DOSSIÊ TEMÁTICO: VIOLÊNCIA DE ESTADO E POLÍTICA SOCIAL: ENTRE O APARATO ASSISTENCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL
Precariedade e mistificação da precarização: superexploração da força de trabalho
Precariousness and mystification of precariousness: overexploitation of the workforce
Precariedad y mistificación de la precariedad: superexplotación de la fuerza de trabajo
Precariedade e mistificação da precarização: superexploração da força de trabalho
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, 2020
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 20 Agosto 2020
Aprobación: 14 Octubre 2020
Resumo: Este artigo, por meio da Teoria Social de Marx e do pensamento social brasileiro marxista, objetiva analisar a precariedade do trabalho, a superexploração da força de trabalho e a mistificação da precarização com a expropriação de direitos. Dessa forma, destaca as particularidades do capitalismo dependente brasileiro e as marcas da escravidão colonial com a apreensão do sentido da expropriação do trabalho e da exportação de excedente econômico. Ressalta, ao final, o atual período ultraneoliberal potencializado pelo governo de Jair Bolsonaro, com o reforço da cultura do “empreendedorismo” via “teologia da prosperidade”, aprofundando os retrocessos dos direitos do trabalho.
Palavras-chave: Superexploração da força de trabalho, Precarização do trabalho, Capitalismo dependente, Contrarreforma do trabalho.
Abstract: This article, based on Marx's Social Theory and on the Brazilian Marxist social thought, aims to analyze the precariousness, the overexploitation of the workforce and the mystification of precariousness with the expropriation of rights. Thus, it highlights the particularities of Brazilian dependent capitalism and the marks of colonial slavery with the apprehension of the meaning of the expropriation of labor and the export of economic surplus. It highlights the current ultraneoliberal period enhanced by the government of Jair Bolsonaro, with the reinforcement of the culture of “entrepreneurship” via the “prosperity theology”, increasing the setbacks of labor rights.
Keywords: Overexploitation of the workforce, Precarious work, Dependent capitalism, Work counter-reform.
Resumen: Este artículo, a través de la Teoría Social de Marx y el pensamiento social marxista brasileño, tiene como objetivo analizar la precariedad del trabajo, la superexplotación de la fuerza de trabajo y la mistificación de la precariedad con la expropiación de derechos. De esta forma, destaca las particularidades del capitalismo dependiente brasileño y las huellas de la esclavitud colonial con la aprehensión del significado de la expropiación del trabajo y la exportación del excedente económico. Al final, destaca el actual período ultraneoliberal potenciado por el gobierno de Jair Bolsonaro, con el fortalecimiento de la cultura del “emprendimiento” a través de la “teología de la prosperidad”, profundizando los retrocesos de los derechos laborales.
Palabras clave: Superexplotación de la fuerza de trabajo, Trabajo precario, Capitalismo dependiente, Contrarreforma del trabajo.
1 Introdução
No Brasil, as marcas da escravidão colonial e o sentido da expropriação do trabalho e da exportação de excedente econômico foram ressignificados1 no processo de inserção do nosso país na divisão internacional do trabalho, o configurando sob a relação da dependência no sistema mundial imperialista. Estas particularidades mediatizam a dinâmica da acumulação capitalista e, por sua vez, o modo e as estratégias político-ideológicas da política macroeconômica neoliberal, implementada ao largo de 25 anos, que mistificou sua agenda e seus efeitos deletérios. Sob o efeito do encantamento da “conciliação de classes”, as classes trabalhadoras foram atingidas com o aprofundamento dos retrocessos nas condições de vida e de trabalho no atual período ultraneoliberal2.
Com a pandemia do novo coronavírus3 a crítica situação das classes trabalhadoras brasileiras foi revelada e agravada. Diante disso, propõe-se para a apreensão do atual período histórico uma análise tanto do processo particular estruturante da precariedade do trabalho, como da expansão, naturalização e mistificação da precarização das condições de trabalho, com as políticas de geração de emprego e renda implementadas ao longo dos governos petistas. Somado ao desmonte da proteção do trabalho com a contrarreforma trabalhista de 2017 e a Emenda Constitucional 95/2016, no governo Temer, além das atuais expropriações de direitos no atual governo de Jair Bolsonaro, com o reforço da cultura do “empreendedorismo” pela “teologia da prosperidade”.
Por meio de Marx e do pensamento social brasileiro marxista, este texto4 busca demonstrar a forma particular que a lei geral da acumulação capitalista se engendra na realidade brasileira e se desenvolve na dinâmica do presente período histórico, tendo a precariedade do trabalho, alicerçada pela escravidão colonial, e a superexploração da força de trabalho5 como mediações analíticas do capitalismo dependente para o debate acerca da mistificação da precarização do trabalho, com a expansão da expropriação de direitos.
2 Precariedade do trabalho e superexploração: mistificação contemporânea da precarização
Para essa análise, recuperamos brevemente alguns aspectos históricos da mercantilização da força de trabalho brasileira6 e da dinâmica contemporânea do capitalismo por meio de três eixos de abstração para a apreensão de alguns elementos para o debate acerca da precariedade e da superexploração da força de trabalho e, por sua vez, da mistificação da precarização.
1º) A partir de Marx (2017a, 2017b), recuperamos, resumidamente, a apreensão acerca da dinâmica da acumulação capitalista, que em sua permanente expansão, expropriação e exploração, desencadeia constantes e diferenciadas formas de dominação e violência. Desse modo, temos claro que somente a luta de classes pode frear o agravamento da exploração capitalista e sua destrutibilidade.
