ARTIGOS ORIGINAIS
Reforma curricular e Serviço Social reconceituado: a trajetória do curso de Serviço Social de Campos dos Goytacazes
Curriculum Reform and reconceived Social Work: the trajectory of the Campos dos Goytacazes Social Work Course
Reforma Curricular y Trabajo Social re-conceptuado: la trayectoria del curso de Trabajo Social en Campos dos Goytacazes
Reforma curricular e Serviço Social reconceituado: a trajetória do curso de Serviço Social de Campos dos Goytacazes
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 21, núm. 3, 2019
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 13 Agosto 2019
Aprobación: 18 Noviembre 2019
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar as mudanças curriculares no curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense em Campos dos Goytacazes. O estudo parte de uma leitura do processo histórico de criação do curso e de sua expressão nos anos 1970, exposta em um dos principais jornais da cidade no período, bem como do processo da virada do Serviço Social manifesta em um debate sobre o currículo do curso e sobre sua direção social. O texto expressa como resultado a reconstrução da memória teórico-cultural do curso de Serviço Social de Campos e o diálogo com as matrizes teóricas.
Palavras-chave: Serviço Social, Reforma Curricular, Formação Profissional.
Abstract: This paper aims to analyze the curricular changes in the Social Work Course at the Fluminense Federal University in Campos dos Goytacazes (Brazil). The study starts with a reading of the historical process of creation of the course and its relevance in the 1970s, as seen in one of the main local newspapers of the period, as well as the Social Work turning-point process manifested in a debate about the course curriculum and its social direction. As a result of this study, the text presents the reconstruction of the theoretical-cultural memory of the Social Work Course in Campos and the dialogue with the theoretical matrices.
Keywords: Social Work, Curriculum reform, Professional qualification.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar los cambios curriculares en el curso de Trabajo Social de la Universidad Federal Fluminense en Campos dos Goytacazes (Brasil). El estudio parte de una lectura del proceso histórico de creación del curso y su relevancia en la década de 1970, expuesto en uno de los principales periódicos de la ciudad en el período, así como del proceso decisivo del Trabajo Social manifestado en un debate sobre el plan de estudios del curso y sobre su dirección social. El texto expresa como resultado la reconstrucción de la memoria teórico-cultural del curso de Trabajo Social en Campos y el diálogo con las matrices teóricas.
Palabras clave: Trabajo Social, Reforma curricular, Formación profesional.
1 Introdução
O Serviço Social no Brasil surge como suporte do processo de acumulação sob o período do capitalismo monopolista, atendendo a determinações do processo de reprodução do sistema econômico, tornando a profissão indissociável da ordem monopólica (NETTO, 2011). É a partir do cenário do final do século XIX e início do século XX que o capitalismo monopolista encontrará ressonância nos interesses e dogmas da Igreja Católica, na sua reação contra a secularização em detrimento do desenvolvimento do Estado brasileiro, para proporcionar o surgimento das protoformas e logo uma profissão com as características do Serviço Social.
A atividade ganha expressão, a partir da década de 1940, com o advento da ampliação e consolidação do processo urbano-industrial do país. Associado a isso, tem-se a criação das grandes instituições assistenciais estatais e paraestatais, afirmando o caminho de profissionalização, inscrevendo a profissão na divisão social e sexual do trabalho, garantindo um diversificado mercado, a legitimação do profissional e de seu assalariamento.
A matriz teórica que permeia esses primeiros anos do Serviço Social no Brasil imprime a ele caráter de apostolado, fundado em uma abordagem da questão social como problema moral e religioso e numa intervenção que prioriza a formação da família e do indivíduo para a solução dos problemas e atendimentos de suas necessidades materiais, morais e sociais. A contribuição do Serviço Social incidia sobre valores e sobre comportamento de seus usuários na perspectiva de sua integração à sociedade (YAZBEK, 2000).
A ampliação do mercado de trabalho em diversas instituições públicas e privadas demandou a formação de novos profissionais orientados com base em três funções: a racionalização econômica, ao garantir a expansão do capital; a racionalidade ideológica, ao promover a repressão sobre a organização da classe trabalhadora e suas expressões políticas; e o controle sob a rigorosa autoridade do processo social e das condições de vida da massa pauperizada, na tentativa de reproduzir os padrões desejáveis da sociedade burguesa constituída.
Na primeira metade do século XX, sob esse prisma, ampliam-se as unidades formadoras de assistentes sociais por todo o país, com base na matriz positivista, na perspectiva de ampliar seus referenciais para a profissão. Esse processo é denominado por Iamamoto (1997)arranjo teórico doutrinário, qualificado pela junção do discurso humanista cristão com o suporte científico de inspiração na teoria social positivista, associando ao ofício o pensamento conservador.
A contestação desse referencial tem início no contexto de mudanças econômicas, políticas, culturais e sociais que expressam, na década de 1960, novas configurações que indicam a expansão do capitalismo mundial, o que impõe à América Latina um estilo de desenvolvimento excludente e subordinado (HOBSBAWM, 1997).
No ano de 1965, a profissão deflagra um movimento de reconceituação expresso por inquietações e insatisfações direcionadas ao Serviço Social tradicional através de um amplo movimento histórico de revisão global, em diferentes níveis: teórico, metodológico, operativo e político. Esse processo se caracteriza por compreender diversos vieses no continente latino-americano, de inspiração nas lutas e conquistas a partir da Revolução Cubana, que proporciona as primeiras aproximações com o marxismo e que, conforme Iamamoto (2010, p. 205), “é dominado pela contestação ao tradicionalismo profissional, implicou um questionamento global da profissão: de seus fundamentos ideoteóricos, de suas raízes sociopolíticas, da direção social da prática profissional e de seu modus operandi”. No seio desse movimento, emergem questionamentos à profissão, que a aproximam gradativamente de outra matriz teórica (YAZBEK, 2000; LOPES, 2016).
