DOSSIÊ TEMÁTICO: VIOLÊNCIA DE ESTADO E POLÍTICA SOCIAL: ENTRE O APARATO ASSISTENCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL

População em situação de rua e as respostas do Estado nas tramas da cidade capitalista

Homeless population and the State responses to the plots of the capitalist city

La población em situación de calle y las respuestas del Estado en las tramas de la ciudad capitalista

Renata Martins de Freitas 1
Secretaria Municipal de Assistência Social de Itaguaí, Brasil

População em situação de rua e as respostas do Estado nas tramas da cidade capitalista

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, 2020

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

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Recepción: 21 Agosto 2020

Aprobación: 25 Noviembre 2020

Resumo: É visível no dia a dia das grandes cidades o crescimento do número de pessoas que vivem em situação de rua, reproduzindo suas vidas a céu a aberto, desnudando as grandes contradições do sistema capitalista gerador de desigualdades, pauperismo e barbárie. O presente artigo busca apreender este “fenômeno” como uma expressão da “questão social” no seio da sociedade capitalista contemporânea, suas características e as respostas do Estado nas tramas do urbano mediante análise crítica e histórica sobre pesquisas amplamente difundidas, censos desenvolvidos a partir de referencial teórico marxista. Detecta-se a permanência da filantropização desta expressão da “questão social”, assim como de respostas baseadas na repressão e criminalização em nome da “ordem”, do “progresso” e do desenvolvimento nas cidades, mas também a institucionalização de serviços e direitos voltados a este grupo populacional nos últimos anos.

Palavras-chave: População em situação de rua, Estado, Cidade.

Abstract: It is visible, in everyday life in big cities, the increasing number of people living on the streets, reproducing their lives in the open, and exposing the great contradictions of the capitalist system that generates inequality, pauperism and barbarism. This article aims at understanding “phenomenon” as an expression of the “social question” within contemporary capitalist society, its features and the responses of the State in the plots of urban settings. It is based on a historical and critical analysis of widespread research, on censuses based on the Marxist theoretical framework. The philanthropic aspect of this expression of the “social question” is identified, as well as responses based on repression and criminalization in the name of “order”, “progress” and development in cities, and the institutionalization of services and rights aimed at these people in recent years.

Keywords: Homeless population, State, City.

Resumen: Es visible en el día a día de las grandes ciudades el crecimiento en el número de personas que viven en las calles, reproduciendo su vida al aire libre, exponiendo las grandes contradicciones del sistema capitalista que genera desigualdad, pauperismo y barbarie. Este artículo busca aprehender este “fenómeno” como expresión de la “cuestión social” dentro de la sociedad capitalista contemporánea, sus características y las respuestas del Estado en las tramas de lo urbano a partir del análisis crítico de investigaciones generalizadas, censos desarrollados y análisis histórico desde un marco teórico marxista. Se detecta la filantropización de esta expresión de la “cuestión social”, así como respuestas basadas en la represión y criminalización en nombre del “orden”, el “progreso” y el desarrollo en las ciudades, pero también la institucionalización de servicios y derechos dirigidos a estas personas en los últimos años.

Palabras clave: Población em situación de calle, Estado, Ciudad.

1 Introdução

Os centros urbanos brasileiros têm sido espaços e vivências das contradições e desigualdades produzidas pela sociedade burguesa, fundada na propriedade privada dos meios de produção, havendo a priorização do lucro acima de todas as necessidades humanas. Há neles circulação de mercadorias de toda natureza, há opulência, consumo, desperdício, muros e muitas das vezes imponência de grandes construções ou de pontos turísticos. Há transeuntes e movimento, como se sua vocação fosse para a “passagem”, para a “ordem” e para o lucro. A naturalização dos elementos mencionados turva o caráter histórico de construção das cidades e as diversas maneiras como foram e têm sido ocupadas.

Contrastando com a opulência, observa-se em caminhadas por muitas das grandes cidades brasileiras a permanência de pessoas que vivenciam a céu aberto e no espaço público alguns aspectos de suas vidas que usualmente os sujeitos atribuem à esfera privada: dormem, se alimentam, guardam seus pertences, banham-se, muitas das vezes fazem suas necessidades fisiológicas, “fazem amor”. As ruas são espaços em que “vivem” e obtêm sustento, mantêm sua subsistência. Trata-se de um grupo heterogêneo cuja existência é uma vitrine das possibilidades mais aviltantes da barbárie gerada pela produção coletiva da riqueza, com a apropriação privada e sua desigual distribuição. E esses sujeitos tornam “nuas” essas contradições com sua existência nas ruas, praças, vielas, quebradas, sob marquises e viadutos.

Nos últimos anos, temos acompanhado no Brasil a publicação de notícias jornalísticas que anunciam o aumento de pessoas vivendo em situação de rua em nosso país. Recentemente o Instituto Datafolha publicou pesquisa que traz à tona a percepção de brasileiros e brasileiras em relação a esse aumento, principalmente no caso das capitais dos estados1.

Pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) comunica-nos uma estimativa de que, até março de 2020, existiam cerca de 222 mil pessoas em situação de rua no Brasil e que, de 2012 a 2020 houve um aumento de cerca de 140% deste grupo populacional2. O Instituto analisa que em virtude da dita “crise econômica”, há possibilidades de maiores contingentes populacionais serem lançados à situação de rua. Estes dados trazem desafios para o Estado. A análise, ainda que caiba problematizações, traz à tona a relação entre o fenômeno população em situação de rua e fatores conjunturais.

Neste artigo propomos apresentar elementos sobre a constituição do fenômeno, problematizando dados apreendidos em pesquisas e censos realizados sobre a população em situação de rua, compreendendo algumas de suas múltiplas determinações. Ademais, nos limites deste texto, buscar-se-á empreender uma análise sobre permanências e rupturas no que tange às respostas do Estado ao fenômeno em tela nas tramas da cidade capitalista, considerando a perspectiva mandeliana (MANDEL, 1982), segundo a qual este Estado desempenha funções como a manutenção das condições de produção, além da coerção e do consenso visando à manutenção da dominação da classe capitalista sobre a classe trabalhadora. As análises serão realizadas com embasamento teórico e analítico marxista.

2 População em situação de rua e sociabilidade burguesa

Neste estudo teremos como ponto de partida a importante pesquisa realizada por Maria Lúcia Lopes Silva (2009) sobre trabalho e população em situação de rua no Brasil. Ela, assim como outras autoras e pesquisadoras, identificou se tratar de um fenômeno com múltiplas determinações cujas características estão intrinsecamente relacionadas com a acumulação capitalista. Afirma-se em muitas dessas pesquisas que há envolvidos nessa construção aspectos estruturais e biográficos. Aqui refletimos e problematizamos de início que as biografias, as histórias de vida, as trajetórias dos sujeitos não se descolam dessa sociabilidade burguesa. Há particularidades e aspectos singulares, e isso não é negado. Mas é preciso compreender e aprofundar nossas reflexões acerca de alguns dos aspectos apresentados e problematizá-los, buscando desnaturalizar e conferir-lhes historicidade.

Sobre a pesquisa de Silva (2009), ela conclui que as causas estruturais possuem relação intrínseca com as desigualdades sociais geradas pelo processo de acumulação capitalista. Trata-se de uma “grave expressão da questão social” e, além disto, afirma a autora, é fenômeno localizado nos grandes centros urbanos, marcado pelo preconceito, tem particularidades relacionadas a cada território, há uma “tendência” à sua naturalização e é acompanhada à quase ausência de dados produzidos. Ademais, na época em que sua pesquisa fora realizada, avaliou-se haver poucas políticas públicas para seu enfrentamento.

Cabe-nos contextualizar a própria pesquisa, que a despeito de uma ampla contextualização e densas reflexões e estudos, tem enfoque datado, buscou compreender o fenômeno em tela em sua relação com o mundo do trabalho entre os anos de 1995 e 2005. Aqui problematizaremos as conclusões ali apresentadas, assim como algumas pesquisas e censos produzidos sobre o grupo populacional em situação de rua. Apontaremos lacunas que talvez mereçam maior atenção no sentido de adensarmos os saberes acerca do conjunto de relações sociais envolvidos na construção do fenômeno em tela.

2.1 A “selva capitalista” e a superpopulação relativa

Cadu, homem que vivia nas ruas de Salvador, escreveu um poema intitulado “não somos lixo”3, em que conclui: “a selva capitalista joga seus chacais sobre nós”. Chacais4 são canídeos que se alimentam de “restos” de caças de outros animais, principalmente leões e no sentido figurado podem caracterizar quem fica à “espreita” para beneficiar-se da “desgraça alheia”.

