios, em geral, políticos e financeiros. Considerando que no início esse movimento foi ferramenta de resposta à repressão social, o que tal apropriação implica na manifestação e na dinâmica do Hip-hop com o indivíduo? Esta pesquisa busca problematizar essa questão utilizando métodos qualitativos em nosso recorte urbano.

Palavras-chave: Hip-Hop, Mídia, Breaking, Jovens, Curitiba.

Abstract: Hip-hop culture emerged in the American ghettos in 1970 and, because of the globalization process, it soon reached the periphery of Brazilian cities. Investigating this cultural phenomenon in the city of Curitiba, we found that the same agents who criminalize Hip-hop, such as mainstream media, appropriate and use its elements in the cultural industry for political, financial and personal interests. Considering that in its beginning this movement was a tool of response to social repression, what does such appropriation imply in the manifestation and dynamics of Hip-Hop in individuals? This research seeks to problematize this appropriation through qualitative methods from an urban perspective of investigation.

Keywords: Hip-Hop, Media, Breaking, Youth, Curitiba.

Resumen: La cultura Hip-hop se organizó en los guetos estadounidenses en 1970 y con el proceso de globalización pronto llega a las periferias brasileñas. A partir de la ciudad de Curitiba (Brasil), se verifica que los mismos agentes que criminalizan al Hip-hop, como los grandes medios, se apropian y utilizan sus elementos en la industria cultural, en pro de intereses propios, en general, políticos y financieros. Considerando que al principio este movimiento fue herramienta de respuesta a la represión social, ¿qué significa tal apropiación en la manifestación y en la dinámica del Hip-hop con el individuo? Esta investigación busca problematizar esa apropiación utilizando métodos cualitativos en nuestro recorte urbano.

Palabras clave: Hip-Hop, Medios, Breaking, Jóvenes, Curitiba.

1 Introdução

1.1 Hip-Hop – Uma Cultura Periférica

A cultura Hip-hop é composta por quatro elementos. Segundo Bezerra (2009, p. 29), “a Zulu Nation1 também classificou os elementos que definem este movimento e são eles o MC, o DJ, o break e o graffiti.” Fernandes (2016) explica que rap é uma sigla que designa Rhythm And Poetry (Ritmo e Poesia), sendo o resultado da junção dos elementos MC (Mestre de Cerimônia) e DJ (Disc Jockey). O MC se coloca no papel de escrever e cantar a letra do rap, e o DJ de compor ou executar a batida (melodia da música) do rap. O autor em foco também argumenta que o vocábulo break pode ser encontrado na grafia breaking, com “ing” no final, indicando ação ou movimento desse/nesse elemento. A principal característica do Hip-hop consiste na utilização dos seus elementos como ferramentas de motivação e resistência de classes desfavorecidas social e economicamente, originalmente estigmatizadas por viverem em periferias e guetos.

De acordo com Bezerra (2009, p. 81), é nítido que uma das principais formas de disseminação da cultura Hip-hop se deu pela mídia e pela apropriação industrial: “a expansão do rap só foi possível devido a esta indústria – pelos discos, videoclipes, e a moda dos rappers – que potencializou e ampliou as vozes vindas da periferia”. O livro “O hip-hop está morto” de Toni C. (2012) mostra, por meio de um romance histórico, o perfil do Hip-hop brasileiro. Para ele, assim como nos EUA, aqui a indústria fonográfica também conseguiu se apropriar desse estilo originalmente criado para contar o cotidiano das ruas periféricas.

Ao olhar para o processo de desenvolvimento do Hip-hop, deve-se atentar para o fenômeno complementar, para não dizer que Hip-hop é uma consequência deste, que eclode no mesmo período de surgimento do movimento e que possibilitou que os meios midiáticos e a dinâmica social pela qual o Hip-Hop fluiu fossem concretizados: a globalização.

O Hip-hop, em sua origem, se inicia como instrumento de luta e resistência, não necessariamente aliado à grande mídia, conforme aponta Vassou (2006, p. 48):

Mesmo mantendo suas características originais, adapta-se a cada realidade regional e foi instrumento de defesa contra interesses capitalistas, e fundamental na urbanização das periferias levantando discussões, formando lideranças, até demarcando territórios e debatendo políticas públicas.

Por outro lado, a mesma conformação do Hip-hop à realidade local implica, por consequência, a alteração de alguns objetivos e ideias, principalmente se tratando da adaptação do Hip-hop para o âmbito da mídia, do comércio e da indústria. Nessa perspectiva, propõe-se traçar uma linha histórica com o intuito de compreender as origens da cultura Hip-hop, assim como as implicações que levaram à mudança.

1.2 HIP-HOP: origem histórica

De acordo com Tricia Rose, no processo de desindustrialização pelo qual passavam os EUA nos anos de 1960, negros e hispânicos, entre outros, entraram em um período de maior turbulência em virtude do aumento do desemprego, da violência, da ausência de espaços para lazer e da inserção social e econômica, por exemplo. Alguns espaços conhecidos como guetos ficaram marcados com esse estigma de pobres e violentos. Por conta dessa ausência do Estado, bairros nova-iorquinos como o Bronx, Brooklyn, Harlem e Queens tornaram-se o berço de movimentos provenientes das necessidades vivenciadas por essas comunidades, e, nesse contexto, surge o Hip-hop. Nas palavras de Tricia:

A cultura hip-hop emergiu como fonte de formação de uma identidade alternativa e de status social para jovens numa comunidade, cujas antigas instituições locais de apoio foram destruídas, bem como outros setores importantes. […] A identidade do hip-hop está profundamente arraigada à experiência local e específica e ao apego de um status em um grupo local ou família alternativa. Esses grupos formam um novo tipo de família, forjada a partir de um vínculo intercultural que, a exemplo das formações das gangues, promovem isolamento e segurança em um ambiente complexo e inflexível. E, de fato, contribuem para as construções das redes da comunidade que servem de base para os novos movimentos sociais. (ROSE, 1997, p. 202).

A formação de uma família alternativa possibilitou vínculos e associações pessoais criados a partir da identificação de que todos fazem parte de uma mesma realidade; no caso, os guetos nova-iorquinos. Esse novo contexto permitiu aos jovens dar novos sentidos a sua realidade. A violência das gangues foi ressignificada e substituída por batalhas de breaking, rappers disputavam rixas por intermédio de uma “guerra de rimas” – o Freestyle. Grupos de grafiteiros ampliavam seus territórios lançando mão do graffiti nas mais diversas áreas de seus bairros. A junção desses elementos, que já existiam de forma individual, resultou na construção de uma comunidade que se uniu pela identificação com a pobreza e a discriminação racial, e que deu um novo senso de pertencimento, de família simbólica.

Dentre todos os elementos, a música rap foi o que mais se disseminou pelo mundo.

O surgimento do hip-hop está diretamente vinculado à história da música negra norte-americana e a luta por espaço e visibilidade por parte desse segmento. Os guetos de Nova York – habitados majoritariamente por uma população negra e pobre – foram o local onde surgiram as primeiras experiências da cultura. De lá, o hip-hop se disseminou para outras áreas, obtendo força principalmente nos centros urbanos que apresentam uma deficiente infraestrutura sócio-urbana. (SOUZA, 2004, p. 69).

A influência simbólica da música negra, como o jazz e o blues, auxiliou diretamente no direcionamento das estruturações do Hip-hop, em especial nos seus objetivos.

Além do jazz e do blues, o reggae exerceu um papel fundamental nesse início histórico do Hip-hop, já que o DJ é proveniente dos sound-systems.

