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A Intersetorialidade em pauta: uma breve análise das políticas de assistência social e de proteção e defesa civil

Intersectoriality on the agenda: a brief analysis of social assistance and protection and civil defense policies

Intersectorialidad en la agenda: un breve análisis de las políticas de asistencia social y protección y defensa civil

Adriana Soares Dutra 1
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Elisonete Ribeiro 2
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Rosilene da Silva 3
Universidade Federal Fluminense, Brasil

A Intersetorialidade em pauta: uma breve análise das políticas de assistência social e de proteção e defesa civil

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, núm. 1, 2020

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2020 pelos Autores.

Recepción: 10 Febrero 2020

Aprobación: 19 Marzo 2020

Resumo: De acordo com a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, a gestão de desastres no Brasil tem suas ações coordenadas pelos órgãos de proteção e defesa civil. Contudo, a complexidade que envolve os processos de desastres faz com que a intervenção constante de outras políticas públicas, e de seus agentes, seja uma realidade. Neste contexto, destaca-se o protagonismo da assistência social. Responsável por grande parte dos atendimentos aos atingidos, a atuação de seus agentes demanda uma interação efetiva com a Defesa Civil, o que ainda se apresenta como desafio. Desta forma, entende-se a discussão em torno da intersetorialidade como urgente e necessária. Parte-se de revisão bibliográfica sobre os diferentes entendimentos sobre este conceito para, em seguida, apresentar uma análise dos textos da Política Nacional de Assistência Social e da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, com o objetivo de identificar como a intersetorialidade se apresenta em cada um deles. Como resultado, se entende a intersetorialidade existente como geradora de uma interdisciplinaridade auxiliar e são apontados elementos que privilegiam a sua construção de forma coletiva e participativa.

Palavras-chave: Assistência social, Defesa civil, Gestão de desastres, Intersetorialidade.

Abstract: According to the National Civil Protection and Defense Policy, disaster management in Brazil has its actions coordinated by civil defense agencies. However, the complexity involved in disaster processes makes the constant intervention of other public policies and their agents’ a reality. In this context, the role of social assistance stands out. Responsible for most of the assistance to those affected by disasters, the performance of the agents requires an effective interaction with civil defense agencies, which is a challenge in itself. Therefore, the discussion around intersectoriality is urgent and necessary. The study starts with a review of the literature on the different understandings about this concept, followed by text analysis of documents by the National Social Assistance Policy and the National Civil Protection and Defense Policy, aiming at identifying how intersectoriality is present in each of them. As a result, the existing intersectoriality generates auxiliary interdisciplinarity and elements that favor its construction in a collective and participatory way.

Keywords: Social assistance, Civil defense, Disaster management, Intersectoriality.

Resumen: De acuerdo con la Política Nacional de Defensa Civil y Protección, la gestión de desastres en Brasil tiene sus acciones coordinadas por las agencias de defensa civil. Sin embargo, la complejidad involucrada en los procesos de desastre hace que la intervención constante de otras políticas públicas, y sus agentes, sea una realidad. En este contexto, se destaca el papel de la asistencia social. Responsable de la mayor parte de la asistencia, el desempeño de sus agentes requiere una interacción efectiva con la Defensa Civil, que todavía se presenta como un desafío. Por lo tanto, se entiende que la discusión sobre la intersectorialidad es urgente y necesaria. Se arranca con una revisión bibliográfica sobre las diferentes interpretaciones sobre este concepto y luego se presenta un análisis de los textos de la Política Nacional de Asistencia Social y la Política Nacional de Protección y Defensa Civil, con el objetivo de identificar cómo está presente la intersectorialidad en cada uno de ellos. Como resultado, se entiende que la intersectorialidad existente genera una interdisciplinariedad auxiliar y se señalan elementos que favorecen su construcción de manera colectiva y participativa.

Palabras clave: Asistencia social, Defensa civil, Gestión de desastres, Intersectorialidad.

1 Introdução

A gestão de desastres constitui-se em um campo bastante complexo de conhecimento e de prática. Desde o entendimento conceitual das categorias utilizadas, passando pelos interesses em disputa até a intervenção junto à população afetada, a realidade impõe a necessidade de interação entre vários saberes e áreas de conhecimento visando à compreensão da complexidade que envolve a questão assim como ao atendimento das demandas que se apresentam, seja antes ou após a ocorrência dos impactos. Contudo, é comum identificarmos engenheiros, geólogos, arquitetos, enfim, um conjunto de profissionais, grande parte deles proveniente das ciências naturais, como os técnicos possuidores de legitimidade para intervirem nesse campo. No caso das ciências humanas, estudos demonstram que o trabalho de profissionais vinculados a esse ramo do saber tem sido predominantemente demandado no que temos denominado, nos termos de Valencio (2012), de “crise aguda” do desastre (DUTRA, 2018; VARGAS, 2015). Esse tipo de vinculação pontual e fragmentada tem sido alvo de inúmeros debates, fazendo com que sejam cada vez mais frequentes os posicionamentos que demarcam a necessidade de uma participação desses profissionais e, de forma mais ampliada, das políticas públicas nas quais desenvolvem suas atividades em todas as etapas que envolvem a gestão dos desastres1, e não apenas após os impactos. Tal argumentação tem como um de seus fundamentos o reconhecimento em relação à incapacidade de uma ou outra área isoladamente oferecer respostas suficientes para as questões que envolvem os processos de desastres.

