ARTIGOS ORIGINAIS

O Trabalho do Assistente Social na Área da Saúde: Significados da Aparente Centralidade dos Usuários no Discurso e Ação Profissional

The Work of the Healthcare Social Worker: Meanings of the apparent centrality of users in the professional discourse and action

La práctica del Trabajador Social en el Área de la Salud: significados de la aparente centralidad de los usuarios en el discurso y la acción profesional

Carlos Antonio de Souza Moraes 1
Universidade Federal Fluminense, Brasil

O Trabalho do Assistente Social na Área da Saúde: Significados da Aparente Centralidade dos Usuários no Discurso e Ação Profissional

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 21, núm. 3, 2019

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2019 pelos Autores

Recepción: 07 Junio 2019

Aprobación: 26 Agosto 2019

Resumo: A centralidade dos usuários tem sido defendida pelo Serviço Social brasileiro, na direção da efetivação de seus direitos, por meio de seu projeto ético-político profissional. Neste artigo, interessa problematizá-la a partir do discurso e trabalho profissional na particularidade da política de saúde. Metodologicamente optou-se por pesquisa qualitativa e descritiva, a partir das dimensões bibliográfica e de campo. A pesquisa de campo foi construída através de entrevistas com 07 profissionais, supervisores de estágio e cadastrados em uma Instituição pública de ensino superior. Esta proposta seguiu as recomendações da resolução 196/96 do CNS e obteve aprovação do CEP para sua realização.

Palavras-chave: Serviço Social, Trabalho profissional, Saúde, Usuários do Serviço Social, Intervenção profissional.

Abstract: The centrality of users has been advocated by the Brazilian Social Service, aiming at the implementation of their rights through their ethical-political professional project. This article discusses this issue based on the discourse and professional activity in the health sector policy. For this study, we selected the qualitative and descriptive research methodologies, based on both literature review and field dimensions. Field research was carried out through interviews with 07 professionals, internship supervisors registered in a public institution of higher education. This proposal followed the recommendations of resolution 196/96 of the CNS and obtained approval of the CEP for its realization.

Keywords: Social work, Professional work, Health, Social service users, Professional intervention.

Resumen: La centralidad de los usuarios ha sido defendida por el Trabajo Social brasileño, con el objetivo de la implementación de sus derechos, a través de su proyecto profesional ético-político. En este artículo, es importante problematizarlo desde el discurso y la práctica profesional en la particularidad de la política de salud. Metodológicamente, se eligió una investigación cualitativa y descriptiva, basada en las dimensiones bibliográficas y de campo. La investigación de campo fue construida a través de entrevistas con 07 profesionales, supervisores de pasantías, registrados en una institución pública de educación superior. Esta propuesta siguió las recomendaciones de la Resolución 196/96 del CNS y fue aprobada por el CEP para su realización.

Palabras clave: Trabajo social, Trabajo profesional, Salud, Usuarios del Trabajo Social, Intervención profesional.

1 Introdução

A análise do trabalho do assistente social na política de saúde na entrada dos anos 2000 não pode amenizar os agravos provocados pela profunda conturbação que se potencializa na especificidade brasileira dos anos 1990 e se arrasta até os dias atuais: crise societal; crise orgânica do capital e consolidação da reestruturação produtiva; globalização e neoliberalismo; sob vieses cada vez mais conservadores e reacionários nos dias que seguem.

Tendo em vista essa realidade e suas incidências nas políticas sociais – precárias desde sua gênese (PREDES; CAVALCANTE, 2010) e cada vez mais transformadas, total ou parcialmente, em políticas focalizadas na pobreza e na gestão do risco (YAZBEK, 2016), a análise do trabalho do assistente social também supõe considerar os agravos provocados por condicionantes socialmente objetivos à sua condução.

As prioridades do trabalho, o modo de operá-lo e de acessar os recursos necessários são frutos do poder institucional, em suas formas de organização, com destaque para o recorte das políticas, classificação dos problemas e controle dos recursos. Essas condições político-institucionais têm limitado os assistentes sociais, desafiando-os, a partir de seu projeto profissional atual, a construir respostas profissionais críticas, reflexivas, capazes de ultrapassar o desenho institucional e favorecer a universalização e ampliação dos direitos sociais, por meio da politização das demandas dirigidas aos profissionais e da criação de estratégias direcionadas ao acesso de qualidade dos usuários aos serviços sociais, embora em um contexto de precariedade, avesso aos direitos sociais e à universalidade do acesso às políticas sociais públicas.

