DOSSIÊ TEMÁTICO: VIOLÊNCIA DE ESTADO E POLÍTICA SOCIAL: ENTRE O APARATO ASSISTENCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL

O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro

Criminal resurgence amid the coronavirus pandemic in Rio de Janeiro

Aumento criminal en medio de la pandemia de coronavirus en Río de Janeiro

Ionara Santos Fernandes 1
, Brasil

O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, 2020

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2020 pelos Autores.

Recepción: 23 Agosto 2020

Aprobación: 16 Noviembre 2020

Resumo: A política penal ganha novos contornos no Rio de Janeiro durante a pandemia do novo coronavírus. O Estado manifesta seu direcionamento ultraconservador e punitivista para gerir a crise de saúde pública no precário sistema prisional, reduzindo direitos e expandindo a economia carcerária. O objetivo desse texto é refletir sobre alguns elementos introduzidos e/ou reafirmados durante a pandemia no sistema prisional, como o aumento dos gastos de familiares, que com as visitas suspensas, entregam mais alimentos e dinheiro; o trabalho voluntário exercido pelas presas na produção em massa de máscaras e a cogitação do uso de contêineres e alteração das normas de arquitetura prisional. Como metodologia, o estudo é bibliográfico e documental, esses últimos produzidos pelo MEPCT/RJ, órgão que monitora e fiscaliza espaços de privação de liberdade no estado, e apresenta indícios para pensar as novas dinâmicas no cárcere, de forma qualitativa. Ao fim, identifica-se a instrumentalização da crise de saúde mundial para a agenda de recrudescimento penal no Brasil, garantindo lucratividade e reprodução do capital.

Palavras-chave: Sistema prisional, Política penal, Coronavírus.

Abstract: Criminal policy takes on new shapes in Rio de Janeiro during the new coronavirus pandemic. The State expresses its ultra-conservative and punitive approach to manage the public health crisis in the precarious prison system, reducing the law and expanding the prison economy. The purpose of this text is to reflect on some elements introduced and / or reaffirmed during the pandemic in the prison system, such as the increase in family expenses, which with suspended visits, deliver more food and money, the voluntary work carried out by prisoners in the mass production of masks. and the consideration of the use of containers and alteration of prison architecture rules. As a methodology, the study used documents produced by MEPCT / RJ (institution that monitors and inspects places of deprivation of liberty in the state), and presents evidence to think of new dynamics in prison, along with a relevant review of literature to reflect on the issue. The paper also identifies the instrumentalization of the world health crisis for the agenda of criminal recrudescence in Brazil, guaranteeing profitability and capital reproduction.

Keywords: Prison system, Penal policy, Coronavirus.

Resumen: La política criminal toma nuevas formas en Río de Janeiro durante la nueva pandemia de coronavirus. El Estado expresa su enfoque ultraconservador y punitivo para manejar la crisis de salud pública en el precario sistema penitenciario, reduciendo la ley y expandiendo la economía carcelaria. El propósito de este texto es reflexionar sobre algunos elementos introducidos y / o reafirmados durante la pandemia en el sistema penitenciario, como el aumento de los gastos familiares, que con visitas suspendidas, entregan más alimentos y dinero; el trabajo voluntario que realizan los presos en la producción masiva de máscaras y la consideración del uso de contenedores y alteración de las normas de arquitectura carcelaria. Como metodología se utilizaron documentos producidos por MEPCT / RJ, órgano que monitorea e inspecciona los lugares de privación de libertad en el estado, y presenta evidencias para reflexionar sobre las nuevas dinámicas carcelarias, junto con la literatura relevante para reflexionar sobre el tema. Al final, identifica la instrumentalización de la crisis sanitaria mundial a la agenda del recrudecimiento delictivo en Brasil, asegurando la rentabilidad y la reproducción del capital.

Palabras clave: Sistema penitenciario, Política penal, Coronavirus.

1 Introdução

A pandemia do novo coronavírus no Brasil traz impactos diretos na gestão da política prisional e nas relações sociais em torno da população carcerária no país. É possível identificar o acirramento das perspectivas econômicas em torno da política penal justificado no controle da disseminação da doença nos espaços prisionais. O objetivo deste trabalho é trazer reflexões sobre o cenário encontrado até o momento no sistema prisional do estado do Rio de Janeiro.

Como metodologia, a pesquisa é de natureza bibliográfica e documental (MARCONI; LAKATOS, 2003; MINAYO, 1994). As fontes documentais são os relatórios produzidos e disponíveis publicamente pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ), órgão responsável pela fiscalização e monitoramento dos espaços de privação de liberdade no estado. Os documentos apresentados evidenciam diversas situações de alteração das dinâmicas institucionais no meio prisional em virtude da pandemia, permitindo uma análise qualitativa de um caso específico: o sistema prisional fluminense. Com isso, selecionamos situações específicas que apontam para as alterações que poderiam impactar diretamente no orçamento dos atores desse contexto.