O seu caráter expansionista, em sua interconcorrência, implica a concentração e centralização de capitais capazes de aumentar a produtividade do trabalho e obter maiores taxas de mais-valor. Indica, em suas leis tendenciais e contratendenciais, tanto o aumento da composição orgânica do capital7 como a busca permanente por novos mercados, significando a expropriação e a busca pela capitalização8 de todas as esferas da vida, para responder às suas contradições intrínsecas. O objetivo crucial do/a capitalista “é a valorização de seu capital, a produção de mercadorias que contenham mais trabalho do que o que ele paga […]. A produção de mais-valor, ou criação de excedente, é a lei absoluta desse modo de produção.” (MARX, 2017a, p. 695). A busca por maiores taxas de lucro incide na busca permanente de maior produtividade e pelo mais-valor extraordinário. O aumento da intensidade da exploração da força de trabalho, por meio do incremento da produção de mais-valor absoluto e/ou relativo, é um dos principais objetivos e será uma das consequências das expropriações (de direitos e meios de subsistência de trabalhadores/as) e do avanço tecnológico. Porque, nessa “configuração técnica aperfeiçoada, [uma] massa menor de trabalho basta para pôr em movimento uma massa maior de maquinaria e matérias-primas.” (MARX, 2017a, p. 704). A acumulação capitalista gera, regularmente, “uma população trabalhadora adicional relativamente excedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de valorização do capital e, portanto, supérflua.” (MARX, 2017a, p. 705). Há, dessa forma, a ampliação da superpopulação relativa promovendo o sobretrabalho9 da parte ocupada.
Pontuamos, grosso modo, que na medida em que cada capitalista individual procura maximizar seus lucros, a taxa de lucro tende a cair, e, portanto, o modo de produção capitalista em sua própria dinâmica cria empecilhos à sua expansão. A necessidade dos capitais superacumulados retornarem ao ciclo do capital, escoa recursos para a inovação tecnológica e para novas frentes de investimento. Tal como identificamos nas contradições do capitalismo contemporâneo, em diversas formas de expropriação,10 desde o avanço da fronteira agrícola sobre áreas de preservação ambiental e/ou indígena, passando pela privatização da saúde, educação, previdência social,11 como também encontrando possibilidades de reprodução nos serviços de venda de títulos da dívida pública até a criação de produtos financeiros, para garantir a antecipação da realização de mais-valor. Constituem, dessa maneira, formas para acelerar o ciclo do capital como também servem de mecanismos para que o ciclo não cesse. Apesar das crises serem constitutivas do capitalismo e cada vez mais cumulativas, hegemônicas e destrutivas.12
A ampliação da liberalização financeira e da monetização do capital fictício, somadas à desregulamentação e às privatizações, aprofundaram as contrarreformas. Uma vez que se trata de uma superacumulação de uma massa de capital, que se especializa apenas na apropriação de um mais-valor que ele não produz, uma primeira requisição para a retomada da acumulação é a expansão da massa de mais-valor produzido, de forma a garantir concretude ao montante de títulos de apropriação superproduzidos. Isso implica aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, por meio dos retrocessos dos direitos das classes trabalhadoras como forma de reduzir o valor da força de trabalho, com o prolongamento da jornada e/ou da intensidade do trabalho, sem o correspondente aumento salarial. (CARCANHOLO, 2017).
As contrarreformas articuladas ao “ajuste fiscal” vêm para garantir a existência de uma maior apropriação de mais-valor para dar concretude a títulos de direito de apropriação, porque o crescimento destes títulos tem sido mais veloz do que o do capital produtivo. Importante destacar que a primeira fase da crise de 2008 ocasionou a segunda em 2012, com o endividamento público,13 este promovido via emissão de títulos públicos para garantir a reprodução daquele capital fictício. (CARCANHOLO, 2017).
Nesse sentido, a chamada financeirização, tornou-se a característica hegemônica do capitalismo contemporâneo, com a permanente função do capital fictício garantir a realização antecipada de mais-valor. Acentuando mecanismos de transformações nas relações de produção e de trabalho assim como desregulamentações constantes, para garantir o aumento da produtividade e da intensidade do trabalho. Por esse ângulo de análise, podemos identificar a essencialidade da reestruturação permanente e da “revolução digital”, com a chamada indústria 4.0,14 além da duradoura estratégia de mistificação da precarização por meio das instituições internacionais, tal como o Banco Mundial e a ONU.15
As tecnologias de informação e comunicação (TIC) avançam e os grupos monopólicos as expandem de forma a englobar todas as esferas da vida, todos os setores econômicos possíveis. Desde aqueles mais precarizados/“autônomos” até aqueles profissionais liberais dos setores médios. Deparamo-nos com uma plataformização do trabalho que ao mesmo tempo que precariza, garante o controle do trabalho, por meio do Big data, da internet das coisas, dos algoritmos e, por sua vez, a quantidade de tarefas e o tempo de trabalho (jornada e produtividade) (ANTUNES, 2020b).