Os sound-systems eram caminhonetes ou caminhões equipados com som que levavam entretenimento para a população nas ruas de cidades jamaicanas como Kingston, já que, assim como nos guetos de Nova Iorque nos anos de 1960, a população pobre não tinha acesso a lazer e diversão. Quem nos ajuda a entender melhor isso é Carlos Albuquerque (1997, p. 17):

No início dos anos 50, a Jamaica começou a industrializar a sua frágil economia, causando a migração do campo para as cidades, em especial para Kingston. [...] Os jamaicanos tinham caído de amores pelo radiotransistor, com o qual conseguiam captar ondas sonoras vindas dos Estados Unidos. O som que pegou melhor na ilha foi o rhythm and blues de New Orleans e arredores. Ao povão, além da grana, faltava acesso aos discos. Da necessidade, surgiu a solução [...]. Surgiram assim os primeiros sound-systems – caminhonetes ou caminhões equipados com alto-falantes potentíssimos, que levavam música para a galera, animando multidões em cada esquina, transformando as ruas de Kingston em grandes salões de baile ao ar livre. Parentes caribenhos dos trios elétricos, os sound-systems são a espinha dorsal da música jamaicana.

Logo no seu surgimento, a figura do selector (responsável por selecionar ritmos/músicas) nos sound-systems precedeu o surgimento da figura do DJ, que posteriormente dará origem a um dos elementos do Hip-hop. Novamente Albuquerque (1997, p. 47) nos auxilia: “Ali trabalhavam o deejay (que poderia ser o próprio dono do SS) e o selector. O deejay era o responsável pela animação dos eventos, o mestre de cerimônias, inspirado nos disck-jockeys americanos nos anos 50.”

Fundamentado nesses fatos, vê-se o surgimento do Hip-hop, diretamente relacionado à cultura jamaicana. Somada ainda a outras raízes negras como o jazz e o blues, a relação com o reggae acrescentou ao Hip-hop características e valores simbólicos, tais como a resistência cultural, a afirmação de identidade e a luta contra as situações que criavam desigualdades sociais, culturais, econômicas e políticas.

A relação com as culturas originalmente africanas não se limita à relação com o reggae, . blues e o jazz. Antecedendo os anos de 1970, ainda nos séculos XVIII e XIX, a população afrodescendente cultivava os spirituals e a figura do griot, que posteriormente também cederam ao Hip-hop algumas características e significados simbólicos.

Os spirituals são um dos estilos musicais mais genuínos do século XIX, caracteriza Dal Coletto, com ritmo claro, simplicidade estrutural e passível de ser recheado com improvisos que geraram variantes musicais (s/d, p. 03). Segundo Coletto, esse ritmo foi fruto da relação entre os escravos das 13 colônias estadunidenses e as Igrejas Metodista e Batista. A temática dos spirituals, aponta Dal Coletto (s/d, p. 4), extrapola a temática religiosa, podendo por vezes incorporar, “ainda que sob uma ‘roupagem’ religiosa, temas como a dura jornada de trabalho, a opressão vivida, os anseios de liberdade e a morte.” Mesmo após a abolição da escravatura estadunidense, o estilo perpetuou e contribuiu com outros estilos como o blues.

Os griots são indivíduos que transmitiam oralmente, com histórias e canções, ensinamentos de sua cultura. De acordo com Fernandes (2016), os griots africanos eram sujeitos muito respeitados em suas tribos, tanto que não enterravam seus corpos em qualquer lugar, e acreditava-se que eles seriam muito poderosos, mesmo depois de mortos. Contemporaneamente falando, os Mcs (rappers) de hoje cumprem nas periferias das grandes cidades o papel dos griots, são herdeiros dessa cultura oral e a utilizam para “ensinar” aos jovens uma concepção de mundo. Na apresentação do livro “Griots – culturas africanas: linguagem, memória, imaginário” (2009), a autora esclarece a importância dos griots.

A geografia da fala africana traz na flor do discurso o legado das inscrições mais sagradas. Toda voz é cartografia das identidades. Na voz de um Griots, encontram-se os vestígios de uma memória cultural e do que foi apagado pela história oficial. O que significa falar contra o passado se não há intenção de mudar o percurso sangrento da história? Falar é de alguma forma assumir a voz cultural de algum lugar; todo signo traz fendas ideológicas. (LIMA; NASCIMENTO; ALVEAL, 2009, p. 6).

Partindo desse histórico e do pressuposto de que “todo signo traz fendas ideológicas”, conclui-se que, em sua origem, o Hip-hop está entrelaçado com uma cultura de resistência, enraizado na África e na cultura negra que ela representa, surge para dar voz aos griots modernos, em novos tempos reivindicando a mesma liberdade. Observa-se que a história aponta para espaços como a rua, com os sound systems jamaicanos, e até mesmo para a religião, na influência dos spirituals.

Mais que uma ideologia, esse fenômeno se apresenta como meio de criação/ressignificação da realidade. Pensando no contexto brasileiro, observa-se que o Hip-hop nacional “uniu” as juventudes marginalizadas das grandes cidades, emergindo como a expressão do povo pobre da periferia. Para Fernandes (2016, p. 59), os jovens pobres, por intermédio do Hip-hop, “independente da cor da pele, podem se unir e reclamar direitos, gritar dores, expor sentimentos, legitimar seu ódio, cantar suas alegrias, enfim, criar símbolos que permitam construir sua realidade e mostrá-la para todos que quiserem vê-la.” O jornalista e pesquisador de Hip-hop, Oswaldo Faustino, descreveu de maneira apaixonada a ascensão dessa cultura no Brasil.

É ensurdecedor o brado que emana da goela do inferno – logo ali, em torno da grande cidade. Vem em ondas concêntricas e vai tomando as zonas centrais, as circunvizinhanças dos ricos condomínios, as universidades – um brado que fede, que arde, que sangra, que dói –, carregado de miséria, de fome, de desemprego, de desabrigo, de violência, de crueldade, de álcool, de drogas, de estampidos e de carência (de oportunidades, de educação, de saúde, de respeito, de direitos, de futuro). (...) Um brado que sempre esteve lá, mas a sociedade jamais poupou seus esforços para torná-lo inaudível, imperceptível, impotente. Brado mudo, num país que tem orgulho de se fazer de surdo. Mas o tempo se incumbiu de amplificar esse som, que ecoa da periferia. Ele ganhou força descomunal e rompeu a blindagem dos ouvidos e dos corações do Brasil. Meninos e meninas, munidos da inconformidade própria da juventude, foram tomando consciência do mundo em que vivem e da própria força e capacidade de modificá-lo, se assim o quiserem. (ROCHA; DOMENICH; CASSEANO, 2001, p. 09-10) [grifo nosso].

1.3 HIP-HOP e a mídia

Com o processo de globalização, o Hip-hop se espalhou pelo mundo todo e se adaptou a distintas realidades, o que, como consequência, tornou inevitável o processo de apropriação do estilo, dos elementos e das características peculiares dos jovens pobres que faziam e consumiam Hip-hop. A incorporação do estilo Hip-hop por aqueles/as que não eram da periferia gerava desconforto entre a comunidade Hip-hop, que registra esses momentos de tensão em suas letras, como por exemplo: “só quem é, só quem é, só quem é sobrevive e segue na missão!” (trecho da letra “Só quem é”, do grupo “Comunicação Racial”). A ideia explorada nessa afirmação revela uma separação entre os que são e os que não são, os de dentro e os de fora. A dualidade é posta na construção de uma identidade pautada na alteridade.