Estudo realizado por Dutra (2018) demonstra que grande parte das assistentes sociais que têm sido chamadas a intervir em contextos de desastres no Brasil são oriundas dos órgãos municipais responsáveis pela execução da Política Nacional de Assistência Social (PNAS). De um total de 142 municípios que fizeram parte da pesquisa realizada em 2015, 87 apontaram a assistência social como setor a partir do qual as profissionais do Serviço Social são convocadas, visando contribuir com o atendimento da população afetada. Em grande parte, agentes de proteção e defesa civil justificam a convocação de tais profissionais em função da satisfatória integração entre os diferentes órgãos e equipamentos públicos e da lógica sistêmica que rege a defesa civil no Brasil: "o tamanho da defesa civil é proporcional ao tamanho do desastre. Então, hoje a minha equipe, ela é elástica. Hoje eu tenho uma equipe que trabalha nas questões de dia a dia. Ela é imediatamente ampliada caso tenha necessidade de enfrentar um problema que exija uma força maior." (DUTRA, 2018, p. 183).

Embora a assistência social esteja vinculada à defesa civil e às suas ações desde a origem desse serviço no Brasil, na década de 1940, o tipo de vinculação permanece sendo efetivado a partir de um lugar pouco privilegiado. Sabemos que, de acordo com a gravidade dos impactos e o número de pessoas afetadas, entre outros aspectos, os recursos existentes nos órgãos de proteção e defesa civil, sejam eles municipais, estaduais ou nacionais, não serão suficientes para a realização do atendimento devido e, assim, profissionais lotados em outros órgãos precisarão ser convocados. No entanto, o predomínio de uma intervenção pautada quase que exclusivamente nos períodos pós-impacto tem requerido uma reflexão sobre os desafios que a estrutura sistêmica impõe à efetivação dos direitos da população usuária e os desafios que circundam a intersetorialidade de forma mais rotineira na estrutura dos órgãos públicos.

A intersetorialidade, apresentada muitas vezes como um modus operandi em pleno funcionamento no discurso de parte dos profissionais e gestores, especialmente de proteção e defesa civil, nem sempre é compreendida da mesma forma pelos agentes envolvidos nas diferentes políticas públicas, tampouco se constitui em uma prática de fato efetiva. Sobre esse ponto, chamamos a atenção para que ela não seja utilizada como justificativa para o não investimento na estrutura da própria defesa civil. É sabido que, em função da ausência de profissionais de diferentes áreas nos quadros desses órgãos, muitas vezes os indivíduos convocados têm suas ações coordenadas por outras áreas e outros profissionais frequentemente não conhecedores das especificidades e atribuições relativas a determinadas profissões, como é o caso do Serviço Social. Nesse sentido, um aspecto a ser considerado está nos diferentes entendimentos sobre a intersetorialidade. Trata-se de um conceito ao qual interpretações diversas são atribuídas, apesar de haver pontos comuns entre grande parte delas.

Outro passo na direção proposta pelo estudo volta-se para o conhecimento sobre as principais normativas que regem tanto o serviço de Proteção e Defesa Civil quanto o de Assistência Social no Brasil. Em que pesem os limites no que se refere ao plano formal para a efetivação de uma estrutura de direitos na sociedade burguesa, que possibilite ir além daquilo que o pensador italiano Norberto Bobbio (1992) vai denominar de “carta de intenções”, apreendemos o aparato jurídico legal como um importante ponto de partida para o aprofundamento do tema em questão. Nesse sentido, identificar como a intersetorialidade se faz presente nos documentos formais constitui um caminho para a compreensão e a problematização da gestão dos desastres e da interação entre os serviços de proteção e defesa civil e de assistência social.

Sabemos, no entanto, que a legalidade é, na realidade, uma abstração. É no plano real que sujeitos concretos vivenciam a materialização ou não de seus direitos e que os desafios se apresentam de fato. Nesse sentido, torna-se importante considerar que as reais possibilidades de efetivação da intersetorialidade são atravessadas também por vaidades e disputas que acabam se sobrepondo aos objetivos do trabalho, conforme sinalizado por Valencio et al. (2009) em análise sobre a estrutura da defesa civil no país.

Com base na proposta apresentada, o presente artigo foi dividido em três momentos. Inicialmente, dedicamo-nos a uma revisão bibliográfica, realizada por meio de artigos científicos publicados em revistas indexadas, a partir da qual foi possível apreender diferentes entendimentos sobre a intersetorialidade. Tal processo privilegiou estudos realizados entre 2004 e 2019, sem deixar de incorporar outros já consolidados sobre o tema. Giselle Lavinas Monnerat, Rosimary Gonçalves de Souza, Rose Marie Inojosa e Luciano A. P. Junqueira, foram alguns dos autores utilizados na referida etapa. Em seguida, buscamos apresentar elementos de consenso, assim como as principais divergências dos autores no que se refere à intersetorialidade. Em um segundo momento, apresentamos uma breve análise dos textos da Política Nacional de Assistência Social, de 2004, e da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, expressa na Lei 12.608 de 2012, identificando como a intersetorialidade se encontra refletida nos documentos. Por fim, buscamos qualificar a intersetorialidade presente na gestão de desastres resgatando elementos da cultura sociopolítica da realidade brasileira que dificultam sua efetividade, destacando a intersetorialidade que queremos. Nesse ponto, a perspectiva de totalidade, a concepção dos desastres como processos sociais e a importância da participação foram levantadas como elementos necessários para o fortalecimento da intersetorialidade na interação entre as referidas políticas e os profissionais que delas participam.