Nesse momento, era fundada, em 1962, a escola de Serviço Social em Campos dos Goytacazes, com a primeira turma formada em 1965, tendo por base a refração dos debates do período sobre a profissão.
A escola de Serviço Social de Campos, da Universidade Federal Fluminense, nasceu de um contexto de mobilização por reformas de base e firmou-se no período da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), sob os recursos teóricos e metodológicos acessados naquele período. Entretanto, seu amadurecimento atravessou essa página da nossa história e todas as contradições vividas nesse período.
A partir do solo fértil da emergência das escolas de Serviço Social no Brasil, o que se busca no presente texto é uma análise das mudanças curriculares no curso de Serviço Social da UFF Campos, partindo de uma leitura do processo histórico que conduziu a criação do curso em Campos e das dinâmicas internacionais e nacionais que reconfiguram a profissão ao longo do tempo, além da expressão do curso da UFF Campos nos anos 1970, um momento de grandes transformações.
Para construir este trabalho, além de uma revisão bibliográfica, foram analisados os conteúdos coletados durante a execução de Projeto de Desenvolvimento Acadêmico1, que trabalhava a história do curso de Serviço Social, da UFF, em Campos. Os materiais analisados foram uma coleção de recortes de jornais reportando os primeiros anos do curso e que foram produzidos na comemoração de 50 anos do curso de serviço social. Os outros materiais, documentos encontrados nos arquivos da instituição, são os seguintes: “Proposta de Alteração curricular”, de 1989, com fluxograma do curso anterior e posterior à proposta; “Discussões preliminares acerca do Projeto Político Pedagógico para o curso de Serviço Social”, de 1993; “Relatório Parcial da Comissão de Estudos e Reformulação do Currículo de Graduação em Serviço Social”, de 1999. Também foram considerados o currículo pleno e Projeto Pedagógico, que entrou em vigor em 2003, e o relatório da Comissão de Avaliação de Unidade (CAU), de 2006.
2 O início de tudo
As instituições assistenciais e previdenciárias que começam a operar já nos anos 1920, tem como característica principal proporcionar benefícios assistenciais indiretos aos trabalhadores ativos, desempregados, impossibilitados de trabalhar e aposentados. Dentre essas cabe o destaque, devido ao tema de investigação, a Legião Brasileira de Assistência (LBA), criada em 1942 para assistir as famílias dos pracinhas brasileiros enviados a segunda guerra mundial.
A primeira grande instituição nacional de assistência social, a Legião Brasileira de Assistência, é organizada em sequência ao engajamento do país na segunda guerra mundial. Seu objetivo declarado será o de “prover as necessidades das famílias cujos chefes haviam sido mobilizados, e ainda, prestar decidido concurso ao governo em tudo que se relaciona ao esforço de guerra”. Surge a partir de iniciativa de particulares logo encampada e financiada pelo governo, contando também com o patrocínio das grandes corporações patronais (Confederação Nacional da Indústria e Associação Comercial do Brasil) e o concurso das senhoras da sociedade (IAMAMOTO; CARVALHO, 2003, p. 251).
A Legião Brasileira de Assistência (LBA) desenvolvera ações em praticamente todas as áreas da assistência e por esse caminho teve participação decisiva na constituição da Escola de Serviço Social de Niterói e, por consequência, na criação do curso de Serviço Social em Campos dos Goytacazes, nesse sentido, o ponto de partida para conhecer a gênese do curso de Serviço Social em Campos dos Goytacazes é a criação da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Em entrevista para o projeto “Memórias da Assistência Social no Brasil: constituição de banco de entrevistas”, dona Violeta Gama, então diretora da escola de Serviço Social de Niterói, estabelece os primeiros contatos com Alzira Vargas, então esposa de Amaral Peixoto e primeira-dama do Estado do Rio de Janeiro, em decorrência da organização da LBA local.
Nas palavras de dona Violeta Gama:
Quando o Brasil declarou guerra à Alemanha e à Itália, em 1942, a Legião Brasileira foi criada. Dona Alzira era esposa do interventor Amaral Peixoto e nós todos, diretores e professores de projeção, fomos chamados para uma reunião. Aí eu conheci dona Alzira e comecei a ficar muito amiga dela. A LBA Fluminense foi criada com esse grupo de diretores de escola, todos ao lado de dona Alzira, e senhoras da sociedade. Dona Darci já tinha criado a LBA no Rio de Janeiro (GAMA, 2002, p. 7).
Como desdobramento dessa reunião, foi iniciado um curso de voluntariado e de visitadoras sociais a ser ministrado por Maria Esolina Pinheiro, então diretora da Escola de Serviço Social do Rio de Janeiro, atualmente a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Desse curso, avançou-se para a criação, em 1945, da Escola de Serviço Social da UFF, em Niterói.
Nas memórias de dona Violeta Gama:
O Curso de Visitadoras Sociais foi ministrado pela assistente social Maria Esolina Pinheiro, e todas nós que fizemos o curso visitávamos as favelas, levando correspondência, ajuda, mantimentos e apoio às famílias dos pracinhas […]. Nessa ocasião, dona Alzira formou várias comissões para atendimento a inúmeras necessidades e uma delas se destinava a estudar a possibilidade de criar uma escola de Serviço Social, com vistas a dar uma melhor formação técnica às Visitadoras Sociais, já atuando com dedicação e certa eficiência (GAMA, 1995, p. 11).