Nesse sentido, o artigo abordará inicialmente a ascensão da política criminal e penal em meio ao neoliberalismo, compreendendo os elementos históricos, políticos e sociais. Em um segundo momento, apresentaremos um panorama dos momentos da Covid-19 no sistema prisional brasileiro. Por fim, refletiremos sobre os dados encontrados nos documentos do MEPCT/RJ sobre o cenário do sistema prisional no estado do Rio de Janeiro, salientando o impacto com as suspensões das visitas e a consequente oneração das famílias, o emprego de trabalho voluntário das presas e as propostas de transformações na arquitetura prisional, todos esses elementos justificados pela pandemia do novo coronavírus.

2 O recrudescimento penal no neoliberalismo

O endurecimento da política criminal e penal não é uma novidade no Brasil. O país já executa esse projeto há algumas décadas e com o passar dos anos são desenvolvidas novas tecnologias de encarceramento em massa, consolidando o aparato político, jurídico e social de aprisionamento dos pobres.

A política estatal de criminalização da pobreza, ou a gestão da miséria, se dá em duas modalidades organicamente articuladas e que conformam o que Wacquant classifica como Estado penal. O primeiro componente do Estado penal, menos visível, é a transformação da Assistência (e dos próprios serviços sociais) em instrumentos de controle e vigilância das chamadas “novas classes perigosas”, com o objetivo de fazer com que esse público aceite qualquer emprego, não importa quais as condições de trabalho e a remuneração que sejam oferecidas (comporiam medidas do workfare). […] O segundo componente do Estado penal é o encarceramento ou a “contenção repressiva” dos pobres. Essa ação atinge prioritariamente negros e jovens de bairros pobres e a justificativa ideológica subjacente é a “guerra contra as drogas” […] (MAURIEL, 2016, p. 20-21).

Gerir a pobreza no neoliberalismo, administrando políticas de assistência social e criminal, é a principal estratégia utilizada para garantir a reprodução do capital. A relação entre as políticas penal e social redimensiona os resultados das crises capitalistas, a partir dos anos de 1970, e as relações capitalistas começam a se reproduzir com base na expansão de medidas de punição intensiva para classe trabalhadora, nesse momento, exposta ao cenário de desemprego e subemprego.

As transformações do capitalismo contemporâneo e neste sentido, a refuncionalização do Estado, visando garantir a reprodução ampliada do capital, provocam profundas alterações no conjunto das políticas sociais. Nas últimas décadas e como parte de um mesmo movimento, a crescente expansão da política de assistência social articulada à ampliação da política penal, ocupa no Brasil, um destacado lugar nas formas estatais de gestão e controle da pobreza, do desemprego e da desigualdade social. (KILDUFF; SILVA, 2019, p. 620).

Essa relação de expansão, com a queda das políticas sociais e o aumento das políticas criminais, também entendida como declínio do Estado de Direitos e ascensão do Estado Penal, permite o reequilíbrio das taxas de lucro do capital, impactando diretamente no mundo do trabalho e na extração de novas rendas, como é possível apreender no percurso histórico e social das últimas décadas, proposto por Behring e Boschetti (2009). As autoras analisam os fatos e efeitos das grandes crises do capital, a ascensão do Welfare State e o seu declínio e os impactos desse percurso na construção do neoliberalismo no Brasil.

A agenda neoliberal apresentou diretrizes que previam o reestabelecimento do mercado, a elevação das taxas de juros, o enfraquecimento dos movimentos sindicais, a baixa dos impostos sobre altos rendimentos e greves, o aumento do desemprego e o corte nos gastos sociais e a consequente redução nas políticas sociais, por conseguinte, o aumento no processo de privatização e o crescimento do Estado Penal. E é com base no cenário mundial que Wacquant (2015) assegura que

[…] a nova organização punitiva do programa de bem-estar opera à maneira de um programa de trabalho para aqueles em liberdade condicional, projetado para empurrar seus “beneficiários” para os empregos da subpobreza que proliferam após o descarte do compromisso fordista-keynesiano. A difusão da insegurança social e a escalada das desordens na vida cotidiana, causadas pela dessocialização do trabalho assalariado e pela redução correlata da proteção social, por sua vez, foram detidos pela espantosa expansão do aparato penal. (WACQUANT, 2015, p. 89).

Entretanto, as especificidades do contexto sócio histórico brasileiro inscrevem o país em um percurso de imersão da escravização de pessoas negras e indígenas, afasta a perspectiva de um estado de bem-estar social propriamente dito, e possui uma longa trajetória de ditadura civil-militar, pautada na violência autoritária e cruel. Por isso, é necessário assumir que o Brasil, dentro de suas trajetórias, está fundamentado em uma relação de capitalismo dependente, cujo nosso status de país colonizado nos apresentou consequências políticas, econômicas e sociais, onde as forças produtivas não foram plenamente desenvolvidas, e a industrialização tardia tornou o país depende economicamente dos capitais externos e de suas tecnologias. Essa relação entre o esgarçamento do mundo do trabalho e a dependência de capital externo orienta as políticas internas, aprofundando a desregulamentação financeira e a mercantilização dos direitos. Esses fatores são centrais para pensar a realidade social e punitiva na qual estamos submetidos, com o estabelecimento dos ideários neoliberais, que precarizam as políticas sociais, regulamentam as atividades do terceiro setor e iniciam o processo de privatização no país, adaptando o Brasil à lógica passiva do novo capital.