Neste artigo, interessa problematizar os elementos que constituem o trabalho do assistente social na área da saúde, especialmente a aparente centralidade dos usuários no discurso e ação profissional. Compreende-se, no entanto, que não se pode pensar que o trabalho profissional é determinado e resulta apenas da intenção e ação do assistente social. Portanto, as determinações externas ao trabalho do assistente social têm alterado os caminhos percorridos pelo profissional na realização de suas atividades, bem como os resultados de suas ações.

Se não houver fortalecimento da categoria, criação de alianças estratégicas com demais profissionais que participam dos mesmos processos de trabalho que os assistentes sociais1, aprimoramento profissional constante, estudo e análise de realidade, identificação com a profissão afinada ao conhecimento e firmeza dos princípios ético-políticos, serão ainda mais reduzidas as possibilidades de ultrapassar as margens institucionais que tendem a limitar os profissionais e a restringir consideravelmente sua capacidade crítica, ameaçando a dimensão intelectiva do trabalho profissional na perspectiva do projeto ético-político profissional atual (MORAES, 2016b).

Ao particularizar as análises a respeito do trabalho do assistente social na política de saúde, compreendemos que as condições objetivas de produção dos serviços de saúde, sob as quais se desenvolve o trabalho profissional, têm limitado suas ações profissionais, visto que a própria base de concepção de oferta dos serviços recorta e fragmenta as necessidades do ser social (COSTA, 2009; ABEPSS, 1996).

Conforme destacado em outros momentos (MORAES, 2016a, 2018), alguns intelectuais que discutem o Serviço Social na particularidade da política de saúde (BRAVO, 2004; COSTA, 2009, VASCONCELOS, 2009; NOGUEIRA; MIOTO, 2009, 2009; MARTINELLI, 2011; MATOS, 2013; DUARTE, 2014) e o documento intitulado “Parâmetros para atuação de assistentes sociais na saúde” (CFESS, 2009) têm dedicado especial atenção para identificação e análise a respeito das particularidades do trabalho profissional nessa área de atuação.

De forma geral, as análises desses autores e documentos oficiais da profissão na área da saúde têm sido direcionadas aos seguintes elementos: 1. Determinantes do trabalho profissional na área da saúde: análise da política de saúde; da formação profissional; do processo coletivo de trabalho e das condições de trabalho profissionais; da condição de subalternidade das profissões de saúde, mediante o modelo médico assistencial; da condição de trabalhador assalariado; do (não) processo de aprimoramento profissional contínuo, dentre outros; 2. O trabalho empreendido pelo Serviço Social: rotina de trabalho; estratégias e ações profissionais; demandas recebidas, incluindo requisições institucionais; relação com a chefia e demais profissionais; metodologias de trabalho adotadas; instrumentos utilizados; dimensão política dos instrumentais, dentre outros; 3. Análise do discurso profissional: articulação entre os projetos de Reforma Sanitária e o projeto ético-político profissional versus o discurso do “possibilismo”, que flexibiliza os princípios dos projetos anteriores; e 4. Análises propositivas para a reconstrução do Serviço Social na área da saúde, tendo por base seu projeto ético-político profissional, articulado aos princípios do projeto de Reforma Sanitária (MORAES, 2016a, 2018).

Diante desses apontamentos bibliográficos preliminares, para esta proposta, metodologicamente optou-se por pesquisa bibliográfica e de campo.

Para a pesquisa bibliográfica, fundamentou-se em estudos clássicos e contemporâneos na área de Serviço Social e suas particularidades na política de saúde – livros, teses, dissertações e artigos acadêmico-científicos. Como critério de seleção destes estudos – alguns já sinalizados na parte introdutória deste artigo – recorreu-se àqueles fundamentados na teoria crítica de Marx.