Das primeiras turmas formadas saíram, além da própria dona Violeta Gama, outras importantes protagonistas na criação do curso de Serviço Social no Norte Fluminense, como menciona Nilda de Oliveira Ney de Vasconcellos Cruz, que provinha de família de classe média alta:
Fiz pelo rádio! Vou contar o que eu fiz. Eu estive doente, estive muito doente e fiquei de licença na minha casa. Aí o seu Alceu, pai do Dalton, me emprestou o rádio porque dona Darcy estava dando um curso de visitadora social pela LBA. Aí eu fiz o curso de visitadora social. Tinha que fazer uma monografia, eu fiz a monografia. Eu já estava melhor, estava andando, porque eu fiquei sem andar, muito doente. Mas fiz a monografia, mandei e recebi o certificado de visitadora social.
Quem estava dando [o curso] era Maria Esolina Pinheiro, de uma escola de serviço social da prefeitura do Rio de Janeiro. Hoje essa escola é da UERJ, a Escola de Serviço Social (CRUZ, 2002, p. 9).
Após o processo de federalização da Escola de Niterói, em 1960, avançou-se para a criação do curso em Campos, no ano de 1962. O professor Jamil El Jaick elaborou um projeto de expansão da instituição para três regiões do Estado: Norte, Sul e Serrana. O processo iniciou-se por Campos, que já possuía um movimento local através de abaixo-assinado com mais de cinquenta interessados em estudar na Escola de Serviço Social de Niterói, porém sem recursos financeiros para o deslocamento. Outros professores de Niterói que contribuíram para a fundação da Escola no interior foram: Arlete Braga, Mercedes Juncá Trindade, Hilda El Jaick. Contudo, a expansão acabou não acontecendo para as outras regiões (GAMA, 1995).
O movimento fundamental para que a escola tivesse início deve-se a duas assistentes sociais residentes em Campos e naturais da cidade que se haviam formado na Escola de Niterói: Heloísa Monteiro Paixão e Conceição de Maria Muniz, respectivamente a primeira diretora e vice-diretora da unidade.
A ex-vice-diretora relata:
Voltei no começo de 1960 […] e, voltando pra Campos, um pouco depois de estar aqui, fui convidada por Heloísa Monteiro Paixão […] ela já era assistente social e tinha o sonho de implantar aqui o curso de Serviço Social […] os dois desejos se encontraram, o dela e o de Dona Violeta […]; e ela me convidou pra essa aventura de fundar o curso de Serviço Social em Campos. Eu aderi, e nós começamos a trabalhar nesse sonho, e virou realidade (MUNIZ, 2009 apudSILVA 2013, p. 86).
A iniciativa de Heloísa Monteiro Paixão foi fundamental para a fundação da Escola de Serviço Social em Campos dos Goytacazes, ligada à recém-criada Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFERJ), em 1960, posteriormente renomeada, pela Lei n. 4.831/1965, para Universidade Federal Fluminense (UFF). O surgimento da Escola de Serviço Social de Campos tem sua criação marcada pela efervescência e instabilidade política da década de 1960, pela transferência da Capital Federal para o interior do Brasil e pelo regime de exceção e repressão às liberdades civis e políticas. Desse turbilhão, consta, ainda, a busca dos profissionais de Serviço Social pela renovação da profissão e das respostas profissionais que reproduziram as marcas da sociedade brasileira conservadora.
3 Renovação do Serviço Social: perspectiva modernizadora, a reatualização do conservadorismo e a intenção de ruptura — o aporte estrutural-funcionalista dos anos de 1960 e 1970
Os anos 1960 representam, para o Serviço Social brasileiro, o início de um amplo questionamento pautado no processo de reformulação, suscitando um redimensionamento e um gradativo amadurecimento da categoria profissional. O movimento conduziu o debate para as inquietações e insatisfações quanto ao Serviço Social tradicional a partir da necessidade de extensa revisão teórica, metodológica, operativa e política da profissão. Para Ortiz (2010), a renovação expressa o construto de uma nova imagem para o Serviço Social brasileiro, principiada em meados dos anos 1960. Nesse período, na América Latina, surge o Movimento de Reconceituação, considerado um marco do processo de revisão crítica do Serviço Social no continente, que explicita a preocupação dos profissionais em repensar a estrutura excludente do capitalismo.
No cenário das transformações societárias e ocupacionais ocorridas entre 1960-1970, no Brasil, exigiu-se maior qualificação técnica dos assistentes sociais para responder às demandas da sociedade, inscrevendo a profissão no marco da modernização, que se manifestava em mudanças no discurso, nos métodos, no projeto do exercício profissional, na imagem e na cultura profissional.
Por um lado, buscava-se suporte técnico diante das estratégias do Estado e, de outro, o discurso profissional acercava-se da atualização nas ciências sociais, consentindo à profissão modificar o caráter missionário revestido de uma nova face do conservadorismo (IAMAMOTO, 1997). O movimento representa o acúmulo de discussões travadas desde o Primeiro Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado em 1947, e aprofundadas nos anos seguintes, especialmente nas décadas de 1960 e 1970. O debate congregou um conjunto de questionamentos acerca do exercício profissional, ao interrogar a categoria sobre “para que e para quem o Serviço Social está a serviço” (CASTRO; TOLEDO, 2011, p. 3).
Netto (2011) assinala que o Movimento de Reconceituação é parte do processo internacional de erosão do Serviço Social tradicional. Nesse sentido, a Reconceituação questionava o papel dos assistentes sociais na superação da condição de subdesenvolvimento dos países latino-americanos, no contexto do projeto de dominação burguesa por meio do imperialismo.
A Reconceituação deságua em três perspectivas que se desenvolvem no percurso da Ditadura Civil-Militar, em meio ao processo de Renovação do Serviço Social. Segundo Netto (2011, p. 131) esse é:
O conjunto de características novas que, no marco das constrições da autocracia burguesa, o serviço social articulou, à base do rearranjo de suas tradições e da assunção do contributo de tendência do pensamento social contemporâneo, procurando investir-se como instituição de natureza profissional dotada de legitimação prática, através de respostas a demandas sociais e da sua sistematização, e de validação teórica, mediante às teorias e disciplinas sociais.