O capitalismo, em sua configuração contemporânea, encontrou na desterritorialização da produção a possibilidade de ampliar e transformar o salário por peça em uma estratégia para mistificar/ocultar/burlar o vínculo trabalhista, como as vistas na “autonomia” no autoemprego do “microempreendimento”, no trabalho em domicílio, nas cooperativas e, hoje, no trabalho intermitente e na uberização/plataformização do trabalho. A desconcentração da produção garante às grandes corporações o não pagamento dos encargos sociais, uma vez que o salário por tempo é substituído pelo salário por peça como meio de individualizar as relações de produção. E, dessa forma, implica uma nova forma de contrato de trabalho e traz uma suposta “autonomia” produtiva do salário por peça (SOARES, 2016). No capitalismo, as formas de salário por peça e por tempo existem lado a lado. O salário por peça é uma forma “metamorfoseada” do salário por tempo, um meio de intensificar mais o trabalho, mediado inclusive pela autoexploração, e também dar vazão ao aumento da jornada de trabalho (MARX, 2017a, Seção VI). Portanto, se o/a trabalhador/a quer ganhar mais, terá que trabalhar mais.
Nesse caminho, aumentam-se as subcontratações por meio de “renovadas” formas de trabalho precário, e a forma de pagamento por peça é retomada e metamorfoseada a partir de novos parâmetros produtivos, como pelo controle algorítmico. Assim vemos a autoexploração do/a trabalhador/a por meio da intensificação e extensão da jornada de trabalho. E a relação de exploração está velada porque o/a trabalhador/a ou é dono/a dos meios de produção ou os aluga, porém depende de sua força de trabalho, além da matéria-prima e da maior estrutura de alguma empresa para colocar “seu produto” no mercado ou entregá-lo. As estratégias político-ideológicas do capital, a exemplo do “empreendedorismo” ou do home-office/teletrabalho, incutem a ideia de que gerar o seu próprio emprego ou trabalhar para o/a patrão/oa fora dos limites da empresa significa ter “autonomia” (SOARES, 2016).
2º) A inserção do nosso país na divisão internacional do trabalho vem como segundo momento de nossa abstração, para destacarmos a particular e estrutural precariedade do “mercado” de trabalho brasileiro. Dessa forma, ressaltamos as linhas de continuidade e de ruptura no processo de hegemonização do trabalho livre no Brasil, onde as formas transitórias de exploração da força de trabalho compõem a passagem do Brasil colonial ao capitalismo dependente. Resquícios são reinventados das formas transitórias de exploração da força de trabalho, no entanto, ainda que se constatem elementos de permanência do sentido colonial no capitalismo dependente, não é uma simples continuidade e não podemos considerá-los como processos homogêneos. Para Ruy Mauro Marini, a América Latina se inseriu na divisão internacional do trabalho após 1840, onde se inicia “uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência” (MARINI, 2011, p. 135-136). Sendo assim, a inserção no mercado mundial da América Latina se dá como provedora de produtos agropecuários e de matérias-primas industriais, via injeção de capitais acumulados das nações industriais, permitindo o aprofundamento da divisão internacional do trabalho e a especialização dos “países industriais como produtores mundiais de manufaturas” (MARINI, 2011, p. 137).
Florestan Fernandes (2009) ressalta que as relações de trabalho de origem colonial foram cruciais para a eclosão do mercado capitalista moderno, e, por sua vez, na inserção no mercado mundial o esquema de produção-exportação-importação. Quando a “revolução comercial” acelerou a modernização interna, as típicas relações de trabalho de origem colonial tornaram-se um entrave à expansão interna do mercado, exigindo a mercantilização da força de trabalho.
A mercantilização da força de trabalho brasileira originou-se de braços dados com o trabalho escravo de negras e negros, que foram fundamentais para o processo de consolidação da economia capitalista mundial. Até a metade dos anos 1850, a força de trabalho escrava estava na agricultura de exportação, compunha os portos, os transportes terrestres, o comércio e as fábricas. Como “nas mais diversas atividades, dos serviços domésticos aos ofícios mais especializados, passando pelo trabalho pesado do transporte de mercadorias e pelo variado comércio de rua” (MATTOS, 2009, p. 17).
É fundamental destacar a ausência de políticas de integração, e, por sua vez, o abandono que negros e negras sofreram após os processos de alforrias e a abolição da escravidão. A mulher negra permaneceu na esfera privada da reprodução social, no serviço doméstico ou na satisfação do apetite sexual dos patrões ou, ainda, na prostituição. E as condições desiguais do negro em competir com os imigrantes europeus ou alcançar outras ocupações, o encaminhou para o trabalho degradante e mal remunerado (FERNANDES, 1989; GONZALEZ, 1984). Um histórico mediado pelo patriarcado e pelos determinantes étnico-raciais estruturantes da nossa formação socioeconômica e, portanto, da nossa divisão sociossexual e étnico-racial do trabalho, patentes nos dados das condições de trabalho e renda no Brasil contemporâneo.16
O século XIX foi emblemático da transição da escravidão e do convívio entre livres e escravizados/as até a generalização do trabalho livre, e chegando a este patamar torna-se notável a permanência da heterogeneidade das condições de trabalho e acesso a direitos. As formas transitórias de trabalho com traços da subalternidade escravocrata, somadas ao incentivo à imigração europeia - sob o pressuposto da conquista da “disciplina” da força de trabalho - e à política eugênica brasileira consolidaram a condição de semiescravidão aos/às negros/as.17 A ocupação, quase permanente, nas fileiras da superpopulação relativa pelos/as negros/as e a “reforma ‘eugênica’ dos salários: maiores para os brancos, menores para os negros” (MOURA, 1994, p. 7), garantiu a predominância do pagamento da força de trabalho negra sem correspondência com suas necessidades de reprodução.