Já para a pesquisa de campo, optou-se pela construção de um roteiro de entrevista estruturada, alicerçado nas seguintes variáveis: identificação profissional; Serviço Social, trabalho profissional na área da saúde e condições de trabalho; Serviço Social, pesquisa e dimensão investigativa na área da saúde; e perspectivas. Esse instrumento foi direcionado a 07 assistentes sociais2, supervisores de estágio na área da saúde e cadastrados em uma Instituição pública de ensino superior no Estado do Rio de Janeiro.

Esta proposta esteve pautada nos critérios do Ministério da Saúde/Conselho Nacional de Saúde/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) envolvendo seres humanos, seguindo as recomendações da resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, com aprovação do CEP sob o número 49607115.4.0000.5482. Parte da pesquisa de campo, de natureza qualitativa, será descrita e analisada na próxima seção deste artigo, fundamentada nas referências bibliográficas mapeadas por este estudo.

2 Significados da aparente centralidade dos usuários no discurso e trabalho profissional do assistente social

É sabido (IAMAMOTO, 2011; MARTINELLI, 2009; BARROCO, 2009; dentre outros) que o Serviço Social, a partir do Movimento de Reconceituação, especialmente da “intenção de ruptura” (NETTO, 2005b), articulou alianças com as classes populares, que se tornaram parceiras indispensáveis à construção de seu projeto profissional.

A centralidade dos usuários, por meio da defesa de seus direitos, do acesso a informações, da participação das decisões institucionais, de seu reconhecimento como sujeito livre, autônomo e do empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, tem sido defendida pelo Serviço Social por meio da construção de seu projeto profissional, que é regulamentado e materializado no Código de ética profissional (1993), na Lei de Regulamentação da Profissão (Lei n. 8.662/93) e na proposta das Diretrizes Curriculares para formação profissional em Serviço Social (ABEPSS, 1996).

Além disso, os princípios e valores radicalmente humanistas defendidos pelo Serviço Social, em seus documentos legais, e analisados criticamente por ampla produção bibliográfica, indicam um “novo modo de operar o trabalho profissional”, norteando sua condução mediante condições e relações de trabalho geralmente desfavoráveis à sua efetivação (IAMAMOTO, 2011, p. 226 [grifos da autora]).

Ainda que o Serviço Social tenha construído um projeto articulado à classe trabalhadora, que tenha por objetivo criar uma nova forma de vida ético-política em sociedade, sem exploração/dominação de classe, etnia e gênero, mesmo assim é preciso reafirmar a necessidade de ampliar os estudos voltados à compreensão do perfil dos usuários e de suas condições de vida, analisando os aspectos que denotam particularidades e transversalidades entre os usuários das diferentes políticas sociais.

A identificação dessa lacuna na produção de conhecimentos em Serviço Social tem sido apontada, ao longo dos anos 1990 e 2000, por outros autores (QUIROGA, 1999; BOURGUIGNON, 2008), os quais reconhecem a necessidade de dar maior visibilidade aos sujeitos, suas experiências, conhecimento, história e vivência cotidiana, a partir de análises críticas do contexto sócio-histórico e da dinâmica da realidade.

Essa problemática também tem sido identificada entre os profissionais “da ponta” que, em sua maioria, não têm produzido dados e informações sistematizados a respeito dos usuários, sobre os quais poderiam instaurar reflexões fundamentadas. Ou seja, embora os assistentes sociais verbalizem um discurso que denota centralidade aos usuários por meio da defesa de seus direitos, de maneira geral eles não têm conseguido registrar as informações processadas em seu cotidiano de trabalho e analisá-las, potencializando novas formas de atuação, com base em suas defesas ético-políticas.

Ao analisar os depoimentos dos assistentes sociais entrevistados, vinculados aos objetivos profissionais na área da saúde, foi possível identificar uma aparente centralidade dos usuários, expressa em dois principais vetores que, dentro do possível, têm sido construídos pelos profissionais de forma articulada.

1. A tentativa de responder objetivamente às demandas dos usuários, articulando estratégias que visem contribuir para seu acesso à política de saúde, por meio dos recursos institucionais disponíveis e/ou das demais políticas sociais, através de orientação e encaminhamento para a rede sócio-assistencial.

