ARTIGOS ORIGINAIS
Narrativas de Professoras Iniciantes: Uma Análise das Formações Identitárias
Novice teachers’ narratives: an analysis of the identity formation
Narrativas de Maestras Principiantes: Un Análisis de las Formaciones de la Identidad
Narrativas de Professoras Iniciantes: Uma Análise das Formações Identitárias
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 21, núm. 3, 2019
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 29 Abril 2019
Aprobación: 17 Agosto 2019
Resumo: Este trabalho trata de uma análise das formações identitárias de três professoras iniciantes da educação infantil interpretadas através de suas narrativas do memorial de formação. O estudo foi desenvolvido por meio das seguintes questões: as narrativas da trajetória no início de carreira podem contribuir para identificar as dimensões pessoais e profissionais que estruturam as formações identitárias? Como ocorre o processo de formações identitárias no início da carreira profissional docente? A partir disso, fizemos uma leitura das vozes narrativas dessas profissionais docentes que evidenciaram dimensões profissionais e pessoais de suas constituições identitárias do processo de indução à carreira docente.
Palavras-chave: Identidade docente, Narrativas, Início da docência.
Abstract: This work refers to an analysis about the identity formation process of three children’s education novice teachers interpreted by the memorial narratives of their formation. The study was developed based on the following questions: Can the trajectory narratives at the beginning of the career help to identify how the personal and professional dimensions develop the identity formation? How does the identity formation process occur at the beginning of the career? The written narratives of these teaching professionals demonstrated the professional and personal dimensions of their identity constitutions in the induction process to the teacher career.
Keywords: Teacher Identity, Narratives, Beginning of teacher career.
Resumen: Este trabajo analiza la construcción de la identidad de profesionales que actúan en la educación infantil. Este trabajo, de naturaleza cualitativa, fue realizado por medio del análisis de tres memorias de formación, elaboradas por profesoras principiantes de Educación Infantil. Tiene como punto de partida las siguientes preguntas: ¿Pueden las narrativas de la trayectoria al comienzo de la carrera contribuir a identificar las dimensiones personales y profesionales que estructuran la construcción de la identidad? ¿Cómo se produce el proceso de formación de la identidad al comienzo de una carrera docente profesional? Las memorias analizadas revelaron las dimensiones profesionales y personales del proceso de construcción de la identidad de estas maestras principiantes.
Palabras clave: Identidad profesional docente, Narrativas de formación, Maestras principiantes.
1 Introdução
A docência enquanto uma prática social requer uma sequência de posições. Essas posições podem ser relatadas a partir de uma trajetória individual e/ou uma história pessoal cuja narrativa atualiza visões de si e do contexto social em que está inserido. Por esse viés, analisamos as trajetórias de vida, de formação e de profissão de professoras iniciantes que atuam na educação infantil em instituições públicas de ensino, cujo contexto de trabalho se insere nas dificuldades e superações vividas no início da carreira docente, reveladas em um memorial de formação. Desse modo, questionamos: As narrativas da trajetória no início de carreira podem contribuir para identificar as dimensões pessoais e profissionais que estruturam as formações identitárias? O que as narrativas de professoras iniciantes têm a nos dizer sobre o processo de formações identitárias no início da carreira profissional docente? Quais são os elementos que constituem esse processo?
Analisamos memoriais de formação de professoras iniciantes compreendendo que as narrativas são instrumentos de ensino/formação e de pesquisa (CUNHA, 1997). Por meio delas é possível identificar e compreender marcas dos processos de formações identitárias das professoras, que englobam as visões que as docentes têm de suas trajetórias de atuação profissional no início de carreira.
Buscamos conduzir nossas análises trabalhando alguns conceitos importantes sobre a constituição da identidade profissional, considerando que sua construção perpassa pela dimensão pessoal, intrinsecamente relacionada com a trajetória de formação docente. Ademais, essa identidade é influenciada por forças sociais, culturais, políticas e históricas dos contextos nos quais o profissional se insere. Respaldamo-nos também em diálogos referentes ao campo da formação de professores, a fim de traçar um recorte de estudos que contribuem para a dimensão da construção da identidade dos mesmos, uma vez que esse desenvolvimento profissional está compreendido como um processo contínuo que acompanha toda a trajetória de vida do docente.
1.1 Formações identitárias: uma visão de si e do mundo
Nas últimas décadas, os estudos voltados para o desenvolvimento profissional docente têm ganhado espaço no campo de pesquisas educacionais. Gatti (2007), em um levantamento bibliográfico, identificou que o tema “identidade e profissionalização docente” surgiu como um assunto emergente no conjunto das teses e dissertações sobre formação de professores defendidas no Brasil na década de 1990. André (2006) verifica que esse tema passou a ser uma forte referência de investigação que vem chamando a atenção dos pesquisadores, representando 43% dos trabalhos analisados. Desses trabalhos, André (2006) verificou que 149 pesquisas focaram o professor e sua ação docente, abordando especificamente os seguintes temas: identidade, concepções, saberes, representações e práticas, bem como condições de trabalho, organização sindical, plano de carreira e profissionalização. Entre os estudos, 27 eram sobre identidade, 103 sobre concepções, saberes, práticas e representações dos professores e 19 sobre condições de trabalho, organização sindical, plano de carreira e profissionalização. Desse modo, entendemos a necessidade de contribuir com o campo mencionado, porém a partir de outros recortes que também são necessários para compreendermos as diversas faces que estruturam a identidade profissional docente. Nesse caso específico, analisaremos as dificuldades e superações do início da carreira docente.
Neste estudo, ao buscar identificar e compreender elementos dos processos de constituição da identidade profissional de três professoras iniciantes da educação infantil, aproximamo-nos dos quatro pressupostos sobre a compreensão do conceito de identidade profissional pontuados por Rodgers e Scott (2008), a saber: i. A identidade depende de e é formada em múltiplos contextos, influenciada por forças sociais, culturais, políticas e históricas de cada contexto; ii. A identidade é construída nas relações com os outros; iii. A identidade é mutável, instável e múltipla; iv. A identidade envolve a construção e reconstrução de significado através das histórias ao longo do tempo. Os contextos e as relações descrevem os aspectos externos da construção da identidade, isto é, a dimensão objetiva; por outro lado, histórias de vida apresentam os aspectos internos, ou seja, a dimensão subjetiva. Frente a essa reflexão, estruturamos nossas ideias referentes aos elementos que constituem a identidade profissional no início da carreira docente considerando este período, que é caracterizado por inúmeros conflitos que influenciam fortemente na construção da identidade docente (NÓVOA, 2019).
Conforme assinalado por Rodgers e Scott (2008), a constituição da identidade é fortemente influenciada pelos contextos dos quais o sujeito faz parte, como, por exemplo, família, escolas, programas de educação, grupos de estudo, grupos religiosos, partidos políticos, entre outros. Contudo, muitas vezes o sujeito não tem total consciência das normas que formam os contextos e nem dos interesses das autoridades que os constituem. Essa falta de consciência pode colocá-los subordinados a forças contextuais, roubando-lhes o protagonismo, a criatividade e a voz.
Nesses múltiplos contextos as relações sociais são essenciais para a constituição das identidades; afinal, ter uma identidade implica, dentre outros aspectos, ser reconhecido pelo outro como determinado tipo de pessoa. Consideramos, então, que a identidade profissional se constitui no entrecruzamento de processos biográficos e relacionais (DUBAR, 2005). Em outras palavras, essas formas identitárias dizem respeito à concepção de sujeito que se define pela sua ação e formação, inseridas em um contexto e em uma história. Dessa forma podemos encontrar nas narrativas das professoras iniciantes elementos da formação das suas identidades, que são construídas e reconstruídas nessas interlocuções sociais que abrangem a dimensão profissional.