Esse cenário nos insere na lógica de redução dos direitos sociais, pautado em uma política cada vez mais frágil, compensatória e pontual, justificada pela constante situação de crise fiscal do Estado, que aliada à despolitização de classe e à redução da capacidade organizativa da classe trabalhadora, experienciamos um processo de individualização árdua da questão social e, consequentemente, a judicialização das políticas sociais.

Neste contexto, se desenvolve um processo de contínua destruição de possível patamar de proteção social universal – ao proceder em intensas contrarreformas na previdência e na saúde – enquanto hiperdimensiona programas assistenciais de alívio à pobreza. De um lado, abre-se a possibilidade de investir capital excedente em nichos de mercados altamente potentes como a área de saúde e previdência – o que corresponde a responder ao processo de supercapitalização pela canalização de capital aos serviços sociais –, com sua patente privatização. Do outro, como medida de equilíbrio, recomenda-se aos Estados nacionais o desenvolvimento de programas assistenciais de alívio à pobreza. Estes programas, além de intervirem diretamente numa questão evidente e perigosa, passam a dar conta mais a miúde de uma camada expressiva da superpopulação relativa. (KILDUFF; SILVA, 2019, p. 621).

Essa superpopulação relativa ao mesmo tempo que pode ser assistida pelos programas da política de assistência social, que está altamente fragilizada, também pode ser alvo de uma outra política. A aliança entre a crise e desassistência resultam na edificação de uma estratégia de contenção da população desempregada e desassistida: a política de aprisionamento em massa.

Wacquant (2015) argumenta que o estado opera de formas na política de criminalização da pobreza, a primeira “consiste em reorganizar os serviços sociais em instrumentos de vigilância e controle das categorias indóceis à nova ordem econômica e moral” (p. 111) e a segunda, pautada em uma “política de contenção repressiva dos pobres é o recurso maciço e sistemático à prisão” (p. 113). Essa articulação tende a ser denominada como Estado Penal. Quando estrutura disciplinar em um determinado espaço visa conter e punir grupos populares, desapropriando seus direitos sociais básicos e submetendo à precarização do trabalho, em consonância com a ideologia da classe dominante sob a égide do ideário neoliberal.

Sua expressão no Brasil, foi organizada pelos processos de ampliações das legislações repressivas e punitivas e o papel da mídia, que reforça diariamente a necessidade de controle da violência, fundamenta no possível aumento e o direcionamento dos gastos estatais para a política de segurança pública, após o corte na área social. Esses fatores resultam no que Malaguti Batista (2012, p. 308) denomina de adesão subjetiva à barbárie que é a “tarefa conjunta de forçar as classes pobres para fora da assistência social e empurrá-la para o trabalho precário flexibilizado que passará por políticas de desqualificação e criminalização”. A autora defende que “A assistência social do estado Previdenciário transforma-se numa simbiose entre a regulamentação do trabalho esfacelado e a manutenção da ordem, dirigindo o poder punitivo aos pobres, olhados cada vez mais como inimigos, jogados para fora dos afetos e gastos do Leviatã patriarcal”. (MALAGUTI BATISTA, 2012, p. 310).

O Brasil dos anos 2000 vivenciou um cenário alterado, tanto das políticas sociais, como das políticas penal e criminal. Há um fortalecimento dos programas sociais, no entanto diversas estratégias no âmbito da segurança pública e da política penal são fomentadas, (re)produzindo a política de encarceramento em massa. Sob justificativa de uma “crise da insegurança”, com o aumento quantitativo da criminalidade, aliado a propulsão midiática exponencial das ações, a produção da era do superencarceramento é atenuada no Brasil, ainda que sob a ótica governamental de expansão dos direitos sociais.

Em que pese a implementação de políticas distributivas, a elevação dos índices de desenvolvimento humano em todo o país e a redução das desigualdades sociais, bem como a reorientação, ao menos no plano do discurso oficial do governo federal, das políticas de segurança para o foco da prevenção ao delito, chama a atenção o fato de que a população carcerária brasileira cresce de forma ininterrupta durante todo o período analisado. (AZEVEDO; CIFALI, 2015, p. 113).

O governo do Partido dos Trabalhadores (2003-2016) propôs uma reformulação da segurança pública, pautada no combate ao crime organizado e controle de armas, com vistas a denominada “segurança pública cidadã”. Na era Lula, a reformulação institucional da política foi implementada, no entanto, com a ascensão de Dilma Rousself, o tema foi secundarizado no processo eleitoral e nos anos seguintes, dado o baixo índice de aproveitamento dos objetivos da política. Ao mesmo tempo, nesse período, identifica-se a elevação das taxas de encarceramento, endurecimento das legislações penais e da atuação ainda mais punitiva do sistema de justiça criminal voltado para o aumento do aprisionamento (AZEVEDO; CIFALI, 2015).

No entanto, nos governos posteriores até o plano atual, o cenário é de total esgotamento dos programas assistenciais e a permanência e recrudescimento das políticas de segurança, criminais e penais. O controle dos pobres, dado o contexto de enxugamento dos gastos públicos sociais, se estabelece e se fortalece nas ações de encarceramento e enrijecimento das estratégias penais, como o que se concretiza com a aprovação do chamado pacote anticrime, que alterou no final de 2019, um conjunto de legislações penais, prevendo por exemplo, o aumento da pena máxima de prisão e mudanças para progressão de regime e liberdade condicional mais gravosa aos presos e presas.