Nesse caso, é importante sinalizar que, se por um lado as principais demandas apresentadas pelos usuários aos profissionais (frutos de procura espontânea, encaminhamentos internos ou externos) dizem respeito ao seu processo de adoecimento e tratamento (acesso a médicos, acesso a medicamentos de alto custo, a exames e tratamento específicos; maus-tratos com idosos; repercussão da dependência química na dinâmica familiar, dentre outros), por outro lado extrapolam as atividades desenvolvidas nos serviços de saúde, demonstrando que o processo de adoecimento é construído socialmente. Nesse caso, os assistentes sociais têm sido requisitados a prestar orientações e encaminhar para programas de qualificação profissional (mediante situações de desemprego), para outros programas sociais, orientar sobre direitos previdenciários, auxílio-funeral, além de relatar casos de orientação a pessoas sem documentos, dentre outros.

Vasconcelos (2009), em pesquisa realizada com assistentes sociais na área da saúde, identificou que suas respostas às demandas recebidas nos espaços de plantão têm sido de “encaminhamentos internos”, “externos” e/ou “orientações diversas”.

2. Por outro lado, os profissionais entrevistados afirmaram um compromisso com o usuário através de escuta qualificada e trabalho “reflexivo”, por meio de informação e atendimento individual, capazes de mobilizá-los para o resgate de sua autonomia e protagonismo, colocando-se como sujeito de sua própria história.

Através da pesquisa de campo, identifica-se um discurso valorativo deste segundo aspecto, inclusive pelo fato de que a relação direta com os usuários foi predominantemente apontada como o principal motivo de satisfação profissional, embora, para alguns, essa relação se traduz em constantes desafios que estão pautados na possibilidade de “levar as pessoas a resgatarem sua autonomia, sua vida” e “tendo uma compreensão do sujeito singular dentro da universalidade, despertando o sujeito para possibilidades” (Depoimento de assistente social, CAPS AD).

Assim, quando questionados a respeito do que é ser assistente social, para eles, predominou o discurso da garantia de direitos por meio de um trabalho sócio-educativo centrado no uso da informação, que objetiva levar o usuário a refletir e desempenhar um papel de protagonista de sua vida.

Independente do modelo político-institucional (CAPS, Hospitais, Secretaria de Saúde, Programa Municipal DST/AIDS, Farmácia básica, Coordenação de Serviço Social em Hospital) e do tempo de formação profissional, esses depoimentos estiveram presentes entre os entrevistados, trabalhadores das diferentes unidades de saúde, embora com maior ênfase a respeito de sua operatividade em serviços especializados, como o CAPS AD.

Compreende-se, no entanto, que a descrição dessas informações indica uma tendência: à medida que o trabalho tem sido construído pautado em atividades rotineiras, burocráticas e imediatistas, vinculadas ao modelo médico-hegemônico de tratamento e cura das doenças ou em ações que enfatizam os aspectos subjetivos do tratamento, identificadas, sobretudo, na área de saúde mental, a partir de valores e compromissos éticos, os assistentes sociais vão criando estratégias de enfrentamento da realidade na qual estão inseridos. Essas estratégias são evidenciadas como capazes de garantir sua relativa autonomia no desenvolvimento de suas atividades.

Assim sendo, é na relação direta com o usuário e através da qualificação permanente que os assistentes sociais plantonistas na saúde (sobretudo, mas não exclusivamente) têm tentado romper os limites e ditames institucionais, revigorar sua criticidade e defender sua relativa autonomia, colocando-se como sujeito de sua ação profissional. De forma geral, em modelos biomédicos e em serviços especializados, as estratégias interventivas baseiam-se em atividades socioeducativas centradas no uso da informação, que objetivam levar o usuário a refletir e se colocar como sujeito de sua história.

O recurso à produção bibliográfica contribui para legitimação dessa tendência. Miranda (2011), por exemplo, aponta, em sua tese de doutorado, a centralidade das ações socioeducativas, por meio da informação, no trabalho do assistente social na área da saúde. Além disso, afirma que o modelo centrado no médico responsabiliza verdadeiramente o usuário pela recuperação de sua saúde, embora o cuidado em saúde possa ser compartilhado entre este e os demais familiares, cuidadores e profissionais.