Tendo em vista que a construção da identidade profissional sofre influência de forças externas do contexto e das relações sociais, consideramos também que a constituição da identidade ocorre em um campo intersubjetivo, compondo uma trajetória evolutiva a partir das interpretações que o professor faz de si mesmo – identidade biográfica – e do modo como é reconhecido em um determinado contexto – identidade para o outro (DUBAR, 2005). Esse modo como um sujeito é reconhecido em dado momento e lugar pode mudar de um momento para outro e de um contexto para o outro, pode ser ambíguo ou instável. Portanto, a identidade profissional é mutável, instável e múltipla (MARCELO GARCÍA, 2002; RODGERS; SCOTT, 2008; FLORES, 2009).
Importante ressaltar que ao mesmo tempo em que a identidade biográfica não é preestabelecida, ela também não é ilusória nem ocupa local secundário diante das determinações sociais (DUBAR, 2005). Assim, no processo de socialização o sujeito é identificado por outros indivíduos e instituições e ele pode aceitar ou não essa identificação e/ou criar outra. É nessa tensão permanente que ocorre a constituição da identidade do sujeito. Nessa perspectiva, a dimensão profissional das identidades possui importância a partir da compreensão de cada possível configuração identitária. Neste caso iremos tratar de marcas da formação identitária docente que resulta da conexão entre indivíduo e as instituições. Desse modo, interpretamos os dados a partir da relação que o indivíduo estabelece com seu espaço de trabalho e com a retribuição que oferece com seu trabalho para o ambiente social, considerando a relação do sujeito com a profissão, isto é, com as projeções realizadas para si e a identidade construída ao longo de sua vida, a partir dos contextos sociais (DUBAR, 2005).
Nesse processo contínuo de formação identitária, a história de vida tem papel-chave na mediação entre os sentidos das práticas do professor e suas crenças como professor, implicando a (re)construção da identidade profissional (FLORES, 2009). De acordo com Rodgers e Scott (2008), a identidade profissional é interpretada e construída através das histórias que alguém diz a si mesmo e que os outros contam. Essas histórias podem mudar ao longo do tempo, por meio de contextos, e dependem das relações sociais.
Em síntese, a constituição da identidade docente é um processo moldável, transformável, que depende de condições sócio-históricas e aspectos pessoais; é relacional, ocorre em uma dimensão intersubjetiva e implica o reconhecimento de si como certo tipo de pessoa/professor e o tipo de pessoa/professor que é reconhecido em determinado contexto. Esses reconhecimentos podem mudar de um momento para outro e de um contexto para o outro, podem ser ambíguos ou instáveis.
Compreendemos a identidade profissional docente em uma perspectiva de aprendizagem ao longo da vida, portanto entendemos que essa aprendizagem não é única, uma vez que os indivíduos se reinventam ao longo de suas experiências (MIZUKAMI et al., 2003). Além disso, entender que existe uma identidade sendo construída supõe uma valorização desse profissional, pois eles se percebem em seus contextos de atuação, o que causa motivação e satisfação do seu trabalho. Sendo assim, a identidade é demandada por aspectos pessoais, sociais e cognitivos (MARCELO GARCÍA, 2002). Segundo Marcelo García (2002), esses fatores, que se relacionam à constituição do ser professor, podem contribuir no desenvolvimento e valorização desse profissional.
Diante desses estudos sobre a identidade do professor, outro fator importante a ser destacado é o processo de reflexão do profissional docente, que contribui efetivamente para o reconhecimento do percurso evolutivo que compõe suas trajetórias identitárias, tendo em vista que a reflexão é um conceito estruturante da formação docente (ZEICHNER, 2008). Embora neste trabalho não tenhamos a intenção de discorrer sobre as práticas reflexivas de ensino, apropriamo-nos do conceito de reflexão por entender que esse procedimento está diretamente conectado com a ferramenta investigativa desta pesquisa, neste caso, as narrativas das professoras sobre o percurso vivido no início de carreira, pois esse instrumento metodológico permite um olhar minucioso sobre as trajetórias profissionais dos docentes. De fato, nosso interesse é focar as dimensões pessoais e profissionais desses indivíduos, tendo em vista que esse exercício autobiográfico é uma imprescindível reflexão sobre as percepções que as docentes têm de si e do contexto que as cerca.
Compreender a trajetória profissional dos professores e as fases de suas carreiras, considerando as intensas aprendizagens e tensões que estão intrinsecamente relacionadas à formação identitária no início da carreira, convoca-nos a discorrer sobre essa fase de descoberta e sobrevivência do ciclo de vida dos professores, conforme a leitura de Huberman (2000). Consideramos não ser viável pressupor que o ciclo proposto pelo autor é um percurso linear e uniforme, já que nem todos os professores perpassam por todos os estágios da carreira, indicados por Huberman (2000), do mesmo modo e com as mesmas características, isto é, pode haver regularidades nas fases da carreira, mas não uniformização. Ademais, Tancredi (2009, p. 47) pontua que a carreira docente sempre está em movimento e que as atitudes dos professores intervêm “na sua disposição para perceber a necessidade de mudar, para investir recursos em novas maneiras de ensinar e para empreender as mudanças que consideram necessárias. Essas disposições são construídas e reconstruídas com o passar do tempo”.
Ressaltamos, então, que o aumento da confiança para atuar e a busca por diversificação das práticas não dependem necessariamente e exclusivamente do tempo de carreira. Essas características dependem, principalmente, dos tipos de experiências vividas, dos processos reflexivos traçados e do compromisso com a docência. Consideramos, por exemplo, que um professor iniciante pode diversificar suas práticas e um docente próximo à aposentadoria pode continuar investindo em si e nos alunos.
Contudo, as características pontuadas por Huberman (2000) são válidas para pensarmos sobre o início da carreira. Segundo esse teórico, a etapa de indução é caracterizada por um “choque do real” por meio do questionamento mais corriqueiro: “será que dou conta?”. Sendo assim, o professor se coloca entre a distância dos ideais e a realidade do cotidiano escolar. Porém, em contrapartida, há o aspecto da “descoberta”, que demonstra o entusiasmo inicial de se ter uma responsabilidade pedagógica (uma sala de aula, seus alunos, seu programa de ensino) e também por se sentir parte de um campo profissional.
O processo de aprender a ser professor não tem começo nem fim estabelecidos, contudo, Marcelo García (2002) pondera que o período inicial da carreira docente possui características próprias que o diferenciam dos demais. Destarte, o início da docência é uma fase que abarca os cinco primeiros anos de profissão, no entanto há distinções referentes a essa caracterização do tempo de carreira. Huberman (2000) considera que essa fase se estende até o terceiro ano de profissão. Tardif (2002) entende que tal período reporta aos sete primeiros anos de atuação.
Diante desses pressupostos, os teóricos supracitados advogam que o professor no início de carreira encontra-se num contexto mergulhado de intensas aprendizagens. Ainda de acordo com Marcelo García (2002), esse período referente a tensões e aprendizagens é o momento em que o docente deve adquirir conhecimentos profissionais e equilíbrio pessoal. O autor pondera que o professor iniciante pode ser acometido por quatro erros, a saber: a) uma repetição acrítica de condutas observadas nos pares; b) o isolamento de seus colegas; c) a dificuldade de efetuar a conexão entre didática dos conhecimentos adquiridos na formação inicial; d) a assunção de uma concepção técnica do ensino, uma educação meramente bancária, a qual compreende os(as) estudantes como depósitos vazios a serem preenchidos por conteúdos do domínio exclusivo do(a) professor(a). Nessa percepção, o(a) estudante é entendido como alguém que nada sabe, ignorando o diálogo, já que “o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente; o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados” (FREIRE, 2005, p. 68).
Outra característica importante a ser mencionada nesse período de indução da carreira docente diz respeito à socialização. Marcelo García (2002) argumenta que essa etapa de socialização profissional compreende que os professores novos aprendam e internalizem as normas, valores e condutas da cultura escolar na qual eles estão inseridos.