2 Uma aproximação da noção de intersetorialidade

O termo intersetorialidade não possui um consenso no que diz respeito ao seu significado, resultando em interpretações diversas, com diferentes nomenclaturas que versam sobre os mesmos objetivos, independente do campo da política pública com a qual se relaciona. Apesar da ausência de consenso, é possível observar que, entre as expressões que evidenciam a atuação intersetorial, as que mais aparecem entre os autores abordados são: articulação, integração e ação conjunta. Nessa perspectiva, Inojosa (2001, p. 108) afirma: “Trata-se de uma verdadeira rede de compromisso, na qual instituições, organizações e pessoas se articulam em torno de uma questão da sociedade, programam e realizam ações integradas e articuladas, avaliam juntos os resultados e reorientam a ação”.

Inojosa (2001) também aponta que o termo intersetorialidade está vinculado a uma discussão bem mais antiga e madura sobre o tema transdisciplinaridade. A transdisciplinaridade tem relação com a teoria da complexidade, que por sua vez trabalha a diversidade, buscando superar a fragmentação do conhecimento, uma vez que as clausuras dos setores não conseguem perceber a diversidade.

Segundo a autora o termo “inter” sofre críticas pelo fato de que ele pode apenas supor uma aproximação entre os setores, sem gerar, porém, uma articulação entre eles, tornando-se o termo “trans” mais adequado por expressar melhor a ideia, embora seja possível encontrar os vocábulos intersetorialidade e transetorialidade com o mesmo sentido, ou seja, “a articulação de saberes e experiências para a solução sinérgica de problemas complexos” (INOJOSA, 2001, p. 103).

Na concepção da autora, desenvolver um trabalho intersetorial é mais que justapor ou compor projetos de forma categorial para serem formulados e realizados setorialmente. Abrange uma perspectiva maior, com implicações para a ação do Estado, direta ou indiretamente, em que o foco com base regional, em segmentos da população, e a preocupação com resultado e impactos são fundamentais para formulação, realização e avaliação de políticas, programas e projetos intersetoriais ou transetoriais.

Na análise de Inojosa (1998), abordar os problemas de determinado grupo de forma intersetorial é reconhecer a necessidade de um novo paradigma para a ação governamental como forma de inclusão dos grupos e elevação da qualidade de vida. O governo que se organiza intersetorialmente objetiva “a introdução de práticas de planejamento e avaliação participativas e integradas, na perspectiva situacional, de compartilhamento de informações e de permeabilização ao controle social”. (INOJOSA, 1998, p. 43). Nessa perspectiva, a organização do trabalho tradicional em cada secretaria setorial muda, exigindo um planejamento geral que articule os planos particulares das diferentes instituições envolvidas. A articulação desses planos, com acompanhamento de um colegiado no qual as equipes especializadas por serviços passem a integrar uma única rede regional, “deverá mediar as eventuais desigualdades regionais, com caráter redistributivo privilegiando os grupos populacionais em situação ou risco de exclusão social” (1998, p. 44).

De acordo com Monnerat e Souza (2009), a intersetorialidade, por promover uma capacidade de gestão que minimiza a histórica fragmentação, uma característica das políticas sociais, tem sido defendida por diversos analistas desse campo. Tem sido considerada como estratégia de gestão para atuar contra as iniquidades sociais, compreendendo a necessidade de “encontrar formas inovadoras de formular e implementar as políticas sociais” (2009, p. 203).

O que vai caracterizar a intersetorialidade é a possibilidade de uma síntese dada pela predisposição à intersubjetividade e ao diálogo e, consequentemente, a sua pedagogia é a comunicação […] A questão fundamental da intersetorialidade é a ruptura das barreiras comunicacionais que impedem o diálogo entre diferentes setores […] desse modo, a intersetorialidade não anula a singularidade do fazer setorial pela instituição de uma polivalência impossível; ao contrário, reconhece os domínios temáticos, comunicando-os para a construção de uma síntese. A ação intersetorial, para ser consequente, implica tomar problemas concretos, de gentes concretas, em territórios concretos. (MENDES, 1996, p. 94 apudMONNERAT; SOUZA, 2009, p. 204-205).

De acordo com as autoras, do ponto de vista da produção teórica da Administração Pública, “a intersetorialidade constitui uma nova forma de gerenciar as cidades, ou seja, é uma proposta de modelo de gestão urbana” (2009, p. 205), tendo em vista que contribuiria para combater a ineficácia das políticas sociais. Do ponto de vista da Organização Mundial da Saúde (OMS), a intersetorialidade compreende “uma articulação de ações de vários setores para alcançar melhores resultados de saúde” (2009, p. 205).

No âmbito da política educacional, os esforços recentes para experiências de gestão intersetorial evidenciam a necessidade de uma articulação com as outras políticas a partir do entendimento de que as condições de aprendizagem das crianças e adolescentes são afetadas diretamente pelos problemas estruturais que afetam suas famílias.

A diversidade da demanda e o trabalho isolado por áreas dão sinais de que é necessário rever o atendimento fragmentado e setorializado das demandas sociais. “O trabalho de redes intersetoriais se configura como uma nova abordagem para as demandas da população, baseada na troca de saberes e de práticas entre atores públicos ou entes governamentais envolvidos”. (ANDRADE; MENDES, 2015, p. 235).