A história de constituição do modo de produção capitalista é uma história de expropriações e violências, transformação de aspectos da vida humana em mercadoria e, de acordo com Silva (2009), a história do fenômeno “população em situação de rua” tem intrínseca relação com a acumulação capitalista, desde o processo conhecido como “a assim chamada acumulação primitiva”, exposto no Capítulo XXIV do Livro I de “O Capital” de Marx (2013). Segundo Marx (2013), a história da expropriação ou separação entre trabalhador e a “propriedade das condições da realização do trabalho” (p.786) é “gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo” (p. 787). Segundo o autor, a estrutura do capitalismo emerge a partir da dissolução da estrutura econômica da sociedade feudal e sua constituição ocorre com base em métodos violentos:

[…] portanto, a expropriação que despoja grande massa da população de sua própria terra e de seus próprios meios de subsistência e instrumentos de trabalho, essa terrível e dificultosa expropriação das massas populares, tudo isso constitui a pré-história do capital. Esta compreende uma série de métodos violentos, dos quais passamos em revista somente aqueles que marcaram época como métodos da acumulação primitiva do capital. A expropriação dos produtores diretos é consumada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões mais infames, abjetas e mesquinhamente execráveis. A propriedade privada constituída por meio do trabalho próprio, fundada, por assim dizer, na fusão do indivíduo trabalhador isolado, independente, com suas condições de trabalho, cede lugar à propriedade privada capitalista, que repousa na exploração de trabalho alheio, mas formalmente livre. (MARX, 2013, p. 831).

O modo de produção capitalista é fundado no afastamento ou separação de grande parte dos seres humanos dos meios de produção e reprodução da sua vida, fazendo do trabalho “livre” o trabalho vertido em mercadoria e do trabalhador aquele que deve vender sua força de trabalho no mercado para manter sua sobrevivência. A produção das riquezas é coletiva, mas sua apropriação passa a ser privada e acumulada nas mãos de poucos. Não se trata de um processo “idílico”, mas de uma história de expropriação e violência. Expropriação territorial, existencial e da construção da exploração de seres humanos por outros seres humanos. Neste processo gestam-se as duas classes sociais fundamentais do referido modo de produção: a daqueles e daquelas que precisam vender sua força de trabalho em troca da própria sobrevivência - a classe que vive do trabalho - e a classe que detém os meios de produção, ou classe burguesa.

A compra da força de trabalho humana, segundo análises marxianas, se dá com “objetivo de valorização do capital, a produção de mercadorias que contenham mais trabalho do que o que ele paga […] a produção de mais valor ou criação do excedente é lei absoluta desse modo de produção” (MARX, 2013, p.695). O salário pago aos homens e mulheres pertencentes à classe trabalhadora é condicionado à extração de trabalho realizado e não pago de onde advém a riqueza capitalista. Portanto, a produção dessa riqueza é realizada pelas “mãos” da classe trabalhadora e pela exploração de seu trabalho pela classe capitalista. O modo de produção capitalista e as relações sociais sob seu jugo são reproduzidas a partir dessa produção coletiva com apropriação privada da riqueza.

De acordo com Maranhão (2010), no período da “chamada acumulação primitiva”, em virtude de todo o exposto acerca do processo de expropriação que apartou a classe trabalhadora dos meios de produção e reprodução de sua própria sobrevivência e da busca pelo lucro mediante exploração do trabalho “livre”, muitos sujeitos migraram do campo para as cidades a fim de atuar nas manufaturas e “primeiras fábricas”. A oferta de força de trabalho era demandada em virtude da expansão das grandes indústrias e se ampliava nas cidades. O autor pondera que “Essa voracidade do capital por força de trabalho e lucro produz um quadro contraditório em que o comércio e a indústria avançam em detrimento da miséria e da degradação de grandes contingentes humanos” (p. 99). Neste contexto, com a ampla oferta de força de trabalho, parte dela não era “absorvida” pelo mercado, criando-se uma superpopulação relativa nos centros urbanos, como um “reservatório de força de trabalho” (MARANHÃO, 2010, p. 99).

Tem-se, portanto, um cenário de aumento da capacidade humana de produção de bens e serviços para resposta às necessidades humanas como nunca antes na história. A escassez pela ausência de capacidade produtiva ou insuficiente desenvolvimento de forças produtivas deixa de ser a realidade humana. Temos, contudo, uma produção de miséria na mesma proporção em que se produz a riqueza, em virtude da apropriação privada destas riquezas produzidas socialmente. O trabalhador gozando de uma dita “liberdade” de venda de sua força de trabalho vê nesta venda a forma de manter a reprodução de sua vida. Não conseguindo realizá-la, é lançado à miséria. Neste contexto temos o surgimento do fenômeno “população em situação de rua”, conforme pesquisa de Silva (2009). À medida que se amplia a miséria nos centros urbanos e trabalhadores veem-se desprotegidos nas respostas às suas necessidades, alguns sujeitos pertencentes a essa classe que vive da venda de sua força de trabalho passam a não ter outra opção que não a de viver e reproduzir aspectos tidos como relativos à esfera privada nos espaços públicos. Trata-se inicialmente dessa superpopulação relativa que não consegue vender sua força de trabalho. Há trabalhadores e trabalhadoras, mas não há “trabalho” para todas e todos. Esses sujeitos passam a constituir uma “massa sobrante”, uma superpopulação relativa ou “exército industrial de reserva”. Há muitas destas pessoas sem trabalho, sem vínculo territorial ou rede de proteção social e sem acesso à moradia, restando-lhes a permanência em situação de rua.

Segundo Netto (2012), passou a existir uma situação de pobreza generalizada no século XIX denominada “pauperismo”. Para o autor, “[…] este pauperismo marca a emergência imediatamente visível da dimensão mais evidente da moderna barbárie, a barbárie capitalista” (NETTO, 2012, pp. 203-204). Pauperismo e barbárie baseados na exploração do trabalho pelo capital, estão na gênese e constituição do fenômeno população em situação de rua.

É fundamental que possamos compreender que a produção da superpopulação relativa é inerente ao próprio sistema capitalista, na sanha por expandir os mecanismos de acumulação da riqueza:

Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior será o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível se desenvolve pelas mesmas causas que a força expansiva do capital. A grandeza proporcional do exército industrial de reserva acompanha, pois, o aumento das potências da riqueza. [...] Por fim, quanto maior forem as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior será o pauperismo oficial. Essa é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista. […] A lei segundo a qual uma massa cada vez maior de meios de produção, graças ao progresso da produtividade do trabalho social, pode ser posta em movimento com um dispêndio progressivamente decrescente de força humana, é expressa no terreno capitalista – onde não é o trabalhador quem emprega os meios de trabalho, mas estes o trabalhador – da seguinte maneira: quanto maior a força produtiva do trabalho, tanto maior a pressão dos trabalhadores sobre seus meios de ocupação, e tanto mais precária, portanto, a condição de existência do assalariado, que consiste na venda da própria força com vistas ao aumento da riqueza alheia ou à autovalorização do capital. […]. (MARX, 2013, p. 719-720).

Esta “massa sobrante” de sujeitos, ou superpopulação relativa, nos termos de Maranhão (2010) e do próprio Marx (2013), “alavanca a acumulação capitalista”, tendo efeitos “opostos” para a classe que vive do trabalho, porque produz um rebaixamento nos salários, dado o aumento “da oferta da mercadoria força de trabalho”; provoca um acirramento nas relações de exploração devido ao medo de perda de salários, condição para manutenção da subsistência. E essa mesma preocupação também termina por provocar redução de possibilidades de participação nas lutas políticas por parte de trabalhadores (MARANHÃO, 2010, p. 107).

O autor elucida ainda que a lei tendencial do desenvolvimento capitalista traz consigo essa enorme contradição: a acumulação de riqueza ocorre na proporção da constituição da miséria de amplas massas de trabalhadores. Segundo ele, por mais que ao longo da história do capitalismo essa lei tenha adquirido peculiaridades de acordo com o momento histórico e conjuntural, ela não deixa de existir, sendo inerente a esse modo de produção (MARANHÃO, 2010).

Ianni (1992) tece importantes considerações acerca das contradições do modo de produção capitalista, ponderando que o pauperismo e a propriedade privada produzem-se “reciprocamente”, que a superpopulação relativa e que os progressos econômicos têm suas raízes na pauperização na cidade e no campo, mencionando que “[…] A mesma fábrica do progresso fabrica a questão social” (IANNI, 1992, p. 111). Constituída no bojo desse conjunto de relações, sempre relacionadas à associação entre capitalismo e “urbanização”, entendemos que a população em situação de rua é uma das expressões da “questão social”, que possui contornos específicos de acordo com o contexto, tendo, contudo, determinações estruturais em virtude da maneira com que estão sendo vertidos os processos de acumulação capitalista em cada tempo.