Acrescenta-se a esses pontos as características das condições de trabalho que aumentam a complexidade do trabalho docente, como, por exemplo, as destacadas no estudo de Príncepe e André (2019): a rotatividade de escolas, turmas e níveis de ensino, jornadas de trabalho não condizentes com a Lei do Piso Salarial Profissional Nacional1, reduzindo as possibilidades de o iniciante participar de situações formativas e sem um tempo remunerado para momento de estudo e planejamento; a organização e o tamanho da escola, que podem se tornar obstáculos para o acompanhamento do trabalho do iniciante pela equipe gestora. Segundo as autoras, “todas essas situações, que não são favoráveis ao desenvolvimento profissional, vão exigir a constante adaptação do professor e o sentimento de ter que começar de novo, um variado número de vezes” (PRÍNCEPE; ANDRÉ, 2019, p. 76). Assim, a falta de estabilidade na carreira e as situações precárias de trabalho mantêm o docente em um constante início.
Por fim, essas foram as principais características que consideramos mais relevantes para compor nossas reflexões, porém é importante salientar que não podemos cair no equívoco de pressupor que esse início de carreira implica necessariamente a passagem linear por todas essas etapas, tendo em vista a dimensão individual da profissão docente.
Tendo como base esses pressupostos, encontramos nas narrativas de professoras iniciantes da educação infantil dados que nos mostram esse ciclo inicial de suas induções. Há que se considerar a importância de ouvir as vozes dessas docentes e compreender as demandas de dificuldades enfrentadas nesse período. De outro modo, a narrativa da trajetória docente ganha espaço para compreendermos o olhar das professoras sobre si em relação ao seu trabalho.
2 O percurso metodológico da pesquisa
Conforme anunciado, este estudo analisa memoriais de formação de professoras iniciantes que atuam na educação infantil. Compreendemos que a narrativa exige elementos que fundamentam situações que são experiências no percurso de vida de cada indivíduo, tendo em vista que a realidade cotidiana é compreendida por cada um de nós de um modo particular. Em outras palavras, nossas experiências estão carregadas de significados preenchidos de crenças e valores que de fato são inerentes ao contexto social e cultural que estamos inseridos (GALVÃO, 2005).
Tomamos, então, as narrativas como instrumento de pesquisa, uma vez que são formas de revelar experiências que são importantes na formação profissional de cada narrador. Essas revelações tão ricas contribuem para as pesquisas que buscam compreender diversos pontos e questões da formação de professores e podem se configurar como um ponto de partida para a elaboração de políticas educacionais.
A narrativa permite analisar histórias de vida de professores, pois possibilita o entendimento desses profissionais a partir de suas próprias vozes, de acordo com Cortazi (1993). No entanto, entende-se que estudar histórias de vidas é um campo delicado, pois as histórias constituem diversos elementos que não podem ser generalizados, uma vez que cada ser humano está inserido em contextos muito particulares. Embora exija uma análise sob diferentes perspectivas, essa ferramenta narrativa é uma excelente proposta pedagógica para compreendermos os processos que implicam a construção da identidade docente, segundo Galvão (2005).
Nessa perspectiva narrativa focamos o memorial de formação, que se configura por meio da escrita de um texto marcado pela subjetividade do indivíduo, uma vez que se trata de um relato de experiência vivida pelo sujeito narrador. Sendo assim, perpassamos pelo contexto de memória, tendo em vista que a narrativa é a reminiscência dos docentes, sendo entendida como um trabalho, pois se trata de um processo que envolve esforços e dedicação. De acordo com Bosi (1994), lembrar não é viver, mas refazer, reconstruir e repensar imagens e ideais de hoje; memória é trabalho. Nesta empreitada, acreditamos que os memoriais são registros singulares das vivências das professoras iniciantes, que traduzem seus modos de enxergar o passado através de uma leitura do presente, pois não é possível fugir da condição de sujeitas do presente que estão sendo constituídas num caminho contínuo e desafiador dos contextos educativos. Nesse sentido, “As histórias que relembramos não são representações exatas do nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais”, conforme pontua Thomson (1997, p. 57). Portanto, as rememorações encaminhadas nos memoriais relacionam-se com a construção identitária do narrador e neste estudo utilizamos esse recurso narrativo para compreendermos as marcas que acompanham o percurso da construção identitária das professoras iniciantes.
Em suma, como ferramenta metodológica utilizamos os memoriais de formação elaborados por professoras iniciantes que atuam na educação infantil e que fazem parte do Programa Híbrido de Mentoria (PHM), contexto de realização de uma pesquisa-intervenção financiada pela FAPESP/São Paulo/Brasil, que investiga contribuições e limites do modelo híbrido (on-line e presencial) de mentoria para o desenvolvimento profissional de professores experientes e professores iniciantes. O PHM objetiva que professores experientes (com mais de 10 anos de prática docente), mentores, auxiliem professores iniciantes (PI) a minimizar ou superar as dificuldades do início da carreira docente. O programa contempla três subgrupos de trabalho: Educação Infantil, Anos Iniciais do Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos.
No início da mentoria cada iniciante elaborou um memorial de formação. Não foi dado um modelo ou uma receita a ser seguida, contudo as professoras leram o texto “Memorial de formação: registro de um percurso”, de autoria de Guedes-Pinto, e o memorial de um professor da Educação Básica. Além disso, foi solicitado que as professoras narrassem fatos e pessoas marcantes de seu período de escolarização e da formação inicial, explicassem as influências que determinaram a escolha da profissão e relatassem seu início da docência, para analisar como percebem este último no momento da elaboração da narrativa. Neste artigo analisamos três (3) memoriais de três (3) professoras da educação infantil. Esses memoriais possibilitam o acesso às subjetividades dessas professoras iniciantes participantes, além de alastrar suas vozes e verdades ao se constituírem como docentes.
Na etapa de análise fizemos a leitura dos memoriais identificando as fases que refletem suas dificuldades e superação no início da carreira docente, captando principalmente as experiências que identificam leituras subjetivas e objetivas. Desse modo, foram estabelecidos dois eixos de análise: i) a dimensão pessoal, que se configura nos aspectos referentes às questões subjetivas do professor; e ii) a dimensão profissional, que contempla uma análise objetiva de como o professor encara a profissão. Ambas dimensões estão direcionadas às marcas de suas trajetórias, que constituem suas identidades profissionais. Também levantamos as subcategorias dificuldades no início da carreira e a superação das dificuldades auxiliadas pelos pares. Essa análise ocorreu em três tempos: “[…] Tempo I: Pré-análise / leitura cruzada; - Tempo II: Leitura temática - unidades de análise descritivas; - Tempo III: Leitura interpretativa-compreensiva do corpus” (SOUZA, 2014, p. 43).
Adiante exploramos o percurso da leitura interpretativa em forma de quadro, a fim de demonstrar os critérios das categorias e subcategorias de análise. Além disso, optamos por uma amostragem das participantes da pesquisa sem mencionar seus nomes nesta investigação. Sendo assim, conduzimos a identificação no Quadro 1.
IDENTIFICAÇÃO | FORMAÇÃO ACADÊMICA | TRAJETÓRIAPROFISSIONAL |
D | Graduação em Pedagogia em 2014 em uma instituição pública de ensino superior. | Iniciou a docência em 2015 na Educação Infantil – Instituição pública. |
G | Graduação em Pedagogia em 2017 em uma instituição pública de ensino superior. Especialização em Ensino Lúdico em uma instituição particular. | Iniciou a docência em 2017 na Educação Infantil – Instituição pública. |
R | Graduação em Pedagogia em 2015 e mestrado em Educação em uma instituição pública de ensino superior. | Iniciou a docência em 2017 na Educação Infantil – Instituição pública. |
Nos quadros a seguir apontamos as categorias, subcategorias e seus critérios de análise:
Categoria | Critérios |
Dimensão pessoal | Fatos marcados na trajetória pessoal, influências familiares, experiências na trajetória escolar, crenças e valores que influenciam nas escolhas pessoais e profissionais do professor. |
Dimensão profissional | Fatos que marcam o início da trajetória profissional. Aspectos referentes a como a professora encara o processo de indução. |
Subcategoria | Critérios |
Dificuldades do início da carreira | Características que apontam as dificuldades no início da docência, como todo e qualquer tipo de sentimento. |
Superação das dificuldades: o auxílio dos pares | Momentos que demonstram a superação das dificuldades postas no início da docência associados à parceria no ambiente de trabalho e formação. |
Os aspectos subjetivos da dimensão pessoal (Quadro 2) compõem a constituição identitária das professoras, de modo que nas narrativas são circunscritas marcas da trajetória pessoal que traçam uma relação com o olhar que as docentes têm de si mesmas nesse percurso de indução. As marcas que entrelaçam as trajetórias de vida são fatos assinalados em trajetória pessoal, influências familiares, experiências na trajetória escolar, crenças e valores que influenciam nas escolhas pessoais e profissionais das professoras. Os aspectos referentes à dimensão profissional competem às características objetivas relacionais com o trabalho docente (Quadro 2), ou seja, fatos que marcam o início da trajetória profissional, como também aspectos referentes às ações das professoras no processo de indução. Em outras palavras, a forma como as profissionais encaram o início de carreira. A partir desses critérios identificamos as características que apontam as dificuldades no início da docência e momentos que demonstrem a superação dessas dificuldades, que está associada à parceria no ambiente de trabalho e formação (Quadro 3).