O autor aponta quatro aspectos, segundo ele, decisivos para o processo de renovação: a) a instauração do pluralismo teórico, ideológico e político no marco profissional; b) a crescente diferenciação das concepções profissionais; c) a sintonia da polêmica teórico-metodológica profissional com as discussões em curso no conjunto das ciências sociais; e d) a constituição de segmentos de vanguarda. Desse processo resulta a erosão do “serviço social tradicional” e o surgimento de três vertentes na categoria (NETTO, 2011).
Uma das vertentes foi a “perspectiva modernizadora”, que tinha como núcleo central o Serviço Social como dinamizador e integrador do desenvolvimento. Essa vertente buscou reatualizar valores e concepções “tradicionais” no Serviço Social sob uma perspectiva “moderna”, com um conteúdo reformista. A perspectiva modernizadora da profissão é percebida como uma resposta à crise de legitimidade, ou seja, à necessidade de reconceituar os aportes que sustentavam a formação e as respostas profissionais. A atividade tendia a adotar uma postura neutra e, ocasionalmente, inócua para a implementação dos objetivos propostos. A tecnificação e ampliação do mercado de trabalho constituiriam o caminho para solidificar a identidade do Serviço Social. Contudo, esse processo conduz a uma modernização sem a presença do moderno.
A vertente denominada Reatualização do Conservadorismo recuperou componentes da herança histórica e conservadora da profissão. As tendências à reatualização do conservadorismo no Serviço Social brasileiro recorreram a um novo modelo de atuação profissional, pressupondo a participação do cliente (atualmente usuário) nas decisões profissionais. A psicologização do trabalho profissional buscou constituir cientificidade à atuação, em um processo de experiência compartilhada entre o cliente e o assistente, na colaboração de pesquisa e na descoberta para a transformação pessoal daquele. Essa tendência foi fortemente marcada pela fenomenologia. A reatualização do conservadorismo manteve a hierarquia do profissional sobre o cliente, responsabilizando-o por sua condição social.
Houve, por fim, a vertente da Intenção de Ruptura com o Serviço Social tradicional, que objetivava romper com a tradição positivista e com o reformismo transformador. Tem sua inspiração teórico-metodológica na perspectiva crítico-dialética da teoria marxiana. Foi dessa vertente que se desenvolveu o Serviço Social a partir dos anos 1980 e que se consolidou a direção social da profissão no projeto ético-político profissional (NETTO, 2011).
No período que compreende a perspectiva modernizadora e a reatualização do conservadorismo, o Serviço Social apresentou tanto em seu discurso quanto em sua prática características que, nitidamente, o ligam à autocracia burguesa e a um caráter funcionalista. O curso da profissão no período da Ditadura Militar é de suma importância para se compreender a história e o processo de reconstrução da profissão no Brasil. A UFF Campos surge no bojo desses processos, sendo criada em 1962, e tem a primeira turma formada em 1965. Aos poucos, o curso vai-se consolidando como uma referência no interior e tendo grande visibilidade na imprensa local. Com base nos documentos coletados foi possível perceber essas movimentações e debates teóricos do processo de renovação do serviço social brasileiro no curso de Campos dos Goytacazes.
Em 1970, o jornal Monitor Campista dá grande destaque à escola com uma matéria que apresenta o discurso sobre aspectos teórico-metodológicos hegemônicos no curso da UFF Campos, naquele ano: “em síntese, serviço social é uma técnica de intervenção na realidade humana e social. A meta é prevenir o desajuste do homem ao meio. Embora, atualmente, o trabalho feito seja mais curativo […] A realidade é a tônica, daí deve-se preocupar com o que é para partir para o que deve ser (JORNAL MONITOR CAMPISTA, 1970, p. 3).
É muito claro o objetivo do curso de Serviço Social descrito pelo jornal, ao “prevenir o desajuste do homem ao meio”. O problema era descrito como pertencente ao sujeito, pois o meio, o ano de 1970 no Brasil, durante a Ditadura, estava ajustado. O Serviço Social caracterizava as expressões da questão social como um desajuste e apresentava respostas na perspectiva de uma modernização conservadora. A contradição dessa proposta que se apresentava como renovadora se manifestava por ela ser um tipo de sistematização teórico-prática aos interesses políticos de cunho burguês nos Anos de Chumbo.
Para Netto (2011), os anos que se sucederam foram marcados por uma efervescência política e pelo prenúncio da crise econômica, não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina, com sucessivos golpes de Estado a partir de 1960, diante das ameaças do socialismo e em função da manutenção da dependência econômica ao capitalismo monopolista e imperialista. As ditaduras instaladas tinham por objetivo neutralizar as forças sócio-políticas que eram capazes de se contrapor ao modelo de internacionalização do capital. Assim, o regime capturou o Serviço Social como um “agente de mudanças” para atuar nas políticas desenvolvimentistas fomentadas pelo projeto imperialista norte-americano, com o apoio de agências internacionais. As expressões da questão social2 foram despolitizadas e reduzidas a um problema técnico.
Segundo a lógica desenvolvimentista, que imperava nas décadas de 1960/70, o exercício da política social era capaz de solucionar os conflitos acerca do corpo social, emergentes pelas expressões da questão social, e apresentava caráter funcionalista, assim como o profissional assistente social. Desse modo, o período de “modernização conservadora” formou um imenso e forte campo de atuação para esse profissional, e o Estado conservador intensificou o desenvolvimento econômico do país e interveio na área social para, assim, controlar as massas sob um regime autoritário.