Essa “questão social” é fabricada na medida da expansão da acumulação capitalista que tem como uma de suas expressões a “população em situação de rua”. Netto (2007;2012) associa a “questão social” a essas contradições produzidas no seio da sociedade capitalista em virtude da produção coletiva e apropriação privada da riqueza e exploração da classe trabalhadora, sendo indissociável do modo de produção capitalista. Segundo ele, a análise marxiana permite situar essa “questão social” historicamente, compreendendo que “a exploração não é um traço distintivo do regime do capital”, mas que a exploração em um contexto de contradições a partir das quais as condições em que a riqueza é criada seriam suficientes para supressão da miséria, mas em virtude desse modelo de acumulação, o desenvolvimento de forças produtivas provoca, amplia e aprofunda as condições de pauperismo daqueles que de fato produzem a riqueza. A escassez de modos de produção anteriores era gerada pelo baixo desenvolvimento das forças produtivas, que não é ocaso do capitalismo. As relações sob seu jugo produzem a pobreza e as desigualdades e não as herdam de sistemas produtivos anteriormente predominantes. Nestes termos, Netto (2007, p. 158) afirma que “A ‘questão social’, nesta perspectiva teórico-analítica, não tem nada a ver com o desdobramento de problemas sociais que ordem burguesa herdou como traços invariáveis da humanidade […]”. Não se trata de “problemas sociais” naturais, mas historicamente construídos por meio de relações que tampouco são naturais, mas forjadas a partir da lei de acumulação capitalista, inerente a esse modo de produção e às relações sob seu jugo.

Cabe salientar, que segundo Netto (2007; 2012), o pauperismo passa a ser designado como uma “questão social” em virtude de desdobramentos sociopolíticos, nos quais a classe trabalhadora traz à cena pública e reivindica respostas às situações aviltantes às quais vinha e vem sendo submetida. O inconformismo assim como as desigualdades geradas pelo modo de produção capitalista compõem a designação da “questão social”. O autor alerta, a partir de suas análises, que, além dessas dimensões, é preciso entender as manifestações da “questão social” e suas expressões compreendendo particularidades históricas e culturais e nacionais. A análise sobre a “questão social” e suas expressões não podem prescindir da compreensão de particularidades importantes, como aquelas dos países dependentes com industrialização tardia, e as relações de trabalho “superexplorado”, nos termos de Tomazine (2016).

Por esses motivos, ao buscarmos elementos para compreensão do fenômeno população em situação de rua no Brasil contemporâneo, as características mencionadas acima não podem ser desconsideradas. Sobre o fenômeno em tela e sua relação com o mundo do trabalho no caso brasileiro, temos além da importante pesquisa de Silva (2009), informações fundamentais do único censo nacional realizado junto a esse grupo populacional. Como os dados obtidos foram similares no que tange à inserção no mundo do trabalho, expomos o que fora coletado em Brasil (2009): entre os sujeitos respondentes ao censo, quase 71% exerciam atividade remunerada, entre elas: catação de materiais recicláveis (27,5%), guarda de carros (14,1%), atuação na construção civil (6,3%), realização de serviços de limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1%). Na época, apenas 15,7% relataram pedir dinheiro como principal forma de obtenção de renda para manutenção da subsistência. Apenas 1,9% afirmou trabalhar na condição de segurado da Política de Previdência Social. 47,7% afirmaram nunca terem tido assinatura na carteira de trabalho, ou seja, nunca terem atuado mediante proteção ao trabalho dito formal. Cabe ainda destacar que a maior parte daqueles que já trabalharam de carteira assinada afirma que isso ocorreu “há muito tempo”.

Esses dados reforçam o que Silva (2009) havia apreendido em sua pesquisa: a população em situação de rua compõe a superpopulação relativa estagnada5, aquela formada por trabalhadores ativos, mas que não estão inseridos de maneira regular no mercado, possuindo condições de vida abaixo da média da classe trabalhadora em geral. Observamos também, por meio de dados da pesquisa de Brasil (2009), que entre as atividades elencadas como predominantemente realizadas por pessoas em situação de rua, figuram com maior frequência duas relacionadas diretamente ao espaço público ou à circulação pelas cidades: a de catação de materiais recicláveis e de guardadores de carros nas ruas, chamados vulgarmente de “flanelinhas”.

Sobre a relação entre a população em situação de rua e o mundo do trabalho na cena contemporânea, Silva (2009) conclui que as mudanças no mundo do trabalho, tendo em vista a reestruturação produtiva, provocaram um agravamento da exploração, acirramento do desemprego e precarização, contribuindo para aumento da superpopulação relativa “propiciando elevação dos níveis de pobreza. Neste contexto, expandiu-se o fenômeno população em situação de rua. (SILVA, 2009, p. 267)”. De acordo com Behring (2018), a reestruturação produtiva está relacionada a uma reação burguesa “contrarreformista” a uma longa onda de estagnação da acumulação capitalista a partir da década de 1970, a fim de expandir a dominação pelo mundo, aprofundando as estratégias de exploração sobre a classe trabalhadora. A força de trabalho é “adequada” a esses

Novos padrões de exploração, num processo de disciplinamento fundado na ruptura das ‘seguranças’ do pacto fordista/keynesiano, o que inclui alterações no Estado Social, a recomposição do exército industrial de reserva ou superpopulação relativa em suas várias faces, e na periferia, a expansão da superexploração do trabalho, característica da heteronomia e da dependência desses países. (BEHRING, 2018, p. 47).

A superexploração da força de trabalho, que é uma marca dos países dependentes como o Brasil, é acirrada a partir de contrarreformas que usurpam os direitos da classe trabalhadora, não sendo diferente no caso brasileiro. Tudo isso aliado a um crescimento da população urbana no país, o que provocou também um crescimento do fenômeno da população em situação de rua conforme análise já mencionada.

A contemporaneidade, portanto, traz acirramento da exploração do trabalho em um país em que a superexploração é a “regra”. Vivenciamos na atualidade, nos dizeres de Maranhão (2010), uma fase predatória do capitalismo, com ataques ferozes ao fundo público e rebaixamento ainda maior do valor da força de trabalho. A massa cada vez mais ampla de sujeitos que se encontram na condição de superpopulação relativa e a “mundialização” dessa superpopulação faz que o capital consiga aumentar seus superlucros, sacrificando existências e vidas. Tudo isso ocorre com a chancela de uma ideologia neoliberal, que aponta o Estado Social pela crise do sistema capitalista, buscando a legitimidade para as contrarreformas e para os ataques aos direitos da classe trabalhadora, conforme vemos em Silva (2009).

Netto (2012) reflete que o capital hoje é uma ordem do “desemprego e da insegurança no trabalho”. Há um espraiamento da forma mercadoria para diversas dimensões da vida social, traduzindo-se em relações de consumo e de predomínio do individualismo sobre as redes de sociabilidade, além das tentativas de desqualificação do Estado. Segundo Netto (2012), esgotam-se quaisquer possibilidades civilizatórias do modo de produção capitalista, revelando sua faceta bárbara para a vida humana, incluindo aí a destruição da natureza. Tudo isso traz repercussões na vida de pessoas que estão nos centros urbanos, ainda mais para aquelas em situação de rua.

Sobre a análise de Silva (2009) acerca de fatores que podem provocar o aumento do número de pessoas vivendo em situação de rua, temos importantes dados da pesquisa de Natalino (2020) pelo IPEA. O mencionado pesquisador aponta um aumento da população em situação de rua no Brasil em 140% de 2012 a 2020. Verifica que esse aumento ocorreu em cidades de todos os portes e em todas as regiões do país, sendo predominante, contudo, nas cidades com mais de 100 mil habitantes (grande porte e metrópoles), havendo ainda maior concentração de pessoas em situação de rua na região Sudeste. Sugere que esse dado está relacionado ao aumento do desemprego no país e à crise econômica.

Estamos vivendo uma crise estrutural do sistema capitalista (que é traduzida por muitos como “crise econômica”), um aumento da exploração do trabalho com redução de sua proteção6. Vivemos tempos de regressão catastrófica de direitos. Compreendemos que todo esse cenário agrava as condições de vida da classe trabalhadora e, aliada a outros fatores, faz com que o fenômeno população em situação de rua se reproduza e se amplie.