As três professoras iniciantes são formadas no curso de Pedagogia e ingressaram na carreira atuando na Educação Infantil. A PI D finalizou a graduação no ano de 2014 e no ano seguinte iniciou a atuação na docência. A PI R formou-se em 2015 e no momento da elaboração do memorial cursava o Mestrado em Educação, iniciando a docência no ano de 2017. Graduou-se em 2017 e no mesmo ano começou a atuar como professora. Além disso, cursou especialização em Ensino Lúdico. A seguir, apresentamos as narrativas das professoras.
3 Narrativas de professoras iniciantes: as dificuldades no início da carreira e a superação das dificuldades auxiliadas pelos pares
3.1 Dificuldades do início da carreira
O relato da professora R ilustra a história sensível de sua trajetória indutiva na carreira docente ao narrar que no curso de Pedagogia elaborou um memorial de formação e isso lhe recordou da elaboração de diários em sua infância, levando-a a desejar escrever um diário contando seu dia a dia como professora durante seu primeiro ano na carreira. Parafraseando Bosi (2003), a narrativa da professora está ligada às continuidades temporais, às evoluções e às relações entre as coisas, uma memória enraizada no que podemos chamar de concreto, espaço, gesto, imagem e objeto. Sendo assim, esses aspectos exemplificam a relação da PI (Professora Iniciante) com o diário, revelando-nos uma marca da infância que está relacionada à dimensão pessoal.
Diante das limitações vividas nesse início de docência, não foi possível realizar o projeto de escrita do diário, conforme o relato posterior da PI. Porém, percebemos que a professora (re)significou a experiência de escrever uma narrativa em sua graduação, de modo a relacionar essa vivência à sua necessidade presente.
PI R- […] o máximo que consegui fazer foi um caderninho onde escrevo o conteúdo trabalhado a cada dia de aula, é uma espécie de semanário que a diretora da escola verifica todas as segundas-feiras. Não é bem o diário que eu planejava fazer, mas agora com essa atividade2 quem sabe não me anime a colocar meu antigo plano em prática.
É interessante observar o trabalho de rememoração que a professora faz ao colocar em prática a narrativa do diário. O exercício da escrita proporcionou uma reflexão significativa da docente, uma vez que identificou uma marca identitária subjetiva que expressa a dimensão pessoal que a PI R estabelece com sua profissão. Além disso, como advogam Ferreira e Reali (2005), o diário é considerado um gerador de reflexão, como podemos perceber nas narrativas apresentadas.
No excerto seguinte, a PI relata a experiência de atuar na fase 1 da educação infantil. Ela descreve suas opções pedagógicas e a angústia de não se sentir professora ao atuar nessa modalidade de ensino.
PI R- Sobre escolher um cargo de apoio ou uma sala na creche, confesso que foi uma grande dúvida que tive. Fiz meu estágio em uma fase 1 e apesar de ter gostado da experiência não me senti muito professora, mesmo avançando nas leituras sobre educação infantil, ainda sinto muito o peso do cuidar nas práticas da creche e vejo o educar sendo deixado de lado por diversos motivos como tempo, rotina, grande quantidade de crianças, entre outros. A verdade é que se eu tivesse escolha não trabalharia em creche, pois não me sentiria segura para lidar com crianças tão pequenas e não conseguiria enxergar a dimensão educativa do meu trabalho […].
É possível identificar uma dimensão subjetiva referente ao olhar da professora sobre sua atuação. Ela narra que não se reconhece como professora por desenvolver práticas de cuidado na Educação Infantil, percebendo assim que no contexto de atuação no início da docência o educar está desvinculado da prática do cuidar. A professora R vem constituindo sua trajetória identitária dentro do campo de discussões que marca a constituição da educação infantil no Brasil sobre o educar e cuidar, produzindo reflexões sobre a dimensão educativa no nível de ensino em que atua. Embora não tenhamos registros sobre suas práticas educacionais, ao analisar outros momentos do memorial, compreendemos que uma marca escolarizada da educação infantil se veicula através de suas concepções sobre criança, educar, cuidar e aprendizagem, advindas de sua formação inicial.
Esse debate abrange um contexto histórico importante de ser entendido pelos profissionais dessa área, pois ocorreram algumas transformações no modo de conceber a educação infantil, principalmente no que se refere ao plano assistencialista, que teve em seu início mudanças que buscam garantir direitos, assistência e apoio educacional desde o nascimento, além de proporcionar às mães a possibilidade de ter seus filhos assistidos para que possam exercer suas atividades profissionais. Então, novas demandas profissionais apontam legislações específicas, novas práticas profissionais que visam atender as crianças nas creches e pré-escolas começam a ser construídas, com o fim de garantir seu desenvolvimento pleno, e o cuidado passa a ser relacionado ao educar (KULHMANN JR, 2000). Considerando que os contextos influenciam fortemente a constituição da identidade profissional (RODGERS; SCOTT, 2008), é válido pontuar que as marcas históricas da constituição da educação infantil que permeiam a complexidade do binômio cuidar/educar, que originam a pouca valorização do profissional que atua nesse nível de ensino, entre outros aspectos, irão influenciar na formação identitária desse docente, podendo gerar conflitos e tensões internos e na relação com o outro.
Nessa perspectiva, podemos pensar sobre as especificidades do professor que atua na creche, a fim de refletirmos o contexto de formação em que se encontra a professora, uma vez que sabemos que sua identidade profissional está atrelada à sua prática pedagógica na Educação Infantil, a qual, por sua vez, requer conhecimento sobre os saberes necessários para atuar nessa fase. Percebemos que há uma dificuldade da PI R em compreender o papel educativo que está integrado ao cuidado com as crianças pequenas, e talvez isso a impeça de buscar ferramentas pedagógicas para o desenvolvimento de seu trabalho.
Identificamos que o modo como a professora iniciante percebe a realidade em que vive influencia em sua postura pedagógica. Todavia, acreditamos que, para além do binômio (cuidar/educar) que caracteriza as especificidades da Educação infantil, é preciso ultrapassar esse debate e pensarmos como e para que educar/cuidar, pois, de fato, a identidade docente vem sendo construída também dentro dessa reflexão (TIRIBA, 2005).
Como pontuamos anteriormente, as relações entre concepções pedagógicas e prática são elementos que provocam tensões no início de carreira da PI R, tendo em vista a dificuldade de articulação entre teoria e prática, sendo destacado por Marcelo García (2002) como um aspecto do início da carreira.