Nesse sentido, Wacquant (2015) traz elementos que colaboram para o debate de reafirmação da política de encarceramento e sua lucratividade. O autor afirma que o encarceramento da miséria impõe gastos inimagináveis à gestão, que vão desde de investimentos em alimentação e serviços médicos aos presos, passa pela construção da infraestrutura, reverbera nas despesas coletivas suplementares e ainda impacta nos efeitos financeiros da pena no espaço exterior, incidindo na interrupção das trajetórias escolares e profissionais e no ônus familiar, que com a prisão, precisa girar a renda, agora ainda mais fragmentada, também para a subsistência do preso.

Ademais, as empresas de construção e de gestão de prisões não são as únicas a lucrar com a hiperinflação carcerária estadunidense. Todos os setores de atividades suscetíveis de fornecer bens e serviços às instituições de encarceramento estão envolvidos, do seguro à alimentação, passando pela arquitetura, os transportes, a telefonia e as tecnologias de identificação e vigilância. (WACQUANT, 2015, p. 288).

Logo, a prisão é altamente lucrativa e quanto maior a sua população, maior são os lucros que ela oferece. No Brasil, mercantilizam-se os serviços e a execução prisional. A alimentação, a limpeza, os sistemas tecnológicos de monitoramento e informação são serviços exercidos por empresas privadas, isso sem falar na completa privatização de unidades prisionais em alguns estados da federação. A afinação entre as estratégias sociais e penais reproduzem a lógica do projeto neoliberal. Desmonta a política de assistência social, mantém o desemprego, precariza as relações de trabalho e, por fim, criminaliza a miséria.

Nesse sentido, com a vasta população prisional que o Brasil já detém, grande parte composta por presos provisórios, que não tiveram condenação e, portanto, podem ser inocentados dos crimes que lhes foram atribuídos, as unidades prisionais são superlotadas. Não suficiente, as condições estruturais são precárias e o acesso aos direitos sociais limitados. Essa realidade foi fortemente impactada com o advento da pandemia do novo coronavírus no país, como veremos a seguir.

3 Pandemia do novo coronavírus e a prisão

Um novo vírus e uma nova doença impactam o cenário mundial no final de 2019 e redobram suas dimensões, quando em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declara que estamos vivendo uma pandemia. Medidas emergenciais começam a ser elaboradas e implementadas em vários países. Como a Covid-19 carece de estudo e vacina, as melhores estratégias para a contenção do vírus são: o distanciamento social, a higienização constante das mãos, a adoção de etiquetas respiratórias e o uso permanente de máscaras. Essa realidade instaurou uma grave crise de saúde pública no Brasil. O Sistema Único de Saúde embora seja universal, nunca atuou em sua plenitude no país, e o desmonte já implementado na política ficou ainda mais aparente na pandemia.

Enfim, a pandemia Covid-19 chega ao Brasil, que com sua histórica desigualdade social e com anos de destruição do SUS (mas que não podemos ignorar a existência de resistências, como trataremos adiante), coloca no horizonte imensas dificuldades de se pensar um futuro tranquilo para esse quadro desolador que a pandemia tem gerado nos países onde, antecipadamente, já passou. (MATOS, 2020, p. 2).

Medidas emergenciais, nesse âmbito, foram elaboradas e adotadas como forma de conter a disseminação e evitar as possíveis mortes em virtude da doença. Construções de hospitais de campanha, compras de respiradores, contratação de profissionais da saúde, aquisição de outros materiais hospitalares e equipamentos de proteção individual foram algumas ações executadas pelo poder público e iniciativa privada, com o objetivo de diminuir o impacto na rede pública de saúde.

É evidente que essas ações não foram implementadas de forma linear e a contento em todos os espaços. A pandemia do novo coronavírus e a crise da saúde pública, potencializaram a visibilidade do cenário de desigualdades sociais em todos os âmbitos da vida pública e privada. Trouxeram desafios, questionamentos e vivências que a maioria da população jamais experienciou.

Em algumas situações, a quarentena criada pela pandemia nos aproximou dos nossos familiares, os de perto e os de longe, nos colocou em casa e possibilitou conhecer com mais profundidade nosso espaço, explorou nossa capacidade culinária, nos submeteu à possibilidade de aprofundamento dos saberes escolares/científicos, reelaborou as formas trabalho e emprego, utilizou diversas formas de interação com a cultura, tornando nossa maior fonte de diversão e lazer, possibilitou o conhecimento do nosso corpo físico incluindo atividades e exercícios físicos em casa e, principalmente, fez com que nos aprimorássemos no uso das tecnologias e das redes sociais. Todas essas medidas foram tentativas de cuidar da saúde física e mental em tempos de confinamento.