Fundamental que tragamos à tona que as pessoas não estão em situação de rua, em sua maioria, por fatores únicos. Trata-se de um fenômeno com muitas determinações, expressando questões estruturais, conjunturais e biográficas, agravadas pela barbarização da vida, e por isso prosseguiremos trazendo mais elementos para problematizações.

2.2 Construindo problematizações: proibicionismo, “beatificação do trabalho” e alguns rebatimentos nas relações familiares

O censo nacional explicitado em Brasil (2009) demonstrou que a maior parte da população em situação de rua é composta por homens adultos, predominantemente negra e tem parco acesso à escolaridade. Os três principais motivos mais recorrentemente elencados como aqueles que os levaram à situação de rua são o “alcoolismo”/uso de drogas, desemprego e “desavenças familiares”, havendo outros “motivos”. Esses “motivos” nos fazem remeter a relações envolvidas na ida dessas pessoas para a situação de rua. Quase metade estava há mais de dois anos dormindo nas ruas e 45,8% relatou que sempre viveu no município em que vivia naquela “atualidade”. Ainda assim detectou-se um número de trecheiros7 de 11,9%. Entre estes, 45,3% mudou de cidade a procura de trabalho.

Pesquisas realizadas por municípios com grandes concentrações de pessoas vivendo em situação de rua também trazem importantes dados. Em São Paulo, FIPE (2015) detectou um aumento do número das pessoas em situação de rua entre 2000 e 2015: crescimento de 5,14% entre 2000 e 2009 e de 2,56% entre os anos de 2009 e 2015. Essa população é majoritariamente masculina e adulta. Entre eles, 36,6% têm idades entre 31 e 49 anos; 19,7% entre 50 e 64 anos e 15,3% entre 18 e 30 anos. No caso do Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (RIO DE JANEIRO, 2013) apreendeu haver uma população em situação de rua masculina, formada por adultos (69,6%), tendo como escolaridade o ensino fundamental (75,11%) dos quais 64,8% delas estavam nas ruas há mais de um ano. Também se investigou sobre o local de moradia antes da situação de rua: 64,42% residiam na própria cidade do Rio de Janeiro, com destaque para residência em bairros da Zona Oeste como Bangu e Campo Grande. 22,51% viviam no Estado do Rio de Janeiro, mas não na capital antes da situação de rua. Isso demonstra que não houve um grande deslocamento dessas pessoas. Provavelmente o deslocamento ocorrera entre bairros na própria cidade do Rio de Janeiro, com migração para regiões centrais ou mais abastadas. É provável que isto tenha ocorrido na direção de locais onde há maior circulação de mercadoria, recursos e desperdícios e isto expressa as desigualdades sociais no interior da própria cidade. Algumas características detectadas na pesquisa foram: baixa escolaridade, uso de álcool e drogas, capacidade produtiva comprometida, transtornos mentais/psiquiátricos, relações familiares rompidas e histórico de violações de direitos.

Sobre os motivos mais recorrentemente alegados para situação de rua, entendemos que podem constituir temas que nos levam a importantes “determinações” sobre o fenômeno, sendo relevante que problematizemos os próprios termos utilizados nas pesquisas. Compreende-se também a necessidade de a linguagem utilizada não ser codificada para a população que se quer entrevistar. Contudo, é preciso um esforço analítico para que avancemos no debate acerca do “uso de drogas”.

Quando atribuímos a situação de rua ao “uso de drogas”, parece-nos que o uso de substâncias psicoativas em si leva estas pessoas ou contribui para sua ida para as ruas de maneira necessariamente direta. Não negamos que isto pode ocorrer em determinadas situações. Contudo, importa-nos contextualizar que as substâncias psicoativas e o seu uso fazem parte da história da humanidade e respondem, muitas das vezes, a necessidades sociais. Esse uso não necessariamente é considerado prejudicial, podendo ser esporádico, ocasional, recreativo, abusivo ou dependente. Alertamos aqui para o conjunto de relações sociais envolvidas no uso desses psicoativos e na ideologia proibicionista construída a partir delas. Brites (2016) pondera que o caráter de licitude e ilicitude que adquirem as “drogas” é parte de uma construção social que oculta os interesses que existem por trás da proibição de algumas substâncias e outras não. Ademais, tratar a pessoa usuária de psicoativos a partir da alcunha pejorativa de “drogado” ou enfatizar o uso da droga, pode centralizar o olhar sobre esse uso e reduzir aspectos importantes da trajetória dos sujeitos. Segundo a autora,

A chamada “guerra às drogas” (proibicionismo) introduziu no imaginário social a ideia de que a proibição é a “melhor alternativa” para responder aos danos sociais e de saúde decorrentes do uso de psicoativos ilícitos. No entanto, a história tem demonstrado exatamente o oposto, pois o saldo do proibicionismo – que está na base de tratados e convenções internacionais e leis nacionais – é desastroso. O proibicionismo não foi capaz de eliminar a oferta e a procura por psicoativos ilegais, contribuiu para a emergência e crescimento do mercado ilícito internacional (narcotráfico) e sua direta associação com redes de corrupção, criminalidade e violência, que aprofundam a questão social (BRITES, 2016, p.10).

O proibicionismo não permite que consigamos compreender as “drogas” como uma mercadoria no seio da sociedade capitalista contemporânea, além de ocultar sua própria função ideológica (BRITES, 2017) que atribui justificativas a intervenções violentas em territórios periféricos nas cidades, o controle sobre corpos e a naturalização dessas práticas em detrimento do cuidado em saúde de pessoas que consomem abusivamente substâncias psicoativas. Todos esses fatores aprofundam desigualdades. E aqui já se explicitam algumas respostas do Estado baseadas em repressão, demonstrando sua face “penal” ou “punitiva” no trato das expressões da “questão social”, tendo rebatimentos diretos na maneira de lidar com a “população em situação de rua”.

Neves (2011a) alerta-nos para os “riscos moralizantes” e metodológicos em considerarmos em nossos questionários e pesquisas perguntas sobre o uso de “drogas”. É preciso compreender o conjunto de relações envolvidas na “guerra às drogas” e a construção da própria ideologia proibicionista. Tal ideologia está nas leis, nas ações de “atores” do Estado e mesmo nas concepções dos censos e pesquisas em que conseguimos obter conhecimento sobre a realidade de pessoas em situação de rua no Brasil. Censos subsidiam políticas públicas e a depender da concepção que trazem já retratam ou sugerem aspectos da violência de Estado, individualização e moralização da “questão social”.

Essas relações baseadas na ideologia proibicionista têm impactos diretos sobre a vida de pessoas em situação de rua e isto poderemos tratar mais adiante. Cabe-nos aqui compreender que possivelmente o que contribui para lançar sujeitos pertencentes à classe trabalhadora para a situação de rua, são os rebatimentos dessa ideologia proibicionista por parte do Estado, quando criminaliza sujeitos ou responde com repressão o uso de “drogas” ou essa moralidade proibicionista “infiltrada” no cotidiano das famílias. Ela provoca reações preconceituosas em relação ao uso de substâncias psicoativas. Preconceito este que expressa desvalores advindos do individualismo característico e alimentador da sociabilidade burguesa. Iasi (2013) destaca sobre como as ideologias servem à ordem dominante, plasmando e conformando a naturalização da sociabilidade sob o capital como algo “natural” ou “inevitável”, dando um “sentido à subordinação”.

As famílias da classe trabalhadora vivem nesta e não em outra sociabilidade. Pesquisas realizadas pela antropóloga Delma Peçanha Neves (2011b) descortinam algumas relações envolvidas com o uso de “drogas” por homens, sendo estas associadas pelas famílias ao ócio e ao vício, que, como bem reflete Brites (2017), é tido como oposto às virtudes. Todas essas concepções contribuem para a fragilização da proteção exercida pelas famílias aos sujeitos. A importância dessa proteção é percebida quando, numa pesquisa nacional, um dos motivos mais frequentemente mencionados como aqueles que contribuíram para a situação de rua foram “desavenças familiares”. Importante que consigamos também problematizar esse fator e compreender alguns elementos pelos quais podem estar relacionadas tais desavenças.

Neves (2011b) trabalha com pesquisas realizadas sobre a população em situação de rua desde a década de 1970 e traz importantes elementos para compreensão da relação entre esse grupo populacional, gênero, trabalho e família.