Do final do século XIX ao início do XX, intensificou-se a industrialização de forma subordinada aos países centrais e, consequentemente, as classes trabalhadoras evidenciaram as péssimas condições de trabalho, com jornadas extenuantes e miserabilidade nos locais de moradia. Já, entre as décadas de 1930 e 40, Getúlio Vargas combinou o favor, a manipulação, estabeleceu as últimas políticas estatais imigratórias eugênicas,18 além de reprimir brutalmente as lutas sociais, para concretizar o desenvolvimento industrial a partir de uma perspectiva nacionalista de “conciliação”, principalmente por meio da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (ANTUNES, 2011). A CLT fora apresentada como uma benevolência do Varguismo, movimento garantidor da gratidão e retribuição dos/as trabalhadores/as de forma ordeira e produtiva (MATTOS, 2009). Esse foi um processo concomitante ao crescimento dos sindicatos oficiais, tornando as organizações sindicais como espaços de favores e de recursos junto à burocracia estatal, configurando-os como espaços dos “pelegos” e das ações assistenciais (FONTES, 2010). E, estrategicamente,19 para viabilizar maior desmobilização das classes trabalhadoras, Vargas implementou a primeira legislação geral do trabalho direcionada apenas para os/as trabalhadores/as urbano/as, deixando de fora os/as trabalhadores/as do campo (OLIVEIRA, 2003).
A partir desse brevíssimo resgate de alguns elementos históricos que traçam a heteronomia e o perfil autocrático e racista das burguesias nativas, assim como a heterogeneidade das classes trabalhadoras brasileiras e a degradação material e moral da exploração da força de trabalho (FERNANDES, 2009). É crucial para nossa análise, indicada no primeiro eixo, identificar como a expansão, a expropriação e a busca pela capitalização de todas as esferas da vida com a incessante reestruturação produtiva, se concretizam mediadas pelas particularidades sócio-históricas da dependência. Ademais, destacamos a precariedade e o racismo estrutural20 compondo esses elementos constitutivos da dinâmica, que se restabelecem, permanentemente, se renovando mesmo com o constante avanço das forças produtivas. Notável, hoje, no controle algorítmico, que em um amplo solo histórico consolidado de precariedade e mistificação da precarização, facilita a burla do vínculo empregatício e o aprofundamento da superexploração.
Dessa forma, ressaltamos que mesmo com mudanças substantivas nas relações de classe e nos processos produtivos internos e externos, que desencadearam possibilidades de acumulação de capital à custa da exploração de mais-valor relativo,21 os determinantes particulares do capitalismo dependente permanecem e são aprofundados pela política macroeconômica neoliberal. Ainda que ocorra a ampliação da produtividade do trabalho e do mais-valor relativo, se desenvolve e se reproduz a superexploração da força de trabalho, que significa a remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor, por meio de mecanismos usados pelo Estado e/ou pelo capital, constituindo-se a base estrutural do ciclo do capital nas economias dependentes.22 Para atender as demandas da circulação capitalista comandada pelos países centrais, “a produção latino-americana não depende da capacidade interna de consumo para sua realização.”23 Na realidade dos países de capitalismo dependente existe “a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do capital - a produção e a circulação de mercadorias -, cujo efeito é fazer com que apareça de maneira específica na economia latino-americana a contradição inerente à produção capitalista em geral […].” (MARINI, 2011, p. 155).
Aqui temos a essência do padrão de acumulação de capital típico da relação desigual entre as burguesias externas hegemônicas e as internas dependentes, em que a produção das últimas se subordina às primeiras, e, nesse sentido, exige-se uma superexploração das classes trabalhadoras da periferia. O modo de produção capitalista, no ciclo do capital nas economias dependentes,24 para garantir a máxima exploração da força de trabalho, busca viabilizar meios para aumentar as horas de trabalho, a intensidade e a produtividade do trabalho, mas também expropria parte do fundo de consumo dos/as trabalhadores/as, a fim de torná-lo uma fonte adicional de capital que é adicionado ao fundo de acumulação. Esses procedimentos constituem a prática constante por parte do capital e do Estado para remunerar a força de trabalho abaixo do seu valor e assumir a existência de todo um sistema institucional, social e legal que regula salários insuficientes para garantir a reprodução das classes trabalhadoras em condições normais (VALENCIA, 2013). Portanto, a superexploração da força de trabalho é “uma categoria necessária, embora não suficiente,25 para pensar as formações econômico-sociais do capitalismo dependente, cuja compreensão mais completa deve incorporar também as relações de poder e opressão” (FERREIRA, 2018, p. 228).
O condicionamento das classes trabalhadoras sob o capitalismo dependente é o de expropriação tanto dos meios de subsistência como das condições de vida, sem direitos assegurados que os/as colocam na condição de vender a sua força de trabalho sob as piores condições, mediadas pelas opressões étnico-raciais e de gênero.
Os rumos e efeitos nefastos da integração dependente se aprofundam de acordo com as particularidades sócio-históricas, articuladas à necessidade social do capital e às condições geopolíticas. A condução política brasileira expressa a história da nossa formação social, subordinada à condução imperialista dos países centrais, com uma cultura política de supressão do dissenso pela repressão, fascistizantes, ou pelo encantamento, por meio de uma falaciosa “conciliação de classes”26.