Para Santos, há um processo de controle de alguns elementos culturais com o objetivo de manipulação de seus consumidores. É possível que o Hip-hop, em seu complexo evento de dinamização, esteja envolvido em tal processo de massificação.

No caso das modernas sociedades industrializadas é comum que elas sejam consideradas como sociedades de massa, onde as instituições dominantes têm de prover e até mesmo criar as necessidades de multidões e de seus participantes anônimos, da mesma forma que desenvolvem mecanismos eficazes para controlar essas massas humanas, fazê-las produzir, consumir e se conformar com seus destinos e sonhos. Uma sociedade assim exige mecanismos culturais adequados, capazes de transmitir mensagens com rapidez para grandes quantidades de pessoas. (SANTOS, 1996, p. 55).

A própria comunidade possui em seu contexto diferentes realidades com fatores determinantes de adequação da cultura, tais como religiosidade, crenças, círculos sociais, entre outros. Com as peculiaridades individuais de cada situação pertencendo ao mesmo cenário do Hip-hop, não é possível dizer que em todos os casos a cultura é genuinamente original à sua forma e objetivo, pois o Hip-hop é consumido por todos, impossibilitando a cristalização de uma identidade original.

A utilização do Hip-hop, seja possibilitando ao indivíduo sua autoafirmação ou fuga da realidade, também implica a adequação da cultura, levando em consideração a individualidade de cada um que a incorpore. A adequação ocorre inclusive na mistura dos elementos do Hip-hop com outras estruturas, como a mistura entre o Hip-hop e a cultura pop.

Exemplo dessa dinâmica é a reafirmação da identidade negra por meio dessas manifestações, que busca na cultura seus valores identitários, moldando o Hip-hop para sua ressignificação e autoafirmação diante da sociedade:

Entendendo que o hip hop é hoje um dos mais importantes movimentos de construção e autoafirmação da identidade do negro na sociedade brasileira rumo à alteridade e ao respeito negados ao longo da maior parte da sua história. Sua atuação no contexto social atual surge como fruto da tomada de consciência das inúmeras faltas cometidas contra os afro-brasileiros em nome da cor da pele, pautando-se pela busca de caminhos que conduzam ao reconhecimento e ao respeito às diferenças da nossa comunidade por meio da arte e da cultura. (PAULA, 2011, p. 72).

2 Dos Livros às Ruas: O Hip-Hop Visto pelas Lentes da Etnografia

A partir deste momento, os estudos de campo realizados ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, buscando respostas para as perguntas norteadoras, serão compartilhados. Foram realizadas observações etnográficas presenciais em eventos de Hip-hop juntamente com a anotação em diário de todos os dados que chamaram atenção em cada evento.

A etnografia foi a ferramenta metodológica de estudo qualitativo escolhida nesta fase da pesquisa pelo fato de possibilitar a compreensão a partir da observação do fenômeno estudado no ato de sua manifestação, verificando todas as suas dinâmicas e como cada indivíduo se interliga no todo. Permite observar cada detalhe da cultura para interligar as informações, o que ajudará a chegar à conclusão que se espera. A partir da etnografia, a perspectiva do indivíduo que vivencia o Hip-hop, que é o protagonista desta pesquisa, é observada e descrita nos diários de pesquisa de campo proporcionando a construção deste mapa do saber social:

Assim, o que se propõe inicialmente com o método etnográfico sobre a cidade e sua dinâmica é resgatar um olhar de perto e de dentro capaz de identificar, descrever e refletir sobre aspectos excluídos da perspectiva daqueles enfoques [...] A mudança de foco que a perspectiva antropológica possibilita, principalmente em função do método etnográfico, tem a vantagem de evitar aquela dicotomia que opõe, no cenário das grandes metrópoles contemporâneas, o indivíduo e as megaestruturas urbanas. (MAGNANI, 2002, p. 17).

Durante as atividades de campo etnográficas, o mais importante instrumento de documentação (de tudo que os sentidos podem captar) é o diário de campo. Por meio desse registro foi possível enxergar e absorver muito mais do que se pode observando apenas uma vez sem registros. Ele permite analisar informações que, antes despercebidas, passam a incorporar o corpo da conclusão do estudo. Neste capítulo estarão dispostas passagens do diário desta pesquisa.

2.1 Festival Internacional de Hip-hop

Foi analisado presencialmente o FIH2 (XV Festival Internacional de Hip-hop), que ocorreu no Teatro Positivo (localizado no bairro Cidade Industrial de Curitiba) dos dias 8 a 10 de julho de 2016. A programação, contemplando os dois dias por completo, variava entre shows, workshops, festas, palestras e algumas outras atrações. A visita foi feita no último dia (domingo), o único com programação gratuita, no qual ocorreriam as batalhas de bboys2 no período da tarde.

O evento contava com a cobertura informativa de grandes canais da televisão aberta, página em redes sociais, site oficial e um aplicativo para smartphones. Convidados, programação, roteiro e venda de ingressos estavam disponíveis nesses meios dias antes do fim de semana do evento. Segundo idealizadores, o número de frequentadores desse evento anualmente organizado passa dos milhares.

Proporciona o encontro nacional e internacional de dançarinos, professores e coreógrafos objetivando o intercâmbio cultural e promoção de uma atualização e reciclo profissional por meio das competições, mostras, oficinas e palestras. Oferece à uma parcela significativa de jovens praticantes da modalidade condições de espaço e liberdade para a expressão individual da dança como o valor motivador e maneiras de se compartilhar a linguagem universal da dança. Desde o seu início, no ano de 2002, com realizações no Teatro Ópera de Arame e posteriormente no Centro de Convenções do Shopping Estação na cidade de Curitiba, Paraná, o festival registrou a passagem de mais de 21.000 bailarinos, assistidos por 110.000 espectadores presentes. Atualmente o Festival acontece dentro do câmpus de uma das mais importantes instituições de Ensino Superior do Brasil, a Universidade Positivo localizada na cidade de Curitiba – PR. (FESTIVAL..., 2019).

Apesar de a atração escolhida ser gratuita e contar com o envolvimento e presença da comunidade periférica que já dança no Museu Oscar Niemeyer e no piso do Shopping Itália (como bboy Dinamite, ganhador do campeonato), o espaço do espetáculo era diferente do normalmente frequentado pelos Hip-hoppers. Outdoors, logotipos em evidência, equipamentos de som e iluminação, e piso especial para as acrobacias são apenas alguns dos elementos que compunham aquele cenário planejado com muita infraestrutura (Figuras 1 e 2).

 Festival Internacional de Hip-hop (I)
Figura 1.
Festival Internacional de Hip-hop (I)
Fonte: FESTIVAL... Disponível em: http://fih2.com.br/portfolio-items/super-workshop-2017/?portfolioCats=22%2C20%2C70%2C21%2C19. Acesso em: 5 ago. 2019.

Festival Internacional de Hip-hop (II)
Figura 2.
Festival Internacional de Hip-hop (II)
Fonte: FESTIVAL... Disponível em: http://fih2.com.br/portfolio-items/apresentacoes-2017/?portfolioCats=22%2C20%2C70%2C21%2C19. Acesso em: 5 ago. 2019.

Eu não consigo contar quantas câmeras tem aqui. Tenho a impressão que nenhum ângulo está sendo perdido. Celulares, máquinas fotográficas, filmadoras e muito playboy. O ícone da Red Bull por toda parte. Todos os workshops foram pagos. Só a batalha dá pra entrar tranquilo. O ambiente parece ser bem seguro, vi alguns seguranças. (DIÁRIO DE CAMPO, p. 2, 2016).