Há como cenário uma reflexão acerca do papel do trabalho em nossa sociedade e compreendemos que dialoga com aquilo que Ianni (1992) trata como “beatificação do trabalho” ou “louvação ao trabalho” em nosso país ao longo das repúblicas e vinculado à construção da nação. Resumo dessa louvação refletida pelo sociólogo é a famosa frase “o trabalho dignifica o homem”. A associação do trabalho à dignidade ou da dignidade atrelada ao fato de os sujeitos trabalharem traz à tona a necessidade do progresso, a fim de estimular a produção para o capital. Neste mesmo âmbito encontra-se o combate à ociosidade, o uso de termos como “mendigos” ou “vagabundos” para se referir a sujeitos que ocupavam e ocupam as ruas como espaços de sustento, de manutenção de sua sobrevivência e a publicação de legislações que criminalizavam a chamada “vadiagem” no final do século XIX e meados do século XX.

A relação construída entre trabalho e dignidade também se perpetra no cotidiano das famílias da classe trabalhadora e, aliada à divisão sexual do trabalho que atribui ao homem o papel de provedor, traz elementos importantes que contribuem para compreendermos a constituição do fenômeno “população em situação de rua”. Segundo Neves (2011b, p. 118),

O desemprego prolongado produz a desmoralização social e a perda de autoridade familiar, inviabilizando o papel de esposo. Alguns homens colocados em situação de constante desemprego reordenam sua vida familiar agregando-se como companheiro ou agregado; desistem de perseguir a posição de autoridade ou de esposo; e são comumente expulsos desse convívio. Sem apoio, tendem a se agregar aos desempregados que sobrevivem da prestação de pequenos serviços diários, trabalham e habitam na rua.

Apresenta também a condição dos sujeitos, principalmente os homens, que migram em busca de condições mais dignas de vida, para quem “retornar” em situação de rua ou em condições degradantes distintas daquelas para as quais lançou expectativas ao migrar torna-se uma possibilidade “insuportável”.

O proibicionismo e a “beatificação do trabalho” são elementos orientadores de ações do Estado em resposta à existência de pessoas em situação de rua nas cidades, da sociedade em geral e das próprias famílias que, conforme insistimos, vivem sob esta e não sob outra sociabilidade.

Importante mencionar que Escorel (2003) observa em sua pesquisa que a maioria das pessoas em situação de rua possuem uma família, mas que quanto mais tempo permanecem nas ruas, menor fica a frequência dos contatos com esta. Cabe observar a ruptura de vínculos familiares, que pode ser agravada na medida em que o tempo passa. A rua também produz vínculos dos mais diversos para muitos sujeitos.

Observa-se que a população em situação de rua é constituída majoritariamente por homens adultos. Neves (2011b) problematiza que as mulheres costumam obter êxito ao acionarem redes de solidariedade e mesmo a rede caritativa, tendo esse papel no interior das famílias quando é o caso. Não é diferente nas ruas. Nas tramas do urbano, da cidade opulenta que produz desperdício, elas buscam alimentos e vestuário.

Acerca dos recursos, Escorel (2003) menciona que eles são fator relevante para compreensão de onde estão concentradas as pessoas em situação de rua. Em geral, há maior concentração nos “centros” das cidades, uma vez que é onde circulam tais recursos, disponíveis para sobrevivência e para desenvolvimento de atividades que as pessoas em situação de rua costumam exercer para obter alguma renda. Ademais, costumam ser áreas que permanecem mais “vazias” à noite, garantindo-lhes “uma privacidade mais doméstica”.

A relação entre população em situação de rua e os recursos das cidades, consumindo ou trabalhando com o “resultado” desse desperdício demarca a céu aberto as contradições do sistema capitalista. Os ditos “motivos” que levam amplos contingentes para a situação de rua não ocorrem “sozinhos” na vida dos sujeitos e possuem intrínseca relação com a sociabilidade sob o capital, incluindo aí a ruptura de vínculos e a desproteção social de indivíduos e suas famílias.

2.3 Cidade de contradições e a população em situação de rua

A cidade se construiu como espaço das contradições sob o modo de produção capitalista, não sendo apenas uma espécie de organização despretensiosa dos espaços. Tem história e é constituída de relações tecidas por essas mesmas contradições. Tem vida, sonhos e pulsação. Segundo Iasi (2013), “a cidade é expressão das relações sociais de produção capitalistas, sua materialização política e espacial que está na base da produção e reprodução do capital”. (p. 41).

Nessas cidades reproduz-se o fenômeno população em situação de rua. Dados de censos e pesquisa do IPEA revelam que há um aumento de pessoas vivendo nas ruas das cidades brasileiras em geral, sendo ainda predominante sua presença naquelas de grande porte e nas metrópoles (NATALINO, 2020). Fundamental que consigamos compreender as tramas da cidade capitalista e que esta é constituída ou vertida em mercadoria para aproximação de mais elementos para a problematização que buscamos neste artigo.

Tomazine (2016) contribui com as nossas reflexões, na medida em que atribui o caráter de construção ao espaço urbano mercantilizado e ao espaço público vertido em lugar “de ócio e consumo”. A perspectiva é a da “maximização de lucros”, uma vez que a acumulação capitalista não pode deixar de ocorrer segundo os interesses do próprio capital. E há, neste bojo, uma disputa por bens e serviços públicos, que alija a classe trabalhadora de acessos importantes para sua reprodução. E para uma melhor compreensão do caso brasileiro, o autor propõe que ponderemos sobre o rápido processo de industrialização no país e sobre a “hegemonia neoliberal no governo do espaço urbano” (Ibid., p. 176).

O autor supramencionado contextualiza que na Europa a população urbana “ultrapassou” a rural pós-industrialização após mais de um século e isto levou apenas algumas décadas nos países da periferia do sistema. Afirma que a miséria no campo e o “progresso industrializante” no século XX produziu “o maior êxodo migratório da história humana, inchando metrópoles desmesuradas como São Paulo e Rio de Janeiro” (Ibid., p. 176). Não houve, contudo, infraestrutura que acompanhasse este “movimento”, produzindo pauperismo e superexploração do trabalho e um imenso “exército industrial de reserva”.

O crescimento das cidades brasileiras deu-se acompanhado da sanha pelo “progresso” e pela “modernização” urbanas, chanceladas pela pretensa construção de uma “nação” nos marcos da ordem. Isto ocorreu em um período pós “abolição”, em que as desigualdades sociais estavam agravadas, os sujeitos que haviam sido escravizados foram lançados sem proteção social nos grandes centros urbanos, além das marcas coloniais que persistiram e ainda deixam seus lastros em nosso país (IANNI, 1992; TOMAZINE, 2016).

Cabe destacar que no início do século, os espaços públicos eram aqueles de encontros entre sujeitos e desenvolvimento de relações de sociabilidade importantes, principalmente para as pessoas negras outrora escravizadas. Todavia, a necessidade de ordenamento do espaço urbano como uma demanda da cidade mercantil, da cidade que deveria ser apta à circulação de mercadorias e que posteriormente tornar-se-ia a própria mercadoria, provocou um processo de transformações urbanas relevantes e significativas para compreensão da segregação urbana e da característica étnico-racial da população em situação de rua, debate que precisa ainda ser aprofundado, sobre os quais trazemos alguns elementos.

O “sentimento nacionalista”, nos termos de Tomazine (2016), dá origem ao que o autor denomina “revanchismo colonialista”. Trata-se de processo em que as elites, a partir de interesses econômicos e sociais, tentaram retomar espaços urbanos acusados de “desordem”. No caso brasileiro, esse revanchismo contou com o embasamento em teorias “científicas” que atribuíam periculosidade à população pobre, chancelando intervenções violentas por parte do Estado: teorias racistas, eugênicas e o movimento higienista que contaram com adesão de médicos, arquitetos, pedagogos, juristas e urbanistas são exemplos importantes.

Essas teorias contribuíram para chancelar intensas intervenções urbanas, como é o caso exemplar da Reforma Pereira Passos no Rio de Janeiro do início do Século XX.

[…] Sob o pretexto de modernizar a capital da nascente república, eliminar seus traços coloniais que tanto envergonhavam nossas elites perante o mundo e ajudar o país a sair da crise econômica, levaram-se a cabo intervenções que resultaram na expulsão dos negros e imigrantes pobres da área central da cidade […] uma série de posturas e leis que tiveram o efeito prático e interditar o direito ao espaço público àqueles elementos não ajustados à normalidade burguesa e branca. Estavam proibidos, por exemplo, andar descalço na nova Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco), bem como o comércio ambulante. Práticas religiosas que não fossem as católicas eram consideradas crime, do mesmo modo que outras coisas aparentemente banais, a exemplo de carregar pela rua um violão, atitude enquadrada no crime da vadiagem (TOMAZINE, 2016, p. 186).

