DOSSIÊ TEMÁTICO: VIOLÊNCIA DE ESTADO E POLÍTICA SOCIAL: ENTRE O APARATO ASSISTENCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL

Crise das democracias liberais: um futuro sem direitos? Elementos para uma perspectiva internacional acerca do projeto da extrema direita

Crisis of liberal democracies: a future without rights? Elements for an international perspective on the far right project

Crisis de las democracias liberales: ¿un futuro sin derechos? Elementos para una perspectiva internacional del proyecto de la extrema derecha

Elidio Alexandre Borges Marques 1
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil

Crise das democracias liberais: um futuro sem direitos? Elementos para uma perspectiva internacional acerca do projeto da extrema direita

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, 2020

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2020 pelos Autores.

Recepción: 20 Agosto 2020

Aprobación: 18 Diciembre 2020

Resumo: Este artigo tem por objetivo apontar elementos para a compreensão da presente crise das democracias liberais, em especial dos direitos como seu componente fundamental. Busca-se recuperar a história em seu sentido político de construção do modelo predominante no Ocidente e destacar algumas explicações da crise como sendo a crise do componente “liberal”, ou seja, o de garantia dos direitos. Este “modelo” nunca se apresentou como materialidade completa para vastas parcelas da população mundial e mesmo dos estados centrais. A violação de direitos por parte dos Estados foi sempre uma permanência na modernidade capitalista. Diversos estados no “centro” e na “periferia” passaram por períodos nos quais tais violações são especificamente reconhecidas, a exemplo dos fascismos europeus e das ditaduras latino-americanas. No momento em que ascendem forças políticas antiliberais, descomprometidas com os direitos formalmente assegurados nas ordens estatais e internacional, cabe refletir acerca da relação que estabelecem com esse passado de violações massivas de direitos, apontando-se que a fragilidade das promessas consubstanciadas em direitos, inclusive pela incompletude dos processos de superação das graves violações do passado, está na base da crise da democracia liberal contemporânea.

Palavras-chave: Extrema direita, Democracia liberal, Fascismo.

Abstract: This article aims to point out elements for the understanding of the present crisis of liberal democracies, especially of rights as its fundamental component. It seeks to recover history in its political sense of building the predominant model in the West and to highlight some explanations of the crisis as being the crisis of the “liberal” component, that is, the guarantee of rights. This “model” was never presented as complete materiality for vast portions of the world population and even of the central states. The violation of rights by the States has always been a permanence in capitalist modernity. Several states in the "center" and "periphery" have gone through periods in which such violations are specifically recognized, such as European fascisms and Latin American dictatorships. At the moment when anti-liberal political forces ascend, uncommitted to the rights formally guaranteed in state and international orders, it is worth reflecting on the relationship they establish with this past of massive rights violations, pointing out that the fragility of the promises embodied in rights, including due to the incompleteness of the processes of overcoming the serious violations of the past, it is at the basis of the crisis of contemporary liberal democracy.

Keywords: Far right, Liberal democracy, Fascism.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo señalar elementos para la comprensión de la actual crisis de las democracias liberales, especialmente de los derechos como componente fundamental. Busca recuperar la historia en su sentido político de construir un modelo predominante en Occidente y resaltar algunas explicaciones de la crisis como la crisis del componente “liberal”, es decir, la garantía de derechos. Este “modelo” nunca fue presentado como materialidad completa para grandes porciones de la población mundial e incluso de los estados centrales. La violación de derechos por parte de los Estados siempre ha sido una permanencia en la modernidad capitalista. Varios estados del "centro" y la "periferia" han pasado por períodos en los que tales violaciones son específicamente reconocidas, como los fascismos europeos y las dictaduras latinoamericanas. En el momento en que ascienden fuerzas políticas antiliberales, no comprometidas con los derechos formalmente garantizados en los órdenes estatales e internacionales, vale la pena reflexionar sobre la relación que establecen con este pasado de masivas violaciones de derechos, señalando que la fragilidad de las promesas plasmadas en derechos, incluyendo por lo incompleto de los procesos de superación de las graves violaciones del pasado, está en la base de la crisis de la democracia liberal contemporánea.

Palabras clave: Extrema derecha, Democracia liberal, Fascismo.

1 Introdução

Parece haver uma correspondência entre aquilo a que se tem chamado de “crise das democracias liberais” e a ascensão de forças descomprometidas com aquilo que foi pactuado como suas bases constitucionais: uma certa combinação entre a existência de estruturas e canais institucionais de participação na formação de governos e normas e a preservação de um conjunto de direitos e regras de funcionamento do sistema político, ambos tratados como fora do alcance das vontades eventuais dos grupos que podem se alternar no poder; como uma espécie de acordo prévio e “perene” na tradição liberal-contratualista. Essas forças serão tratadas aqui como “extrema direita” ou “direita radical” ou mesmo “direita antiliberal”, na medida em que afastadas do liberalismo político tal qual se apresenta. Apesar da diversidade do fenômeno, estão assim agrupadas por guardarem entre si o elemento comum de não partilharem – o que pode ir desde uma hostilidade aberta a tensões reacionárias – o compromisso com algumas das bases fundantes e legitimadoras dos modelos liberal-democráticos: o funcionamento de instituições supostamente garantidoras da prevalência da soberania popular e a persecução da preservação de um conjunto de direitos supostamente suficientes para delinear uma esfera de autonomia e dignidade para os indivíduos e grupos.

A contribuição que este artigo pretende fazer é para a compreensão da centralidade dos ataques aos direitos – seja a uma certa ideia geral que deles se faz e que é componente dos regimes políticos, seja a algumas de suas manifestações mais específicas – no que tem sido chamado de crise das “liberal democracias” – muitas vezes designadas simplesmente e imprecisamente de democracias – e que se expressa pela ascensão de forças que designaremos como de extrema direita ou antiliberais. O que se buscará mostrar é que essa crise coloca em xeque certa concepção e apreensão dos direitos tal qual se apresentaram na configuração dos regimes constitucionais liberal-democratas modelares do mundo ocidental. Buscar-se-á apontar elementos para o trabalho de compreensão sobre as relações entre o projeto político dessas forças e o “pilar” desse “modelo de regime” (a democracia liberal) correspondente à sua suposta capacidade de incorporar as demandas e aspirações sociais como direitos, ou seja, como parâmetros normativos abstratamente garantidores dessas proposições como supostamente alcançáveis e realizáveis a prazo – ainda que indefinido – no interior e vigência daquela estrutura jurídica e daquela ordem política nela expressa.

Com o objetivo de apontar a tensão e os possíveis choques entre as forças da extrema direita e os direitos como pilares das democracias liberais e a relevância política e social dessa incompatibilidade, este trabalho procederá, primeiro, a uma recuperação do conceito de democracia liberal e da história de sua constituição como “modelo” de regime político. Em seguida, se fará um breve painel factual – baseado em informações correntes e amplamente divulgadas e conhecidas pelos grandes meios de comunicação de circulação internacional – acerca dos fenômenos políticos em tela, quais sejam: a ascensão da extrema direita e suas propostas e medidas que entram em contradição direta com os já referidos direitos ou parte deles. Esse painel terá por objetivo apenas demonstrar a amplitude, relevância e potencial de impacto do fenômeno. Por fim, será realizada uma breve revisão bibliográfica centrada em alguns autores que tem tido significativa repercussão internacional no campo crítico sobre o fenômeno visado e que buscam explicá-lo: nomeadamente serão abordas as contribuições para essa compreensão de Enzo Traverso, Jacques Rancière e de Manuel Castells. Dessas contribuições se destacarão chaves teóricas que buscam explicar os processos e – do ponto de vista deste artigo – validar a compreensão de que é o “pilar” dos direitos o mais diretamente tensionado e ameaçado nos regimes políticos contemporâneos por essas forças políticas. Será destacado em sua dimensão de fato político, sem a possibilidade de sua recuperação em suas diversas dimensões, que uma das formas e bases do ataque da extrema direita aos direitos passa pela “revisão” e relativização do compromisso de não repetição das graves violações de direitos do passado (fascismos e ditaduras); compromisso este que é uma das formas dos regimes liberal-democráticos atuais.