A grande maioria dos espectadores das batalhas eram jovens de 14 a 25 anos. Muitos deles possuíam smartphone, cortes e cores de cabelo diferentes, andavam em pequenos grupos de pessoas de mesma idade e utilizavam gírias. Roupas de marca, bonés, moletons eram característicos do público, que permaneceu sentado formando uma roda no centro para os dançarinos fazerem suas performances. É possível encontrar vídeos e mídias nos anais do evento e no Youtube remontando a diversos momentos de todo o festival.

Nas propagandas, folders e descrições dos workshops vendem muito a imagem do “profissional” e ou “dançarino de renome internacional”. No site e no APP tem muita propaganda dos workshops. Não vi o termo “profissional” sendo usado nos eventos de rua ou no dia a dia do breaking, só nesse evento. (DIÁRIO DE CAMPO, p. 1, 2016)

Percebe-se que a realização desse evento não acontece como lazer apenas, mas também como busca pela divulgação de marcas, dançarinos e alcance de consumidores do comércio em torno disso, como reforça Luciana:

Assim, evidenciamos que, através da sua veiculação, muitos “outros” presentes no discurso do hip-hop, ou seja, aqueles que não fariam parte da “essência” do hip-hop, agora podem consumir e afirmar sua identidade a partir do mesmo; por critérios estéticos ou musicais, sem necessariamente ser um militante do hip-hop ou morador de periferia. (BEZERRA, 2009, p. 74).

Apesar de o Hip-hop ter elementos um tanto quanto independentes e diferentes em sua manifestação, há situações que norteiam e acabam gerando similaridade em alguns eventos. A dinâmica do Hip-hop com a grande mídia possui características intrínsecas, delimitando um padrão especifico de seus eventos. O mesmo ocorre com a dinâmica com a ausência da mídia.

Na maioria das práticas e hábitos humanos e/ou sociais, é inevitável que ocorra certa mudança, algumas vezes acompanhada da evolução devida ao passar do tempo. No caso do Hip-hop, a mudança constante é perceptível, ainda mais considerando a interferência da mídia e das novas culturas que causam influência nesse meio.

Ainda que o movimento tenha se originado sem nenhuma associação midiática ou comercial, atualmente entidades com fins lucrativos e organizações de eventos comerciais vêm se apropriando do Hip-hop. Há distinções que geram rixas entre breakers de diferentes formações. De maneira geral, a discussão gira em torno principalmente dos dançarinos que iniciaram sua prática em estúdios (com foco em apresentações, filmagens e espetáculos coreografados) e dançarinos que desenvolveram a prática gratuitamente na comunidade, em meio a batalhas e compartilhamento social, assim como no início do movimento.

A prática do breaking, popping e locking3 em estúdios particulares com fins lucrativos vem ganhando ênfase nos últimos anos, consequentemente ganhando um novo público consumidor para o Hip-hop, ao ponto de a cultura Hip-hop ser confundida com a prática do breaking (a dança). Nesses espaços, o breaking é dançado para câmeras e jurados, seus participantes têm poder aquisitivo maior, a cultura perde o caráter periférico e passa a ser consumido por outras classes sociais. Essas mudanças trazem a perda do senso comunitário, familiar e sem fins comerciais, como era concebido no início desse movimento.

Por outro lado, a comercialização do breaking também ocorre fora de eventos e estúdios particulares, ainda que não seja de modo tão nítido e que aconteça em um ritmo menor. Lugares como o shopping Itália, que eram frequentados por um número significante de bboys, bgirls, poppers e lockers4 regularmente, agora recebem tal quantidade apenas em dias de campeonatos envolvendo premiação.

2.2 Batalha de MCs no MON

Com o intuito de observar a ocorrência dessa possível semelhança e/ou as diferenças entre a dinâmica dos elementos em comparação com o FIH2, foi etnografada também a batalha de MCs que ocorreu em 11 de março de 2017 no Museu Oscar Niemeyer em Curitiba, em um sábado com temperatura amena e céu nublado. Foi organizada e realizada pelos próprios participantes da cultura Hip-hop, sem a presença de infraestrutura elaborada e grandes empresas de suporte. Dois microfones com um amplificador sem fio, um beat5 e a voz de uma plateia ativa foram suficientes para fazer o evento. De acordo com a programação, a duração prevista era das 16 às 19 horas. Minutos antes do início, pequenos grupos um pouco dispersos formaram-se no local. A concentração e o evento aconteceram no gramado envolto de árvores na parte de trás do prédio do ponto turístico. Uma grande roda de aproximadamente 200 pessoas se formou naquele gramado quando começaram a testar os microfones, finalmente conectados às 15 horas e 57 minutos.

Ao longo de toda a batalha, os seguranças da parte predial do ponto turístico pareceram dispor de uma atenção especial incomum àquela área. Conectando a parte predial com a área de gramado em que a batalha aconteceu, havia uma escada, na qual se manteve um segurança fixo, observando constantemente a roda. Essa movimentação logo no início da batalha chamou atenção durante as observações e foi registrada com algumas anotações no diário de campo.

Não tem muitos equipamentos nem palco. Apenas microfones e a roda. Tá rolando o evento no meio do gramado, na parte de trás. Mesmo estando fora do prédio do MON e apenas na fase de teste de microfone, às 16h os seguranças vieram. Não sei o que falaram, não sei o que vai rolar. Os caras que estavam testando o microfone se afastaram, a roda acompanhou. (DIÁRIO DE CAMPO, p. 6, 2017).

Como mediadores, os organizadores (os mesmos que testavam os microfones) logo organizaram a batalha. A multidão por si só se realocou em roda de acordo com o espaço destinado aos MCs. A batalha acontecia em rounds sequenciados e contavam com as rimas de dois MCs. O primeiro MC iniciava sua rima dentro de um tempo estipulado, com a duração aproximada de um minuto. Quando o primeiro MC terminava, o segundo tinha seu tempo de resposta, fazendo também sua rima. Os participantes trocavam rimas três vezes por round. As rimas são ofensivas, direcionadas ao oponente para destruí-lo, desclassificá-lo e menosprezá-lo. Depreciar e insultar a capacidade do adversário de improvisar rimas foi recorrente em todas as falas, o que parecia incentivar cada vez mais o outro a superar a rima anterior e aquecia ainda mais o público.

Rone: ta ligado, meu parcero, aqui é o MC Rone, ta ligado que te mato até sem microfone! [...] Meu parcero, eu te amasso, não vem bater de frente que eu tenho peito de aço!

Palmieri: Mano, se liga aqui na batalha, meu rap vai te cortar tipo navalha! [...] Vou mandando aqui na rima vagabunda, não adianta fazer reza, vaza daqui sua macumba!

Rone: Mano, da sua boca só sai pum, aqui quem me protege é meu pai Ogum” (DIÁRIO DE CAMPO, p. 08, 2017).

Esses são alguns dos exemplos de improvisações e ofensas feitas na batalha do MON6. Quanto mais ofensivos os ataques são, mais o público parece se empolgar, soltando ao final de cada rima impactante assovios, gritos, palmas e fazendo muito barulho. Ao final de cada rodada, os mediadores perguntavam ao público o que achavam das rimas de cada MC e eram respondidos com barulho: mais gritos, palmas, assovios etc. O MC que obtivesse mais aceitação da plateia ganhava a partida. Era um sistema de eliminatória, o vencedor do round permanecia a fim de enfrentar o próximo MC, e assim sucessivamente. Tudo fluía de maneira organizada e aparentemente satisfatória a todos.