Essa tendência, apontada em nossos estudos, é uma importante e legítima estratégia criada pelo Serviço Social no cotidiano dos serviços públicos de saúde, cada vez mais precários, para o enfrentamento da realidade capitalista contemporânea. Porém, para além de sua valorização, compreende-se a necessidade de qualificar o debate a partir de três desdobramentos principais que estão integrados na composição da tendência, mas que, a título de didática, serão distintamente analisados, mantendo sua complementaridade: 1. Os riscos de responsabilização exclusiva do usuário a partir de um discurso de “sujeito de sua própria história” nem sempre articulado à dimensão política do projeto profissional atual do Serviço Social; 2. A necessidade de se analisar a metodologia adotada para construção deste trabalho socioeducativo; 3. A análise da perspectiva pedagógica desta estratégia de trabalho profissional.

Em relação ao primeiro desdobramento, foi possível identificar que em alguns momentos a clareza por parte dos assistentes sociais a respeito da “retração dos recursos político-institucionais para acionar a defesa dos direitos e dos meios de acessá-los” (IAMAMOTO, 2011), indicou que o discurso de mobilização do usuário para reflexão, com o objetivo de despertá-lo para se colocar como “sujeito de sua própria história”, pode estar caminhando para um processo de responsabilização do mesmo, corroborando a afirmativa de Miranda (2011).

A questão é que o usuário desempenha um duplo papel na particularidade dos processos de trabalho em saúde: de objeto nesse processo de trabalho e de agente, que fornece informações a respeito de sua situação de vida e saúde e, dependendo de seu envolvimento, possibilidades e consciência, tenta cumprir as recomendações dos profissionais de saúde que, muitas vezes, exigem alterações nos hábitos de vida, com intenção de reduzir os riscos de doenças e promover sua saúde (MERHY, 1997).

O que se observa, portanto, é que existe uma tênue, mas importante distinção entre coparticipação e responsabilização dos usuários desses serviços, que no cotidiano do trabalho em saúde pode, em alguns momentos e mediante as precariedades dos serviços públicos e a imediaticidade das ações, estar rompendo os limites que as diferenciam, a ponto de fazer com que a mobilização do usuário “soe” muito mais como um incentivo à busca por novas oportunidades, pautadas por meio de sua inserção no mercado de trabalho (formal ou informal) e a possibilidade de acesso à saúde como produto, do que a construção de uma nova cultura, que tenha por base a mobilização da população usuária para participação nos espaços institucionais e defesa de seus direitos sociais.

Mais do que fornecer informações sobre sua situação de vida e saúde e cumprir recomendações médicas e terapêuticas, é preciso dedicar especial atenção aos riscos de centralizar o papel do usuário como agente na produção de saúde, quando ele também é “objeto” do processo de trabalho em saúde. Enquanto “objeto” humano, é um sujeito de direitos que deve ter acesso a serviços públicos de saúde com qualidade e baseados nos princípios de universalidade, integralidade e equidade, conforme estabelecido na Constituição Federal de 1988 e em legislações específicas da área.

De forma geral, o que se quer destacar é que esse desdobramento, identificado na pesquisa de campo, não é o único registrado entre os assistentes sociais. Também é possível perceber esforços na tentativa de centrar suas ações nos usuários e intervir a partir de seus problemas, procurando contribuir para construção de sua autonomia associada ao acesso aos serviços públicos de saúde. No entanto, não foi recorrente a identificação de trabalhos para mobilizar a população usuária (como sujeito e objeto dos processos de trabalho em saúde) na perspectiva de participação e controle social, tendo por base a defesa da política pública de saúde e dos direitos humanos.

Além disso, como segundo desdobramento, é necessário dedicar algumas reflexões a respeito de como este trabalho tem sido construído. Em instituições pautadas no modelo hospitalocêntrico, há predomínio do atendimento individual e pontual. Porém, em serviços especializados, particularmente o CAPS AD, embora sejam realizadas entrevistas, há centralidade das atividades em grupo. Essa mesma diferenciação é possível de ser identificada em relação à sistematização do trabalho profissional, embora, mesmo em instituições em que há registro do trabalho realizado, o uso desse material para reflexões críticas e estratégicas não é tão habitual quanto o desejado, visto que não contam com estudos a respeito do perfil dos assistidos e de suas condições de vida.