2 A construção das democracias liberais como modelos: a centralidade dos direitos

2.1 A modernidade política e sua forma prevalecente

A ideia de “direito” no sentido subjetivo – como direito “de cada um” – é um pilar estruturante da modernidade política e jurídica. Chamamos de “Modernidade política” aqui ao conjunto de parâmetros, modelos e valores formalmente assumidos pela atividade política – busca, disputa e exercício do poder – que tem como ente central o Estado Moderno. Se do ponto de vista econômico tal configuração é caracterizada pela dominância das relações capitalistas, expressa-se no campo das instituições – políticas e jurídicas – pela centralidade desta entidade dotada de soberania – característica dos que não encontram nenhum poder que lhe seja formalmente superior e com total liberdade de organização e ação interna, ou, em termos usuais e consagrados, “detentora do uso legítimo da força”. O processo histórico concreto e contraditório – absolutamente imbricado com a ascensão e consolidação da burguesia – erigiu o Estado o “ente político” por excelência, o centro mais importante de poder e nele se moldou um modo de organização marcado por características modelares. Assim, essas características – que poderiam ser resumidas como sendo a de Estados-nação constitucionalizados, fortemente marcados pelo projeto liberal – erigem-se não só em realidades organizativas e políticas, mas também em “modelos” a serem supostamente alcançados, projetos regulatórios e legitimadores das realidades políticas que não os realizam completamente, não podem realizá-los completamente e mesmo quando apresentam desenvolvimentos que deles se afastam tendencialmente.

O “modelo” do estado constitucional liberal torna-se uma norma, um dever ser, um horizonte, com capacidade aglutinadora e legitimadora mesmo onde suas promessas estão ainda mais distantes de serem cumpridas que nos “centros” em que foram geradas. A “força” a e “importância” desse projeto – primeiro liberal e depois liberal-democrático, com a relativa, paulatina incorporação de um número maior de indivíduos à cidadania – não está, portanto, no fato de ser uma realidade em certos territórios – e sobretudo para certas camadas – mas por ser um parâmetro organizador da dinâmica política e das disputas ideológicas em crescentes regiões do mundo ao longo da afirmação da referida modernidade política. Uma abordagem exemplar desse processo é oferecida por Eric Hobsbawn no seu já clássico “A Era dos Impérios”:

Existia claramente um modelo geral referencial das instituições e estrutura adequadas a um país “avançado”, com algumas variações locais. Esse país deveria ser um Estado territorial mais ou menos homogêneo, internacionalmente soberano, com extensão suficiente para proporcionar a base de um desenvolvimento econômico nacional; deveria dispor de um corpo único de instituições políticas e jurídicas de tipo amplamente liberal e representativo (isto é, deveria contar com uma constituição única e ser um Estado de direito), mas também, a um nível mais baixo, garantir autonomia e iniciativa locais. Deveria ser composto de “cidadãos”, isto é, da totalidade dos habitantes individuais de seus territórios que desfrutavam de certos direitos jurídicos e políticos básicos, antes que, digamos de associações ou outros tipos de grupos e comunidades. As relações dos cidadãos com o governo nacional seriam diretas e não mediadas por tais grupos. E assim por diante. Essas eram as aspirações não só dos países “desenvolvidos” (todos os quais estavam, até certo ponto, ajustados a esse modelo ao redor de 1880), mas de todos os outros que não queriam se alienar do progresso moderno. Nesse sentido, o modelo da nação-Estado liberal-constitucional não estava confinado ao mundo “desenvolvido”. De fato, o maior contingente de Estados operando teoricamente segundo esse modelo, em geral o modelo federalista americano mais que a variante centralista francesa, seria encontrado na América Latina (2006, p. 41-42).

Esse mesmo processo histórico – marcado, como sabemos, pelos conflitos de interesses de classe e suas frações e demais disputas a elas ligadas – coloca no centro da configuração do modelo de Estado Moderno os direitos como fenômeno jurídico – parte fundamental das constituições e leis – mas também como fenômeno político-ideológico – parte fundamental do esforço de legitimação desses Estados e seus regimes, como forma das “promessas” de garantia de vida melhor e livre; uma refração institucionalizada das promessas emancipatórias componentes dos processos sócio-políticos que estiveram na base da construção.

Assim, temos uma consolidação da modernidade capitalista tendo como modelo uma forma de organização da vida institucional e política - do poder - que tem no seu centro um Estado soberano “garantidor” (utilizar-se-á a expressão “promitente garantidor” como mais precisa aqui) de direitos. Ao contrário do que havia acontecido até então nas formas de poder vigentes os indivíduos estavam mais uma vez subordinados a uma forma superior hierárquica com mais força que eles próprios, mas, desta vez, esta força seria em tese limitada por seus direitos e até mesmo asseguradora deles. O Estado na sua forma liberal configurar-se-ia, em tese, como sendo ao mesmo tempo aquela condensação do máximo poder político – único ente soberano – e limitado (autolimitado, no caso) por sua própria organização e pelo compromisso com os direitos dos indivíduos. A “obediência” passava a estar vinculada, mais que nunca, a uma “garantia”, uma “contraprestação” - como nos contratos da vida civil privada - nesta formulação e não mais a um beneplácito, a uma vontade caridosa ou protetora. Sabemos nós que esta visão continha alguma verdade apenas para homens burgueses – esse estado não assegurava nada a escravos, a mulheres, a colonizados em geral, a despossuídos e a trabalhadores – mas foi tratada e ficou como uma referência, um marco da organização política a ser seguida idealmente. Estava configurado o liberalismo político em sentido amplo, com suas promessas formalizadas em leis e sua cegueira seletiva para a materialidade da vida social: liberdade e igualdade no papel para todos, desigualdade na distribuição de propriedade, escravidão, colonialismo, diferentes formas de domínio, exploração e opressão na vida concreta. Ainda assim, formava-se uma diferença qualitativa em relação aos regimes anteriores, marcada inclusive pelo oferecimento de um horizonte de possibilidades em bom grau traduzido na noção de direitos.