Em síntese, é possível inferir o pertencimento identitário (DUBAR, 2005) nas palavras da professora R considerando o tipo de profissional docente que ela pretende ser. Assim, a docente não se vê professora ao reproduzir práticas que distorcem suas filosofias pessoais e aprendizagens advindas da formação inicial, demonstrando um choque em lidar com situações que fogem do seu controle pedagógico, como, por exemplo, o fato de haver uma sala numerosa. Os trechos dos depoimentos de R são apresentados a seguir:
PI R- Sobre enxergar a dimensão educativa do trabalho… é uma das minhas maiores dificuldades, muitas vezes me pego sendo tudo menos professora e isso me deixa triste e confusa. Estou em uma sala muito numerosa e aplicar as atividades que preparo tem sido um desafio. […] Não sei mais o que fazer, tenho gritado e até me descontrolado. […] Não gosto de gritar, não gosto de ameaçar e nem de colocar as crianças de castigo, não tenho estudado oito anos da minha vida para reproduzir práticas ruins e autoritárias que sempre repudiei, não me vejo sendo professora ao fazer essas coisas.
Essa narrativa sobre o início da docência de R convoca-nos a repensar o processo de aprendizagem da docência, pois este não se limita à aplicação de técnicas e destrezas, sendo um processo em diálogo constante com a prática que demanda construção de conhecimentos e de sentidos (MIZUKAMI et al., 2003, MARCELO GARCÍA, 2002). Desta forma, acredita-se que o processo de indução da PI R está marcado por uma passagem de aluna à professora, e que sua identidade profissional é constituída numa dinâmica contínua de aprendizagens que ganham significados diante das dificuldades. Suas concepções advindas da sua formação inicial vão sendo (des)construídas na articulação reflexiva de sua prática, sobretudo no que condiz com as especificidades da educação infantil.
Voltando nosso olhar para a PI D, ela narrou com bastante entusiasmo em seu memorial o início da docência. Como podemos perceber no relato seguinte, D possui muitas expectativas e ideais de realização da sua prática educativa. Ela deseja atuar no Ensino Fundamental e “sonhava em ensinar conteúdos um tanto avançados, usar bons livros didáticos, preparar e corrigir atividades”.
Em seu memorial observamos uma marca subjetiva que remete à família, influência na construção identitária da PI D: ela tinha receio de quem seria a diretora da escola, pois sua mãe – que também era professora – relatava experiências ruins com a direção da escola. Fazendo um paralelo com Dubar (2005), percebemos que existe uma relação na construção identitária do indivíduo que está efetivamente ligada à vivência da criança; essa identidade se configura numa primeira experiência na relação com a mãe.
A marca encontrada em sua narrativa possui um caráter subjetivo, ou seja, a PI D projeta em sua trajetória os valores e concepções do que é ter experiências ruins, que foram repassados por sua mãe. Desse modo, identificamos uma marca do olhar do outro que influencia no olhar sobre si (DUBAR, 2005). Além disso, como assevera Marcelo García (2002, p. 4), “O desenvolvimento da identidade acontece no terreno do intersubjetivo e se caracteriza como um processo evolutivo, um processo de interpretação de si mesmo como pessoa dentro de um determinado contexto”.
No caso da PI G, o início da docência foi marcado por uma aparente tranquilidade em razão de ter tido uma experiência de estágio, o que a deixou mais confortável para encarar o processo de indução. No entanto, como pontua Tancredi (2009), ao ingressar na escola, o professor iniciante enfrenta uma realidade que não é mais a mesma que deixou poucos anos atrás enquanto aluno, ou seja, os professores são outros, as propostas educacionais, a escola, etc., são dinamismos da realidade que nem sempre condizem com as expectativas do iniciante. Assim, a tranquilidade vivida por G nos primeiros dias de docência foi, aos poucos, sendo substituída por tensões. No excerto a seguir encontramos uma dessas tensões e marcas relacionadas à dimensão pessoal de experiência escolar da docente.
PI G- Outra dificuldade gigantesca que tive foi de fazer as notas do boletim. Eu não aprendi isso na faculdade. Tomei então como base o que lembrava da minha época escolar, o Ensino Fundamental 2 e o Ensino Médio. Nem pensei que com crianças isso talvez fosse diferente. Assim, aconteceu de eu dar média 1 ou 2 para alguns alunos. Nessas ocasiões, na reunião de Conselho a diretora, com muito cuidado, sem me humilhar, chamava a minha atenção para o que significa uma nota dessas e o que ela causa numa criança.
Neste aspecto, pode-se identificar uma perspectiva escolarizada sobre a educação infantil – atribuir notas em um boletim escolar –, em que, diante de situação com a qual não sabe lidar, a professora G se respalda em uma experiência escolar enquanto aluna do ensino fundamental e ensino médio, seguindo esse modelo de docência e negligenciando as características da criança pequena e da educação infantil.
O depoimento de G evidencia o pressuposto de que a aprendizagem da docência se inicia antes de sua preparação formal (MARCELO GARCÍA, 2002; MIZUKAMI, 2003; TANCREDI, 2009), quando se é aluna e se constrói uma imagem sobre o ensino, a aprendizagem e o que é ser professor, processo que, muitas vezes, é imitativo e intuitivo (LORTIE, 1975). Além disso, também denuncia a urgência de a formação docente se atentar para as especificidades da docência na educação infantil e da criança pequena. Sobre isso, Cerisara, Rocha e Filho (2002, p. 213) já questionavam:
[…] como transformar essas instituições em um nível de ensino sem que elas reproduzam ou transportem para si certas práticas negativas (no sentido de cerceamento do gozo pleno da situação de infância) desenvolvidas nas escolas do ensino fundamental? Como formar os docentes da educação infantil sem que sigam o modelo de docência do ensino fundamental (enxergando na criança apenas aluno)? Como e onde formar esses profissionais?
Agregado a essa discussão, retomamos o estudo de Gatti (2010), ao revelar que as disciplinas curriculares nos cursos de pedagogia do Brasil específicas para a atuação na educação infantil contemplam a porcentagem de 5,3%. Esses apontamentos demonstram que existe um fator importante para a atuação dos profissionais que atuam nesse nível de ensino, pois se entende que, muitas vezes, a formação inicial não abrange as necessidades de conhecimentos específicos da área; portanto também consideramos um fenômeno necessário a ser discutido no processo de desenvolvimento profissional docente.
Dando continuidade às análises do memorial, outro aspecto relacionado ao contexto de formação profissional de G também reforça que é imprescindível que os cursos de formação se voltem para as demandas de estudantes Público-Alvo da Educação Especial (PAEE). Sobre isso, a PI G relata que no primeiro ano de carreira teve um estudante com Síndrome de Down, entretanto não recebeu apoio das colegas professoras e nem da direção, sentindo-se, assim, “um tanto quanto perdida”:
PI G- no meu terceiro dia entrou uma aluna com Síndrome de Down e foi muito difícil trabalhar com ela, principalmente porque eu estava com crianças de 2 e 3 anos e não tive formação em educação especial. […] Me questionei: - Aluna especial no primeiro ano de trabalho!! Será que darei conta?? Que atenderei as necessidades daquela criança e será que conseguirei de fato ser uma professora que faça a diferença?
Entende-se que um dos desafios que acompanhamos na atualidade é o processo de inclusão social, que emerge em relação à proposta de escola inclusiva, sobretudo pensando na formação do professor para essa inclusão. Já no final da década de 1990, Cartolano (1998) pontuou que a formação profissional docente não pode se esquivar da educação de estudantes PAEE, sendo necessárias reformulações curriculares que superassem alterações de caráter meramente técnico, que considerassem tal demanda em uma perspectiva política e que desconstruíssem a dicotomia entre a modalidade de ensino regular e especial. A formação inicial, então, é um espaço privilegiado para que os futuros professores construam quadros de referências teóricos e metodológicos relacionados às práticas pedagógicas voltadas ao trabalho com estudantes PAEEs, promovendo uma formação inclusiva e não fundamentada na racionalidade técnica. Entretanto, o estudo de Gatti (2010) sobre a disparidade nas propostas curriculares para a abrangência de disciplinas voltadas para a Educação Especial revela que somente 3,8% das disciplinas são ligadas aos conhecimentos respaldados nas teorias de ensino da referida área, contemplando muito pouco as práticas educacionais associadas a esses aspectos. Desse modo, compreendem-se as limitações enfrentadas pelos professores em lidar com essas demandas educativas.