3º) Dando continuidade ao nosso raciocínio, no terceiro eixo de análise, indicamos os aspectos conjunturais que aprofundaram a precariedade do trabalho via expansão da precarização mistificada. Nos governos do Partido dos Trabalhadores, por meio de um pacto conciliatório, tivemos um período de composição de políticas de “alívio” da miséria e continuidade das contrarreformas (apresentadas como políticas “novo-desenvolvimentistas”),27 e mesmo passando pela crise financeira de 2008, a alta das commodities atenuou os seus impactos. Porém, a massa salarial passou a diminuir, aumentou-se a inserção das classes trabalhadoras em ocupações mais precárias, ainda que seguisse crescendo o nível do emprego formal. Durante os governos petistas, Lula caracterizou-se, em seus mandatos, numa “espécie de semi-Bonaparte, recatado, cordial, célere diante da hegemonia financeira e hábil no manuseio de sua base social” (ANTUNES, 2020a, p. 229).
O “reordenamento” dos países na divisão internacional do trabalho, alavancou um processo de transformações estruturais na economia, que possibilitaram notáveis lucros para o capital internacional, assegurando um apoio do setor majoritário das burguesias nativas e externas aos governos petistas. Articulado a isso, a renda dos/as trabalhadores/as que ganhavam menos, aumentou com pequenos reajustes do salário mínimo; retirou da extrema miséria milhares de pessoas com o Programa Bolsa Família; e reduziu o salário dos/as trabalhadores/as mais especializados/as, garantindo a estagnação do salário médio do conjunto dos/as trabalhadores/as.28 O impacto da crise financeira de 2012 fez com que o conjunto das frações burguesas nativas e externas com maior poder sobre o governo exigisse um “ajuste fiscal” mais duro, que inviabilizou a continuidade do pacto conciliatório pelo alto conduzido pelos governos do PT. Essa política macroeconômica acentuou os efeitos da crise estrutural do capital exacerbando o desemprego e afetando as condições de vida das classes trabalhadoras e dos setores médios (queda da taxa de lucro do empresariado pequeno e médio e até mesmo falências), provocando as Jornadas de junho de 201329 e o golpe parlamentar de 2016.30
O caminho adotado pelos governos do PT31 com a mistificação da precarização criou o solo histórico (condições objetivas e subjetivas propícias) para o aprofundamento da precarização do trabalho com a contrarreforma trabalhista de 2017 e outros desmontes, como a Emenda Constitucional 95/2016, esta, podendo ser reconhecida como uma contrarreforma geral dos direitos sociais. A ampliação do autoemprego com o Programa Microempreendedor Individual, das cooperativas com a Economia Solidária32 e das terceirizações alicerçou a precarização sob a ideia de autonomia do “empreendedorismo”. Garantindo o cenário para mais expropriações de direitos como com o teletrabalho;33 o negociado sobre o legislado; o trabalho intermitente; a “prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes” e a legalização ou ampliação de práticas pregressas ilegais devido à dificuldade atual do acesso à Justiça do Trabalho pelos/as trabalhadores/as provocada pela contrarreforma.34 “A [contrar]Reforma de 2017 alterou pelo menos 16 aspectos da regulamentação da jornada, na perspectiva de flexibilizar as condições de uso do tempo de trabalho em favor das empresas, de modo que a elas seja possível pagar somente as horas e minutos efetivamente trabalhados” (KREIN, 2019, p. 138).
O aparato político-ideológico garantiu a transformação dos processos produtivos, assim como das relações de trabalho, com o aumento da informalidade, da precariedade e da terceirização, reduzindo as formas de contratação da força de trabalho com garantia de direitos trabalhistas.
Um cenário desalentador, a partir das Jornadas de junho de 2013, em que as rebeliões aglutinaram forças para legitimar o movimento golpista em 2016. Fortalecidos, os setores hegemônicos das burguesias nativas heteronômicas direcionaram as forças políticas para a direita, com um aumento expressivo de posicionamentos ultraconservadores, assim como protofascistas e fascistas. Um novo momento da contrarrevolução promove o recrudescimento do perfil plutocrático das burguesias brasileiras e faz com que a democracia de cooptação ceda paulatinamente lugar à democracia restrita,35 por meio de “louvores neopentecostais” saudosos da ditadura empresarial-militar.
A mistificação da precarização das condições de trabalho e/ou a ausência de emprego impõe às classes trabalhadoras uma adesão por falta de opção e/ou por uma falsa convicção, tornando-as “empreendedoras de si” ou escravas ou voluntárias a serviço do capital. Essas estratégias pedagógicas, como a falaciosa ideia de autonomia do “empreendedorismo”, atendem tanto a agenda dos organismos internacionais como da ação teológico-política da “teologia da prosperidade”. Porque as estruturas empresarial-religiosas neopentecostais têm influenciado significativa parcela das franjas mais depauperadas das classes trabalhadoras, com o incentivo ao “empreendedorismo” pelos/as pastores/as. Essas estruturas investem com eficácia em comunicação de massa, conseguindo criar por intermédio dos seus rituais religiosos e “da prestação de serviços e do espírito de pertencimento ao grupo - solidariedade comunitária em territórios marcados pela violência e pela ausência de perspectiva de futuro para maior parte de seus habitantes” (MATTOS, 2017, p. 147).
As estratégias político-ideológicas consolidam-se mediante os aparelhos privados de hegemonia do capital, como pela intervenção estatal, pela grande mídia, pela igreja, via atuação das empresas36 “cidadãs e verdes”, e, obviamente, nos próprios espaços de trabalho com uma política gerencial administrativa que captura a subjetividade dos/as “colaboradores/as”, além da sua materialidade.37 Somado a isto, acirra-se um projeto de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, com o objetivo de maior apassivamento das classes trabalhadoras na perspectiva de um “novo consenso” com repressão.
Nesse sentido, as contrarreformas são implementadas sob a ideia de “modernização” das leis para a flexibilizar o assalariamento, usar a força de trabalho por meio de voucher ou aplicativos (uberização), com a ilusão de autonomia e de liberdade aos/às trabalhadores/as38.