2.2 Os direitos como promessas fundamentais do modelo

Os direitos consagrados pelas revoluções burguesas foram, sobretudo, os direitos civis, almejados por uma nova classe dominante desejosa de se livrar de obstáculos que a ameaçaram e atrapalharam antes. Assim, o fim do arbítrio – com julgamentos e decisões tendo que ser tomadas segundo leis, sendo as leis feitas pelos próprios representantes (“naturalmente” burgueses, em especial num primeiro momento) – era uma necessidade e uma vontade. Consagram-se os direitos que traçam em torno do indivíduo homem branco proprietário (tratado como modelo universal de “homem”) um círculo de proteção frente ao poder do Estado: a liberdade religiosa, o direito de ir e vir, a igualdade perante a lei, o direito ao devido processo legal, o direito de não ser morto arbitrariamente e – o que teve significativo papel histórico – o de não ser privado de sua propriedade pela mera vontade de qualquer governante. Na tradição do pensamento crítico, notadamente na tradição marxista, essa garantia do direito de propriedade ganhou forte centralidade no debate, o que se justifica pelo caráter decisivo que a propriedade privada – nomeadamente de certo tipo de bem – tem na configuração da dinâmica socioeconômica e na configuração de uma sociedade de classes. No entanto, parece importante, como faz, entre nós Carlos Nelson Coutinho, a exemplo de outros do campo crítico ao pensamento liberal, situar nitidamente e ao mesmo tempo tanto as limitações e contradições contidas na concepção dos “primeiros direitos”, como compreender a diferença entre a identificação da origem – em processos históricos liderados pela burguesia – com uma eventual natureza intrínseca burguesa e, portanto, dispensável ou desimportante para quem não pertence à classe dominante.

Foi precisamente a natureza privada desses direitos civis modernos que induziu Marx, em sua obra juvenil sobre A Questão Judaica, a caracterizá-los como meios de consolidação da sociedade burguesa, da sociedade capitalista. Não hesito em dizer que, em determinado e decisivo sentido, Marx estava certo. Tomemos como exemplo o modo pelo qual Locke (e as várias constituições que nele se inspiraram) tratou a questão da propriedade, apresentada como o direito natural fundamental, cuja garantia seria a razão essencial pela e para a qual o Estado existe. Locke começa definindo o direito de propriedade como o direito aos frutos de nosso trabalho, o que se choca claramente com a concepção feudal da propriedade segundo a qual essa resultaria de uma concessão do monarca; mas, logo em seguida diz que – com a invenção do dinheiro, que permite acumular o trabalho passado – tornou-se legítimo comprar a força de trabalho de outros, sobre cujos frutos teríamos também o direito de propriedade. Vemos aqui um claro exemplo de como um direito universal (…) torna-se um direito burguês, particularista e excludente, restrito aos proprietários do dinheiro e, consequentemente, dos meios de produção. Foi nesse sentido que Marx criticou os chamados “direitos do homem”, no sentido de que, entendidos como direitos únicos e exclusivos – eles se transformam na prática em prerrogativas apenas de um tipo de homem, precisamente do homem proprietário da classe burguesa. Penso que Claude Lefort, o filósofo liberal francês, não tem razão quando diz que para Marx, neste seu texto juvenil, os direitos civis seriam em si direitos burgueses e, como tal, dispensáveis no socialismo. (…) Portanto, a cidadania plena – que, como mostrarei adiante, parece-me incompatível com o capitalismo – certamente incorpora os direitos civis (e não só os afirmados por Locke, mas também os gerados mais recentemente), mas não se limita a eles (COUTINHO, 2000, p. 56-58).

Dificilmente deixaríamos de reconhecer que nos dias e mundo de hoje os chamados “direitos civis” são violados mais frequentemente quando seus detentores são os mais vulnerabilizados pela estrutura social: trabalhadores, negros, integrantes de minorias, mulheres, moradores de periferias, politicamente minoritários, somando-se este fato como elemento a distinguir “origem” de significado concreto de tais direitos. A compreensão deste último só pode ser realizada na inserção do “direito”, em suas múltiplas dimensões, no contexto da realidade atravessada por conflitos e forças na qual toma parte.

Ao longo dos séc. XIX e XX, por força dos movimentos de trabalhadores, sobretudo, mais direitos foram sendo incorporados aos regimes dos estados que ocupavam o centro do capitalismo. Funcionava uma espécie de dialética que envolvia a insatisfação, a reivindicação – nem sempre tranquilamente bem aceita, quase sempre reprimida – e, por fim, a incorporação nos termos da ordem vigente no formato de “direito ao” bem ou possibilidade reivindicada. Eram transformações substantivas, mas, ao mesmo tempo, controladas. Causavam grande esperança nos de baixo, temores nos de cima, mas, quando se estabilizavam vinham novas acomodações fechando o sinal aos primeiros e tranquilizando os segundos. De certa forma, as massas haviam trocado a perspectiva da revolução pela da conquista de “direitos”, uma vez que a burguesia já estava no poder. Esses novos processos políticos, cada vez mais pressionados a se desenvolverem em termos preestabelecidos, foram substituindo as expectativas revolucionárias e configurando o que chamamos de “democracia representativa” ou democracias liberais, regimes com características que combinariam, em tese, um tanto de socialização das decisões, em especial através de eleições periódicas de representantes, com o esqueleto fundamental dos regimes burgueses: a estabilidade jurídica, a garantia da propriedade, mas também um conjunto de direitos estabelecido para “todos” - um círculo que foi lentamente através das lutas se alargando ainda que muito mais formal do que materialmente. As Constituições viram o instrumento precípuo dessa garantia: estabilização da ordem em troca de direitos para “todos”: a ideia de uma dinâmica política regulada e dos direitos como salvaguardados dela se espraiou geograficamente, mas também em diferentes camadas sociais e com a incorporação de novas dimensões conforme velhos e novos atores políticos foram impondo pontos aos pactos constitucionais.

2.3 Contradições e conflitos na história dos direitos

É claro que isso que está sendo descrito como uma aparente “marcha” de estabilização política (do regime burguês), mas também de possíveis progressos para os “de baixo” é apenas uma espécie de descrição ideal de um caminho cheio de contramarchas e de realização em profundidade e ao longo do tempo questionáveis, ao menos no interior da ordem do capital. A própria Revolução Francesa é muito acidentada e poucos anos depois tem parte da sua energia transformadora absorvida e sucedida por momentos reacionários. Mais contraditório ainda se torna o cenário aparentemente “evolutivo” - e não por acaso frequentemente assim descrito pela literatura dominante de cariz liberal - se abrirmos o nosso foco do “centro” de poder mundial para vastas áreas que seriam ainda marcadas por séculos de colonização, espoliação, escravização e genocídio, para não falar dos poucos direitos até então consagrados à metade feminina da humanidade. Mas essas questões raramente ocuparam o centro das preocupações dos pensadores mais influentes daqueles estados dominantes.

Ainda assim, quando o séc. XX se iniciava, havia no “Ocidente” um forte otimismo e difusão da visão segundo a qual aquele modelo político-econômico, com forte esteio ainda na garantia dos direitos individuais e alguma capacidade de absorção das demandas da forte classe trabalhadora e manutenção do sistema de enriquecimento da classe dominante haveria de se manter e aprofundar. Mesmo as organizações e movimentos da classe trabalhadora, numerosos e fortes sindical e politicamente, eram bastante influenciados pelas “ilusões” do progresso prometidas pelo liberalismo, como é bem conhecido pelos debates cruciais no interior dos movimentos de trabalhadores na Europa da virada entre os séculos XIX e XX. Naquele momento, segmentos influentes daqueles movimentos, alguns dos quais haviam ainda tido contato direto com os fundadores do marxismo, aderiram ou foram fortemente influenciados pela compreensão de que pela progressiva conquista de direitos o objetivo de uma sociedade emancipada das amarras capitalistas poderia ser alcançado sem a ruptura com os regimes políticos vigentes.