Ainda sobre o depoimento de G, é compreensível sua fase de descoberta; embora ocorressem inquietações iniciais referentes ao choque inicial de se trabalhar com PAEE, a docente demonstra ter uma responsabilidade pedagógica, reconhece a necessidade de uma formação mais específica para atuar com esse público. Contudo, é relevante compreender que a formação da profissional em questão proporcionou uma conscientização de responsabilidade pedagógica – ao questionar se vai dar conta, percebe-se o posicionamento de uma profissional que carrega uma postura de comprometimento com o desempenho do seu trabalho. Sendo assim, podemos inferir que a formação da PI corroborou para o desenvolvimento de uma identidade profissional que se apoia na autorreflexão prática pedagógica. De acordo com Fávero (2009), é necessário repensar a própria concepção de educador, o qual não deve se conformar em apenas transmitir conteúdos e dar aula, mas, sim, ter sua formação profissional continuada, buscando sempre informações, métodos e experiências novas. Inferimos, então, que a PI G demonstra ser uma profissional preocupada com essas ações formativas, pois o fato de buscar auxílio para suas dificuldades por meio de um programa de indução enfatiza essa afirmação.
Essa narrativa também denuncia a falta de apoio ao professor iniciante, apoio essencial considerando as características do início da docência destacadas pela literatura na área de formação de professores e considerando os desafios do contexto relatado por G.
No excerto a seguir, é interessante observar que, apesar das tensões vividas por G, ela afirma não ter tido “traumas”, e que isso a fez “ver que eu realmente estava onde pertencia e que eu amava minha profissão e estava muito feliz com minha carreira” (PI G), demostrando um sentimento de pertencimento ao campo profissional.
Ademais, podemos perceber que a identidade é de fato construída através da percepção que a PI G tem de si mesma e como ela deseja que os outros a vejam:
PI G - Afirmo que ver o desenvolvimento das crianças, pensar criticamente e refletir sobre minha prática docente foi essencial ao longo desse primeiro ano letivo, pois possibilitou que eu caminhasse com mais segurança e estivesse atenta às adversidades encontradas no caminho, pois acredito que nós educadores temos que estar sempre preparados para tudo, pois nem sempre nosso planejamento sai como o pensado, sendo necessário fazer uma autocrítica construtiva.
Inferimos que a identidade docente de G vai sendo constituída através da concepção de pertencimento, uma vez que a docente projeta suas expectativas através da sua formação inicial.
A PI G faz o relato do seu segundo ano de prática docente. No excerto a seguir podemos encontrar tensões que remetem à socialização profissional.
PI G - Na fase 2, tive uma experiência bastante diferente. […] Queria colocar em prática o que tinha aprendido nos anos de graduação. Porém as outras professoras não estavam muito animadas. Tenho receio de ser injusta ao falar sobre elas, mas para mim foi uma grande decepção e frustração o tempo na fase 2. O esquema do dia era fazer toda a parte de cuidados e higiene do jeito mais rápido possível, virar os baldes de brinquedos no meio da sala e ficar sentadas no banco conversando bobagens, falando mal das crianças. Eu sugeria algumas coisas, como fazer atividades dirigidas, preparar circuitos, levar as crianças para a areia (na escola não havia parque, apenas um tanquinho de areia), colocar as crianças para andar de motoca no pátio, fazer espaços diferentes na sala, etc. Elas sempre respondiam, com pouco caso, que não dava certo, sem dar motivo.
A professora relata sentimentos, fala de si mesma, o que pensa ser ou o que gostaria de ser, e esse fato está relacionado, de acordo com Dubar (2005), com a articulação do processo de atribuição de papéis pelo outro, nesse caso o trabalho que as outras professoras realizam, e o fato de as demais professoras não aceitarem suas sugestões. Nesse sentido, ocorre a interiorização, que é a aceitação e vivência do papel, e a incorporação, processo pelo qual esse papel passa a fazer parte da identidade social-profissional da docente.
Cabe atentarmos às concepções somente de cuidado em educação infantil, que se apresentam nas colegas de trabalho da PI G e às da própria G, pois interferem diretamente em seus posicionamentos pedagógicos, ainda mais no que se refere à construção da identidade de professoras de creche, o que também envolve a compreensão sobre as características das crianças. Afinal, “reconhecer a especificidade da infância, sua capacidade de criação e imaginação – requer que medidas concretas sejam tomadas, requer que posturas concretas sejam assumidas” (KRAMER, 2002, p. 129).
No depoimento de G novamente encontramos marcas que demonstram uma concepção desvinculada do cuidado na prática educativa, ou seja, as professoras não reconhecem os aspectos socioculturais que circundam a vida das crianças na relação com o mundo físico e social. É fato que as crianças pequenas são vulneráveis e, em alguns aspectos, dependentes dos adultos, entretanto atuar na educação infantil também requer posturas de reconhecimento de aspectos referentes à socialização, ao desenvolvimento e à aprendizagem das crianças pequenas, processos nos quais elas estabelecem múltiplas relações com o mundo, com outras crianças e com os adultos por meio de diferentes linguagens, como, por exemplo, corporal, pictórica, plástica, escrita, oral e gestual (ROCHA, 2001). Assim, essas relações deveriam ser o foco de uma pedagogia voltada para a educação infantil, considerando os processos próprios da constituição do ser criança, que englobam “a expressão, o afeto, a sexualidade, a socialização, o brincar, a linguagem, o movimento, a fantasia, o imaginário” (ROCHA, 2001, p. 31). Também pontuamos como fundamental entender a criança como um todo, como um ator social que produz cultura, que se expressa nos pensamentos, nos jogos, nas brincadeiras e nos seus desenhos (CORSARO, 1997). Portanto, é imprescindível a valorização dos aspectos mencionados para uma postura docente que de fato atenda aos objetivos pedagógicos da educação infantil.
Dando continuidade às análises dos memoriais, observamos elementos que indicam a busca por superar as dificuldades vivenciadas no início de carreira, e nesse processo a socialização profissional foi evidenciada como um aspecto importante.
3.2 Superação das dificuldades auxiliadas pelos pares
As narrativas das professoras iniciantes revelam momentos de superação das dificuldades mediante apoio dos pares. Iniciamos essas análises com o relato da PI, que, em seu memorial, expõe sobre suas expectativas no primeiro dia de aula, além da importância de ter recebido auxílio de outras pessoas nesse processo de indução e desafios da docência.
Ao longo do memorial, a docente faz uma leitura sobre as dificuldades desse início como uma etapa de “sobrevivência”, momento em que marca o choque de realidade em vivenciar a complexidade e imprevisibilidade em sala de aula, o que também a faz perceber a distância entre as concepções pedagógicas e seus ideais advindos da formação inicial e a vida cotidiana na escola (HUBERMAN, 2000). De outro modo, essa percepção sobre a etapa de “sobrevivência” por parte da PI possui um significado reflexivo consideravelmente importante para a constituição da sua identidade, tendo em vista que a relação com os pares é uma marca que a ajudou a permanecer na profissão. Os trechos dos depoimentos de R ilustram essas considerações.