As autoras vinculam o conceito de rede ao de intersetorialidade, em que a lógica é articular e compartilhar os saberes sem serem sobrepostos, buscando, desse modo, superar a fragmentação das políticas compreendendo o indivíduo como um todo.

Andrade e Mendes (2015, p. 235) concluem que a “intersetorialidade detém como processo a capacidade de ampliar o alcance das políticas sociais através da complementariedade de ações entre os atores envolvidos”.

No entanto, torna-se importante destacar que a incorporação da intersetorialidade na implementação de políticas setoriais é percebida por alguns autores como um instrumento. Considerando os limites inerentes a tais políticas no que concerne ao atendimento da população, a intersetorialidade é compreendida como uma forma de ampliação de sua eficácia e eficiência. Nesse sentido, as políticas setoriais validaram-na como forma de efetivação mediante a articulação de saberes técnicos “já que os especialistas em determinada área passaram a integrar agendas coletivas e a compartilhar objetivos comuns” (NASCIMENTO, 2010, p. 96 apudANDRADE; MENDES, 2015, p. 235).

Para as autoras Schütz e Mioto (2010), em função da multiplicidade de conceitos, a intersetorialidade pode ser dividida em três eixos: 1) intersetorialidade como complementariedade de setores, 2) intersetorialidade como prática e 3) intersetorialidade como princípio do trabalho com redes.

A intersetorialidade como complementariedade busca superar as fragmentações, percebendo as diversas dimensões das necessidades da população; na intersetorialidade como prática, são as “práticas intersetoriais que possibilitam a abordagem e o atendimento conjunto dos problemas da população. Neste envolvimento cada setor pode contribuir com seu fazer e perspectiva setorial, de maneira articulada” (SCHÜTZ; MIOTO, 2010, p. 63); e, na intersetorialidade como princípio do trabalho com redes, o compartilhamento de saberes e poderes permite construir práticas, conceitos e linguagens por intermédio do envolvimento da sociedade civil e dos serviços públicos.

Para Junqueira (2004), a ação intersetorial possui uma importante perspectiva ao apontar para uma visão integrada dos problemas sociais e para a busca de suas soluções. A ação intersetorial é uma possibilidade para resolver os problemas de determinada população em determinado território, onde a realidade social exige um olhar que não se atém a uma única política social em função de sua complexidade, mas busca otimizar os recursos escassos através de soluções integradas. Nesse sentido, “a intersetorialidade incorpora a ideia de integração, de território, de equidade, enfim, dos direitos sociais. Cada política encaminha a seu modo uma solução sem considerar o cidadão na sua totalidade e nem a ação de outras políticas sociais que também estão buscando a melhoria da qualidade de vida” (JUNQUEIRA, 2004, p. 27). “A ação intersetorial é um processo de aprendizagem e de determinação dos sujeitos, que deve resultar em uma gestão integrada, capaz de responder com eficácia à solução dos problemas da população de um determinado território, saindo, entretanto, do âmbito da necessidade para o da liberdade” (JUNQUEIRA, 2004, p. 27).

De acordo com o autor, a ação intersetorial deve envolver várias organizações públicas sejam elas privadas ou estatais, não permitindo que haja esgotamento no âmbito de uma organização ou de uma política social.

Como meio de intervenção na realidade social, a intersetorialidade requer articulação de instituições e pessoas que possam integrar e articular saberes e experiências, constituindo uma rede através desse conjunto de relações. Portanto, “a viabilização dessa ação intersetorial depende da habilidade de criar grupos que possuam um senso compartilhado de realidade com coesão, em torno de entendimentos comuns que determinam seu crescimento” (JUNQUEIRA, 2004, p. 28-29).

As novas possibilidades de intervenção criadas através da gestão intersetorial e de rede criam novas respostas aos problemas sociais, caracterizando-se por articular instituições e pessoas.

Diante das reflexões expostas até aqui, é possível apreender a intersetorialidade como uma ferramenta importante como estratégia de ação nas políticas sociais, uma vez que busca, por meio de suas articulações e ações integradas, romper com a fragmentação existente e ampliar o alcance das políticas sociais. No entanto, em que pese a sua relevância, faz-se necessário apontar que, de acordo com os interesses em jogo e os sujeitos envolvidos, sua aplicação também pode contribuir para o fortalecimento de uma perspectiva gerencial e mercadológica que vem sendo disseminada na gestão pública desde a última década do Século XX e que, em vez de fortalecer as políticas, acabam por gerar o seu empobrecimento.

Com base nos conceitos sobre intersetorialidade abordados pelos autores e mediante a diversidade de termos para defini-la, neste estudo compreendemos a intersetorialidade como um conjunto de ações que articula instituições e pessoas públicas ou privadas por meio do compartilhamento de saberes e da união de esforços visando à definição de objetivos comuns, assim como a ampliação do alcance das políticas sociais em uma perspectiva de totalidade para a obtenção de melhores resultados no que se refere à garantia de direitos.