2.4 A força do modelo liberal-democrata e da ideia de direitos nele

O ponto fundamental aqui não é o de fazer uma avaliação acerca da bondade ou insuficiência, do caráter progressivo, enganador, viável ou insustentável, das possibilidades e limitações, da inevitabilidade ou contingência do modelo liberal de regime político. O que se quer sublinhar é a enorme e crescente força desse modelo como referência político-ideológica – em especial no “Ocidente” e em sua periferia mais imediata, a América Latina, mas também como horizonte posto e organizador de boa parte do restante do globo (afinal, os territórios colonizados o foram em muito por estados liberais) – nos séculos XIX e XX, para além dos juízos que disso se possam fazer.

Essa força do modelo se revela – mais do que é negada – pela convivência com as inúmeras exceções que comportou: o “não direito” foi muito mais comum na humanidade que o “direito” ao longo destes últimos dois séculos em que o respeito formal aos direitos foi se tornando “obrigatório” para os Estados. Sintomático deste ponto são os esforços de “restauração” de regimes minimamente condizentes com os referidos parâmetros na sequência da derrota dos fascismos, mas também a manutenção de estruturas, discursos e aparências legais em regimes ditatoriais e autoritários internacionalmente sustentados durante a Guerra Fria (veja-se o exemplo das diversas ditaduras latino-americanas).

A própria ordem internacional é reconfigurada no imediato pós-guerra colocando como pilar o compromisso com a preservação dos núcleos de direitos consagrados pelas revoluções burguesas e pelos processos sócio-históricos subsequentes. Após a falência da modernidade política expressa pelos fascismos e pela Segunda Guerra, procurou-se reencetar a dinâmica política internacional num enquadramento institucional e político cujo objetivo declarado e ponto de partida foi o respeito aos direitos (agora mais propriamente chamados de “direitos humanos” na medida em que em tese assegurados a todas as pessoas humanas de forma incondicionada). A deslegitimação prévia e abstrata de quaisquer opções soberanas que violem tais direitos corresponde a um reforço da norma de que o estado deve ser um assegurador destes e, portanto, induz, sem determinar explicitamente, que ao menos essa aproximação com o modelo de regime político liberal é a norma: os regimes políticos menos explicitamente próximos aos das democracias liberais ocidentais são colocados sob uma espécie de exame e suspeição por parte dessa nova ordem institucionalizada. Evidentemente, que a avaliação sobre se os Estados respeitam ou não respeitam e em que medida “os direitos” é uma arena de disputa política, mas sobre um virtual e abstrato consenso de que devem ser respeitados.

O “consenso” relativo sobre a democracia liberal como forma por excelência de organização política do Estado foi reforçado a partir da descolonização, do fim de inúmeras ditaduras explícitas e do desmantelamento do bloco soviético. Nos anos 90 do séc. XX parecia ter sido consolidada a fórmula capaz de conter e organizar os conflitos sociopolíticos contemporâneos, abrangendo desde as expressões mais conservadoras e até mesmo o que restava das forças anticapitalistas e contestadoras. A necessidade de existência e realização dos direitos formavam um dos núcleos fundamentais da convergência discursiva sobre a qual as disputas e os debates políticos se desenrolariam necessariamente.

3 A ascensão da extrema direita e a crise das democracias liberais: o horizonte de futuro sem direitos?

3.1 Extrema direita

A expressão “ascensão da extrema direita” tornou-se corrente desde os anos 90 e, portanto, seu uso não corresponde a uma novidade muito recente. O que mudou foi a extensão e profundidade de seu significado e a relativa “normalização” do fenômeno em diversos países. A classificação de uma força como de “extrema direita” tem uma conotação negativa e, portanto, costuma ser rejeitada pelos próprios sujeitos por ela abarcados e, além disso, o estabelecimento de uma fronteira rígida com o que seria uma “direita” dentro do “arco democrático” nem sempre é fácil. Há todo um debate acerca da utilização da “escala” entre direita e esquerda, que não se desconhece, mas é possível reconhecer que, mesmo sendo esta uma “escala” intrinsecamente relativa a diferentes âmbitos e situações, se tomarmos como referência os regimes partidários dos Estados centrais – e mesmo de alguns importantes representantes da periferia – referimo-nos aqui a forças e movimentos à direita – mais conservadores, mais descomprometidos com a igualdade, com as liberdades e com a proteção das “minorias” no sentido político, como os grupos historicamente discriminados – do que os partidos e forças relevantes na dinâmica política desses estados. O critério é, portanto, objetivo: trata-se de forças à direita do que foi “a direita” sobretudo na segunda metade do séc. XX (a democracia cristã europeia, a direita liberal, os conservadores britânicos ou os republicanos estadunidenses, para dar exemplos marcantes). Importante dizer que o enfoque aqui se dá nas forças com peso significativo – o que implica em geral sustentação por setores de massa; capazes de tensionar ou ameaçar as bases do regime político. O fenômeno da miríade de pequenos grupos extremistas não necessariamente públicos não é desimportante, inclusive porque abastecem as correntes visíveis e mais influentes com uma série de elementos, mas não são o mais importante para o objetivo aqui presente.

Deve-se reconhecer ainda tratar-se de um conjunto bastante diverso de situações, como não poderia deixar de ser num fenômeno de tão ampla escala global, embora se possam identificar elementos comuns importantes. Dentre os maiores cuidados exigidos aos analistas, deve estar o de transplantação não mediada dos parâmetros utilizados no “Ocidente” para realidades que dele se afastam, inclusive algumas nas quais a liberal-democracia da qual tais forças se afastam sequer chegou a ser tão consolidada quanto naquele: pense-se em situações como as da Índia e da Rússia (e, no caso desta, do papel de contrapeso à dominação estadunidense que exerce em algumas situações e no significado contraditório deste resultado com a constatação da existência de muitos pontos em comum com a referida direita extremada). No entanto, constatada a presença do modelo “Ocidental” como tal nestas realidades e como referência no plano mundial não parece uma impropriedade que esses casos sejam, com as devidas ressalvas, estudados sob preocupações semelhantes às adotadas para os Estados centrais, com os devidos cuidados que se exigem nesses casos para que se evitem transposições mecânicas de parâmetros.

3.2 A oposição ao liberalismo político pela direita não é equiparável à oposição pela esquerda

O que diferencia esse conjunto de forças daquelas que criticam, se opõem e até lutam revolucionariamente contra os regimes das democracias liberais de uma perspectiva emancipatória é que este último grupo, genericamente identificado aqui como de forças não liberais “de esquerda” – por mais oponente que seja à institucionalidade constituída – não apenas não nega como propõe o aprofundamento do sentido material daquelas bases: a socialização do poder político e das possibilidades de fruição e realização que a tradição liberal denominou e circunscreveu como “direitos”. Aqui não se tratará como equivalentes os dois fenômenos políticos – que simplificadamente poderiam ser chamados de críticas “pela direita” e “pela esquerda” aos regimes políticos dominantes – e, sem menosprezar o interesse no segundo, reflete-se basicamente sobre o primeiro, porque a ele estão ligados os principais casos – tanto no “centro” como na “periferia” – de tensionamentos, questionamentos e ameaças ao modelo liberal-democrático. O comum epíteto de “populista”, muito comum na literatura dominante sobre o tema, não será aqui privilegiado, bem como o “iliberal”, uma vez que ambos os termos que tem servido à tentativa de equiparação que aqui se rejeita. Um debate mais aprofundado sobre esses termos e seu uso foge ao escopo deste trabalho, apesar de sua importância.