Essa dificuldade de registro das informações não é exclusiva dos assistentes sociais da área da saúde. Segundo Merhy (1997), um dos principais problemas desses serviços vincula-se à carência das informações dos profissionais de saúde de forma ampliada, tanto no registro das dimensões dos serviços quanto às relacionadas à população usuária.

Esses registros, quando realizados e tornados objetos de reflexões críticas, são diferenciais para reinvenção de novos significados para o que está posto no cotidiano, abrindo novas linhas de fuga, construindo outros universos instituídos, colocando como alvo de reflexão o trabalho realizado, abrindo-o para novas racionalidades. Assim, a análise das informações sistematizadas contribui para pensar o trabalho vivo em ato para além dos limites do instituído, tendo por base a construção de possibilidades para novos procederes interventivos (MERHY, 1997).

Outro fator, apontado por Vasconcelos (2009), referente ao trabalho do assistente social na área da saúde é que as demandas individuais não têm sido pensadas no plano coletivo, o que dificulta seu enfrentamento coletivo, tendo em vista os interesses e necessidades dos usuários.

O fato é que esses processos têm sido priorizados por modelos político-institucionais pautados em ações pontuais e emergenciais que dificultam a criação de vínculos, bem como a construção de reflexões que causem impactos na subjetividade do usuário. Reflexões capazes de contribuir para maior grau de autonomia no modo como anda a vida associada à sua mobilização coletiva para defesa de seus direitos, a partir de uma compreensão do lugar que ocupam na sociedade e daquele que podem ocupar, tendo por base a defesa da vida e dos direitos humanos.

Essas informações e análises contribuem para pensar a função pedagógica do trabalho do assistente social na entrada do século XXI. Como terceiro desdobramento, recorreu-se às análises de Abreu (2002), que sugerem que as alterações em sua função pedagógica se vinculam às modalidades de enfrentamento político-cultural travadas pelas classes na luta por hegemonia. Esse contraditório movimento requisita um conjunto de intervenções sócio-institucionais na perspectiva de uma nova cultura3, consubstanciada em um princípio educativo, traduzido em um tipo de conformismo social, imposto pelos interesses da acumulação do capital internacionalizado e imbricado em amplo movimento de passivização. Ou seja, por meio de consentimento ativo e passivo das classes subalternas à “nova” ordem do capital, bem como a neutralização de suas lutas de caráter emancipatório.

Para Abreu (2002), nesse processo, o assistente social pode adotar dois tipos de perspectivas em seu trabalho pedagógico: a perspectiva conservadora/subalternizante ou a perspectiva emancipatória. A primeira perspectiva é redefinida por meio de uma combinação entre o tradicional enfoque de natureza psicossocial e as atuais exigências de produtividade e qualidade, isto é, reprodução material e controle político das classes subalternas a partir dos interesses do capital. Nessa pedagogia, há uma revalorização da ideologia de responsabilização do indivíduo com sua própria sobrevivência, capaz de competir no mercado e gerar seus meios de vida.

Nos programas estatais, essa pedagogia está vinculada à necessidade de administrar lacunas e defasagens presentes no desenho institucional e garantir, minimamente e sem uma preocupação com a emancipação dos sujeitos, o atendimento das demandas por serviços sociais (ABREU, 2002).

Conforme se vem apontando, na área da saúde, a partir de modelos político-institucionais estruturados sob a lógica neoliberal e pautados preponderantemente na concepção biomédica, as estratégias adotadas pelos assistentes sociais, a partir de esforços baseados em seus compromissos éticos, têm sido de despertar o usuário para processos reflexivos, mesmo que pontualmente. No entanto, com direcionamentos políticos fragilizados, seja em virtude da precariedade da formação profissional, seja pela precarização das condições de inserção e permanência no trabalho; por sua condição de assalariado; pela falta de aprimoramento profissional ou ainda por falta de articulação entre os cursos de qualificação realizados pelo profissional na área da saúde e a análise crítica das competências e atribuições profissionais do Serviço Social nesse campo de atuação, tendo por base seu projeto de profissão e as bibliografias produzidas pelo Serviço Social a respeito do assunto estudado.