A urbanização higienista teve prosseguimento com governantes posteriores, como vemos em Coimbra (2006). As estratégias urbanas, pedagógicas, médicas, jurídicas buscavam uma espécie de limpeza ou “saneamento moral” da sociedade, separando a pobreza entre pobres virtuosos, os que eram “dignos”, mantinham “famílias coesas” e estavam “inseridos” no mundo do trabalho e pobres viciosos. Estes últimos, considerados um “perigo social”, não eram pertencentes ao mundo do trabalho e sofreram processo de criminalização ideológica e jurídica. O sujeito “vadio”, “mendigo”, que ocupava espaços públicos da maneira não desejável pela “elite branca” sofria sanções e respostas punitivas por parte do Estado. Os espaços públicos eram tidos pelo discurso médico como “a grande escola do mal”, de acordo com pesquisa de Coimbra (2006).

A “louvação ao trabalho” mediante discurso nacionalista nos períodos republicanos e destacada por Ianni (1992) atingia em seus estigmas com maior ênfase a população negra outrora escravizada, desprotegida e ocupante de espaços públicos, de onde obtinha seu sustento. Essa população era componente da superpopulação relativa que, mediante múltiplas determinações, podia ser lançada para a situação de rua.

A construção do “Brasil novo e moderno” deslocou as populações que antes ocupavam as ruas centrais para bairros suburbanos e encostas de morros, onde não chegavam serviços ou mesmo de maneira insuficiente. Esse apartheid social também contribuiu para a reprodução do fenômeno população em situação de rua de diversas maneiras. Uma delas é exemplar dessa correlação: o caso do Rio de Janeiro, em que há um contingente considerável de sujeitos que dormem nas ruas nas regiões centrais e Zona Sul (área conhecida por ser habitada pelas elites) durante a semana, ainda que tenham uma moradia para onde ir. O alto valor das passagens e as ofertas de “trabalhos” para obtenção de renda nessas regiões abastadas, fazem com que se pernoitem nas ruas da capital (ESCOREL, 2003).

As intervenções urbanas são estratégias intrínsecas à acumulação capitalista. E devem ser analisadas de acordo com o movimento dessa acumulação. Importante destacar que a crise estrutural do capital impõe uma série de medidas de recuperação do sistema, saídas para valorização desse capital e o restabelecimento das taxas de lucro, acirrando as condições de vida da classe trabalhadora.

Tomazine (2016) e Duriguetto (2017) dão conta de que, neste contexto, os governos passam a organizar as cidades por meio de instrumentos de planejamento estratégico a fim de atrair investimentos, precisando afastar quaisquer entraves a esse empreendimento, o que acirra as estratégias de “higienização do espaço urbano” e de saneamento moral. Os espaços públicos permanecem sendo aqueles que não devem ser ocupados, a não ser pelo consumo e pela passagem. Constroem-se neste escopo estratégias arquitetônicas para afastar pessoas em situação de rua. Afinal, as cidades são “negócios”, e uma ilustração disto foram as intervenções realizadas em épocas de grandes eventos, como Olimpíadas e Copa do Mundo: remoções, “recolhimentos” compulsórios de pessoas em situação de rua.

Cabe salientar que em “grandes eventos” a população em situação de rua percebe recrudescida a violência do Estado. Isto se acirra no atual período, mas não se trata de estratégia “nova” ou que deixará de existir quando a “questão social” passa também a ser caso de “política” não somente de “polícia”. Podemos afirmar, tendo em vista pesquisa realizada por Freitas (2018), que a população que ocupa as ruas como espaços de sobrevivência e “moradia” nunca deixou de ser “caso de polícia”. Ao longo da história observamos situações que nos remetem a essa reflexão: a chacina de pessoas em situação de rua, conhecida como “massacre do Rio da Guarda” ou “Operação Mata Mendigos” na década de 1960, durante o governo de Carlos Lacerda, conhecido por suas intervenções urbanas chanceladas pelos argumentos do desenvolvimento, da ordem e do progresso. Tal episódio ocorrera dada a vinda da Rainha Elizabeth II da Inglaterra em visita ao país. Homens do Serviço de Repressão à Mendicância agiram acirrando a estratégia do “recolhimento compulsório” de pessoas em situação de rua, assassinando algumas delas, lançando-as nos rios Guandu e da Guarda na Baixada Fluminense. Já nas décadas de 1990 e 2000 observamos diversas operações com nomes sugestivos como “choques de ordem” e “tolerância zero”, com interferência direta sobre a ocupação do espaço público realizada por pessoas em situação de rua em nome da lei, da ordem, da “guerra às drogas” e da organização das cidades. É construído o discurso da desordem a fim de chancelar a proposta de trazer de volta à ordem e legitimar a violência de Estado, esta que tem sido acirrada como estratégia do capital, principalmente direcionado ao “excedente populacional” ou superpopulação relativa.

Trazemos à tona reflexão de Tomazine (2016), segundo o qual essas tentativas de saneamento moral da pobreza, intervenções de cunho moralizante e individualista que, nos dizeres de Duriguetto (2017) descontextualizam as determinações estruturais da “questão social”, são imbuídas de um “sistema de valores conservadores”, que dão sustentáculo à sociabilidade burguesa. Estes valores são acirrados com o recrudescimento do conservadorismo e a regressão de direitos vivenciada na atualidade.

Realizamos até aqui problematizações de dados e características comunicados em importantes pesquisas e censos sobre a população em situação de rua, e somos sempre lançados a compreender o quanto a sociabilidade burguesa e a lei geral de acumulação capitalista, em sua capacidade de atingir diversas dimensões da vida humana têm relação com a conformação do fenômeno aqui estudado.

Além das problematizações, cabe-nos compreender uma afirmação e uma lacuna identificada por Silva (2009): aquela sobre a “inexistência” das políticas públicas destinadas à população em situação de rua, com a qual não concordamos inteiramente. Propomos, então, reflexões acerca de respostas do Estado a esse fenômeno, assim como sua análise no âmbito das “expressões da questão social”.

3 Considerações sobre Estado e população em situação de rua

Conforme vimos em Maranhão (2010) e em Marx (2013), o capitalismo possui uma lei tendencial inerente ao seu desenvolvimento, em que “quanto mais se acumula riqueza em forma de capital de um lado, mais se aglutina a massa de trabalhadores despossuídos de outro” (MARANHÃO, 2010, p. 127). A manutenção da acumulação via exploração do trabalho é o grande objetivo do sistema. Neste escopo, não se pode deixar de considerar um processo fundamental para manutenção da ordem capitalista e de sua acumulação: o Estado.

Destacamos sobre as funções do Estado as reflexões de Mandel (1982). Segundo o autor em tela o mencionado processo histórico possui como funções:

Criar as condições de produção que não podem ser asseguradas pelos membros privados da classe dominante; Reprimir qualquer ameaça das classes dominadas ou de frações particulares das classes dominantes ao modo de produção corrente através do exército, da política, do sistema judiciário e penitenciário; Integrar as classes dominadas, garantir que a ideologia da sociedade continue sendo a da classe dominante e, em consequência, que as classes exploradas aceitem sua própria exploração, sem o exercício direito da repressão contra elas porque acreditam que isso é inevitável, ou que é “dos males o menor”, ou a “vontade suprema”, ou porque nem percebem a exploração. (MANDEL, 1982, p. 333-334).

É possível apreender a sua importância na manutenção da ordem capitalista burguesa, utilizando estratégias de repressão, integração e consenso. A repressão, segundo o autor, traz limites para manutenção da ordem se utilizada todo o tempo.

A coerção e o consenso podem servir ao disciplinamento e controle das classes mais pauperizadas da sociedade. Faz parte desta construção de consensos o alargamento das possibilidades de intervenção via Estado a partir da incorporação de demandas das classes trabalhadoras. Apesar disto, cabe-nos ressaltar que as respostas do Estado via políticas e direitos sociais, conforme alerta Coutinho (2000), são vitórias importantes da economia política do trabalho sobre a economia política do capital, muito embora não possamos ser ingênuas a ponto de crer que o capital é capaz de qualquer “humanização”. As políticas sociais e intervenções do Estado na administração do fundo público formado como produto do trabalho excedente da classe trabalhadora possibilitaram intervenções e administração da “questão social”, mas também funcionam como uma espécie de socialização do ônus, formando-se por meio do trabalho, servindo também aos capitais, especialmente na contemporaneidade.