PI R- Posso dizer que sou uma professora iniciante de muita sorte e um dos motivos é de dividir a sala com a professora Mariana. Conheço a Mari desde 2013, ela é minha veterana no curso de pedagogia e durante a graduação nos tornamos amigas. Mari sempre me inspirou no curso, conversávamos sobre os estágios, as disciplinas, os professores, sobre iniciação científica, até durante o processo seletivo do mestrado a Mari estava lá para me dar dicas e apoio. Quando descobri que dividiria a sala com ela, senti muita segurança, pois sabia de sua competência e sua disponibilidade em me ajudar nos desafios que enfrentaria. E não foi diferente, Mari e eu nos tornamos grandes parceiras de trabalho, conversamos muito sobre a escola, os alunos, a rotina, as atividades, sem ela ao meu lado teria sido tudo muito mais difícil. […]
No relato da professora identificamos também marcas que remetem ao olhar do outro sobre ela mesma, tendo em vista a relação estabelecida dentro do contexto de trabalho. Percebemos que ambas professoras influenciaram na conduta da PI frente aos desafios nessa fase inicial. O sentimento de segurança da PI R advindo da relação com a professora Mariana, tendo em vista suas interações na época de graduação, deixou a docente mais confortável e segura para desenvolver suas práticas. Podemos inferir daí o reconhecimento profissional entre as mesmas, visto que a influência profissional das colegas foi um elemento presente no contexto de indução da PI. Essas reflexões narrativas remetem à compreensão de identidade defendida por Dubar (1997), e, diante dessa leitura, identificamos que a identidade da PI R é constituída no processo de socialização. A PI R narra em seu memorial outro fato relacionado ao auxílio que teve na fase de indução na Educação Infantil, mencionando o papel importante de uma outra colega de trabalho no início de sua carreira: “durante os primeiros meses, pelo menos duas vezes por dia a professora estava em sua sala e foi construindo uma relação de professor-aluno com as crianças por meio das dicas da docente”. Afirma, ainda, que “observar a postura da docente foi um incentivo para ela compreender as características das crianças e as especificidades de aprendizagem”.
É possível perceber que a PI R não se reconhece enquanto professora, a não ser pelo olhar das suas colegas, dado que a experiência compartilhável corrobora o desenvolvimento e descobrimento contínuo do eu. Ou seja, das identidades constantemente trabalhadas no decorrer das interações com suas colegas de trabalho, conseguimos extrair de sua narrativa esses aspectos relacionados à construção de sua identidade profissional no cerne do processo de indução. Além disso, compreendemos que sua identidade não está dada, como pontua Dubar (1997), ela é sempre construída e deverá ser (re)construída dentro desse campo conflituoso, entre dificuldades e superações, entre marcas subjetivas e objetivas.
Diante dos relatos de superação das dificuldades da professora R percebemos que esse período foi marcado principalmente pelo auxílio de outras profissionais dentro do ambiente de trabalho, compartilhando contextos de trabalhos que se desenvolvem no decorrer da trama no cotidiano. De fato, nosso olhar analítico para com sua trajetória reafirma-se na ideia de que a “identidade para si”, tanto referente à PI quanto às professoras, se constitui num processo de socialização.
A narrativa da PI G apresenta uma visão relacional entre a instituição escolar e a família. Ela infere a necessidade da participação da família nas práticas educativas no ambiente escolar quando “percebe entre seus pares que nem todas as relações com os familiares são boas, havendo uma falha no sistema”. Na visão da professora, “a escola deveria possibilitar que a família fizesse parte da educação da criança”.
O aspecto referente à concepção da PI sobre a participação da família na escola se relaciona com a ideia de que, a família é a primeira referência educacional da criança, sendo responsável, principalmente, pela forma com que essa criança se relaciona com o mundo. A partir de sua localização na estrutura social, a família tem um dos principais papéis na socialização da criança, ou seja, a inclusão do sujeito no mundo. Portanto, entendemos que existe uma educação geral e formal que está conectada em colaboração com a escola (POLONIA; DESSEN, 2005). A escola, por sua vez, tem funções distintas às da família, e no que tange à educação infantil é necessário considerar que essa etapa é parte primeira e fundamental da educação básica e que “a creche e a pré-escola têm como objeto as relações educativas travadas num espaço de convívio coletivo que tem como sujeito a criança de 0 a 6 anos de idade (ou até o momento em que entra na escola)” (ROCHA, 2001, p. 31). Nessa perspectiva, o conhecimento e a aprendizagem na educação infantil se enlaçam com os processos próprios da constituição do ser criança. Desse modo, o conhecimento é parte e resultado das múltiplas relações que a criança estabelece e constrói com o meio natural, com outras crianças e com os adultos. Questões que dizem respeito à vulnerabilidade da criança e à dependência da família, como higiene, alimentação e segurança (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2002), também devem ser levadas em consideração quando pensamos nas especificidades da educação infantil, uma vez que são elementos fundamentais no educar e no cuidar de crianças pequenas, afinal “em princípio quanto mais nova é a criança, mais alargado é o âmbito das responsabilidades pelas quais o adulto deve prestar contas de sua função” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2002, p. 47).
Podemos compreender a relação família-escola por determinantes ambientais e culturais. Existem valores individuais de uma educação doméstica e valores coletivos com finalidades socializadoras por parte da escola. Nesse sentido, há distinções entre a organização familiar e os objetivos da escola. Nesses aspectos mencionados e considerando o depoimento da PI G, muitas vezes as famílias que não se encaixam no modelo adotado pela escola são consideradas as principais responsáveis pelas divergências escolares. Diante desse panorama relacional entre família-escola, é importante para o bom funcionamento da instituição escolar que as famílias compreendam as estratégias de socialização da escola e seus modelos educativos, corroborando uma parceria que busque objetivos em comum; contudo a escola também precisa ouvir as famílias e propiciar meios de comunicação e interação com elas sobre suas intenções educativas.
Voltando ao memorial da PI G, em outro momento ela revela que “durante todo o ano letivo caminhou sozinha e que buscou ajuda e informações na internet, também com alguns familiares e docentes” e ainda “acredita que se saiu muito bem”.
Nesse relato a professora G demonstra certa solidão em sua profissão, e por isso precisou buscar por si mesma estratégias de apoio à sua prática docente. Por fim, faz uma avaliação positiva da situação. Identificamos, então, um exemplo de “sobrevivência” na trajetória de G. A professora demonstra a necessidade de se ajustar à realidade e, assim, encontra caminhos para desenvolver seu trabalho.
Entretanto, esse aspecto implica pensar o início da carreira como uma etapa fundamental no processo formativo do professor; embora haja tensões, els provocam intensas aprendizagens que contribuem de maneira essencial para a construção da identidade docente. De fato, percebemos que é nesse período que se começa a desenhar um modo particular e pessoal de ser professor, o qual poderá acompanhar o iniciante ao longo de toda a sua trajetória na carreira docente (MARCELO GARCÍA, 2002).
Em outro relato, a PI G pontua a necessidade de ter um apoio dos agentes educacionais como parceiros que pudessem auxiliá-la na superação das dificuldades referentes a situações bastante específicas:
PI G - Pude vivenciar o quão difícil é ter um aluno com alguma necessidade específica e o professor não ter a formação necessária, não ter o apoio da escola, da secretaria de educação e nem mesmo da família.
Sobre a superação das dificuldades auxiliada pelos pares, a PI D menciona a importância de ter um suporte pedagógico profissional, no caso dela, da diretora da escola.
PI D - […] Falando sobre a diretora, “C”, admirava muito ela. Gostava do jeito como ela elogiava a equipe pedagógica da escola […]. Sentia certa segurança tendo ela como diretora; ela parecia saber o que estava fazendo.
A PI continua sua narrativa relatando mais uma experiência com a direção da escola:
PI D - Na escola, estava faltando uma professora numa fase 2 com uns 20 alunos. Já tinham duas professoras, estava faltando uma. A diretora sugeriu que eu fosse para essa turma, pois eu não estaria sozinha e poderia aprender com as outras professoras, que eram mais experientes. E a minha turma iria para a atribuição. Eu sentia que estava me adaptando na fase 3, mas pensei que seria melhor seguir a ideia da diretora.
Inferimos que a diretora atribuiu uma identidade de socialização para a PI D, uma vez que ela considera que a professora teria a oportunidade de estar com outras profissionais e, desse modo, superar suas dificuldades nessa fase. Essa atribuição, de certa forma, pode influenciar a definição no tipo de professora que é a PI D, ou seja, a identidade para o outro. Porém, cabe ressaltar o caráter de tensão que marca a identidade, já que provavelmente a PI aceitou a sugestão da diretora por uma questão meramente hierárquica, tendo em vista que existe uma tensão entre o desejo da professora – que queria ficar com uma turma sozinha para se sentir professora – e a percepção da diretora – de que a PI precisaria dividir sala com outras colegas para poder aprender sobre a docência. O depoimento a seguir revela o sentimento da PI em relação à sua posição de professora responsável pela turma:
PI D - Numa semana, as duas professoras precisaram tirar licença. Fiquei dois dias sozinha com a turma. Fiquei muito feliz. Num dia montei um circuito na sala com túnel, escorregador, rampa, colchão, coisas que tinha à disposição. E no outro dia levei as crianças para brincar no pátio. A agente educacional e uma professora de apoio me ajudaram, mas me respeitavam como a professora da turma. Elas entraram no meu esquema. Deu tudo certo e foi muito legal.