2.1 A Intersetorialidade na Política Nacional de Assistência Social

Aprovada em 15 de outubro de 2004, a elaboração da PNAS envolveu não apenas os órgãos da esfera federal responsáveis formais pela sua aprovação, ou seja, o Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, o Ministério do Desenvolvimento Social - MDS e a Secretaria Nacional de Assistência Social - SNAS, mas também diversos sujeitos políticos, como associações, comissões e conselhos, além de acadêmicos vinculados, em alguma medida, ao campo da assistência social. O texto introdutório da PNAS é, em grande parte, dedicado a transmitir o entendimento que direciona, que orienta e que dá vida à referida política. Traz uma análise situacional ampliada do território brasileiro e a afirmação da assistência social como constitutiva do tripé da seguridade social juntamente com a política de saúde e a previdência social, tornando-a bastante evidente como direito e não ação assistencialista. A descrição da política conta com uma explicação detalhada dos equipamentos que a compõem.

No que se refere à intersetorialidade, essa forma de atuação aparece em diversos trechos do documento, constituindo-se como um dos principais pressupostos do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, juntamente com a territorialização e a descentralização (BRASIL, 2004, p. 44).

A PNAS prevê a criação de equipamentos que privilegiam a descentralização político-administrativa e a territorialização não apenas como forma de conhecer a realidade local e de adequar a ela os serviços oferecidos, mas também como uma maneira de integrar as diferentes políticas públicas e instituições voltadas para o atendimento da população que habita, que frequenta, que utiliza, determinado território.

Menicucci (2002) afirma que “o novo paradigma para a gestão pública articula descentralização e intersetorialidade, uma vez que o objetivo visado é promover a inclusão social ou melhorar a qualidade de vida, resolvendo os problemas concretos que incidem sobre uma população em determinado território”. Ou seja, ao invés de metas setoriais a partir de demandas ou necessidades genéricas, trata-se de identificar os problemas concretos, as potencialidades e as soluções, a partir de recortes territoriais que identifiquem conjuntos populacionais em situações similares, e intervir através das políticas públicas, com o objetivo de alcançar resultados integrados e promover impacto positivo nas condições de vida. O que Aldaíza Sposati tem chamado de atender a necessidade e não o necessitado. (BRASIL, 2005).

A intersetorialidade está posta na articulação com o território, conforme abordado pelas autoras Monnerat e Souza (2011), deixando claro que se trata de uma necessidade, tendo em vista a complexidade das questões que constituem objeto de intervenção dessa política. Nesse caso, sustenta-se a necessidade de uma gestão mais dinâmica, capaz de articular as diversas instituições que atuam em um determinado território.

Considerando que a intersetorialidade, compreendida de uma forma ampla, não se constitui apenas por setores governamentais e públicos, é possível identificá-la também nas chamadas novas bases para a relação entre o Estado e a Sociedade Civil e no controle social, eixos estruturantes da PNAS. Em tais eixos localizam-se tanto a previsão de articulação e integração de recursos quanto a participação da população na formulação da política e no controle social das ações em todos os níveis, por meio principalmente das conferências e conselhos, mas também de outros espaços e canais alternativos.

Além do termo intersetorialidade comparecer de forma explícita no documento, a palavra “integração” é evidenciada no sentido de expressar trabalhos integrados entre as políticas setoriais, instituições, setores privados e a sociedade em geral (PEREIRA; TEIXEIRA, 2013, p. 123). Assim como integração, a ideia de rede também se faz presente na PNAS, indicando uma busca pela superação da fragmentação e da focalização que historicamente marcam a assistência social no Brasil.

2.2 A Intersetorialidade na Política Nacional de Proteção e Defesa Civil

Diferentemente da PNAS, a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), aprovada por Michel Temer e expressa na Lei n. 12.608, de 10 de abril de 2012, não é precedida de um texto explicativo que contextualize a criação da Lei. A PNPDEC restringe-se ao que costumamos definir como “letra fria da lei”.

Esse tipo de formulação dificulta o resgate de uma memória histórica que subsidie o leitor com elementos sobre o momento de sua constituição, a participação dos sujeitos e, principalmente, dificulta o entendimento mais aprofundado sobre a lógica que perpassa determinados posicionamentos.

O desenho proposto parece dizer muito sobre os atores nela envolvidos. Embora não tenha sido possível, apenas com a análise desse documento, resgatar os seus formuladores, diferentemente da PNAS, é possível supor que a PNPDEC não foi elaborada por sujeitos das ciências humanas e sociais e sim por profissionais oriundos das ciências naturais, grupo que tem tido hegemonia nesse campo. Ressalta-se que, até a publicação da referida lei, o país havia contado apenas com uma Conferência Nacional, espaço privilegiado para a formulação de propostas para as políticas públicas, ocorrida no ano de 20102.

No que se refere à intersetorialidade, o termo não é utilizado diretamente na Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, embora a necessidade de integração seja expressa em alguns trechos da PNPDEC. O primeiro deles refere-se às disposições gerais: No Art. 2º, parágrafo 1º é possível identificar a seguinte redação: “As medidas preventivas no caput poderão ser adotadas com a colaboração de entidades públicas ou privadas e da sociedade em geral”.

No segundo capítulo, a Seção I, Art. 3º, parágrafo único que trata das Diretrizes e Objetivos da Política, lê-se o seguinte: "A PNPDEC deve integrar-se às políticas de ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, saúde, meio ambiente, mudanças climáticas, gestão de recursos hídricos, geologia, infraestrutura, educação, ciência e tecnologia e às demais políticas setoriais, tendo em vista a promoção do desenvolvimento sustentável." (BRASIL, 2012).