Muitas risadas, comentários sobre o desempenho de cada MC, atenção em cada palavra que iria configurar a rima e muita diversão. Os MCs e os mediadores sempre provocavam os espectadores com a intenção de causar agitação, participação e animação.

Além da ausência da indústria midiática (como repórteres, entre outros), quase não havia registros em vídeo, câmeras e celulares apontados para o local, o que permite especular sobre possíveis distinções de interesses do público dos dois eventos etnografados. Os mediadores faziam sempre uma pergunta que provocava o público e o levava a dar um grito alto, caloroso, sincronizado e uniforme, o qual podia-se distinguir de longe. A pergunta era “o que vocês querem ver?!”, e a resposta vinha certeira, sem hesitação, respeitosa e em coro: “SANGUEE!”. Isso aconteceu antes de cada round.

Bastante participação da roda. É um evento pequeno, sem câmeras. Muita gente fumando maconha. Algumas pessoas que não estão participando pararam pra olhar e tirar foto, mas os participantes parecem não estar usando sequer o celular. Tocando o beat dos Racionais. Ainda está atraindo muita atenção dos seguranças. (DIÁRIO DE CAMPO, p. 05, 2017)

Apesar da violência verbal presente em cada verso de rimas e da ânsia de confronto da plateia; ao final de cada round, toda a agressividade se desfazia. MCs se cumprimentavam, havia comemorações e risadas, e aparentemente nenhum tipo de desavença sobrepassou o momento de disputa da batalha.

Assim como em batalhas de rima, no graffiti e no breaking, ocorre em algumas situações uma atribuição a um estereótipo de criminalização, que tende a gerar especulações, preconceitos e atenção maior por parte de seguranças, policiais e pessoas externas à cultura tanto para prever possíveis crimes quanto para evitar práticas que firam a tranquilidade, como o som dos microfones e a aglomeração. A maior parte dentre o número aproximado de 200 pessoas era de jovens entre 17 e 25 anos. A maioria dos homens tinha barba; houve ocorrência de venda proibida para menores de idade, como a de bebidas alcoólicas, por exemplo; uma boa parte deles consumia maconha e tabaco, usava roupas largas, bonés, tênis grandes etc. Majoritariamente eram rapazes, e apenas algumas moças participavam do evento, incluindo somente uma mulher MC. Ocorre, desse modo, a reprodução que Matsunaga, no ano de 2008, observou em seus estudos:

Durante as primeiras investigações sobre o hip hop, observando shows e eventos promovidos pelos jovens, havia uma tímida participação de mulheres no movimento. Nestes momentos de diversão, as mulheres quase sempre “acompanhavam” os homens. Esta (in)visibilidade levou-me a investigar a participação e as representações sociais acerca da mulher presentes no hip hop. (p.108).

Entendido e visualizado como a cultura que permite a reafirmação de grupos subjugados, o Hip-hop se constitui a ferramenta necessária para quebrar barreiras sociais, barreiras de preconceito racial, socioeconômico, cultural, territorial e, quando se diz respeito a mulheres, a barreira da segregação de gênero. Embora essa segregação não seja explícita na maioria das vezes, deve-se atentar para tais situações que denunciam o fato de que o Hip-hop é um dos muitos outros espaços onde as mulheres não são plenamente livres. Nas palavras de Matsunaga: "O embate entre homens e mulheres se dá quando eles a impedem de "aparecer" tanto quanto eles. Para o movimento, não é legítimo a mulher ir para o palco, uma vez que este espaço é reservado para os homens. Se pensarmos na separação entre rua/casa, espaços públicos e privados, podemos inferir que existe uma distinção entre palcos e bastidores." (2008, p. 114).

Apesar de toda a cultura de separação de gêneros presente no evento, do fato de haver apenas uma MC presente e de estarem as moças “à sombra” dos homens, e da postura dos indivíduos quando das provocações ofensivas e do consumo de drogas ilícitas, a atmosfera do local estava totalmente voltada à descontração, com ausência de qualquer tipo de agressão física. Fora da disputa, os indivíduos presentes no evento chamam-se uns aos outros de “parças”, “manos”, “brothers”, entre outros nomes que possuem conotação em torno da amizade, cumplicidade e harmonia daquele grupo.

O consumo do Hip-hop e a realização do evento aparentemente não tinham fins midiáticos, tampouco alguma propaganda, tendo sido organizado e frequentado pela própria comunidade. Analisando a dinâmica da batalha de rimas, percebe-se a possibilidade de independência da mídia, assim como as diferenças em diversos aspectos observados, caracterizando o Hip-hop nessa manifestação como cultura popular, como bem explica José Santos: “Entende-se então por cultura popular as manifestações culturais dessas classes, manifestações diferentes da cultura dominante, que estão fora de suas instituições, que existem independentemente delas, mesmo sendo suas contemporâneas” (SANTOS, 1996, p. 45).

3 Dos Livros às Ruas: O Hip-Hop Sem Lentes em Entrevistas

Após as visitas etnográficas, buscou-se ainda participantes do movimento Hip-hop a fim de conceder entrevistas, visando entender a relação dessa cultura com a mídia, seu funcionamento na vida do indivíduo e em seu meio social. Bboys que praticam a dança em aulas de breaking (que ocorrem semanalmente no período da noite na rua da cidadania do Bairro Pinheirinho na Zona sul da cidade de Curitiba) foram entrevistados. As entrevistas ocorreram no dia 12 de junho de 2017 no local das aulas ministradas pelos rapazes.

O primeiro entrevistado foi Marcos Ferreira de Souza, 37 anos, conhecido como Marcos Ken. Pintor e residente do bairro Capão Raso, integrante do movimento Hip-hop como dançarino há 17 anos. Durante toda a entrevista se mostrou animado em responder todas as perguntas. O segundo entrevistado é Ayron Ferreira dos Santos, 30 anos, bacharel em administração, residente do Pinheirinho e integrante do movimento há 12 anos. As perguntas norteavam a problemática da pesquisa, buscando entender a relação do indivíduo com o Hip-hop na cidade.

3.1 Entrevista com Marcos Ken e Ayron Santos

Em um primeiro momento, objetivou-se conhecer como se iniciou o envolvimento dos entrevistados com o Hip-hop. O primeiro contato dos indivíduos perpassou inevitavelmente os meios de comunicação, com videoclipes, filmes, discos e revistas.

Apesar da relação com meios de comunicação midiáticos no contato com a cultura, percebe-se que a prática do breaking se dá majoritariamente com convívio social entre dançarinos da “rua”, como compartilha Marcos no seguinte trecho da entrevista:

Pesquisadora: Por que se identificou com o breaking?

Ken: O break me identifiquei pelo fato de ser da rua e eu sempre gostar do Michael Jackson, ser inspirado no Michael Jackson, então eu sempre gostei disso por causa do Michael Jackson né, que me inspirou muito.

Pesquisadora: Você disse que sempre foi da rua… Por que você falou isso? Qual a relação de você ser da rua com o breaking?

Ken: Que tipo, eu já fazia outras coisas da rua né, sempre... sempre fazia as outras culturas de rua também, fora o breaking, e daí eu aprendi muita coisa. O que eu aprendi foi tudo na rua. A maioria das coisas que sei eu aprendi na rua. (KEN, 2017).