Os retrocessos em curso39 têm por base a política macroeconômica ultraneoliberal, que privilegia uma política monetária, fiscal e cambial a favor da hegemonia do capital portador de juros e, consequentemente, do capital fictício, que aprofundam as contradições das leis tendenciais capitalistas e são ampliadas pelas particularidades da dependência. Um movimento contrarrevolucionário prolongado e permanente40, que, no presente período, busca expropriar mais direitos para succionar todo o mais-valor socialmente produzido, acumulado no fundo público. Indicando a característica antinacional e antissocial das burguesias brasileiras41 na direção de silenciamento do dissenso para aumentar as possibilidades de exploração do mais-valor, como impulsionar os processos de expropriação.
As consequências dessa política de “ajuste fiscal” para países de capitalismo dependente, pela via das expropriações de direitos,42 são: o expressivo desemprego, a maior precarização das condições de exploração da força de trabalho e a miserabilidade.
Como síntese da análise acima, elencando outros elementos, destacamos que: (A) o modo de ser do capitalismo pressupõe as expropriações, o aumento da produtividade e a intensificação da exploração do trabalho, condicionando as relações de produção e de trabalho a permanentes reestruturações, com perdas de direitos e rebaixamento43 da remuneração da força de trabalho. Cabendo às classes trabalhadoras a luta e a resistência, apesar das leis tendenciais da acumulação provocarem a fragmentação da classe e o enfraquecimento das possibilidades de enfrentamento. Um outro fator importante de se destacar, ainda que não tenhamos desenvolvido é que sempre quando pensamos e analisamos condições de trabalho temos como “parâmetro” a relação de “emprego padrão” do Welfare State na Europa Ocidental. E essas condições conquistadas pelos/as trabalhadores/as foram resultantes das lutas sociais em determinado período histórico e localização na divisão internacional do trabalho de alguns países industriais,44 podendo ser considerada como uma “anomalia histórica”45; (B) já o percurso de construção de direitos do trabalho e de patamares mínimos de dignidade, postos na Constituição Federal de 1988, tentaram buscar alicerces amparados a uma relação de “emprego padrão” que nunca conseguiu sua predominância na realidade brasileira, devido às especificidades da dependência. Uma dignidade que aqui pensamos como determinada pelas conquistas sociais e estabelecida, juridicamente, acompanhando os elementos históricos e morais do valor da força de trabalho das classes trabalhadoras no Brasil.
Na letra da lei, as conquistas de ampliação de preceitos mínimos de dignidade do trabalho caminharam, concomitantemente, ao desmonte daqueles “parâmetros” alcançados no período da chamada “três décadas de ouro” do capitalismo na Europa Ocidental. Cabe destacar, como apontado em (A), que aqueles “parâmetros” foram resultantes das lutas sociais, com grande influência da pressão existente do bloco soviético. As classes trabalhadoras daqueles países conseguiram garantir patamares de direitos e acesso a um percentual da riqueza socialmente produzida, por meio de salários indiretos. Essas conquistas também só foram possíveis devido às próprias condições dos países de capitalismo central, por meio do barateamento do valor da força de trabalho nacional às custas da redução do valor de bens de consumo oriundos dos países de capitalismo dependente, conseguiram, portanto, garantir meios de exploração do mais-valor relativo e aumento do poder de compra para a força de trabalho nacional.46
Diferentemente é o ciclo do capital nas economias dependentes, porque além da cisão existente entre a produção e as necessidades das massas, está permeado pela interconcorrência de capitais monopólicos externos que possuem nível elevado de produtividade.47 E os capitais locais de médio e pequeno porte se não utilizarem nenhum mecanismo compensatório sucumbem ao processo de centralização dos capitais monopólicos, quando não alcançam o mesmo nível de produtividade.48 Portanto, para tal propósito utilizam-se do aumento da intensificação do trabalho, “prolonga-se a jornada laboral e/ou simplesmente se rebaixa forçosamente o salário do trabalhador sem que essa redução salarial corresponda a um barateamento real da força de trabalho.” Assim, de acordo com Marini, origina-se a superexploração da força de trabalho, que significa a remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor. (MARINI, 2012, p. 30).
Para a superexploração da força de trabalho se estabelecer é imprescindível também que os/as trabalhadores/as estejam “em condições difíceis para reivindicar remunerações que compensem o desgaste de sua força de trabalho. Essas condições difíceis podem resultar, e resultam frequentemente, de fatores extraeconômicos, derivados da ação estatal”. (MARINI, 2012, p. 31).
Além da existência de um exército de reserva permanente composto pelos/as negros/as, que auxilia no pagamento abaixo do valor da força de trabalho geral. A superpopulação relativa se eleva tanto com as constantes expropriações como com a introdução de novas técnicas de produção com o objetivo de elevar a produtividade. E “essa introdução de tecnologia corresponde a agilização de formas de superexploração que implicam também arrancar mais produção dos operários já em funções.” Marini ressalta que ainda que esse processo diminua a velocidade de crescimento do exército de reserva ativo, aumenta-se o crescimento do exército de reserva geral, que se consolida no desemprego ou no chamado subemprego, “mas, em qualquer caso, é um exército de reserva que faz minguar a capacidade reivindicativa da classe operária e propicia a superexploração dos trabalhadores.” (MARINI, 2012, p. 31).