Contudo, a quarentena não possibilitou o mesmo efeito a todos. Essa relação é tão desigual que o termo “confinamento” nunca foi submetido a tantas narrativas distintas. Disputam sua apropriação como direito, dever e até privilégio. Direito em estar confinado, seria a garantia do seu bem-estar e gozo de sua saúde física permanecendo em sua residência, diminuindo assim as chances de contaminação. Por outro lado, o dever do confinamento revela a obrigatoriedade do sujeito em permanecer em casa, com o objetivo de diminuir o convívio social, com vistas a reduzir a circulação do vírus e consequentemente a propagação da doença. Já o confinamento como privilégio destaca as necessidades que diversos grupos populacionais têm de permanecer em circulação, como os profissionais de saúde, os trabalhadores de serviços essenciais, como mercados, farmácias, transportes públicos, trabalhadores informais e o aumento do trabalho precarizado de entregas por aplicativo. Para todos esses grupos, o confinamento inexiste e, por isso, é entendido como privilégio.

Todavia, as disputas pelo termo, em prol da saúde, não consideraram um tipo de confinamento exercido por muitos anos no mundo: a prisão. O aprisionamento é um tipo de confinamento que foge de todas as ideações positivas construída na pandemia sobre essa expressão. A prisão brasileira não garante o distanciamento social, o cuidado permanente com a higienização das mãos e tampouco, oferece possibilidades de reconfiguração do exercício dos direitos sociais básicos.

Ademais, as prisões brasileiras, historicamente, são conhecidas pelos seus ambientes insalubres, suas celas superlotadas, seus baixos contingentes de servidores, combo este reconhecido como um “estado de coisas inconstitucional”. Nesta situação extravagante, pessoas presas estão expostas a maiores riscos e nesse contexto, deixar de proteger as pessoas privadas de liberdade de uma doença grave por falta de precaução ou diligência pode culminar na institucionalização de maus tratos ou mesmo tortura. (CORDEIRO et al., 2020, p. 9).

As prisões no Brasil oferecem um ambiente contrário a todas as medidas de contenção do novo coronavírus recomendadas pelas comunidades científicas mundiais. As unidades prisionais no país são identificadas como locais superlotados, com condições estruturais precárias e insalubres, com restrição ou limitação de acesso a direitos básicos como água, alimentação, higiene e saúde.

O país possui a terceira maior população prisional do mundo, contudo o número de vagas não corresponde ao quantitativo populacional aprisionado. Segundo os dados do INFOPEN 20191, o Brasil conta com 442 mil vagas, enquanto a população privada de liberdade chega a 755 mil, um grande deficit que promove a superlotação das unidades.

Os ambientes prisionais não possuem ventilação, aeração e iluminação adequada, a falta de conservação das estruturas potencializa a umidade e o mofo. A escassez de água e a ausência de saneamento básico apropriado contribuem para a dificuldade de higiene local e pessoal, bem como a fragilidade na distribuição de materiais que auxiliam na limpeza. “As prisões e carceragens são ambientes fechados onde as pessoas (incluindo funcionários) vivenciam espaços altamente adensados, inviabilizando uma das orientações mais básicas para enfrentamento da nova Covid-19: o distanciamento social.” (CORDEIRO et al., 2020, p. 24)

Não suficiente, o acesso aos direitos básicos é restrito. A distribuição constante de água potável é quase inexistente, as refeições têm baixa qualidade nutricional, os alimentos apresentam condições de ingestão duvidosas, os acessos a materiais pessoais, em geral, são ofertados majoritariamente pelos familiares de presos e presas.

O acesso ao atendimento, acompanhamento e tratamento de saúde também é desafiador. Em 2014, foi criada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) com o objetivo de estabelecer um fluxo de acesso à atenção básica de saúde aos presos e presas, com referência na rede pública de saúde extramuros. Todavia, diversos estados e municípios ainda não fizeram adesão à política, o que faz com que o atendimento à saúde ainda permaneça restrito ao aparato interno do sistema prisional, quando há.

O acesso à saúde intramuros é identificado por uma escassez de insumos, medicamentos, ambientes adequados e profissionais da área da saúde. Além disso, a saúde da população carcerária já está acometida, historicamente, por doenças infectocontagiosas e crônicas, como a tuberculose, infecções cutâneas, HIV e demais doenças sexualmente transmissíveis, bem como também, diabetes e hipertensão.

Todos esses fatores durante a pandemia do novo coronavírus potencializam as chances de disseminação do vírus, adoecimento sem o cuidado devido e a consequente produção de mortes em decorrência das complicações da Covid-19. Como se não fossem suficientes todos esses elementos, no Brasil o período de pandemia tem sido utilizado como justificativa para elaboração de novas leis e implementação de práticas, novas e antigas, que contribuem para a reafirmação de um estado punitivo, mantendo o projeto de fragilização da política de assistência social e aposta em práticas que reafirmam o recrudescimento penal.

4 O gerenciamento da crise de saúde pública no sistema prisional e seus impactos no Rio de Janeiro

O sistema prisional do Rio de Janeiro possui 54 unidades alocadas em diferentes municípios, majoritariamente na capital, mas com espaços na região metropolitana, sul, norte e noroeste fluminense. Com capacidade de cerca de 28.000 presos, abrigava antes da pandemia quase 52.000 internos, ou seja, unidades superlotadas e em condições estruturais precárias.