Duriguetto (2017) pondera que em tempos de crise estrutural do capital e ofensiva neoliberal, avanço do conservadorismo e regressão de direitos, a face punitiva do Estado e estratégias como a que ela conceitua “assistencialização da questão social” são intensificadas, principalmente nas respostas à superpopulação relativa sobre a qual dissertamos neste texto. Observamos ainda as artimanhas da criminalização da “questão social”, por meio de estratégias direcionadas à população em situação de rua no âmbito da cidade capitalista. Por outro lado, entendemos que respostas baseadas em políticas sociais também devem ser analisadas neste contexto. Segundo estudos de Behring (2018),

As políticas sociais vêm sendo pensadas para compensar a intensificação da exploração, que implica em processos de pauperização absoluta e relativa na maioria das vezes combinados, a depender da luta de classes nos estados nacionais, e considerando o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo e a busca do diferencial de produtividade do trabalho. Neste sentido, no ambiente do neoliberalismo, crescem as dimensões assistenciais das políticas sociais e a própria assistência social como política pública […] Mas nunca podemos olvidar a natureza contraditória e de atendimento a necessidades concretas da classe trabalhadora que está presente nas políticas sociais […] (BEHRING, 2018, p. 49).

No caso do fenômeno “população em situação de rua”, observamos um predomínio de subterfúgios repressivos, da face punitiva do Estado ao longo do tempo, além da filantropia e da caridade. Neves (2011a) sinaliza que por estarem em espaços públicos e a degradação de sua vida situada a céu aberto, há uma íntima correlação entre a construção de estratégias filantrópicas e a antes dita “mendicância”. Tal relação demonstra-se histórica.

Ademais, é possível observar a histórica “preocupação” do Estado brasileiro em fornecer respostas à “mendicância”, “vadiagem”, desde a sua criminalização não somente ideológica como legal. Podemos observar na existência de um setor de “mendicância” que funcionou no interior da instituição policial, e do Serviço de Repressão à Mendicância, a partir do qual houve a já mencionada “Operação Mata Mendigos” os aspectos de uma via “punitiva”. Palavras como “recolhimento” e “recuperação” são bastantes recorrentes quando analisamos as respostas do Estado à população em situação de rua.

Em Freitas (2018) observamos que a “mendicância” era assunto recorrente na imprensa, pelo menos a partir das décadas de 1950 e 1960, quando a população urbana no Brasil começava a alcançar um vasto crescimento. Há alguns indicativos da existência de posicionamentos, ainda que instituintes e com volume muito diferente daquele olhar e das práticas instituídas, no sentido de problematizar as necessidades humanas das pessoas que viviam nas ruas. Ademais, é possível compreender que, dado o trabalho da imprensa em trazer à cena pública o “massacre do Rio da Guarda”, além de toda a repercussão internacional do caso, o Serviço de Repressão à Mendicância (SRM) do antigo Estado da Guanabara deixou de existir, passando a dar lugar a um setor no interior da Secretaria de Estado e Serviços Sociais, que ofertava o serviço num Centro de Recuperação de Mendigos.

Uma observação que podemos realizar a partir da pesquisa realizada por Freitas (2018) com fontes jornalísticas e outros documentos, é que a repressão era realizada tanto pelo “SRM” quanto pelo Serviço dito de “recuperação”. E que no histórico do SRM, identifica-se a preocupação de sujeitos, em dados momentos, com a “recuperação” dos ditos “mendigos”. Há fontes que dão conta de entrevistas com um dos inspetores do SRM contabilizando o número de “mendigos” resgatados. Uma estratégia que visa à integração a despeito do título “repressão”, assim como observou-se “repressão” a despeito do título “recuperação”. A recuperação, segundo uma assistente social que atuava no “Centro”, seria necessária uma vez que, para ela, “os mendigos não participam do desenvolvimento do país”. Portanto, a “normalidade” era a participação no “mundo do trabalho” e consequentemente contribuição dos sujeitos para a ordem, progresso e desenvolvimento. A medida da “recuperação” era a inserção no mercado de trabalho.

Na década de 1980 também observamos a existência de serviços de “recolhimento”, “recuperação”, abrigos e albergues. Recolher remete à estrutura asilar, de “trancar” para melhor controlar e disciplinar os sujeitos que não estão a contento em relação à ordem capitalista. Importa atentar para o fato de entre as décadas de 1960 e 1980 houve um volumoso crescimento urbano no país. Tomazine (2016) destaca que nos anos de vigência da ditadura militar no Brasil, houve crescimento econômico e da desigualdade social. Essas desigualdades são determinantes, entre outros fatores, para crescimento do fenômeno população em situação de rua.

Na década de 1980, grupos da Igreja Católica, especialmente os vinculados à Teologia da Libertação e movimentos sociais travaram lutas no sentido da redemocratização do país e, nestas circunstâncias, observamos a crescente preocupação com a construção de serviços, direitos e da participação política da população em situação de rua. Observou-se aí também um aumento de pessoas vivendo nesta situação, escancarando as desigualdades sociais a céu aberto.

Importa destacar que a redemocratização do país trouxe perspectivas de conquistas de direitos para diversos grupos e garantias no sentido da proteção social à classe trabalhadora. A Constituição Federal de 1988 foi importante conquista formal no escopo da emancipação política e abriu “caminho” para outras conquistas legais, apesar da ofensiva neoliberal que tem avançado sobre direitos conquistados.

Alguns elementos são fundamentais para compreendermos um caminho de construção de direitos e políticas públicas para a população em situação de rua, mas não concordamos sobre a não existência ou “quase inexistência” dessas políticas apontada por Silva (2009). É possível detectar iniciativas municipais e talvez pontuais, mas elas são componentes de um processo de construção de propostas de trabalho e direitos. Concordamos, contudo, sobre o “protagonismo” da área da assistência social neste sentido.

Há experiências importantes de construção nos municípios de Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo, os que temos registros ainda nas décadas de 1980 e 1990. Há pesquisas que demonstram mobilizações incentivadas por profissionais da área de assistência social em unidades de acolhimento institucional, à época denominadas “albergues” no caso de Porto Alegre, construção de fóruns, de espaços importantes de controle social que passaram a contar com a participação de pessoas em situação de rua. Cabe destacar também a relevância desse incentivo à participação e da criação de espaços de debates e de participação social por parte de prefeituras governadas pelo Partido dos Trabalhadores, experiência, em algum momento das décadas mencionadas, vivenciada nos três municípios citados. Destacamos também tentativas de projetos de lei sobre a atenção à população em situação de rua e construção de serviços e projetos no sentido da garantia de direitos daqueles sujeitos. As demandas das pessoas em situação de rua estão cada vez mais presentes na cena pública.

Nos anos 2000 temos a criação do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis e em 2005 do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) que surgiu após uma chacina de sujeitos que dormiam na Praça da Sé em São Paulo. Esta organização, ao que pudemos depreender na pesquisa de Freitas (2018), tem relação íntima com a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao Governo Federal. O diálogo do MNPR, fóruns e outros coletivos junto ao Governo Federal resultou em um Grupo de Trabalho Interministerial, a construção do único censo nacional sobre a população em situação de rua realizado pelo então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que administrou a Política de Assistência Social no âmbito nacional, e a publicação do Decreto 7.053 de 2009 que instituiu a Política Nacional Sobre População em Situação de Rua (PNPR).

Cabe destacar aqui, numa análise sobre a PNPR, que se trata de um avanço relacionado à declaração de direitos das pessoas em situação de rua, mas que o governo não a enviou como projeto de lei a ser votado pelo Congresso Nacional, tendo permanecido como um decreto até o último mandato do Partido dos Trabalhadores. Ademais, traz em seu escopo a necessidade de adesão pelos municípios sem prever subsídios orçamentários para tal. Não há caráter compulsório para esta adesão. Observamos uma fragilidade que precisa ser destacada, qual seja, a abertura para convênios entre entidades públicas e privadas para execução de projetos destinados à população em situação de rua. No mesmo texto em que incentiva a responsabilidade do poder público, traz esta abertura para parcerias e atuação de entidades privadas e sem fins lucrativos.

Na PNPR destacamos como avanços a apresentação de um serviço especializado voltado à população em situação de rua no âmbito da Política de Assistência Social, que é o caso dos Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua, os Centros POP. Também há o incentivo à atuação intersetorial para atenção à população em situação de rua e registro sobre a importância de reorganização dos serviços de acolhimento institucional voltados a este público. Sobre os Centros POP, cabe dizer que estes têm como objetivo ofertar o Serviço Especializado para População em Situação de Rua no âmbito da Política de Assistência Social. A proposta é constituir-se um serviço de característica não asilar, com funcionamento minimamente diurno, que oferte espaço para que pessoas em situação de rua guardem seus pertences, possam realizar sua higiene pessoal, participar de atividades de convivência, fortalecimento de vínculos e atendimentos individuais e coletivos. Um dos objetivos ratificados em Brasil (2011) é a necessidade de esse serviço possuir uma gestão democrática em diálogo com as pessoas em situação de rua e incentivar sua participação social. Objetiva também a realização de um trabalho articulado que possibilite o acesso de pessoas em situação de rua a outras políticas públicas e serviços.