As fontes teóricas que influenciaram o serviço social nessa direção partiram das iniciativas do Centro Brasileiro de Cooperação e Intercâmbio de Serviço Social (CBCISS), responsável pela elaboração dos importantes seminários de teorização de Araxá (1967) e Teresópolis (1970), entre outros eventos3.
Os elementos conservadores podem ser constatados no que se esperava do Serviço Social, e em como ele era retratado pela imprensa de Campos, como demostra o Jornal Monitor:
Analisa-se como causas do desajuste social, a desocupação, (desemprego), má distribuição da riqueza e descontrole de natalidade, etc., englobando tudo isso como problemas, não insanáveis, mas difíceis. A distribuição da riqueza existe, são os impostos, o novo estatuto da terra […] distribuição planejada. Não apenas o que não tem e, às vezes nem pode ter, não tendo sequer condições de receber. E, mesmo o problema social não é só o problema material. Já o controle de natalidade está envolvido em vários aspectos como convicções de ordem religiosa […] Quando o indivíduo atinge um nível de cultura mais elevado, ele mesmo planifica sua família.
[…] O desajuste não vem de que o homem não seja plenamente humano, não. Tanto que ele tem condições, capacidade, potencialidade. Tudo que é inerente ao ser humano. Muitas vezes o Homem desconhece a tudo isso. Não houve oportunidade, a sociedade não ofereceu condições para o seu desenvolvimento. Aí entra o Serviço Social com suas técnicas, seu processo, procurando conscientizá-lo dessa potencialidade. Mas o Serviço Social não descobre isso para o Homem, vai sim leva-lo até si mesmo (JORNAL MONITOR CAMPISTA, 1970, p. 3).
A prática pedagógica profissional foi reduzida à subalternidade, e os profissionais agiam como meros executores de políticas sociais, em que reproduziam um sentido de ordem na autocracia burguesa, operavam pela ordem e pelo controle da sociedade, crendo que os desajustes eram parte do mau funcionamento da sociedade. Daí surge a demanda imposta de ajustar o indivíduo ao meio.
Segundo Netto (2011, p. 154) nesse momento:
Tratava-se de uma perspectiva modernizadora para a profissão, isto é, de “[…] um esforço de adequar o Serviço Social, enquanto instrumento de intervenção inserido no arsenal de técnicas sociais a ser operacionalizada no marco de estratégias de desenvolvimento capitalista, às exigências postas pelos processos sociopolíticos emergentes pós-64” (NETTO, 2011, p. 154).
Com as transformações operadas na prática, a formação do assistente social também passou por mudanças, ocorrendo a inserção e a efetivação do ensino do Serviço Social nas universidades, aos poucos transformando as escolas ligadas aos valores morais e ordens religiosas que doutrinavam a profissão, introduzindo um caráter científico ao currículo.
Esse campo do conhecimento passou a interagir com disciplinas das ciências sociais, como a Antropologia, a Sociologia e a Psicologia, ainda que sob a disciplina da ordem militar-burguesa (NETTO, 2005). Tais demandas eram expressões das exigências do mercado de trabalho. Nesse contexto histórico é que o processo de renovação da profissão se desenvolveu nas diversas unidades formadoras, trazendo uma nova forma de ação, introduzindo novos elementos, substituindo por algo novo do mesmo tipo.
Os fatos ocorridos, no Brasil, em síntese, refletem-se na imagem de um Serviço Social de caráter funcionalista, uma vez que os polos se sentiram ameaçados pela nova dinâmica assistencial. Nesse processo, o Serviço Social foi se consolidando no Norte Fluminense, atestado pelo fato de ter sido criada uma seccional do Conselho Regional de Serviço Social, em 1975. Essa seccional acompanha e fiscaliza todo o exercício profissional nas regiões Norte e Noroeste Fluminense, com sede própria e reconhecimento legal.
4 A virada e a reforma curricular no curso de Serviço Social em Campos
Com o desenrolar da história, surge uma tensão entre os projetos do desenvolvimento autocrático burguês e o projeto da profissão, uma vez que são demandas contraditórias, em que o regime burguês se empenhou em defasar qualquer tendência que pudesse problematizar sua legitimidade, isto é, começa a instalar condições para o Serviço Social, referentes às suas necessidades e interesses em todas as suas instâncias.
Em uma conjuntura favorável que impulsiona os movimentos sociais, a anistia, as greves do ABC, a reconstrução da UNE. Os assistentes sociais tiveram participação ativa em todo esse processo e culmina em um movimento interno com uma inflexão no III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), em 1979. Considerado como o Congresso da Virada, é o marco para que a vertente da Intenção de Ruptura ganhe fôlego para trazer profundas alterações na formação dos assistentes sociais.
A partir dos anos 1980, três fatos de suma importância sedimentaram essa virada: a publicação do livro Relações Sociais e Serviço Social, de Marilda Iamamoto e Raul de Carvalho; a construção de um novo currículo; e a elaboração do novo Código de Ética de 1986. O livro de Iamamoto e Carvalho faz uma interlocução com a teoria social de Marx para apresentar o significado da profissão para a sociedade, suas contradições essenciais, e apresenta a questão social como produto da dinâmica capitalista e como matéria do Serviço Social. O Código de Ética de 1986, apesar de seus equívocos e exageros4, expressa a definitiva ruptura com o Serviço Social tradicional. Sua explicitação do “compromisso com as classes trabalhadoras” é elemento central para construção do perfil do profissional e o alicerce para a construção do Projeto Ético-Político.
Para alcançar um perfil de assistente social assentado sobre essas novas bases que emergem pós-Congresso da Virada, a categoria debateu profundamente o processo de formação profissional e o currículo do curso.