Na mesma seção fala-se também sobre a participação da sociedade civil, que consta como uma das Diretrizes da Política. Como um dos objetivos da PNPDEC, está o de "incorporar a redução de risco de desastre e as ações de proteção e defesa civil entre os elementos da gestão territorial e do planejamento das políticas setoriais” e “integrar informações em sistema capaz de subsidiar os órgãos do SINPDEC na previsão e no controle dos efeitos negativos de eventos adversos sobre a população, os bens e serviços e o meio ambiente." (BRASIL, 2012).

Por fim, o terceiro capítulo demonstra a intersetorialidade ao tratar da constituição do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil e do Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil – CONPDEC. Ambos preveem a participação de entidade públicas e privadas, organizações comunitárias e, no caso do CONPDEC, de representantes da população atingida por desastres.

Torna-se importante salientar que a integração com a PNAS não ganha destaque na redação, embora, como já mencionado anteriormente, a assistência social seja uma área primordial para o atendimento da população afetada nas situações de desastres e recorrentemente demandada para intervenção pós-impacto.

3 A Intersetorialidade presente na Gestão de Desastres e os limites à sua efetividade

Uma vez analisados os textos referentes às duas políticas públicas em questão, torna-se fundamental compreender em que moldes a intersetorialidade tem sido efetivada nesse campo, tendo em vista que, como sinalizado por Akerman et al. (2014, p. 4.295), “Não há banco de ‘intersetorialidade’ congelada. Cada situação-problema ou território irá demandar uma resposta diferenciada de articulação, adquirindo seu DNA próprio”. Para os autores, é possível falarmos em intersetorialidades.

Apesar de a PNAS ser destinada aos “cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos” (BRASIL, 2005, p. 33), a interação dos profissionais da área, em especial assistentes sociais, com os órgãos de proteção e defesa civil tem ocorrido, majoritariamente, apenas após a identificação dessa necessidade por parte dos órgãos e, predominantemente, após a ocorrência de impactos (VARGAS, 2015; DUTRA, 2018), como já sinalizado. De acordo com Dutra e Gonçalves (2016), as ações delegadas às assistentes sociais concentram-se no cadastramento da população afetada, gestão de abrigos, distribuição de donativos e a realocação em casas populares.

Importante destacar que não se trata de uma ação de menor importância, dada a complexidade de demandas da população atingida por desastres. O manejo de recursos sociais comunitários com vistas à liberação de uso coletivo de espaços públicos, o cadastro e a acolhida dos grupos atingidos exigem uma estrutura de trabalho consistente – domínio comum às equipes técnicas do SUAS, em particular ao Serviço Social.

Na lógica do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), são previstos aportes de recursos para viabilizar o acolhimento imediato das famílias, a manutenção de alojamentos provisórios em espaços públicos, o cadastramento da população atendida, promoção da inserção na rede socioassistencial e acesso, quando for o caso, a benefícios eventuais. O repasse é mensal e pode se estender por até 12 meses. (SOUZA FILHO, 2017).

Contudo, o estudo desenvolvido por Dutra (2018) aponta que, na maior parte dos casos, a intervenção do Serviço Social é marcada por dois aspectos:

Ambos os aspectos são de grande relevância para pensar a intersetorialidade. Uma vez que grande parte das convocações dos profissionais restringe-se ao momento posterior à ocorrência dos impactos, é possível falarmos de uma intersetorialidade de fato? Esse período se caracteriza por ações pontuais ou fragmentadas? Na medida em que não expressa uma relação de continuidade, como garantir o diálogo entre os profissionais e a constituição de um novo olhar em relação à realidade social apresentada e aos sujeitos atendidos?

No que se refere ao segundo aspecto, partimos do princípio de que a informação constitui um dos elementos fundamentais de acesso aos direitos. Dessa forma, a “tradução” de uma linguagem pouco compreensível para uma mais acessível não seria um mal em si. Acreditamos que se trata de uma das atribuições do assistente social contribuir para fazer com que as informações cheguem até a população interessada da forma mais fácil possível. No entanto, a partir do momento em que a atuação do profissional se limita a esse aspecto e que tal comunicação não mantém interação com a formação desse profissional, é importante que a questão seja problematizada.

Utilizando os termos apresentados por Almeida Filho (2000)3, podemos afirmar que esta suposta prática intersetorial seria geradora de, no máximo, uma espécie de interdisciplinaridade auxiliar, definida pelo autor como um tipo de

interação de diferentes disciplinas científicas, sob a dominação de uma delas, que se impõe às outras como campo integrador e coordenador; o sistema apresenta dois níveis e aqui pode-se reconhecer a posição superior de uma disciplina em relação às outras, subordinando-as, posto que as informações expropriadas dessas disciplinas são colocadas a serviço da especialidade tomada como disciplina mestra. (ALMEIDA FILHO, 2000, p. 17).

No nosso caso, a apreensão da noção de risco como algo objetivo e calculável faz com que o campo dos desastres seja majoritariamente ocupado por profissionais oriundos das ciências naturais. A predominância do saber técnico contribui para que assistentes sociais e outros profissionais vinculados às ciências humanas e sociais sejam submetidos a tal lógica.

Essa realidade se reflete na interação precária entre os diferentes setores; no estudo em questão, especialmente os órgãos de proteção e defesa civil e assistência social. Ações em sequência, mas desintegradas, marcam o contexto presente, fazendo com que a assistência social e seus profissionais sigam submetidos e secundarizados em relação às equipes de defesa civil.