Nesse sentido, reiteramos que a condição da dependência mediada pelos elementos da escravidão colonial, tal como se configura o racismo estrutural, coloca a precariedade das condições de trabalho como constitutivas, vistas na reinvenção de formas transitórias de trabalho ausentes de direitos sociais; e (C) já possuíamos uma heterogeneidade e uma precariedade profunda das condições de trabalho, mesmo que tenha ocorrido uma formalização do trabalho nos governos do PT, houve uma estratégia pedagógica que garantiu uma “cortina de fumaça” para a precarização, sob o legado do “empreendedorismo” e de laços de solidariedade individuais com o voluntariado. Como o visto na intervenção das empresas nos aparelhos privados de hegemonia “com teor diretamente apassivador (que se apresentam como ‘democráticos’) contribuiu diretamente para o rebaixamento do valor da força de trabalho, pois, na prática, introduziu em grande escala o trabalho sem direitos (por tarefa ou ‘voluntariado’)” (FONTES, 2020, p. 32-33). No atual período histórico, deparamo-nos com a devastação dos direitos dos/as trabalhadores/as viabilizadas pelo ingresso “massivo de novos trabalhadores resultante de processos múltiplos de expropriação, prosseguindo a que incide sobre os povos do campo em escala mundial, acrescida da retirada de direitos que eram vividos como se fosse propriedade das classes trabalhadoras.” (FONTES, 2020, p. 22).
3 Superexploração da força de trabalho: algumas considerações
Os governos de frente popular e democrática 49 e suas estratégias de encantamento, integradas ao projeto internacional de desenvolvimento, garantiram um cenário de “consenso” e de destruição da imagem do que os partidos de esquerda representam. Parece que o partido de “esquerda da ordem” foi necessário para reacender o terreno fértil para práticas políticas autocráticas, violentas, reacionárias, antinacionais e antissociais na implementação da atual política ultraneoliberal.
Do século XIX aos dias de hoje, a construção do solo histórico da superexploração e da precariedade se renova a cada novo período do capitalismo. A fase contemporânea - iniciada nos anos 80 do século XX, na Europa Ocidental e EUA, e aqui nos anos 90 - trouxe elementos que, de imediato, evidenciaram a precarização e o sucateamento dos direitos e serviços sociais, mas a efervescência social de enfrentamento às políticas macroeconômicas neoliberais indicou a necessidade de estratégias de “consenso” para garantir a continuidade dessas políticas. Para, dessa forma, suprir os problemas da superacumulação e garantir concretude a uma realização antecipada de mais-valor.
Nesse caminho, houve maiores e profundos processos de expropriação em diversas frentes sob o véu de uma suposta liberdade, com um nítido rebaixamento da remuneração da força de trabalho. Indicando uma estratégia que, a priori, surtiu efeito: uma suposta “liberdade” de vender a sua força de trabalho fora dos muros da empresa, não exige os mesmos direitos que daqueles/as que vendem sua força de trabalho nos limites da empresa. Até porque, enquanto “empreendedores/as”, supostamente donos/as dos seus próprios negócios, teriam que arcar com as despesas de sua proteção social. Hoje, o discurso ultraneoliberal é a “escolha entre mais direitos ou emprego”.50
A liberdade e a igualdade51, na construção e no desenvolvimento da sociabilidade burguesa, sempre versaram os propósitos da expropriação sob bandeiras “democráticas”, com mazelas para os/as expropriados/as e, posteriormente, explorados/as por terem apenas sua força de trabalho para sobreviver.
No caso brasileiro, foi contundente a política de geração de emprego e renda nos governos do PT, que, através da mistificação da precarização, trouxe a bandeira da liberdade e da “igualdade de oportunidades” articuladas às políticas compensatórias de assistência social. Na verdade, a política de geração de emprego e renda tornou-se também uma política compensatória de garantias mínimas de proteção social, que muitas das vezes os/as trabalhadores/as não conseguem garanti-la.52 É importante ressaltar que, seguindo as cooperações técnicas com organismos internacionais e cartilhas do Banco Mundial, a política de geração de emprego e renda esteve perfeitamente articulada às estratégias de autorresponsabilização dos indivíduos pela sua “empregabilidade” e pelo seu “empreendedorismo”.
Essas estratégias de autorresponsabilização também trazem a objetividade de revelar que o “Sol não brilha para todos/as”, e aclaram toda a degradância e jornadas exaustivas53 exigidas dos/as trabalhadores/as para conseguirem sua subsistência. Portanto, a degradação de toda a vida social indicou a insatisfação com os rumos frente àqueles governos que haviam se elegido em nome do conjunto das classes trabalhadoras.
A direção para uma renovação de caminhos reacionários e fascistizantes se apresentaram neste cenário de aprofundamento da crise. Com a evidência de pensamentos reacionários e irracionais, constitutivos da nossa formação sócio-histórica, - desde o racismo científico54 e suas políticas eugênicas, passando pelos períodos ditatoriais chegando ao fundamentalismo religioso neopentecostal - podem ser interpretados como particulares formas de expressão da própria decadência ideológica e irracionalidade burguesa,55 que perpassa a história da reação burguesa às lutas de classes e às crises capitalistas.