Carvalho (1986) apresenta algumas premissas analíticas para embasar o debate à época. Primeiro, que formação profissional não se confunde com uma simples preparação para o emprego, pois deve ser um projeto educacional que se oriente por diretrizes básicas. Uma segunda premissa é que a formação social deve ser sempre discutida no contexto das relações sociais e da conjuntura no momento histórico. A terceira afirma que a determinação social da formação profissional passa necessariamente pela Universidade e deve-se referenciar na indissociabilidade do tripé ensino-pesquisa-extensão. A quarta é que os processos de disputas e lutas de classe atravessam a categoria profissional e expressam um enfrentamento no interior do Serviço Social por uma hegemonia. Por fim, a quinta e última premissa aponta a necessidade de um projeto dentro de uma perspectiva de totalidade.
Nas análises de Carvalho (1986), a formação profissional para assistentes sociais deve sustentar-se em um projeto profissional que configure uma proposta de exercício profissional junto à realidade brasileira, na atual conjuntura, para que se possa compreender as demandas emergentes da realidade e formular respostas profissionais.
Como não foram encontrados documentos oficiais, projetos pedagógicos e nem um fluxograma dos currículos anteriores ao de 1984, optou-se aqui por observar os recortes dos jornais expostos na parede do corredor das salas de aula do curso, elaborados em comemoração aos 50 anos de existência do curso. Essa lacuna nos parece um possível e importante campo para novas pesquisas sobre a história da formação em serviço social.
Com base nos documentos trabalhados é possível reconstruir o processo de maturação do currículo e como esse processo, em seus próprios tempos, acompanha a maturação teórica do serviço social brasileiro em direção ao seu projeto ético-político. O ponto de partida é proposta de alteração do currículo do curso de serviço social da UFF Campos de 1989, a partir dele se constata que houve um currículo aprovado em 1984, cujo processo de consolidação vai passar pela proposta de alteração de 1989, que vai se desdobrar em um processo que atravessa os anos 1990 e se realiza como uma reforma curricular em 2003. Esse é o período que compreende o olhar deste texto.
As ponderações de Carvalho (1986) estão presentes na proposta de 1989:
O departamento supracitado optou pela proposta da presente alteração curricular, por entender que alguns ajustes são necessários para que o currículo atinja efetivamente as metas a que se propôs, desde a sua implantação, e realize a filosofia pluralista que orientou, desde o início, todas as discussões.
Buscando acompanhar a evolução da reflexão, ao nível sócio pedagógico e epistemológico, chegou-se à conclusão de que a busca da interdisciplinaridade, no ensino, pesquisa e extensão, é a solução para os problemas gerados pelo excesso de fragmentação do ensino universitário (DOC. 6)
Dos problemas que forçaram a alteração do currículo na proposta de 1989, um aspecto significativo foi adequar o horário do curso ao turno da noite, pois a organização anterior no período integral diurno-noturno, de 16:00 às 23:00, foi identificado, de acordo com o documento 6, como uma dificuldade geradora de evasão e baixa frequência, em especial nos últimos horários. Nesse sentido se apresentou como proposta de alteração a ampliação do curso, que passaria de 08 para 09 semestres, com concentração das aulas no período noturno, mas com as disciplinas de estágio supervisionado e a prática de pesquisa ofertadas no período da tarde. Nesse momento o currículo ainda se dividia em ciclo básico e ciclo profissional.
Uma mudança que é bem explícita pelo fluxograma do curso são as disciplinas de teoria do serviço social, cujo conteúdo se remete às vertentes e suas construções teóricas. No currículo de 1984 essas disciplinas são sequenciais, a cada período se estuda uma vertente e sua construção teórica, ao passo que na proposta de alteração as três vertentes teóricas se agrupam no sexto período, já na sequência dos últimos três períodos do curso.
Outro aspecto que fica claro na proposta de 1989 é em relação ao perfil do profissional:
Pretende-se viabilizar uma formação pluralista, evitando a dogmaticidade e o radicalismo, de modo a estruturar, nos alunos, a consciência da possibilidade de autonomia pessoal e profissional […] Neste sentido pretende-se formar profissionais que mantenham, com os conhecimentos, os métodos e as técnicas, uma atitude de crítica, recriação e reflexão permanente (DOC. 6).
É possível perceber uma demarcação entre as vertentes da renovação, nomear de dogmáticos e radicais era uma forma que os outros campos se referiam aos marxistas, aliás, até hoje os segmentos conservadores fazem dessa forma. Entretanto, dentre os objetivos está a necessidade de uma atitude crítica da parte dos assistentes sociais formados sob esse currículo. Contradições como essas atravessaram o processo de renovação do serviço social.
Uma particularidade da virada da década de 1980 para a de 1990 no departamento de serviço social de Campos, devia-se a uma mudança de 60% de seu corpo docente, devido a aposentadorias e admissão de novos professores via concurso público, que em sua maioria possuíam apenas graduação em serviço social e que se somaram a uma minoria com nível de mestrado e doutorado em outras áreas que não o serviço social, como História, Ciências Sociais e Educação.
Com essa formação heterogênea se constituiu uma comissão de acompanhamento e orientação acadêmica, que dá continuidade à proposta de alteração anterior e culmina com o seminário “A prática docente e a formação do Assistente Social”, em 1992.
Os anos 1990 foram movimentados e de grande importância para a categoria profissional, pois foi quando se consolidou a direção social e o projeto ético-político. O Serviço Social, ao romper com o conservadorismo, gerou uma cultura profissional particularizada, arquitetando, assim, uma direção social. O Código de Ética Profissional de 1993, que substituiu o Código de 1986, instaurou um novo valor central: a liberdade. No ano de 1996, foram lançadas as propostas das Diretrizes Curriculares para o curso de Serviço Social. A intenção das novas diretrizes era planejar e construir bagagem — teórica, ética, política, cultural — para a intervenção profissional através da formação do assistente social.