3.3 Extensão do fenômeno

É bastante difícil e fugiria ao escopo deste texto fazer um inventário acerca de todas as situações nas quais forças deste tipo ascenderam a governos, à condição de alternativas de governo ou foram capazes de influenciar decisivamente a agenda política. Ilustrativamente, podemos citar não apenas os mais célebres Hungria e Polônia ou Índia e Filipinas, Brasil e Colômbia, mas também Itália, Espanha, França, Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos, além de merecerem muita atenção Japão e Rússia. Para grande parte dos países que concentram a maior parte do poder econômico e político mundial não é possível mais explicar a dinâmica política interna dos últimos anos sem apontar uma ou mais forças significativas – partidos, lideranças ou movimentos – “à direita” do feixe que a protagonizou desde a ascensão dos regimes constitucionais – com a exceção chave para dos períodos fascistas e ditatoriais em diversos casos. Para ficarmos em alguns exemplos é importante lembrar que a Liga Norte de Salvini tornou-se um partido de governo na Itália, o mesmo tendo ocorrido com a extrema direita austríaca. No Leste da Europa há duas situações bastante emblemáticas: a da Polônia e aquele que talvez seja o “laboratório” mais avançado: o já longo governo Orbán na Hungria, na qual já há sinais de alteração no próprio regime. Na Ucrânia a extrema direita apresenta traços violentos e tem peso no tabuleiro político. Houve pelo menos momentos de crescimento e relevância de forças conotadas com este campo em diversos países nórdicos e do Norte europeu e é bem conhecido o caso francês, no qual a RN de Marine Le Pen foi ao 2o turno e é tratada como a principal adversária do atual presidente. A Espanha, até pouco tempo considerado um estado sem uma extrema direita explícita passou a contar com o partido Vox como um dos mais votados e abertamente cogitado nas prospecções de coalizão eleitoral e já integrando um governo regional. A Alemanha é um dos casos mais importantes: ainda que o AfD não tenha chegado a um quinto do eleitorado, é a principal força de oposição ao governo de ampla coalizão liderado por Merkel. No Reino Unido forças à direita dos conservadores chegaram a vencer eleições europeias e tiveram um significativo protagonismo no processo do Brexit, com expressão de massas mais importante que na disputa pelo governo propriamente. Na América do Sul a força do “uribismo” na Colômbia e a ascensão de Bolsonaro no Brasil impactaram a dinâmica política regional, cujo principal determinante parece mesmo ser a ocupação da Casa Branca por Trump, um “outsider” que se afasta de muitos parâmetros comportamentais, mas também de conteúdo decisório de seus conservadores companheiros de Partido Republicano, “flertando” com aspectos misóginos, racistas e anticientíficos num grau de abertura não imaginado há várias décadas. Em um dos países mais populosos do mundo - “a maior democracia” em termos numéricos – a Índia, a evolução das medidas tomadas pelo governo do BjP de Narendra Modi frente a minorias (que chegam a reunir várias centenas de milhões de pessoas) são no mínimo inquietantes. O violento governo Duterte nas Filipinas e a afirmação após seguidos anos de governo da predominância de partidos belicistas no estado de Israel, ou aumento de um nacionalismo mais beligerante no Japão por dentro do partido tradicional de governo, além da evolução deslaicizante contrária à minoria curda por parte do governo Erdogan na Turquia e das posições hostis a minorias, em especial LGBTs, de Putin, completam um quadro básico para provocar o leitor que eventualmente não esteja convencido da relevância do fenômeno.

Embora essas forças sejam mais ou menos abertamente hostis às bases constitucionais modelares a que vimos nos referindo é importante assinalar que não há por enquanto algo que se possa chamar de um desmantelamento de regimes constitucionais e menos ainda destes como parâmetros. Isso não pode ser descartado como evolução futura – apenas uma fé mística e pouco fundada historicamente poderia levar a crer que instituições políticas seriam perenes somente por assim se declararem – mas seria uma exacerbação dizer que já ocorre de forma importante. Trata-se de um programa de pesquisa altamente relevante o da observação e compreensão da evolução dos citados regimes nos quais pontos de tensão e alterações até aqui mais pontuais não podem ser descartadas como catalisadoras de dinâmicas mais importantes no próximo período. Em geral, essas alterações já realizadas ou propostas tem um único sentido no que se refere a direitos: um enfraquecimento que se manifesta por retirada, diminuição de alcance, condicionalidades, fortalecimento do vínculo com a condição nacional ou até mesmo um início de transmutação do direito em uma forma de “proteção” não incondicionada, não universal, não prevista em abstrato.

3.4 Razões da Crise: dois tipos de “explicação”

Diante de um fenômeno com tal extensão, se concordarmos que as diferentes situações apontadas podem ser inseridas como parte de um mesmo fenômeno, coloca-se o problema fundamental de sua explicação. O que estaria levando setores de massas de tantos e diferentes países do mundo a aderirem a discursos políticos com tais características? Não caberia aqui uma revisão bibliográfica da já extensa oferta de possibilidades explicativas, mas parece-nos possível identificar, de maneira ainda que muito simplificada, dois grandes grupos de trabalhos.

O primeiro grupo seria o que teve forte presença nos meios de comunicação e ocupou os balcões das livrarias nos últimos anos é composto por uma série de autores e títulos que podem ser colocados mais ou menos próximos às análises políticas tradicionais – focadas em partidos, comunicação, instituições, regras – e ao campo liberal no sentido amplo. Títulos alarmantes referindo-se aos perigos sofridos pela democracia ou mesmo ao seu iminente fim encabeçam um leque de abordagens que atribuem a uma falha em algum ponto específico da “linha de produção” de boas soluções políticas a emergência destas forças antiliberais. Não é raro, inclusive, nem surpreendente, que tais leituras agrupem sob o mesmo chapéu do “iliberal” ou do “populismo” expressões “à esquerda” do mainstream – como governos progressistas da América Latina – com forças xenófobas e ultranacionalistas ou lgbtfóbicas. Nestas explicações, “as elites”, “os partidos”, “a produção da oferta de alternativas”, “a comunicação” ou até mesmo “o povo” (os traços demofóbicos não são estranhos a este debate) estariam falhando e impedindo a produção de resultados esperados: processos de escolha vistos como legítimos e resultados dentro do “arco liberal” com a produção de governos estáveis, capazes de gerir os Estados com alguma “eficiência e responsabilidade”. Um autor de muita repercussão como Yasha Mounk (“O Povo Contra a Democracia”) chega a afirmar, entre outras razões, que a educação estadunidense dá um espaço demasiado às mazelas do regime e da sociedade – “o foco exclusivo nas injustiças” – e que professores e o sistema educacional deveriam defendê-los mais arduamente enfatizando “que as alternativas ideológicas à democracia liberal (…) continuam a ser tão repugnantes hoje quanto eram no passado” (2019, p. 297). Uma espécie de excesso de crítica estaria na raiz da crise e um regime com muitos direitos (de grupos, por exemplo) teria aberto espaço para que um setor de massas quisesse “de volta” um poder democrático que creem lhes teria sido retirado por estes.