É certo que, embora se ateste a legitimidade e importância dessas estratégias metodológicas adotadas pelo Serviço Social na área da saúde, que, aparentemente, denotam a centralidade do usuário por meio do discurso da garantia de direitos, de fato elas têm caminhado mais no sentido de renovação da perspectiva conservadora do caráter pedagógico de seu trabalho por priorizar, nessa relação com o usuário, orientações psicossociais que reforçam suas responsabilidades e contribuem para o entendimento a respeito da tentativa de acesso aos direitos necessários à sua sobrevivência, debilitando a perspectiva de classe. Dessa forma, de maneira geral, os assistentes sociais criam estratégias que julgam ser capazes de enfrentar essa realidade sem embates diretos com os empregadores, evitando pôr em risco o seu vínculo de trabalho e, ao mesmo tempo, sentindo-se autônomos, mesmo que pontualmente, na condução do mesmo.

Diante disso, Iamamoto (2011) afirma que pensar o Serviço Social supõe compreender que os condicionantes sociais dispostos sobre a profissão ultrapassam a vontade de seus agentes individuais, mas que ela também é fruto dos sujeitos que a constroem coletivamente, forjando respostas profissionais. Assim, o protagonismo profissional situa-se sobre a condução de um trabalho, que potencia sua autonomia a partir de seu projeto profissional que possibilita, por meio de competência crítica, transitar da esfera privada das necessidades sociais dos sujeitos singulares para a luta por direitos na cena pública, potenciando-a em fóruns e espaços coletivos.

No sentido abordado por Iamamoto (2011), caminha-se na construção da perspectiva emancipatória da função pedagógica do assistente social, visto que, segundo Abreu (2002), ela pode se realizar mediante a edificação de estratégias de efetivação de direitos, a partir da incorporação das necessidades dos usuários, como parte da dinâmica dos serviços institucionais, com a participação deles na gestão desses serviços e politização de problemáticas e relações usuários/instituições.

Para a construção desse trabalho, é indispensável que o profissional, a partir de vocação social, compromisso político, busca paciente e corajosa, tenha clareza de que sempre há espaços de criatividade a explorar, canais de transformação a serem acionados, caminhos críticos e vias de superação a serem trilhadas (MARTINELLI, 1998).

De forma geral, os desafios apontados para construção desses espaços, por meio de um trabalho socioeducativo, baseado na perspectiva emancipatória da função pedagógica, indicam a necessidade de qualificar crítica e politicamente a relação direta com os usuários, a partir de um trabalho que contribua para seu processo de politização e articulação de suas forças com os demais trabalhadores e profissionais de saúde, na luta pela ampliação, universalização e qualidade dos serviços públicos e dos direitos sociais.

Para Martinelli (1998, p. 150): "É como trabalhadores que temos de nos reconhecer e juntos é que temos que atuar. Ao não nos identificarmos como trabalhadores, sucumbimos à lógica do capital que nos divide para nos fragilizar. Todos somos trabalhadores, lutamos por causas comuns e das diferenças de nossas profissões é que devem brotar as possibilidades."

De fato, o trabalho profissional é desenvolvido em um terreno denso de tensões e contradições. Na área da saúde, as dificuldades para efetivação do acesso dos usuários a seus direitos são ainda mais agravadas mediante situações de sofrimento físico, psicológico e social, que, em variados momentos, exigem atendimento imediato e de qualidade, capaz de resguardar a vida e diminuir os riscos de morte. Nesses processos, os assistentes sociais atuam em contextos marcados pelas diversificadas situações e formas de violência, em circunstâncias de morte repentina de pessoas e/ou de quase morte, falta de atendimento ou de condições para realizá-lo, de dependência química e esfacelamento das famílias, medos, dores e resistências religiosas a determinados tratamentos e procedimentos que, muitas vezes, são as únicas alternativas na tentativa de garantir a sobrevivência dos usuários, entre outros.