O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro é um órgão estadual criado pela Lei nº 5.778/2010, fruto do Protocolo Facultativo à Convenção contra Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes das Nações Unidas (OPCAT/ONU), no qual o Brasil é signatário desde 2007.

O órgão tem a função de fiscalizar os espaços de privação de liberdade no estado, elaborando relatórios e documentos a partir da realidade identificada, construindo recomendações cabíveis aos órgãos competentes que versem sobre uma política de prevenção e combate à tortura.

Durante a pandemia, o Mecanismo interrompeu as fiscalizações in loco e implementou estratégias de monitoramento remoto, a partir de articulações e reuniões sistemáticas com os órgãos estatais, instituições da sociedade civil, movimentos sociais e rede de familiares. Embora a principal ferramenta de atuação do órgão estivesse suspensa, o MEPCT/RJ permaneceu acompanhando e elaborando relatórios parciais sobre o impacto da Covid-19 no sistema prisional do Rio de Janeiro, com atualização semanal.

Com base no acompanhamento do MEPCT/RJ, no qual faço parte da equipe, e a partir dos documentos elaborados pelo órgão durante a pandemia, consideramos relevante trazer alguns elementos sobre essa dinâmica atual que impacta não só na vida dos presos e presas, mas também de seus amigos e familiares.

O primeiro grande impacto foram as suspensões das visitas através do Decreto Estadual nº 46.970, de 13 de março de 2020. O texto informava a suspensão pelo prazo de 15 dias, sob justificativa de interesse da coletividade na prevenção do contágio e no combate a propagação do coronavírus. O decreto é atualizado periodicamente, o que resulta em cerca de cinco meses com visitas suspensas, incluindo a visita íntima, até agosto de 2020.

É evidente que a suspensão das visitas é uma medida sanitária importante dentro desse contexto, entretanto, com ela vieram práticas que impactam a rotina do sistema de outras formas, por exemplo, a incomunicabilidade. Podendo ser entendida como prática de tortura, a ausência completa de comunicação tem sido a realidade de presos e presas com o meio externo. Ainda que as cartas sejam um meio de comunicação legal, a prática foi estabelecendo dificuldades tanto para o recebimento quanto para o envio das cartas entre internos e familiares. E a ausência de informação sobre a realidade intra e extramuros causa sofrimento imensurável, sobretudo durante a pandemia com o grau de óbitos que acontece no Brasil.

Ressalta ainda a vedação à prática de corte completo com mundo externo e incomunicabilidade, sendo necessária a manutenção de contato com seus familiares, especialmente pelos potenciais danos agravados que a pandemia pode gerar nos presos e presas. É necessário sedimentar que a OMS deixa marcado: a pandemia de Covid-19 não pode servir como justificativa para violação de direitos humanos daqueles que se encontram em privação de liberdade ou desrespeito às normas nacionais e internacionais que os protegem. (RIO DE JANEIRO, 2020, p. 5-6)

Outro fator que aumentou com a pandemia são os gastos orçamentários da economia doméstica dos familiares com os presos. Houve o aumento de demanda por “custódia”, sacolas com os pertences alimentares e higiênicos entregues aos presos pelas famílias. Não suficiente em abril de 2020, foi expedida uma comunicação interna da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP/RJ) autorizando o recebimento de 80% do salário mínimo para os presos, entregue pelos familiares, para utilização exclusiva nas cantinas das unidades prisionais. Esse ato ocorreu na sequência da homologação do resultado da contratação emergencial para exploração comercial das cantinas.

As cantinas são conhecidas no sistema por seus valores abusivos, antes da pandemia, ensejando inclusive no fechamento de diversas unidades em virtude dessa prática. Além disso, essa ação poderá reafirmar a desigualdade no interior do sistema prisional, quanto o acesso a bens materiais e alimentação de presos e presas, se pautando na realidade socioeconômica de cada família. Uma vez que, no estado do Rio de Janeiro, os bens materiais e a alimentação adequada vem sendo fornecida por familiares historicamente, já que o fornecimento pela administração carcerária sempre foi precário.

Essa decisão da SEAP/RJ, fortalece a estrutura altamente lucrativa desses comércios e fragiliza ainda mais o orçamento doméstico dos familiares. Inclusive, é importante considerar que em maio de 2020 a mídia explicitou que familiares de presos, em todo o Brasil, tiveram o direito ao auxílio emergencial, política de transferência de renda emergencial oferecida pelo governo federal durante a pandemia, negado. A limitação não tinha amparo legal algum, e ainda assim, alguns cidadãos que requeriam o auxílio e tinham familiar preso ficaram com a demanda suspensa.

Todos esses elementos, entrega de um número maior de pertences durante a pandemia, em virtude da falta de recursos da SEAP/RJ em prover os materiais básicos para subsistência dos presos e presas durante a pandemia, incentivo à utilização dos produtos das cantinas altamente taxadas e a suspensão do acesso ao benefício de auxílio emergencial aos familiares de presos, denotam o projeto econômico em ascensão que oneram as famílias pobres e lucra com a permanência do encarceramento em massa durante a pandemia.