Um projeto de formação necessita de um conjunto de conhecimentos, que, juntos, formam os Núcleos de Fundamentação da Formação Profissional, dessa forma pensando em uma nova estrutura curricular que condiga com o período histórico vivido e com as demandas da população brasileira, não se esquecendo de projetar-se para o futuro. Os Núcleos de Fundamentação condensam um conjunto de matérias e conhecimentos essenciais para a construção do saber profissional.
No contexto histórico da UFF Campos, uma diferença significativa é que coloca a necessidade de se afirmar uma direção social para o curso, definido no eixo central “Democracia e Serviço Social”, que devem ser balizas “sustentadas na pluralidade do debate, das proposições e orientadas principalmente por diretrizes que considerem a interdisciplinaridade e a sua contextualização histórica” (DOC. 1).
No entanto, a pluralidade é reafirmada e aparece como eixo importante, em que se busca um diálogo entre os diversos paradigmas das Ciências Sociais, “constatando como o efetivo reconhecimento da diversidade das distintas posições teóricas, ideológicas e políticas que orientam o pensamento social” (DOC. 1). Desse modo, a direção social deve contemplar uma perspectiva em que se destaque o pensar de uma nova sociedade.
Esses direcionamentos impõem uma ampla e efetiva mobilização acadêmica em torno de debate e da criação de novos valores éticos, fundados na liberdade e igualdade, o que reafirma as colocações do pluralismo como essencialmente diferente da hegemonia autoritária (DOC. 1).
No documento 1, a democracia como valor ético-político é apresentada como a manutenção e ampliação de direitos sociais e políticos, uma redefinição mais ampla de cidadania, já dando sinais de que essa direção social seguia junto ao curso a categoria no que viria ser o projeto ético-político profissional.
Sobre o quadro teórico-metodológico, a grande questão é situada, em algumas críticas, na divisão entre o ciclo básico e profissional, entre os fundamentos teóricos e a prática profissional, entre a produção de conhecimento e sua aplicação. Isso significa considerar o Serviço Social como profissão, em construção permanente, atenta aos desafios colocados pela sociedade, questionando o significado e a abrangência de trabalho no contexto das relações sociais.
O documento, por fim, faz uma análise aprofundada no estágio supervisionado, que é chamado de “ensino da prática profissional”. A perspectiva central era a superação da ideia de “encaixar” a teoria na prática, embora ainda se mantivesse na estrutura curricular uma divisão entre a teoria e o “ensino da prática”.
Analisando esse documento, é perceptível que há um alinhamento com a construção da direção social que a categoria empreende no início dos anos 1990, embora não seja explícita a afirmação das bases marxistas, dando preferência ao reconhecimento do pluralismo e trazendo o debate das três vertentes do serviço social.
Já o documento apresentado após as Diretrizes Curriculares da ABEPSS, “Relatório parcial da Comissão de Estudos e Reformulação do Currículo de Graduação”, de 1999, parte da proposta para o curso de Serviço Social apresentada na II Oficina Nacional de Formação Profissional e aprovada na Assembleia Geral da entidade, em 1996. Nesse sentido, já se estabelece como base aos Núcleos de Fundamentação Constitutivos da Formação Profissional.
A reforma curricular da UFF Campos, ajustada a partir das Diretrizes da ABEPSS, seria aplicada a partir de agosto de 2003. Nesse período, as escolas de Serviço Social estavam realizando suas reformas curriculares. Ao comparar os dois currículos, o que estava vigente durante o debate do início da década de 1990 e o de 2003, nota-se uma afirmação da direção social e do projeto ético-político que se dá com um amadurecimento teórico-metodológico. Logo à primeira vista isso é percebido, pois o currículo pleno de 2003 se apresenta de forma muito mais densa, aprofundando o debate em suas justificativas e considerações.
No currículo dos anos 1990, essas considerações são brevíssimas, com a afirmação de uma filosofia pluralista e com a conclusão de que “a busca da interdisciplinaridade, no Ensino, na Pesquisa e na Extensão, é a solução para os problemas gerados pelo excesso de fragmentação do ensino universitário” (DOC. 3). Não há grandes reflexões sobre a contextualização institucional, a questão social, o Serviço Social e a questão regional.
No currículo pleno de 2003, porém, todo esse debate é feito com aprofundamento da história da instituição, que passa de um departamento descentralizado do curso de Niterói ao Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional. Há também uma fundamentação entre a questão social e o Serviço Social, situando, na formação sócio-histórica brasileira, as desigualdades e resistências constitutivas do processo de desenvolvimento do capitalismo no país. No que tange ao Serviço Social, é apresentado o contexto histórico do surgimento da profissão, as bases católicas e todo o processo de renovação, além de situá-lo no contexto regional. Uma reflexão importante que aparece nesse primeiro formulário é o perfil do aluno desse curso de nível superior, com base em pesquisa realizada na instituição.
Outra diferença que aparece entre os dois currículos se dá nos formulários de perfil do profissional e dos objetivos do curso. Em relação ao perfil profissional, o material dos anos 1990 é bem direto, sem grandes fundamentações e fala em: “Articular criativamente intervenção e produção de conhecimento, buscando redimensionar as possibilidades de sua práxis” (DOC. 3). E também em: “Integrar, consciente e criticamente, todo acervo do serviço social que constitui um legado legítimo e ainda eficaz para a sua formação e atuação profissional” (DOC. 3). Aqui se nota uma leitura da profissão como práxis e a consideração de todas as vertentes para a formação profissional. O que se reafirma nos objetivos:
4 – Segundo uma visão pluralista de sociedade, o curso pretende proporcionar os parâmetros essenciais para uma constante avaliação das tendências ideológicas e filosófico-científicas que fundamentam as opções do exercício profissional, de modo a assegurar, não apenas uma atuação firme e consciente no estrito âmbito da profissão, mas, também, no amplo exercício da cidadania (DOC. 3).