“Mais recentemente, novatos na política tiveram grande sucesso ao prometer que devolveriam poder ao povo. (…) O rival mais sério do sistema de direitos sem democracia acabou sendo um sistema de democracia sem direitos” (MOUNK, 2019, p. 303). Não se concorda aqui com o que parece ser a tônica analítica do autor – a democracia liberal como forma final da história política humana insuperável a prazo razoável – e menos ainda com o que nos parece ser sua proposição: moderação e recuo no discurso sobre direitos para evitar abrir espaço para esses grupos. No entanto, parece ter tocado num ponto fundamental das preocupações deste texto: a centralidade da discussão sobre direitos neste processo em tela.

Um segundo grupo de autores, de menos repercussão midiática e ocupando espaços mais reduzidos nas livrarias e sítios de vendas, busca relacionar a atual ascensão da direita radical ao relativo esgotamento da capacidade dos regimes liberal democráticos de convencer sobre a realização efetiva de suas “promessas” de “progresso” e realização de aspirações para todos. Esses trabalhos – a exemplo de Traverso (2019), Rancière (2014) e Castells (2018) – vinculam mais o processo à evolução da correlação de forças entre classes sociais no plano internacional, aos limites e contradições intrínsecos aos regimes liberais, aos ônus que se impõem à esquerda por ser tida como parte do “sistema”, às crises do capitalismo, ao fim do bloco soviético e a uma certa “releitura” do que era o passado de graves violações a não repetir.

Para exemplificar essas abordagens menos liberais e mais críticas podemos citar

A crise da democracia liberal resulta da conjugação de vários processos que se reforçam mutuamente. A globalização da economia e da comunicação solapou e desestruturou as economias nacionais e limitou a capacidade do Estado-nação de responder em seu âmbito a problemas que são globais na origem, tais como as crises financeiras, a violação aos direitos humanos, a mudança climática, a economia criminosa ou o terrorismo. (…) A desigualdade social resultante entre valorizadores e desvalorizados é a mais alta da história recente. E mais, a lógica irrestrita dos mercados acentua as diferenças entre capacidades segundo o que é útil ou não às redes globais de capital, de produção e de consumo, de tal modo que, além de desigualdade, há polarização; ou seja, os ricos estão cada vez mais ricos, sobretudo no vértice da pirâmide, e os pobres cada vez mais pobres. (CASTELLS, 2018, p. 18-19).

Nesta direção, afirma-se que a frustração de amplos segmentos de massas, com os regimes políticos não decorrem de meras falhas pontuais de sua institucionalidade, senão da incapacidade de prover as aspirações de vida melhor e mais digna para todos e não pode ser separada da própria dinâmica econômica a escalas global e nacionais. Essa frustração tem vindo a ser canalizada por forças que se apresentam como “antissistema” majoritariamente ligadas à direita extremada, mesmo que isso possa ser contraditório com o que entendemos com o seu projeto de fundo e de futuro como se desdobrará adiante.

4 Fascismo histórico e fascismo como possibilidade permanente

Chama a atenção o crescimento do debate acerca do tema do fascismo nos últimos anos. Na esteira do historiador italiano Enzo Traverso (2019) vamos fazer dele uma abordagem dupla: nem pode ser suficiente para compreender os processos atuais, na medida em que não se reduzem a uma reedição (e os excessos de aproximação ou mesmo a assimilação de um fenômeno a outro poderiam fazer perder muito de sua complexidade), nem pode ser descartado, dado o peso ineliminável que possui na história contemporânea e os importantes elementos em comum. Nem todo fenômeno de extrema direita é próximo ao fascismo, mas é importante compreender este para compreender boa parte das expressões daquela.

O fascismo, uma corrente política gerada por dentro dos regimes liberais e pouco a pouco abraçada por setores das elites econômicas, manifestou-se em inúmeros países, embora os casos italiano e alemão sejam os mais conhecidos. Em quase toda a Europa ocupada pela Alemanha nazista houve forças políticas locais significativas que a apoiaram e facilitaram o estabelecimento de regimes por convicção político-ideológica. Correspondia a uma negação de todos os principais valores que a Modernidade professava e que tomara emprestado do Iluminismo. Sob o pretexto do anticomunismo, o fascismo professou e impôs posições antidemocráticas, contrárias às liberdades e aos direitos, à igualdade, mesmo formal, bem como ao racionalismo e ao humanismo, além de ter quebrado a vinculação de que o progresso científico decorreria sempre em benefício da humanidade, uma vez que colocou a técnica a serviço da destruição, do esmagamento e da morte. A tentativa de “desumanização” de amplos contingentes de supostos “inimigos” e a construção da compreensão de que os indesejáveis deveriam ser eliminados ou escravizados foram outros dos traços do nazifascismo incompatíveis com as promessas que a modernidade política, os Estados, seus setores dominantes, o pensamento liberal, o próprio capitalismo, do qual o fascismo foi uma expressão, tinham apresentado até então. O nazifascismo é uma demonstração gigantesca, trágica e eloquente de que a modernidade capitalista – com todo o seu desenho institucional aparentemente perfeito – poderia levar a humanidade para um abismo muito profundo e difícil de reverter. Setores das elites intelectuais, políticas, mas também burgueses tinham colaborado ativamente com ele e o viabilizado.

Um ponto que parece fundamental no debate é o do reconhecimento de que o fascismo significou uma saída, uma resposta, para a crise do capitalismo tendo por objetivo fortalecer a posição de sua classe dominante naquele cenário. Este elemento diferencia, grosso modo, abordagens liberais de abordagens marxistas e, sobretudo, tende a diferenciar a compreensão do fascismo como um erro ou desvio mais excepcional de algo que deve ser reconhecido como uma alternativa – e, portanto, risco – no capitalismo. Nos termos postos por Ernest Mandel, para exemplificar a posição de seu campo teórico:

O ascenso do fascismo é a expressão da grave crise social do capitalismo decadente, uma crise estrutural que pode coincidir (…) com uma crise económica clássica de sobreprodução, mas que é muito mais ampla do que uma simples flutuação de conjuntura. Fundamentalmente é uma crise da reprodução do capital. (…) A função histórica da tomada do poder pelo fascismo é alteração pela força e violência a favor dos grupos decisivos do capital monopolista, das condições de reprodução do capital (MANDEL, 1976, p. 29).

4.1 Derrota do fascismo e reorganização da modernidade política

Manifestara-se, na vitória sobre o fascismo, uma muito significativa força política de um campo vinculado à classe trabalhadora. A União Soviética, com todas as contradições ao largo do processo, havia tido um papel decisivo na liberação suportando perdas gigantescas e a maior parte da agressão nazista. Internamente aos Estados europeus, a importantíssima resistência tinha amplos setores dirigidos ou vinculados a organizações de trabalhadores (comunistas, sindicais). O cenário do final da guerra no que havia sido até então o centro do sistema internacional, a Europa, era ao mesmo tempo de devastação da promessa liberal capitalista, de desmoralização de parte da burguesia que apoiara o fascismo e de enorme prestígio da União Soviética. É verdade que naquela reta final as potências ocidentais – EUA e Inglaterra à frente – haviam feito um gigantesco esforço para recuperar terreno, mas não chegavam a se equilibrar em força política e moral aos soviéticos. Foi preciso que os norte-americanos testassem a bomba atômica, já com a guerra encerrada na Europa, para que encontrassem melhor localização nas negociações. Pouco depois, cometeriam um dos maiores crimes contra a humanidade da história lançando-a contra as populações civis de duas grandes cidades japonesas, no que para muitos foi muito mais um “recado” aos seus novos inimigos soviéticos do que de fato uma necessidade para vencer a guerra no Pacífico.