A PI D demonstra certa segurança ao assumir sozinha a sala de aula. A docente relata sua abordagem didática de maneira entusiasmada, retratando a socialização da identidade que reporta o olhar que os outros agentes educacionais têm sobre ela. Sendo assim, interpretamos a importância que o olhar do outro tem para o reconhecimento identitário da docente nesse início de carreira. Além disso, o entusiasmo em se sentir responsável por uma turma tende a ser característica da fase de “descoberta” que permeia o início da docência.
As experiências de socialização profissional vividas pela PI D continuam sendo enfoque em sua narrativa.
PI D - Eu e uma professora da fase 1 tínhamos uma visão pedagógica bem próxima. Gostava muito de ficar com ela. Sentia que eu aprendia muito e realmente agia como uma professora quando trabalhava com ela. […] Fizemos projetos sobre o folclore, animais de jardim, alimentação saudável, fizemos atividades musicais, de contação de história, sobre cultura africana… Tudo isso com bebês! Além disso, procurávamos fazer dos momentos de cuidado, higiene e alimentação momentos de aprendizado também, como entendo que deve ser na educação infantil. Era incrível o encanto dos bebês a cada coisa nova e é muito gratificante ver o desenvolvimento tão rápido deles. Senti-me realizada naqueles meses.
Nos relatos anteriores também é perceptível a dimensão profissional através da socialização, pois o reconhecimento da profissão na fala da PI D, quando aponta que realmente se sentiu professora ao trabalhar com sua colega de trabalho na elaboração do projeto, demonstra uma imensa importância desse processo de internalização identitária através da parceria.
No excerto da PI D apresentado a seguir, também identificamos uma dimensão profissional da identidade por intermédio da socialização.
PI D - Eu não diria que essa fase inicial da carreira docente é uma fase de sobrevivência. Percebo que recebi muitas ajudas, vindas de muitos lugares diferentes. Colegas, gestoras, família (meu marido e meus pais me apoiam e ajudam bastante), amigas que estavam nessa mesma fase da carreira (tenho várias nessa mesma fase e conversamos bastante sobre isso) foram de grande ajuda para mim […]
Dessa maneira, reitera-se que a constituição da identidade profissional da PI D vem sendo formada nas interações sociais, sobretudo em colaboração com os pares que incidem diretamente nesse processo de superação das dificuldades do início de carreira. É possível, de fato, perceber essas dimensões no relato da professora. Sendo assim, nossas análises se findam numa perspectiva de integração entre as subcategorias apresentadas, de modo que foram estabelecidas relações entre as dificuldades no início de carreira e a superação dessas dificuldades auxiliadas pelos pares e expressadas nas categorias narrativas deste trabalho.
4 Conclusões
As narrativas analisadas neste trabalho nos apontaram dimensões importantes para serem pensadas no processo de construção da identidade profissional docente. A dualidade retratada nos relatos das três professoras iniciantes trouxe dimensões da identidade vista como decorrência simultânea, individual e coletiva, subjetiva e objetiva, biográfica e estrutural dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constituem as profissionais no início da docência (MARCELO GARCÍA, 2002). Esse período é importante porque as docentes precisam realizar a passagem de estudantes a docentes, por isso surgem dúvidas e tensões ao terem que adquirir conhecimento adequado e competência profissional em um breve período de tempo. As professoras iniciantes revelaram em seus memoriais marcas que evidenciam o protagonismo delas na formação da própria identidade pessoal e profissional. Nessa vertente, observamos, como também pondera Marcelo García (2002), que a identidade docente constitui um processo de negociação mediado pelo professor em suas próprias crenças, valores e experiências nas escolas e fora delas, o que implica diretamente a construção do tipo de profissional que cada uma almeja ser.
As trajetórias do início de carreira revelaram dimensões pessoais e profissionais que estruturam as formações identitárias, e esse processo está imerso em dificuldades e superações demandadas no início da carreira, além de elementos objetivos e subjetivos que delineiam suas trajetórias profissionais.
No que tange aos elementos objetivos, os dados evidenciam influências de diferentes contextos que parecem ser fontes de tensões vividas pelas iniciantes: as especificidades do trabalho na educação infantil, as demandas de atuar com estudantes PAEE e a relação com as famílias das crianças. Esses aspectos contextuais apontam questões cujas reflexões são necessárias nessa fase de indução, principalmente por exigirem dos professores o domínio de conhecimentos necessários que os apoiem em suas práticas e pelo fato de que essas forças contextuais influenciam a constituição da identidade profissional (RODGERS; SCOTT, 2008). Afinal, os contextos inevitavelmente moldam as noções de quem percebemos ser e como os outros nos percebem. Assim, as características, as demandas e as normas que regem cada contexto se conectam com a constituição da maneira como o profissional se vê enquanto docente, com as negociações que ele vai estabelecendo, com o modo como é reconhecido pelo outro e com os conhecimentos e práticas de atuação demandadas para cada contexto. Portanto, esses aspectos externos vão influindo na constituição da identidade profissional das iniciantes. Além disso, os dados revelam que, muitas vezes, os saberes teóricos concebidos na formação inicial estão distanciados das demandas encaradas pelos professores no início de carreira, sendo necessário pensar em estratégias de formação para o desenvolvimento docente, ou seja, é imprescindível a busca de saberes específicos por meio de programas formativos que promovam novos conhecimentos e estratégias metodológicas para prática do professor, pois esses mecanismos contribuem para a minimização das e/ou a superação das dificuldades.
A respeito do diálogo envolto no processo de socialização no qual as identidades profissionais estão sendo construídas, constatou-se que para além das relações estabelecidas no contexto de trabalho com os pares que corroboram para o desenvolvimento profissional docente, existem aspectos da trajetória pessoal das professoras, como influências familiares, experiências na trajetória escolar, crenças e valores. Esses aspectos influenciam em suas posturas pedagógicas frente aos desafios no início de carreira.
As trajetórias das professoras iniciantes também revelam que a superação das dificuldades, na maioria das vezes, decorre do processo de socialização, ou seja, com o auxílio dos pares. Essa constatação reforça o exposto pela literatura na área de formação de professores sobre a importância do diálogo com o outro para a aprendizagem da docência e na constituição da identidade profissional. Inferimos que o diálogo com o outro pode ser um caminho para superar o ensino individualista, criticado por diversos autores, como Lortie (1975), em situações, por exemplo, em que os indivíduos desenvolvam atitudes de trocas entre os pares, de ouvir o outro, se apoiarem diante das dificuldades encontradas e não apresentarem uma postura de resistência às novas propostas metodológicas e outras mudanças relacionadas aos papéis do professor e do aluno, às finalidades da educação etc.
Portanto, cabe salientar que a investigação sobre as formações identitárias constitui um trabalho importante para a formação de professores no sentido de apoiar tanto os alunos em formação quanto os próprios profissionais no início de carreira, na compreensão de si próprios enquanto professores. Essa investigação também contribuiu para o cenário das pesquisas narrativas, sobretudo no campo da formação de professores, pois as marcas das trajetórias de vida descritas pelas docentes e as relações que estabelecem com os contextos mais amplos, confirmam a potencialidade desse instrumento investigativo, coletando nas entrelinhas o modo de ver e sentir dessas profissionais.
Por fim, entendemos que esse estudo amplia e projeta novas perspectivas investigativas na área. Este é apenas um novo caminho a ser percorrido e explorado, pois compreendemos que a identidade é um aspecto amplo e essencial para entendermos os processos que envolvem os saberes e fazeres docentes, bem como as maneiras de se constituir profissionalmente.
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Notas
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