Nessa relação social entre os indivíduos, nota-se a partilha de conhecimentos, experiências e a identificação de um grupo que muitas vezes está sujeito a uma mesma realidade, que vem sendo construída ao longo das práticas dos elementos da cultura e do compartilhamento dos mesmos espaços (como a rua). Marcos Ken afirma em seu relato que na rua “um passa informação pro outro”, trocando experiências de performances e aprendendo com a observação da dança de seus amigos.

Grupos, crews, amigos e famílias começam a ser visualizadas nesses espaços de Hip-hop em momento não só de descontração e lazer mas também de unidades de resistência e posicionamento diante de questões urbanas: "Isso posto, evidenciamos que o surgimento do break, do grafite e, por consequência, do hip-hop em São Luís está associado, como em outras partes do mundo, não apenas à influência da indústria cultural, mas à busca de lazer como forma de resistência aos problemas sociais, econômicos e culturais vividos pelas classes marginalizadas no meio urbano." (ESTRELA, 2015, p. 54).

Ao longo do diálogo com os bboys, vê-se o Hip-hop não só como ferramenta de resistência e de entretenimento mas como um importante agente de conscientização social em torno de valores construídos dentro da própria comunidade, transmitidos e compartilhados com a vivência no movimento cultural. Essa relação não só é importante para a identificação e representação de um coletivo que está exposto a problemas sociais, mas, como explorado anteriormente, é o subterfúgio para muitos desses problemas, dos quais parte da solução acontece no próprio contato com a contracultura:

Pesquisadora: Aham. O que o mudou? O Hip-hop mudou alguma coisa na sua vida desde que você começou?

Ken: Olha… desde que eu comecei no Hip-hop eu percebi uma coisa: que além de ser uma cultura forte, ela tira a gente de muito caminho mal assim, sabe? Os caminhos das drogas, da bebida… a gente sai de muitos caminhos errado assim. Eu passei informação em vários colégios que eu dei aula também e eu só evoluí com isso, então só tenho que agradecer ao Hip-hop mesmo. (KEN, 2017).

Em outras palavras, o compromisso, a rotina de treino, as relações sociais e a perspectiva do grupo acolhem um indivíduo que passará a ter outras possibilidades de vivenciar suas experiências e de compreender seu objetivo como parte do todo. Além do compromisso com seu próprio progresso e autossuperação, há um indivíduo tendencioso ao trabalho voluntário, a compartilhar seus conhecimentos, seus passos de dança e a história da cultura a partir desse momento, tornando o Hip-hop um estilo de vida que reflete na vida do indivíduo e do coletivo, reafirmando o grupo e suas ideologias. Ken afirma que um grande dançarino é constituído também no seu “modo de vida”, não somente em sua performance corporal, ressaltando ainda que não vale viver de fingimento.

Ayron compartilha que no Hip-hop ocorre um processo de valorização das características pessoais de cada indivíduo, promovendo seu crescimento dentro do grupo. Para ele, essa cultura é para todos e pode mudar a vida de todos ou acrescentar-lhe conscientizando as pessoas, fazendo-as “se encontrar”. Defende ainda que a maior parte da personalidade dos integrantes do Hip-hop é formada pelo que eles viveram no movimento, pela filosofia que escutam no rap, reiterando serem o próprio exemplo disso.

Debatido acerca do envolvimento do entrevistado com o Hip-hop, seu valor simbólico na atuação na vida do indivíduo e em seu grupo, o diálogo passou a ser a respeito da representação do Hip-hop nos meios de comunicação, a percepção do indivíduo acerca disso ao longo de sua vivência no movimento e os efeitos na sociedade. Ayron conta sobre o contato com o movimento pelos meios de comunicação, do tempo em que ele iniciou no movimento em comparação com o presente momento:

Pesquisadora: sim. E nesse pessoal novo que tá chegando, você nota alguma coisa de diferente dos antigos neles?

Ayron: de quando eu comecei a dançar sim... muda, como te falei, as coisas mudam demais assim né, tudo muda né cara, então com certeza, a geração de hoje assim não é... não entra no Hip-hop... não começa a pensar talvez com a mesma paixão talvez que quando a gente começava. Que nem eu, via fita cassete, via os vídeos e nossa, pirava demais aquilo. Primeira vez que eu fui num sábado à noite que eu peguei uma fita de break pra assistir, foram os momentos mais inesquecíveis da minha vida. E hoje em dia o cara tem no Youtube ali a hora que ele quiser hahahaha um vídeo de break, pode assistir a hora que ele quiser. (AYRON, 2017).

Marcos comenta sobre o conteúdo abordado na grande mídia acerca do Hip-hop:

Ken: Olha, de fato, a Globo... outras emissoras mostram, elas mostram o Hip-hop, mas não de fato o que ele representa, porque se você for ver tem muito projeto bom aí, tem muito cara bom fazendo projeto bonito e tirando muitos meninos das drogas, molecadinha aí ó, fazendo graffiti, dançando... então, o que acontece: por causa de meia dúzia as vezes o Hip-hop se queima, mas é meia dúzia, não quer dizer que são todos, entendeu? E o Hip-hop é uma classe que todos eles sabem o que estão fazendo e tem muita gente boa aí na caminhada. [...] Então quer dizer, a mídia, vamos dizer a mídia que não conhece, que vê pela televisão, ela não vai ter um aspecto certo do que tá acontecendo do Hip-hop, ela tem que vir procurar conhecer realmente o que é o Hip-hop, entendeu? Pela televisão muitas vezes ela não vai saber às vezes o certo e o errado, entendeu? Então ela tem que vir procurar, vir até o Hip-hop pra saber o que que é certo e o que que é errado. (KEN, 2017).

É evidenciada a falta de representatividade na grande mídia da cultura em sua essência como ocorre nos grupos periféricos. Apesar de o conhecimento se dar muitas vezes por tais meios de comunicação, Ken esclarece que não se transmite a totalidade do que acontece nas ruas. Há certa dualidade na relação entre os sujeitos do Hip-hop e a mídia, como explica Santos:

No entanto, existiu e ainda existe por parte da imprensa e de órgãos públicos uma ambiguidade com relação às expressões artísticas produzidas pelos setores marginalizados. Se por um lado, existe preconceito e discriminação, por outro, há uma necessidade de informar ao público algo sobre as novas formas de arte e expressão surgidas no seio das classes populares, uma busca por mais conhecimento sobre as mesmas. Além disso, o interesse da mídia não deixa de decorrer da inserção dessas manifestações no seio de classes mais abastadas. Foi o que aconteceu com o funk e o reggae respectivamente no Rio de Janeiro e no Maranhão. (ESTRELA, 2015, p. 57-58).

Tal preconceito e descriminalização apontada pelo autor foi objeto de debate nas entrevistas, que procuravam conhecer casos em que os entrevistados vivenciaram essas situações e quais suas visões sobre o assunto. Ayron esclarece o contexto:

Pesquisadora: Aí você comentou anteriormente da questão de perder o espaço né. Eu observei nas pesquisas a relação muito de criminalizar o Hip-hop. No MON, seguranças sempre chamando a atenção, muito em cima do pessoal do Hip-hop, em vários espaços que o pessoal vai dançar break, vêm segurança em cima. A visão que as pessoas têm do Hip-hop condiz com a realidade? Em relação a isso de criminalizar sempre.