Em meio a este cenário – o desastre a que a Europa liberal capitalista tinha chegado e o prestígio do comunismo e do socialismo – que “o mundo”, o sistema internacional, foi reconfigurado. A “reconstrução” da modernidade política e seu fundamento nos direitos não podem ser entendidos fora deste contexto e desta correlação (o gigantesco salto do peso dos direitos sociais em território europeu não pode ser compreendido fora do quadro da expansão do bloco soviético e sua influência, por exemplo, como é bastante estudado). A política se mostrou muito intensa naqueles dias de 45 com a correlação de forças reais no terreno, as movimentações, negociações e as velocidades dos diferentes atores se combinando fortemente. Não interessava aos EUA, deixar a poeira baixar. Das grandes potências envolvidas era, de longe, a mais intacta e fortalecida economicamente. Entre os últimos tempos da guerra e o imediato depois uma série de conferências consagrou o viria a ser o novo desenho do mundo, com grande reforço da posição norte-americana.

Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Gatt, o padrão dólar-ouro para transações internacionais, a reconstrução econômica e militar da Europa Ocidental atrelada aos EUA, a multiplicação das alianças e bases militares norte-americanas são alguns exemplos desse reforço de posição. Dos pontos de vista militar e econômico o novo mundo era muito mais norte-americano que antes. No que se refere ao terreno político é que a situação parecia um pouco mais dividida, dado os já referidos prestígios soviético e dos anti-imperialistas mesmo na Europa Ocidental, o mais cobiçado terreno em disputa de então.

4.2 Contradições imediatas e Limitações da desfascistização

A guerra encerra-se com os primeiros atos configuradores do período seguinte: as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki – abrindo a Guerra Fria – lançadas dias depois das conferências de reorganização da institucionalidade das novas configurações do poder, inclusive da formação da ONU e seu compromisso basilar com os direitos humanos. É interessante observar que não apenas o modelo político foi alçado como já referido ao plano da legitimação internacional, como que as duas maiores potências derrotadas, que seriam protagonistas no campo capitalista a partir dali – a Alemanha Ocidental e o Japão – tiveram suas constitucionalizações liberais impostas pelas potências vencedoras. Ao longo da Guerra Fria, como se sabe, ambos os blocos se relacionarão com violações dos direitos com os quais pactuaram, às vezes massivamente como no caso das ditaduras apoiadas pelo Ocidente a pretexto da ameaça comunista, inclusive as que se instalaram ou mantiveram no sul da Europa (Portugal, Espanha, Grécia), com características que as aproximavam visivelmente do fascismo histórico.

Naquele cenário as novas superpotências e em especial a Ocidental estavam diante de uma contradição fundamental: derrotado o fascismo era preciso negá-lo e manter sobre ele uma memória negativa, que justificasse o enorme esforço, era necessário reorganizar os territórios e sanear as estruturas públicas de alguns de seus protagonistas, mas o objetivo principal já não era sua eliminação e sim o fortalecimento contra o novo adversário e perigo prioritário. A desfascistização – da qual a desnazificação é a parte mais conhecida e estudada – é um processo longo, não linear, marcado por avanços e recuos, que não se poderá retomar aqui – embora guarde chaves importantes – mas que tem como um de seus traços marcantes a incompletude. Quadros administrativos, políticos, técnicos “precisavam” ser aproveitados na reestruturação dos Estados após a liberação. Em casos mais extremos, há criminosos de guerra como Klaus Barbie provavelmente servindo na violência política reacionária na Bolívia até o início dos anos 80, mas, em muitos outros, elementos menos visíveis desempenharam papéis públicos e privados relevantes.

A relação dessa reconstrução da modernidade política verificada no pós-Segunda Guerra com o passado fascista é marcada por um elemento contraditório: ao mesmo tempo em que é fundamentada e legitimada pelo compromisso e pela promessa de não repetição, limita este compromisso pela opção de incorporar elementos – pessoas, práticas, empresas – na luta contra “o outro lado”.

Assim, ao mesmo tempo em que os fascismos viram “modelos de não repetição”, predominam sobre eles abordagens que esvaziam sua relação com a dinâmica capitalista, que os circunscrevem historicamente, que abordam de forma “moralizante” sua violência, que desumanizam seus protagonistas, tornando sua repetição improvável e evitável pela mera decisão subjetiva. Negado, muito mencionado, mas mal conhecido de fato para além de seus marcos mais extremos e explícitos de violência, não é reconhecido facilmente quando reaparece em formas minimamente mediadas ou atualizadas (novos “inimigos”, novas formas de aniquilação, novo ultranacionalismo).

4.3 Pós-fascismo como chave de compreensão

Traverso (2019) faz uma distinção, na abordagem da relação entre os fenômenos atuais e o fascismo, entre “neo” e “pós” fascismo. O “neo” fascismo seria daqueles grupos, de forma geral marginais na cena política, que reivindicam de forma mais ou menos explícita sua relação com correntes ou com o passado fascista. O “Aurora Dourada” da Grécia e o já desaparecido MSI da Itália, que chegou a ser liderado por uma neta de Mussolini, são exemplos não irrelevantes. Mas, de forma geral, essas forças da extrema direita não reivindicam abertamente esse passado e deveriam ser, segundo o autor, chamadas de “pós fascistas”, uma vez que guardam com o fascismo afinidades importantes, sem uma vinculação explícita. O autor ressalta que muitas vezes negam veementemente qualquer relação com o fascismo e, inclusive, podem utilizar “fascismo” como acusação política a seus alvos. Na França, por exemplo, acusam boa parte das comunidades imigrantes de “fascismo islâmico”, partilhando a compreensão comum da negatividade do termo como expressão de uma ameaça a ser batida.

4.4 O discurso da extrema direita como um discurso antidireitos

A análise mais completa e acurada dos discursos destas forças políticas aqui em tela é objeto já de alguns estudos que não se poderão reproduzir aqui. Tomando-se em conta os autores críticos já mencionados e a avaliação direta das manifestações públicas dessas forças e de seus líderes alguns elementos aparecem recorrentemente, dos quais destacam-se, como importantes para a presente reflexão:

  1. - a denúncia do “sistema”, apresentando-se como antissistema, como candidatos a revolucioná-lo e a apresentação de forças de esquerda, mesmo as que nunca foram governo, como parte dele;

  2. - a deslegitimação e desconfiança em relação aos movimentos “de minorias”: feministas, antirracistas, LGBTs, de defesa de imigrantes, de direitos humanos, ambientalistas, pró-cultura; todos apresentados como algo entre ameaçadores de degeneração social, nacional e buscadores de privilégios;

  3. - a retórica “antiesquerda”, que combina o antagonismo aos movimentos citados com eventuais resgates, por mais que pareçam anacrônicos, do anticomunismo e antimarxismo;

  4. - a desconfiança ou hostilidade aberta aos lugares e estruturas associados – na representação projetada por estas forças e suas bases, independentemente da realidade objetiva – à defesa de direitos: tribunais, meios de comunicação, universidades, organizações não-governamentais, intelectuais, institutos de pesquisa;

  5. - a oposição entre os interesses das “pessoas comuns”, que representariam, a um ou a um conjunto de “inimigos” usurpadores, que podem ser algum ou alguns dos grupos já referidos, numa formulação que é frequentemente apresentada como “antielitista”; mesmo quando apoiado, liderado ou vinculado a muito ricos;

  6. - a utilização de um ou um conjunto combinado de mecanismos de identidade, em geral vinculados ao nacionalismo e a passados idealizados, muitas vezes atravessados por identidades religiosas ou hostilidades a um “outro” ameaçador e a uma “retomada” de tradições e de uma certa noção de “segurança”;

  7. - uma retórica que não é necessariamente hostil à proteção social (o tema da relação entre extrema direita e políticas econômicas daria outros longos trabalhos), mas que a vincula ao pertencimento, ao merecimento e enfraquece seus traços como “direito”.