Outro fator que impacta na economia girada pelo sistema prisional durante a pandemia foi a absorção da mão de obra de presas para a produção de máscaras. Elas foram submetidas ao trabalho precarizado durante a pandemia, encarregadas, no mês março, de produzir cerca de 30 mil máscaras de proteção que seriam direcionadas para profissionais da segurança pública. Com a natureza de trabalho voluntário, ainda não se sabe se os dias trabalhados contariam em suas penas e quais as condições de trabalho a que estavam submetidas.

Rusche e Kirchheimer (2015) trouxeram no livro “Punição e Estrutura Social”, considerações importantes sobre o trabalho compulsório como método de punição lucrativo desde o século XV. Os autores chamam atenção para o objetivo desse tipo de trabalho, que deve ser entendido como “método de punição é o fato de ser uma iniciativa calcada em interesses somente econômicos e não penais”. (RUSCHE & KIRCHHEIMER, 2015, p. 85). Ainda que o lapso temporal seja outro, a essência financeira da utilização da mão de obra de presos e presas permanece, até porque não nos parece que a utilização da força de trabalho das presas para produção de máscaras, nesse contexto, teve como o objetivo o direito ao trabalho inerente à execução da pena. O trabalho não seria temporário e num período pandêmico, mas permanente e anterior a essa realidade.

Além disso, Melossi e Pavarini (2006) identificam que o trabalhador encarcerado é mais barato e muitas das vezes sua remuneração equivale a meandros de sua própria pena. Não obstante, o trabalho na prisão aparece como um privilégio para determinados presos e presas, e qualquer possibilidade de associação para luta de melhores condições de trabalho, torna-se limitada ou impossível nesse espaço, já que estão submetidos à disciplina severa. E do ponto de vista econômico, o trabalho na prisão é altamente lucrativo, as instalações, os custos com água e luz e a própria disciplina estão garantidas pela própria estrutura penitenciária.

Por fim, mas não menos importante, dentro da seleção que fizemos para demonstrar o impacto da pandemia, para além da saúde física, no sistema prisional, é importante considerar a proposta do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) que modificava a arquitetura prisional no país. Em maio de 2020, o órgão propôs a criação de estruturas alternativas com a justificativa de garantir o isolamento em tempos de pandemia, ofertando a possibilidade do uso de contêineres.

Alterar as normas de arquitetura prisional do Brasil durante a pandemia, é uma tática com consequências inestimáveis e incapaz de garantir a qualidade da saúde dos presos, pelo contrário, pode agravar sobretudo pelas condições disponíveis em um contêiner.

A solicitação é um debate antigo e já foi entendida como inconstitucional, mas a situação adversa de saúde pública retoma a proposta. A estrutura de um contêiner, pequeno e com condições mínimas de ventilação, aeração, iluminação e acesso à água, já é um elemento suficiente para a proliferação do vírus e o agravamento da contaminação, em virtude do seu tamanho reduzido e pouca aeração e ventilação. Essas condições, por si só já vão na direção contrária às orientações dos organismos sanitários e de saúde internacionais e nacionais.

Nesse sentido, grupos de pesquisadores de Universidades Públicas do Brasil especialistas em arquitetura prisional se reuniram e elaboraram uma nota técnica extensa analisando os impactos da Resolução nº 5, de 15 de maio de 2020, do CNPCP que propõe as diretrizes extraordinárias e específicas para a arquitetura penal durante a Covid-19. No documento, há ainda um parecer técnico detalhado sobre as condições impróprias do uso de contêineres com finalidades prisionais.

[…] todas as propostas apresentadas pelo DEPEN se configuram inadequadas para o fim a que se propõem, qual seja de estruturas provisórias para controle de contaminação por COVID19 do sistema prisional ou de qualquer outra enfermidade. Diante do exposto, espera-se que quaisquer propostas para provimento de celas temporárias, bem como de módulos de saúde, excluam o uso de contêineres como alternativa para arquitetura penal, tendo em vista os riscos que este tipo de estrutura representa para a saúde coletiva. Considerando-se ainda as incertezas sobre a duração do estado de pandemia da Covid-19 e a possibilidade de recorrência de situações semelhantes no futuro, enfatiza-se a necessidade de desenvolver o projeto de arquitetura penal pautado no extremo rigor técnico, constituindo-se como principal meio para garantir o uso eficiente dos recursos públicos, tanto na construção como na manutenção dos edifícios, em benefício da segurança e da saúde da sociedade como um todo. (CORDEIRO et al., 2020, p. 73-74).

Cabe ressaltar que a redação do texto da resolução vedou a possibilidade de uso dos contêineres para a finalidade proposta, por conta da grande pressão exercida por organismo e instituições da sociedade civil contrárias à ação. Porém, permitiu alterações nas estruturas, que as pesquisadoras revelam preocupação em virtude de sua inadequação, e afirmam que as alterações propostas colidem com as diretrizes da OMS para ambientes prisionais durante a pandemia.