Ayron: Ah é complicado né. Pra mim assim eu posso ver que… a visão que eu tenho do Hip-hop é que é uma cultura muito rica, artística e tal. Difícil o cara que vê o break ali e não se impressiona. Que vê um graffiti… tem pessoas que não se impressionam, tem pessoas que não tão nem aí e tal. Mas é difícil assim, eu acho. Às vezes por ser mais assim... Mas essa visão as vezes que a pessoa tem de ser uma cultura… é… de criminalizar a cultura Hip-hop é porque de fato ela veio né, dos guetos, ela veio de um ambiente totalmente criminoso né, que era os guetos de Nova York… era um momento de segregação racial, muita briga de gangue, política ali né, complicado, momento né, se você pesquisar a fundo você vai ver que o ambiente onde nasceu o Hip-hop era um ambiente muito conturbado e muito violento. Então naturalmente ele carrega consigo… o Hip hop carrega consigo essa questão que, tipo, aonde ele for vai estar caracterizado né, pela mídia… porque é origem dele, não tem como fugir. Disso né. A origem do Hip-hop é na rua, nos guetos, foi na violência, né. Mas a proposta do Hip-hop quando surgiu, pelo que eu entendo, foi… né… onde entra a arte a proposta é sempre… acaba acalmando o ambiente, fazendo as pessoas abstraírem né, não pensarem só na violência ali e levarem pra um lado mais humano. Mas é complicado, pessoal realmente olha assim com outros olhos, mas é porque se for ver é uma cultura relativamente nova né, uma cultura contemporânea. 40 anos, um pouco mais talvez, então tem muito ainda pras pessoas assimilarem… (AYRON, 2017).

Começa-se a compor as características dessa dualidade ao representar o Hip-hop e seus integrantes presentes na grande mídia em seus meios de comunicação. O processo de descriminalização no movimento se dá tanto em instâncias menores (presente, por exemplo, no comportamento dos seguranças na batalha de MCs do MON analisada no capítulo anterior), como em instâncias maiores, como é o caso do tratamento noticiário, barramento coletivo em shoppings, a atribuição de alguns conceitos com conotação de estereótipos (podemos citar aqui, por exemplo, os vileiros, pichadores, marginais e favelados), entre outros. Rosenverck Estrela complementa nosso raciocínio:

Por esta razão regueiros, punks, rappers, breakers serão alvos frequentes de discriminações veiculadas, também, pela mídia. Nesse sentido, o Hip-hop em São Luís não ficaria imune, pelo menos em seu começo, a certa estereotipação associando o movimento à violência e ao crime. Inevitavelmente associamos esse fato à perseguição sofrida pelo funk no Rio de Janeiro, relatada por Herschmann (2005), e fazemos nossa a sua indagação: Quando parte da sociedade e os órgãos de segurança pública clamam pela interdição dos bailes funk, ou quando se estigmatiza o funkeiro nos meios de comunicação de massa, o que se combate realmente: o funk ou o segmento social que o toma como importante forma de expressão social? No mesmo sentido, foram proibidas as rodas de break em várias festas da cidade e inúmeras apresentações públicas em praças de São Luís foram interrompidas pela ação da polícia. Identificamos algo muito parecido ao ocorrido com o funk carioca e mesmo com o reggae maranhense. (ESTRELA, 2015, p. 52-57).

Tendo em vista as contradições nessa relação, qual seria o interesse na utilização do Hip-hop nos meios de comunicação da grande mídia? Novamente levanta-se a problemática procurando ainda entender o indivíduo nessa situação. Santos ainda partilha o mesmo questionamento levantando as mesmas indagações trabalhadas anteriormente:

Estaria ele deixando de ser um movimento crítico de rua para se tornar mais uma mercadoria, sem conteúdo político ou social? Os governos enfim cooptaram o hip-hop institucionalizando-o e diminuindo sua margem de críticas ao poder repressor do Estado? As emissoras de televisão e rádio, apesar das visões estereotipadas sobre o movimento, têm aberto espaço e exigido de artistas do hip-hop, como Marcelo D2, MV Bill, ou mesmo Gabriel O Pensador, uma suavização de suas letras em troca de divulgação desses artistas, fechando, por outro lado, espaços para grupos mais críticos e com isso desvirtuando o real sentido do movimento hip-hop? (ESTRELA, 2015, p. 59-60).

Vemos a dinâmica da mídia diante dessa situação e contamos com Marcos Ken para esclarecer a percepção dos indivíduos nela presentes, o qual afirma haver mudanças no valor simbólico da vivência do Hip-hop, explanando ainda a relação que o próprio indivíduo tem com o Hip-hop entendido como produto de comercialização e obtenção de status social:

E o que mudou, eu acho que o que mudou muito assim... Antigamente, as pessoas dançavam mais por amor. Hoje em dia, muita gente não dança por amor, a maioria tá dançando por dinheiro ou por fama. Eu acho que aí já é um ponto meio crítico. […] Mas eu acho que assim, no Hip-hop tem que ter amor à cultura. Não pela grana, pela cultura mesmo. […] Ó o que acontece no negócio da fama: por exemplo, o fulano ganhou um campeonato, o ciclano quer ganhar também. É bonito isso, o cara pegar e pensar assim, é bonito isso aí, é cultura, é legal. Só que a gente já parou pra pensar que tem gente que não tá dançando por amor. Tá dançando pelo dinheiro, pela fama, porra! Tinha que acabar esse negócio aí, né? Vamo mudá esse cenário aí. Vamo ser mais amigo um do outro. Não vamo um odiar outro porque o cara é melhor que você. O Hip-hop nasceu pra isso mesmo, pra gente se superar cada dia, não querer um ser melhor que o outro, mas um poder ajudar o outro a ser melhor um dia. (KEN, 2017).

O entrevistado Ayron compartilha sua reflexão sobre o tratamento midiático de acordo com suas percepções e análises a partir de sua vivência ao longo dos anos com o Hip-hop, destacando a dificuldade que observa na retratação fidedigna do Hip-hop, ressaltando ainda o agravante interesse basilar em anúncios e comerciais lucrativos.

4 Hip-Hop Mainstream e Hip-Hop Underground

Conclui-se neste estudo que são muitas as perspectivas de partida e de chegada do Hip-hop na sociedade, divergindo e convergindo entre si em cada contexto, em cada grupo, em cada indivíduo, em cada espaço de formação. Cada um de seus vieses atribuindo identidade e proporcionando novas vivências aos sujeitos nas situações que alcançam e melhor se encaixam. Hip-hop é uma cultura global, como Tricia Rose (1997) diz, um estilo que ninguém segura. E em meio a uma sociedade tão desigual e de interesses distintos, é esperar demais que algo se aplique de maneira homogênea, sem alterações, sem mudanças de significados e propósitos, ainda mais algo tão dinâmico como a cultura. No caso do Hip-hop, atingiu várias partes da sociedade de maneiras diferentes. Cada grupo que o incorporou deu voz às suas próprias características através dessa arte. No mundo, há inúmeras religiões, opiniões, perseguições, das mais variadas. Em contexto brasileiro, existem distinções até mesmo entre duas vilas vizinhas, que usam diferentes estilos de “pixo” para marcar seu território, por exemplo. Mas vale relembrar que o Hip-hop foi um dos produtos veiculados na globalização, o que naturalmente faz com que sua variabilidade e sua mutação sejam incontroláveis, mesmo a homogeneização sendo um dos principais objetivos da indústria cultural, tem-se um Hip-hop um tanto quanto heterogêneo:

suas manifestações não são exclusividade da Região Concentrada, em cada canto um rap, em cada rap um canto, um lugar, um grito geografizado nas diferentes situações geográficas brasileiras. Hoje o mundo existe no lugar, e o lugar existe no mundo, é cada vez mais tentada uma homogeneização do território, sobretudo pela ação das grandes corporações que usam o território para a consecução de seus projetos de concentração do capital, ao passo que as diferenças se acentuam e se mostram e, a cada tentativa, se avolumam como sendo uma resposta à imposição de cima para baixo. (GOMES, 2012, p. 145-146).