No Currículo Pleno aprovado em 2002, no que diz respeito ao perfil profissional, há um aprofundamento no debate sobre o espaço de trabalho do assistente social, relacionando-o com os aspectos relevantes da conjuntura e das particularidades regionais. Nesse documento, está demarcada a perspectiva de romper ou superar as bases conservadoras da profissão, “devendo-se resgatar os principais pressupostos filosóficos, políticos e econômicos e as categorias de análises que orientaram a profissão, no sentido da maturação do debate e da ruptura com o tradicionalismo” (DOC. 4), em que a “condução desse processo requer a definição de um núcleo básico orientado por uma direção social, que deve estar presente em todo processo de formação” (DOC. 4). Por fim, também se buscou respaldo na lei que regulamenta a profissão e no Código de Ética de 1993, afirmando, assim, o perfil profissional no âmbito do projeto ético-político-hegemônico da categoria.
Em relação aos objetivos, está claro que se necessita de fundamentação teórica que vislumbre uma compreensão crítica dos aspectos da produção e reprodução da vida social e que os profissionais sejam generalistas e capazes de elaborar análises socioeconômicas e de propor políticas, planos e programas sociais, que tenham “competência ético-política, teórico-metodológica e técnico-operativa para decifrar e enfrentar as múltiplas e diferenciadas expressões da “questão social” na contemporaneidade” (DOC. 4).
Em 2006, foi constituída uma Comissão de Avaliação de Unidade (CAU), que produziu um relatório com uma avaliação geral do curso e da unidade. A esse material foi anexado um resultado de avaliação realizada por comissão externa. Nesse relatório, emergem questões que apontam que a transição para a direção social avança, entretanto, ainda marcada pela disputa de hegemonia, em que o marxismo ainda não é plenamente explicitado, estudado e aprofundado. A comissão destaca que, apesar de estar claramente em acordo com as diretrizes curriculares:
[…] observa-se nos programas uma tensão quanto às perspectivas teórico-metodológicas presentes nas diretrizes, principalmente à hegemônica — a marxista — que não é explicitada, tão claramente, quanto a fenomenológica, embora perpasse os conteúdos de várias disciplinas do departamento de Serviço Social.
O Projeto Acadêmico da unidade expressa um esforço coletivo que tem caminhado em sintonia com o Projeto Ético-Político Profissional do Serviço Social, mesmo com as dificuldades que são inerentes à construção de uma proposta plural e democrática. Trata-se de uma proposta que contém um forte vínculo à realidade regional e local sem perder de vista as interrogações e os desafios postos pela realidade nacional no que tange às dificuldades enfrentadas pelas universidades públicas brasileiras (DOC. 5).
Nesse momento, após um breve ajuste curricular em 2010, o Núcleo Docente Estruturante (NDE) do Departamento de Serviço Social da UFF Campos inicia o debate junto à assessoria da ABEPSS e prepara um novo ajuste curricular, no sentido de corrigir as falhas e de consolidar a direção social afirmada no Projeto Ético-Político profissional do Serviço Social. Destarte, afirmou os conteúdos básicos nas disciplinas fundamentais do currículo e a dinâmica presente na organização dos componentes da estrutura curricular, de forma a possibilitar o desvendamento dos desafios com os quais os profissionais se defrontam na dinâmica da produção e da reprodução da vida social, qualificando, assim, as respostas e o desenvolvimento de habilidades teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas fundamentais para o fazer profissional.
5 Considerações finais
A partir da trajetória de desenvolvimento da profissão e da realidade brasileira, é possível refletir como o processo — que assume na América Latina para reconceituar o Serviço Social — toma caminhos próprios no Brasil e se realiza nas particularidades e tempo históricos, nas realidades e nas desigualdades regionais deste país.
É importante observar que todo esse processo — que percorre o debate acerca do currículo na instituição formadora analisada e, por consequência, a direção social que será impressa na formação dos alunos –– tem como característica o alinhamento com os posicionamentos do campo hegemônico da profissão.
Esse processo de revisão que vai ter início com a proposta de alteração do currículo de 1989 atravessa toda a década de 1990 e segue em consonância às alterações que a formação profissional sofre no contexto geral. É um processo de maturação longa, em que há uma aproximação com a perspectiva marxiana, mas que sempre permanece uma tensão no ar e com uma apresentação mais explícita da perspectiva fenomenológica, conforme o Relatório da Comissão de Avaliação de Unidade (DOC.5).
No período mais recente o processo de maturação do currículo se desenvolve, em 2010 é feito um ajuste no currículo de 2003 e a partir de 2017 é iniciada uma avaliação do currículo pleno do curso que apresenta a possibilidade de um novo ajuste ou reforma. Esse processo ainda está em andamento e pode ser a consolidação da perspectiva marxiana, hegemônica no serviço social, sem perder as características plurais e interdisciplinares que são marcas do curso de serviço social em Campos.
Cabe agora consolidar essa perspectiva analítica com o intuito de que se consiga pensar a profissão e o exercício profissional, alinhados a seus fundamentos históricos e teórico-metodológicos, em que a compreensão das relações sociais permita hierarquizar a leitura da formação e do exercício profissional sob a ótica do trabalho abstrato e das relações que daí derivarem e condicionarem o fazer. Desse modo, o ensino e o debate das relações sociais e o Serviço Social mostram-se necessários para a compreensão da profissão e para o entendimento de sua emergência, desenvolvimento e transformação.
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Notas
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