A Resolução nº 5, de 15 de maio de 2020 dá orientações difusas, indo na contramão da demanda gerada pela pandemia que exige parâmetros precisos para controle da transmissão de doenças infectocontagiosas em unidades prisionais. Ao contrário de flexibilizar critérios, seria necessário especificá-los. Constata-se que a observância dos parâmetros da Resolução n° 9/2011, na sua integralidade, são requisitos básicos de ventilação e iluminação, assim como o dimensionamento mínimo, o que implica em taxa de densidade/m² dos espaços prisionais. No caso da pandemia da Covid-19, esses aspectos deveriam ser complementados levando em conta a alta capacidade de contaminação do vírus, com base nas estruturas e fluxos propostos pela OMS/WHO apresentados nesta Nota, cujas áreas devem ser projetadas proporcionalmente ao perfil e à quantidade de usuários, fluxos de ingresso e permanência, finalidade do estabelecimento e do espaço específico. (CORDEIRO et al., 2020, p. 47).

A tragédia está anunciada, as propostas, na verdade, garantem as alterações políticas necessárias para a continuidade de um projeto encarcerador e homicida, uma vez que, não há preocupação objetiva com as medidas de controle do vírus. As pesquisadoras recomendam que a Resolução nº 5/2020 do CNPCP seja revogada e haja um investimento em “estudos minuciosos sobre os impactos sanitários, financeiros e de gestão da política pública”.

Empreender recursos estatais em uma estratégia que beneficiaria empresas privadas e de construção civil em detrimento do prejuízo ao bem-estar e das garantias mínimas a população carcerária, reafirma a perspectiva repressora e punitiva do capital.

Todas as modulações apresentadas até aqui, não cogitaram a implementação da Recomendação nº 62/20202 do Conselho Nacional de Justiça. O documento recomendou aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas para prevenir a propagação da Covid-19, no sistema penal e socioeducativo, com o objetivo de proteger a vida e a saúde das pessoas privadas de liberdade. Lista assim, medidas que podem contribuir para a redução dos riscos, como a reavaliação de prisões provisórias, com prioridade a gestantes, pessoas com deficiência, idosos e pessoas que se enquadrem no grupo de risco, diz ainda que pessoas presas em unidades com ocupação superior a sua capacidade e presos preventivos com prazo de 90 dias excedido e com acusação de crimes praticados sem violência ou grave ameaça também deveriam ter sua condição de aprisionamento reavaliada, optando-se por penas em meio aberto. Todas são estratégias direcionadas para redução da população carcerária durante a pandemia.

Entretanto, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro foi palco de diversas estratégias que impediram as saídas de presos e presas em risco durante a pandemia. Não somente as decisões coletivas e individuais reforçaram a permanência da população prisional no interior das unidades, como também dificultaram o devido processo legal, com suspensões completas de atividades por longo período, dificuldades na implementação de software para processos virtuais, solicitação e adesão a audiências por videoconferência. O Poder Judiciário implementou ações que pouco convergiram para a proteção da população prisional durante a pandemia.

O desencarceramento era a única medida possível no contexto pandêmico prisional no Brasil. Todavia, os anseios econômicos e políticos são maiores e conseguem admitir apenas estratégias de massificação dos corpos aprisionados, utilizam a pandemia para justificar suas ações, enquanto promovem a política de morte não garantindo estratégias de contenção eficazes do vírus.

5 Considerações finais

Rusche e Kirchheimer (2015, p. 103) afirmam que o lucro é a estratégia mais importante no método punitivo de encarceramento atualmente para o capital. No Brasil, a pandemia do novo coronavírus é altamente rentável e lucrativa, inclusive, no sistema prisional. Os procedimentos apelidados de excepcionais, justificados pelo estado como emergência pública sanitária, sintetizam o aprofundamento da ideologia neoliberal que fortalece a política de encarceramento, ignorando os efeitos da Covid-19 nas pessoas em privação de liberdade.

Nesse texto, apresentamos alguns desses elementos extraordinários que disputam as diversas narrativas sobre a Covid-19 nas prisões. A incomunicabilidade, entendida aqui como uma prática de tortura, foi implementada e garantida por longos meses, sem um instrumento legal alternativo capaz de garantir o contato com as pessoas do meio externo. Ainda assim, objetivamente, familiares e amigos foram diretamente impactados com essa medida de impedimento do contato, ampliando a oneração na economia doméstica, que inclusive fortaleceu o comércio intramuros. Não suficiente, ainda foram utilizados a força de trabalho das presas para atividade voluntária de confecção de máscaras. E o DEPEN fez uma proposta de flexibilização das normativas de arquitetura prisional na pandemia, que era insuficiente para garantir o direito à vida e o acesso à saúde da população prisional.

A articulação de todas essas estratégias promove a agilidade da política de extermínio dos corpos jovens, pobres e negros e consolidam a política criminal em plena ascensão, tudo parte do recrudescimento penal que consegue se utilizar de todas as dinâmicas postas na sociedade, como forma de garantir a produção e reprodução do capitalismo.

Agradecimentos

Aos diálogos e debates diretos e constantes com os membros e membras do MEPCT/RJ.

Referências

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Notas

Notas de autor

1 Assistente Social. Mestre em Sociologia e Direito (2017) pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói/RJ – Brasil. E-mail: inr_fernandes@hotmail.com.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): FERNANDES, I. S. O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 22, n. Especial, p. 805-819, 2020. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p805-819. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15799.

COMO CITAR (APA): Fernandes, I. S. (2020). O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro. Vértices (Campos dos Goitacazes), 22(Especial), 805-819. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p805-819.

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