Nessa reflexão, induz-se que há duas principais linhas de interpretação para compreensão da nossa problemática. Entende-se que podem existir dois “Hip-hops”: Underground e Mainstream - um representa a cultura da periferia, o outro a grande mídia. O primeiro representa a rua (público/gratuito) o segundo a moda (privado/consumo). Um está para a consciência social enquanto o outro para a consciência de consumo. Um está para a resistência e o outro para a obtenção de dinheiro e/ou de status social.

Assume-se aqui a definição indicada por Jorge e Jeder (2006) para mainstream:

O denominado mainstream (que pode ser traduzido como “fluxo principal”) abriga escolhas de confecção do produto reconhecidamente eficientes, dialogando com elementos de obras consagradas e com sucesso relativamente garantido. Ele também implica uma circulação associada a outros meios de comunicação de massa, como a TV (através de videoclipes), o cinema (as trilhas sonoras) ou mesmo a Internet (recursos de imagem, plugins e wallpapers). (CARDOSO FILHO; JANOTTI JÚNIOR, 2006, p. 8).

O Hip-hop mainstream é o de maior evidência, o de mais fácil contato. Os jovens conhecem o Hip-hop mainstream e tornam suas vivências nele a própria rota para o mainstream. Os produtos da corrente principal são, no geral, descarregados de ameaças contra seu próprio funcionamento, no caso do nosso objeto de estudo, desprovido da crítica e da conscientização representativa das classes menos desfavorecidas.

No caso do underground, esse que precisa da existência da mainstream por ser a negação dela (JORGE; JEDER, 2006), (afinal, Bronx, Brooklyn, Harlem e Queens precisavam de uma situação inicial para estruturar os elementos da contracultura Hip-hop) assume-se:

O underground, por outro lado, segue um conjunto de princípios de confecção de produto que requer um repertório mais delimitado para o consumo. Os produtos “subterrâneos” possuem uma organização de produção e circulação particulares e se firmam, quase invariavelmente, a partir da negação do seu “outro” (o mainstream). […] Um produto underground é quase sempre definido como “obra autêntica”, “longe do esquemão”, “produto não-comercial”. (CARDOSO FILHO; JANOTTI JÚNIOR, 2006, p. 8-9).

Esse Hip-hop, por sua vez, reproduz o lema “peace, love, unity and having fun”7. Acolhe indivíduos não acolhidos pela mainstream e está presente como ferramenta de resistência e de ressignificação em diversos grupos em diversas realidades.

Essa dualidade se apresenta na espacialidade da cidade. Encontram-se elementos do Hip-hop nas praças e calçadas e também em lojas e propagandas. Ambos se aplicam nos centros urbanos e se misturam vezes harmoniosamente, vezes conflituosamente: O jovem que vivencia as práticas do breaking junto ao coletivo em espaços underground, muitas vezes obtém o primeiro contato com o Hip-Hop ouvindo músicas e vendo vídeos de artistas extremamente midiáticos e famosos, como é o caso dos entrevistados Ken e Ayron, que conheceram a cultura por intermédio do Michael Jackson. Muitas vezes, vê-se a sociedade que está habituada com eventos da Red Bull e com trechos de rap em meio à música pop a subjugar e descriminalizar os movimentos underground, como é o caso da reação dos seguranças na batalha do MON. Relações de dualidades fruto do Hip-hop, como dito antes, heterogêneo.

5 Considerações Finais

O processo de globalização modificou a vida do ser humano em todos os pontos que alcançou. Compressão do espaço/tempo, industrialização, comercialização e avanço tecnológico são apenas alguns dos fenômenos desse processo. Essa pesquisa dedicou-se a investigar um elemento social atingido pela globalização: a cultura.

O Brasil, participante da configuração regida pela nova ordem mundial, acompanhou as mudanças sociais, econômicas, políticas e ambientais. Principalmente nos anos de 1980, a industrialização, acompanhada do êxodo rural e da investida em acesso à informação (televisão, rádio, revista e jornal), foram eventos imparáveis. Brasileiros agora usufruem do contato direto com o universo midiático, incorporando novos hábitos, caráter consumista do modelo capitalista, novos gostos e componentes culturais, muitas vezes, internacionais, e, é claro, o Hip-hop não poderia estar de fora do cenário urbano conflituoso, segregado e conturbado das metrópoles brasileiras.

O Hip-hop no Brasil efervesceu, assim como em Nova Iorque, como instrumento de resposta, esperança, voz, laço e entretenimento social na vida urbana. Em contrapartida, a mesma mídia que atrai consumidores divulgando o modelo de vida ideal segrega classes sociais e impulsiona a desigualdade. A mesma mídia que criminaliza culturas populares e contraculturas que emergem da periferia e de classes menos abastadas apropria-se delas e as utiliza em sua investida política e econômica, modificando de acordo com interesses numa relação de entretenimento, desconfigurando a emersão de camadas sociais desfavorecidas, sendo basicamente máquina de diversão e alheamento, ausente de crítica e reflexão sobre o cotidiano.

Essa relação dicotômica e paradoxal que paira entre dar visibilidade à periferia, se apropriar e condicionar a manifestação do Hip-hop, criminalizar e comercializar a cultura popular é apenas mais um efeito do processo de globalização, que provoca reações na sociedade e as contém a qualquer custo.

Referências

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FONTES DA INTERNET

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Notas

1 Zulu Nation: grupo de Hip-hop precursor da cultura em Nova York nos anos de 1970, fundada pelo DJ Afrika Bambaataa.
2 Palavra oriunda do inglês de uma junção das palavras breaking + boys, significando “meninos do breaking”, referindo-se aos dançarinos do Hip-hop.
3 Popping e locking: trata-se de variações de danças no Hip-hop, sendo o primeiro caracterizado por movimentos robóticos e o segundo por seguir as batidas de um Hip-hop que ainda se assemelha ao Funk. Sally Banes (2004, p. 19), no livro britânico That's the joint! : the hip-hop studies reader, exterioriza essas derivações de dança na cultura: "Group choreography and aerial spins, reminiscent of the spectacular balancing acts of circus gymnasts, have added to breaking’s theatrical brilliance, as has the influx of electric boogie, popping, locking, ticking, King Tut, the float, and other moves that are not break dancing per se, into the genre." (HAZZARD-DONALD, 2004).
4 Locker: do inglês “locking” com o sufixo “er” para indicar a qualidade de quem pratica o locking, “dançarino de locking”.
5 A palavra “beat” em inglês significa “batida” e é utilizada para simbolizar as músicas de fundo dos eventos e das rimas do MC.
6 Fragmento de evento disponível no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=cwsg0RCC9pY. Acesso em: 2 ago. 2018.
7 Peace, love, unity and having fun: paz, amor, unidade e diversão. Lema adotado pela Zulu Nation, expressando os ideais do Hip-hop no contexto de sofrimento e insalubridade, o qual a arte propôs amenizar.

Notas de autor

1 Graduanda em Direito pela Universidade Positivo. Técnica em Informática pelo Instituto Federal do Paraná Campus Curitiba/PR – Brasil. E-mail: gabriellesantos.contact@gmail.com.
2 Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor EBTT de Geografia no Instituto Federal do Paraná Campus Curitiba/PR – Brasil. E-mail: dalvani.fernandes@ifpr.edu.br.
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