3 Conclusões

Embora este artigo problematize elementos vinculados ao trabalho do assistente social na área da saúde e, particularmente a aparente centralidade dos usuários no atendimento direto deste profissional, é necessário evidenciar que o assistente social atua, predominantemente em políticas sociais públicas precárias desde sua gênese, com recursos institucionais retraídos e sendo requisitados institucionalmente a administrar os problemas sociais advindos da ordem do capital.

Obviamente a intervenção profissional será impactada por essa realidade, gerando desafios complexos aos profissionais afinados ao projeto ético e político profissional. Na área da saúde, os desafios da intervenção se colocam em terrenos ainda mais arenosos, por se tratar de serviços que encontram dificuldades orçamentárias, mediante a desvalorização e precarização da saúde pública, em um contexto predominantemente imediatista, em que a falta de atendimento adequado pode agravar as condições de vida e ser irreversível para a recuperação física e emocional dos usuários, em um contexto em que a doença é determinada socialmente.

Diante disso, compreende-se que há preocupação ética por parte dos assistentes sociais com a garantia de direitos dos usuários. Nesse sentido, ainda que com recursos político-institucionais retraídos e ações caracterizadas pela imediaticidade, pontualidade ou pelo trato centralizado da subjetividade, as estratégias pedagógicas adotadas, embora tentem contribuir para garantir o atendimento das demandas dos usuários, caminham mais para reforçar a construção de sua autonomia na ordem do capital, por meio de atendimento acolhedor e humanizado, dentro de limites instituídos objetivamente e de fragilidades na dimensão político-reflexiva de seu trabalho.

Essas ações trazem consequências para o usuário e para o profissional. Para o usuário, ao ser ouvido e acolhido, sente-se respeitado, o que nem sempre ocorre em atendimentos profissionais diversos, enquanto, para o assistente social, as estratégias adotadas para condução do atendimento geram satisfação e uma “pseudo” sensação de um duplo protagonismo, seu e do usuário, contribuindo para a sensação de manutenção de sua relativa autonomia, mediante tantos limites e desafios cotidianos.

O fato é que, da forma como tem sido desenvolvida, essa estratégia tem contribuído mais para acumulação do capital e administração dos problemas sociais – inclusive por ser um trabalhador assalariado e com vínculos frágeis de trabalho – do que para a politização das problemáticas e relações usuários/instituições. Assim, quando há tentativa de ocupar esse importante espaço estratégico, a preocupação tem sido mais com o usuário na forma de andar a vida, no plano individual e familiar, do que sua politização como sujeito de direitos, que precisa ter suas necessidades sociais respondidas com qualidade por meio de políticas públicas baseadas no acesso universal, sob a perspectiva de equidade e integralidade.

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Notas

1 Para aprofundar a discussão a respeito de processos de trabalho e Serviço Social, ver: IAMAMOTO, M. V. O Serviço Social em tempo de capital fetiche. In: Serviço Social em tempo de capital fetiche. Capital financeiro, trabalho e questão social. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2011. Cap. IV, p. 335-413.
2 Estes profissionais atuam nas seguintes instituições e setores: Coordenação de Serviço Social de Hospital público municipal (Norte Fluminense); Vigilância Epidemiológica do Programa Municipal DST/AIDS/ Secretaria Municipal de Saúde (Norte Fluminense); Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas – CAPS AD (Norte Fluminense); Serviço Social e ouvidoria de Hospital público municipal (Norte Fluminense); Serviço Social atuante em todos os setores de Hospital filantrópico (Norte Fluminense); Plantão de Secretaria Municipal de Saúde (Noroeste Fluminense); Serviço Social da Farmácia básica municipal da Secretaria Municipal de Saúde (Sul Capixaba).
3 Essa “nova cultura” tem por base a justificação das contradições da realidade, constituída pelo amplo processo que peculiariza a “acumulação flexível”, que tem por objetivo adequar o trabalhador à nova racionalidade (ABREU, 2002).

Notas de autor

1 Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor permanente do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense/Departamento de Serviço Social de Campos – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: as.carlosmoraes@gmail.com.
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