O que todos esses elementos têm em comum é o enfraquecimento do papel dos direitos no projeto societário que apresentam. Estes são apresentados entre a desconfiança, o caráter de geração de privilégios, a ameaça à segurança – da posição do homem, do branco, do proprietário – sua “injustiça” (do “estrangeiro que rouba o que deveria ser do nacional”), sua corrupção de valores fundamentais, como o reconhecimento da família tradicional.

4.5 O passado de violações e o papel do revisionismo

Nisso que poderíamos chamar de nova versão da modernidade política, as democracias liberais do pós-guerra a existência de um “modelo negativo” ou “modelo de não repetição” teve um papel organizador e legitimador fundamental. Sendo estabelecido que o fascismo – com especial enfoque na sua versão nazista alemã – era “o horror”, “o inaceitável”, ressuscitava-se o consenso discurso que dera base aos Estados liberais constitucionais, como já afirmados, com o oferecimento da perspectiva de compromisso de sua não repetição. O fascismo passava a funcionar como um avesso do espelho, uma referência de não fazer, de não repetir, útil na organização de uma sociedade de diferentes interesses e perspectivas. As maiores frustrações eventualmente vividas e sentidas sob a modelagem liberal estariam sempre um tanto absolvidas por não ser o horror do nazifascismo.

Essa memória do episódio a não repetir sempre foi marcada pelas fragilidades inerentes ao predomínio liberal de sua formulação, desvinculada da própria dinâmica econômica capitalista e demasiadamente presa a poucas personagens e suas supostas personalidades perversas e atos cruéis. Mesmo assim, continuou a existir como um parâmetro a noção do fascismo em abstrato como indesculpável, de repetição inaceitável. Entretanto, desenvolveu-se, especialmente no caso europeu, uma corrente historiográfica de caráter revisionista que, como destaca Traverso (2019), tem tido um importante papel de relativizar a gravidade ou mesmo o caráter desumanizante do fascismo histórico e dos episódios a ele vinculados. São utilizados para tanto inúmeros mecanismos: contextualizações justificadoras, uma abordagem equiparadora do “perigo comunista”, a valorização dos episódios de violência por parte dos que o combateram, entre outros. Esta “normalização” ou amenização produz um efeito de perda do parâmetro negativo, reabilitando senão o próprio fascismo, mas alguns de seus conteúdos, como alternativas aceitáveis. Esse tipo de abordagem tem correlatos nas redes de informação e produção de “narrativas” da extrema direita.

Pode-se estabelecer paralelos entre o lugar do fascismo como parâmetro de não repetição e ditaduras, o colonialismo ou mesmo episódios específicos da história de determinados países (a escravização, o massacre dos indígenas, a colaboração com os ocupantes nazistas, uma das formas mais comuns de fascismo). Esses parâmetros de não repetição figuram como alicerces do “discurso de direitos” das sociedades liberais democráticas (ou do que há numa sociedade de aspiração a isso) e a negação ou revisão de seus significados abre caminho para um enfraquecimento, o descarte, a permanência ou uma nova etapa especialmente importante na violação dos direitos.

5 À guisa de conclusão: a extrema direita e um horizonte de futuro (quase) sem direitos

No debate contemporâneo frequentemente fala-se em ameaças “à democracia”. Em verdade, seria necessário qualificar que concepção ou aspecto da democracia estariam ameaçados. Numa tentativa de síntese importante sobre o pensamento à direita sobre o tema, Jacques Rancière (2014) aponta que

O governo democrático, diz, é mau quando se deixa corromper pela sociedade democrática que quer que todos sejam iguais e que todas as diferenças sejam respeitadas. Em compensação, é bom quando mobiliza os indivíduos apáticos da sociedade democrática para a energia da guerra em defesa dos valores da civilização, aqueles da luta das civilizações. O novo ódio à democracia pode ser resumido então a uma tese simples: só existe uma democracia boa, a que reprime a catástrofe da civilização democrática (p. 10-11).

Destaca-se assim que nos atuais movimentos “antissistema” de extrema direita o que é atacado não são as insuficiências, as limitações, as promessas não cumpridas (ou não realizáveis nos seus limites), as permanências de assimetrias, as contradições com a vida material dos regimes democráticos, mas, ao contrário, o que estes abrem, acenam ou parecem abrir, consoante a leitura, de possibilidades emancipatórias. O regime é combatido por assegurar de menos a conservação das hierarquias sociais.

Houve e há todo um pensamento crítico voltado para o desvelamento das limitações e armadilhas eventuais no uso por parte de movimentos que se querem emancipatórios das categorias concernentes ao “discurso de direitos”. Aqui, ele quase não foi abordado. O que não se deve perder de vista é que a formatação política de uma ordem social hierárquica, desigual, produtora e reprodutora de desigualdades não é estática. Se é verdade que assumiu crescentemente nestes últimos dois séculos uma forma típica, predominante, é verdade também que com ela conviveu como alternativa permanente (a exceção como possibilidade permanente) formas (no fascismo, nas ditaduras, no colonialismo) nas quais o direito como promessa é substituído pela obediência como resposta ao medo e à insegurança.

O que as forças da extrema direita parecem oferecer como horizonte de futuro é um em que as possibilidades de ação e fruição do mundo e da vida sejam muito mais concessões a “merecedores” e “escolhidos” e em que o único grande direito restante seja o à grande propriedade privada (e mesmo esse condicionado a um comportamento político condizente com seus defensores) e ao recurso aos meios para defendê-la e à conservação da ordem que o garante.

Referências

CASTELLS, M. Ruptura: A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

COUTINHO, C N. Notas sobre Cidadania e Modernidade. In: Contra a Corrente. São Paulo: Cortez, 2000. p. 49-69.

HOBSBAWN, E. J. A Era dos Impérios. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001,

MANDEL, E. Sobre o Fascismo. Lisboa: Antídoto, 1976.

MOUNK, Y. O Povo Contra a Democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RANCIÈRE, J. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.

TRAVERSO, E. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Londres: Verso, 2019.

Notas de autor

1 Doutor em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: elidioalexandre@yahoo.com.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): MARQUES, E. A. B. Crise das democracias liberais: um futuro sem direitos? Elementos para uma perspectiva internacional acerca do projeto da extrema direita. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 22, n. Especial, p. 687-705, 2020. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p687-705. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15804.

COMO CITAR (APA): Marques, E. A. B. (2020). Crise das democracias liberais: um futuro sem direitos? Elementos para uma perspectiva internacional acerca do projeto da extrema direita. Vértices (Campos dos Goitacazes), 22(Especial), 687-705. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p687-705

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