Ainda que assistentes sociais tenham, entre suas prerrogativas profissionais, grande habilidade técnica para o planejamento e sejam capazes de acionar diferentes fontes de recursos e de articular variáveis complexas, a ausência ou escassez de participação desses profissionais no planejamento das ações em parceria com a defesa civil também fazem parte do processo.

Aqui resgatamos um aspecto central, destacado por Silva (2014), no que se refere aos desafios para a implantação do SUAS como uma política pública e como direito social: "A implementação do SUAS remete a processos de avaliação permanente, com vistas a seu aprimoramento. Nesse debate, relações estabelecem-se, pactua-se, muitas vezes, o novo, mas é necessário ter clareza de que o processo histórico se reafirma a cada instante nessas construções." (SILVA, 2014, p. 121).

O processo histórico que se afirma a cada instante se refere ao padrão conservador, patrimonialista e autoritário das relações políticas e sociais no Brasil. Uma sociedade com histórico escravocrata, com uma larga população rural, destituída de poder central por três séculos, com predomínio de relações de compadrio e longo histórico de coronelismo. Por aqui, a noção de “direito” é facilmente substituída a todo o tempo pela ideia de “concessão”, e os governantes encarnam uma mistura de repressão, autoritarismo e paternalismo. Segundo Silva, “o país herdou a escravidão, a grande propriedade rural e também um estado comprometido com o poder privado”. (2014, p. 121).

Esse padrão de relações sociais que se constituiu no Brasil ainda se faz presente, com a reatualização de condutas conservadoras avessas à participação nas várias esferas de governo e na condução das políticas públicas – que sempre sofrem inflexões a cada mudança de legenda político-governamental. Nesse cenário, corre-se o risco de se tornar lugar-comum a constituição de “feudos” no que se refere à condução das políticas públicas – traço que certamente dificulta qualquer tentativa de integração de ações, encontro de saberes ou mesmo o trabalho em equipes multidisciplinares, quando se pensa em desastres.

Com base nesses apontamentos, elencamos alguns fatores que dificultam a efetivação da intersetorialidade entre a assistência social e a defesa civil:

  1. 1- A execução das políticas públicas ligadas a órgãos de gestão e estruturas de poder distintas: essa segmentação faz com que cada política ou plano de ação da política pública seja pensada de forma isolada, sem articulação com outras áreas correlatas. Um exemplo dessa realidade é que a defesa civil elabora seu plano de contingência e, ainda que nesse documento constem ações de outras áreas, como a da saúde e a da assistência social, muitas vezes o trabalho de ambas se efetiva a partir de planos e planejamentos estruturados com base em outros referenciais4. O resultado é que a atenção à população ocorre de forma setorizada e desarticulada, perdendo-se as dimensões da complexidade, da totalidade e das necessidades sociais diante dos desastres.

  2. 2- Ingerências políticas e corporativismo que afetam a condução e execução das políticas públicas: em uma sociedade moldada com o cimento da cultura conservadora e autoritária, cada gestor defende os interesses de sua área, dificultando qualquer possibilidade de articulação ou participação social. Em estudo realizado por Carmo et al. (2017), fica evidente esse traço cultural e consequente postura de resistência à intersetorialidade.

Tanto Inojosa (2001) quanto Monnerat e Souza (2011) assentem que o insulamento dos trabalhadores da burocracia estatal é ao mesmo tempo barreira para a intersetorialidade e sintomática da dificuldade para a assunção de postura mais dialógica e interações mais horizontalizadas na gestão pública. Gestores e trabalhadores tendem a fazer um movimento, involuntário ou intencional, de guarda de suas próprias especialidades, bem como de proteção de seu espaço pessoal, garantindo a impermeabilidade de seus setores e de suas possibilidades de relação interpessoal. Esse movimento, acentuado pela assimetria de poder decisório entre os setores governamentais, enseja práticas de corporativismo e resistências. (CARMO et al., 2017 p. 1.275).

Como se vê, injunções conservadoras estão presentes ao longo de toda a trajetória de consolidação das políticas públicas, reforçando resistências e dissensos.

  1. 3- Continentalidade dos territórios brasileiros onde se assentam as políticas públicas, que dificultam o contato e a articulação política em prol da efetividade de uma maior integração entre as ações. Estudo elaborado por Trzcinski et al. (2018) reforça o efeito da continentalidade dos territórios: em 15 municípios pesquisados no oeste de Santa Catarina não havia plano de contingência, as equipes de defesa civil eram frágeis e sem estrutura e, nos municípios onde havia equipes tanto de defesa civil quanto de assistência social, as competências não estavam bem definidas.

Dessa forma, ainda temos o desafio de superar os elementos aqui explorados e que dificultam a integralização das ações. Um primeiro passo nessa direção pode ser a busca por conhecer a realidade tal como se apresenta. Assim, respostas claras sobre o conjunto de indagações que ainda se fazem presentes, tais como: que modelo de atenção e de gestão estão sendo produzidos em cada serviço? como os serviços estão se relacionando? qual é o padrão de comunicação estabelecido entre as diversas equipes e os diferentes serviços?, podem constituir o primeiro passo para se repensar o modelo de intervenção fragmentado ora adotado e partir para um processo de construção da intersetorialidade que queremos. Uma intersetorialidade que se concretize por meio do trabalho em rede - o que exige a articulação, a integração e o encontro de diferentes saberes e resulte em ações conjuntas capazes de viabilizar o acesso às políticas sociais a todos que delas necessitem.