Construiu-se, dessa maneira, um solo histórico de trabalhadores/as maciçamente precarizados/as, sem direitos e aceitando patamares rebaixados de direitos, a posteriori massacrados por uma brutal contrarreforma trabalhista, em 2017, pela contrarreforma da previdência e pela “Lei da liberdade econômica” em 2019. Essa lei (13.874/19) aprofunda alguns retrocessos, porque altera o âmbito da Inspeção do Trabalho, tal como a dispensa de inspeção prévia, para verificação de segurança e saúde dos/as trabalhadores/as, para o início das atividades de uma empresa. Destaca-se que, em sua redação inicial de projeto de lei, pretendia restringir a apreensão do trabalho escravo contemporâneo, como apenas cerceamento da liberdade.56
O governo de Jair Bolsonaro57 para expropriar mais direitos, repetidamente, discursa: “com menos direitos obtém-se mais vagas de emprego”. Essa era a defesa da MP 905 “carteira verde e amarela”,58 a MP previa a restrição ou eliminação de vários direitos, como: a redução do recolhimento do Fundo de Garantia e a multa em caso de demissão; a cobrança de tarifa do/a trabalhador/a desempregado/a; eliminação do pagamento por jornadas em dias e horários extraordinários, inclusive fins de semana, entre outros. A MP criava a possibilidade de substituição de até 20% dos atuais empregados, com direitos regulamentados, por novos funcionários, com direitos reduzidos.
O histórico hiato existente entre os ganhos obtidos pelas classes trabalhadoras brasileiras e os elementos históricos e morais que compõem o seu valor, hoje, são aprofundados pela própria condição do capitalismo dependente, no cenário contemporâneo de hegemonia da chamada financeirização. As atuais políticas macroeconômicas direcionam-se para a permanente expansão e reestruturação produtiva, que amplificam a dependência técnico-científica por meio de expropriações das mais variadas formas.
Desde o Golpe parlamentar ao governo Bolsonaro, engendra-se uma política ultraneoliberal de “ajuste fiscal” com mais privatizações, contrarreformas e manutenção do “teto dos gastos” (EC 95/2016). No entanto, o discurso governamental, que era de ojeriza às políticas compensatórias de “alívio” da miséria, transformou-se neste período de crise do novo coronavírus. Porque agora faz a defesa do programa “Renda Brasil”, como uma forma de reorganizar programas sociais, como o Bolsa Família, o abono-salarial, o seguro-defeso e o salário-família. Esse giro deu-se por constatarem a possibilidade de aumento da base política de apoio ao governo devido à sua diminuição, consequente da retórica e práticas negacionistas diante da pandemia.59
Os retrocessos promovidos pelas contrarreformas trabalhistas e previdenciária transformaram o sistema de proteção aos/às trabalhadores/as. Com a pandemia do novo coronavírus aqueles/as minimamente assegurados/as por direitos trabalhistas, quando não simplesmente demitidos/as, tiveram seus contratos suspensos, suas jornadas e salários reduzidos. As franjas mais depauperadas das classes trabalhadoras sem vínculo empregatício reconhecido, sem qualquer direito assegurado, se evidenciaram nas filas intermináveis para tentar receber o auxílio emergencial e alargaram o exército disponível do setor de entregas por aplicativos, como uma das poucas ocupações possíveis no cenário das políticas de isolamento durante a crise sanitária e econômica.
O panorama da contrarrevolução preventiva e prolongada das frações burguesas imperialistas e brasileiras, direciona-se para o aniquilamento dos direitos sociais, inviabilizando uma ínfima repartição da riqueza socialmente produzida via fundo público. Com a evidência da característica racista, antinacional e antissocial das burguesias brasileiras, preocupada apenas com os “mais iguais entre os iguais”, neste cenário de crise aprofundada pela pandemia. O fascismo do atual governo expõe as particularidades da nossa formação social e das construções contemporâneas de políticas de extermínio de negros/as, indígenas, como também dos segmentos mais empobrecidos das classes trabalhadoras. O genocídio e a indiferença com as milhares de mortes dos “de baixo” foram emblemáticos do sentido antinacional burguês nesta pandemia do novo coronavírus. Assim como o sentido antissocial da expropriação do excedente econômico com a explosão da precarização do trabalho mediante o aumento da inserção laboral nas plataformas digitais, como vimos no caso dos/as entregadores/as de aplicativos e de profissionais da saúde sem equipamento de proteção individual e condições mínimas de dignidade.
A atual depauperação dos/as trabalhadores/as e as milhares de vidas ceifadas são insignificantes para as burguesias antissociais e antinacionais,que se transmutam do autoritarismo presidencialista ao fascismo.60 Interessa-lhes apenas o controle da nossa fala, dos nossos corpos e a abolição dos nossos direitos na atual mescla fundamentalista religiosa autocrática.
Em um cenário de incertezas dos rumos da condução contrarrevolucionária e da imprevisibilidade das lutas sociais de exasperação ou de arrefecimento, via novas estratégias de “consenso”, resta-nos a clareza da apreensão da destrutibilidade do capitalismo e, ao mesmo tempo, da capacidade civilizatória das lutas das classes trabalhadoras para a reversão das expropriações e para uma verdadeira emancipação. Florestan Fernandes (2011, p. 90-91) nos alertou da necessária “relação íntima, permanente e recíproca” da universidade com os/as trabalhadores/as, para aprendermos que a “pressão radical de baixo para cima” exige nossa reeducação e transformação da nossa própria natureza humana para tornarmo-nos, conjuntamente, uma força social revolucionária. Portanto, não apenas pesquisadores/as sobre o mundo do trabalho, mas que operemos pela “revolução do mundo pelo trabalho”.
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Notas
Notas de autor
Información adicional
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COMO CITAR (APA): Soares, M. (2020). Precariedade e mistificação da precarização: superexploração da força de trabalho. Vértices (Campos dos Goitacazes), 22(Especial), 667-686. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p667-686.