Há, portanto, muitos indícios de que a intersetorialidade permanece como um desafio a ser vencido no tratamento de desastres na realidade brasileira. Sendo assim, cabe chamar a atenção para a necessidade urgente de ultrapassarmos alguns limites rumo a uma atuação integrada entre os diferentes setores e profissionais.

4 Considerações finais

A fim de romper com o tradicional ciclo “impacto-resposta-recuperação-impacto”, a efetivação da intersetorialidade como mecanismo de integração mais horizontal entre as diversas políticas públicas se faz urgente e necessária. Por essa razão, defende-se uma maior articulação entre as diferentes políticas, em especial a PNAS e a PNPDEC, de modo a construir uma agenda que possibilite pensar o desastre como um processo, formas preventivas e mitigadoras e ações de preparação que sejam efetuadas antes da ocorrência do impacto, como a construção coletiva de mapas de risco, identificando os líderes comunitários e as áreas seguras, articulando a participação social e comunitária pré-impacto, adotando-se, sempre que possível, testes de escape eficazes.

Os desastres, apesar de atingirem diferentes segmentos da população, têm seus maiores danos registrados entre as camadas mais subalternas. Ainda assim, é importante considerar a fragilidade da participação efetiva da população afetada nas ações que envolvem a sua gestão.

O Serviço Social, enquanto uma das profissões que integram a PNAS, possui papel importante no sentido de contribuir para a ruptura com a lógica hegemônica no campo dos desastres dada a dedicação voltada para a compreensão da dinâmica social, a intervenção nas expressões da questão social, seu contato privilegiado com os usuários e o fato de ser portador de um projeto ético-político pautado na defesa de uma sociedade emancipada. Nessa perspectiva, desastres devem ser descortinados por meio de uma visão mais totalitária do mundo capaz de desvendá-los como uma construção social que envolve diferentes sujeitos, forças e interesses que, muitas vezes, encontram-se escamoteados por trás de discursos de proteção que não se concretizam.

É importante lembrar que também as políticas públicas são campos em disputa e que, portanto, o que se postula é a integração de saberes voltados para um melhor atendimento da população. Nessa direção, é reveladora a declaração de que:

Há uma inquietação no interior do aparelho do Estado sobre como trabalhar com a complexidade. Sobre a intersetorialidade há um consenso discursivo e um dissenso prático. Esse dissenso nasce da contradição entre a necessidade de integração de práticas e saberes requeridos pela complexidade da realidade e um aparato de Estado setorializado, onde se acumulam, com maior ou menor conflito, poderes disciplinares e poderes advindos de composições político-partidárias. (ANDRADE, 2006, p. 280 apudMONNERAT; SOUZA, 2009, p. 208).

O desafio que se coloca é superar a contradição entre o consenso discursivo e o dissenso prático em destaque. Essa busca deve ser constante e permear as práticas profissionais cotidianas por meio do diálogo, do convencimento, do exercício frequente de esclarecimento de posições, interesses e intenções.

Defende-se, portanto, a intersetorialidade como uma prática capaz de ultrapassar a perspectiva hierárquica e burocrática predominante nas instituições públicas – característica esta que, no mais das vezes, atrapalha a construção de um modo articulado e integrado de trabalho entre as diferentes políticas – e que essa prática se manifeste nas atividades cotidianas da gestão de desastres para que se pense o desastre preventivamente e não apenas na sequência do impacto como vem sendo regra. Ou seja, a intersetorialização entre a PNAS e PNPDEC aqui defendida permite um exercício conjunto com vistas à intervenção nos processos de desastres, viabilizando a construção coletiva e participativa em todas as suas etapas.

Referências

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Notas

1 Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei no 12.608/2012) classifica as ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação para os desastres. As ações de prevenção, mitigação e preparação são anteriores ao impacto e visam eliminar e minimizar riscos e preparar as pessoas para que, no caso de impactos, estes tenham consequências menores. Já as ações de resposta e recuperação ocorrem durante e/ou após o impacto. As ações de resposta são voltadas, prioritariamente, para o socorro e a assistência aos afetados enquanto as de recuperação são destinadas à recuperação do local, de suas atividades e serviços.
2 A 2ª Conferência Nacional ocorreu no ano de 2014. Após esse momento não houve outra mobilização dessa natureza no âmbito do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil do país. (DUTRA, 2018).
3 O autor se utiliza da tipologia de Jantsch adaptada por Bibeau.
4 Destacam-se aqui os seguintes planos e propostas de intervenção frente aos desastres: Enchentes no Estado do Rio de Janeiro: uma abordagem geral – projeto Planágua – SEMADS, 2001; Plano de emergência da cidade do Rio de Janeiro – ligado à Subsecretaria de Defesa Civil, 2010-2011; Plano de resposta à emergência em saúde pública: gestão das ações da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, 2013; Plano de contingência de desastres naturais na atenção primária em saúde do Município do Rio de Janeiro, 2018-2019.

Notas de autor

1 Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora Adjunta do Departamento de Serviço Social de Campos da Universidade Federal Fluminense e Membro do Núcleo de Pesquisas e Estudos Socioambientais (NESA/UFF-Campos) – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: adrianadutra@id.uff.br.
2 Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Substituta do Departamento de Serviço Social de Campos da Universidade Federal Fluminense – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: elisonete@hotmail.com.
3 Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: silva.rosilene@yahoo.com.
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