Importante destacar que no âmbito da Assistência Social já havia sido realizada uma alteração em sua Lei Orgânica (LOAS)8 incluindo texto que indica criação de serviços para a população em situação de rua. Isso atesta a proximidade e certa centralidade da Assistência Social e não de outras políticas sociais junto à população em situação de rua, já mencionada por Silva (2009) em sua pesquisa. Sujeitos da Política de Assistência Social foram ativos na participação de todo o processo relativo à construção da PNPR e o único censo nacional fora realizado pelo ministério que geria esta mesma área. No caso da população em situação de rua, a Política de Assistência Social e a Política de Saúde são aquelas que por orientação federal criaram serviços específicos para este grupo populacional.

Entendemos neste sentido que o mesmo governo que publicou um decreto com a PNPR e serviços específicos para a população em situação de rua, realiza um tipo de política voltada para orientações macroeconômicas de organismos internacionais, e que contribui para reprodução da superpopulação relativa, um dos fatores que contribui para a constituição do fenômeno população em situação de rua.

Importa-nos analisar que além dos Centros POP e unidades para acolhimento institucional, observamos a implementação dos Serviços Especializados em Abordagem Social no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)9. Realizando consultas sobre esse serviço específico, compreendemos o quanto ele tem sido executado tendo como parâmetro mais recorrente para seu planejamento “denúncias” realizadas pela população local acerca da presença de pessoas em situação de rua. Essa informação obtivemos em Freitas (2019), que apresentou uma tabela a partir de dados obtidos nos Censos SUAS de 2014 a 2017. No próprio censo temos o uso da palavra “denúncia” para se referir ao ato da população domiciliada “comunicar” sobre a presença de pessoas em situação de rua nos espaços. Isto nos remete à criminalização da ocupação dos espaços públicos e como essa criminalização entra no planejamento e na própria letra de documentos públicos. Não negamos que de maneira contraditória as denúncias possam ser fontes de informação sobre a permanência de pessoas em situação de rua para as quais os serviços podem dirigir sua atenção. Contudo, o que chama a atenção é a sua predominância como fonte de informações que orientam o planejamento nos municípios, sendo em porcentagem bem maior que a vigilância socioassistencial, o conhecimento e análises das equipes sobre os territórios.

Relatório do Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua(CNDDH) e Catadores de Materiais Recicláveis (2014) acerca das violações de direitos pelas quais passaram pessoas em situação de rua durante a Copa do Mundo no Brasil, foi possível observar a realização de ações de “recolhimento compulsório” e outras violações de direitos às pessoas em situação de rua perpetradas por sujeitos vinculados ao Estado em mais diversos serviços: de abordagem social (Política de Assistência Social), limpeza urbana, segurança pública, entre outras políticas. Novamente e como uma permanência ao longo da história, reservadas as particularidades de cada tempo, observamos o “recolhimento” como estratégia de praticar a violência de Estado contra pessoas em situação de rua. Apesar de algumas rupturas no campo legal sobre os direitos de pessoas em situação de rua, a realidade ainda traz como desafio a superação da herança histórica e conservadora da relação entre Estado e este grupo populacional.

Esse “recolhimento” ou requisições para esse “recolhimento” se acentuam quando aliado à “guerra às drogas” ou ideologia proibicionista. Cabe pontuar também que nos últimos anos temos observado um retrocesso no campo das políticas relacionadas à saúde mental e políticas sobre drogas10, em especial nos anos de governo ultraconservador e ultraliberal que se encontra no poder no âmbito federal atualmente. Há um retorno de perspectivas asilares e manicomiais para “tratamento” quanto ao consumo de psicoativos, com destinação do fundo público às chamadas Comunidades Terapêuticas, que possuem viés confessional e aplicam “tratamentos” não baseados em evidências científicas. Neste caso, percebemos um incentivo para encaminhamento de pessoas em situação de rua para “acolhimento” nesses espaços. Importa-nos observar que no site do Ministério da Cidadania11, atualmente responsável pela gestão da Política de Assistência Social há uma matéria em destaque anunciando a ampliação de vagas nessas mencionadas comunidades. Esse incentivo ocorre quando é indicado por especialistas, tanto no caso de pessoas em situação de rua em geral, quanto no caso de pessoas usuárias de substâncias psicoativas, o tratamento de base territorial e comunitário. Sobre as Comunidades Terapêuticas, Brites (2017) destaca que o incentivo a elas fere a laicidade do Estado e os princípios do Sistema Único de Saúde.

Junto a esse tema da laicidade do Estado, há relatos em diários de campo que requerem aprofundamento, mas que dão conta da existência de abordagens sociais sendo realizadas em conjunto entre a política de assistência social e a Guarda Municipal (GM-Rio) no Rio de Janeiro, em que a GM atua a partir de elementos confessionais, realizando “orações” e incentivando a realização de “caridade” e “filantropia” em vez de recolhimentos. São elementos sobre os quais é preciso estar atento, pois também podem estar atrelados à função repressiva do Estado.

Sobre as respostas do Estado ao fenômeno população em situação de rua, analisamos que não são distintas daquelas realizadas à superpopulação relativa ou aquelas realizadas a partir da ideologia proibicionista ou de “guerra às drogas”: recolhimentos, violências, ações de cunho higienista e racista. Há, no entanto, desde a redemocratização, políticas baseadas na perspectiva dos direitos, que podem ser consideradas avanços. No campo das permanências, observamos uma relação próxima com a caridade, a filantropia e estratégias de viés confessional, que, no entanto, têm-se avolumado, bem como adensado a partir de um avanço do conservadorismo, também rebatendo nas estratégias de gestão das cidades capitalistas.

Observamos que historicamente as respostas do Estado ao fenômeno população em situação de rua tem sido intensas em sua face punitiva aliada a estratégias assistencialistas e filantrópicas, as duas primeiras sendo imbricadas difusamente em muitos serviços públicos. Desde o Serviço de Repressão à Mendicância nas décadas de 1950 e 1960, aos Serviços Especializados em Abordagem Social. A face punitiva do Estado não está somente no exército, na política, poder judiciário e penitenciário. No caso da população em situação de rua, é possível observar que ela se mostra em espaços ditos de “recuperação”, nos serviços vinculados à assistência social, como o de abordagem social, ou o de limpeza urbana. As violências de Estado junto à população em situação de rua são difusamente perpetradas.

O proibicionismo, a “beatificação do trabalho”, o higienismo moral demonstram-se também como repressão a partir dos mecanismos mencionados por Mandel (1982). Estão nas legislações, nos serviços e mesmo no cotidiano das famílias da classe trabalhadora, o que traz rebatimentos diretos para pessoas em situação de rua. As justificativas produtivistas, os argumentos da ordem, do progresso e em nome deles tentam-se justificar e legitimar essas violências de Estado no âmbito da cidade mercadoria.

Pondera-se, contudo, que a partir das décadas de 1980 em alguns municípios governados por partidos de esquerda e principalmente após os anos 2000 observa-se uma crescente institucionalidade de constituição de políticas e serviços destinados a esse grupo populacional, como uma marca de “novidade” em relação ao que se tinha antes a título de respostas do Estado. Essa institucionalização, contudo, convive com as permanências sobre as quais se mencionou. Menciona-se e concorda-se, contudo, com Behring (2018), aqui citada: apesar do caráter contraditório das políticas sociais, elas respondem a necessidades concretas da classe trabalhadora. Não é diferente no caso da classe trabalhadora que se encontra em situação de rua.

Cabe pontuar que o racismo estrutural em sua relação com a população em situação de rua, expressa-se em todos esses processos e respostas do Estado e é preciso que adensemos pesquisas a esse respeito, uma vez que aqui apontamos a lacuna em relação a pesquisas mais densas.

Em tempos de intensa regressão de direitos e de avanço de um conservadorismo que não se foi, mas se intensifica, avaliamos que a feição punitiva do Estado se apresenta de maneira mais recrudescida, aliada à regressão de direitos, que não deixa de constituir em violência e violações a esse grupo populacional sobre o qual falamos.

E este momento leva-nos novamente a refletir acerca dos direitos sob o capitalismo, que embora abranjam formalmente nas letras da lei a igualdade no acesso, traz desafios no sentido da centralidade da propriedade privada, inerente a esse modo de produção. A concretização de direitos que respondam integralmente as necessidades humanas é incompatível com a propriedade privada e com a acumulação capitalista produtora de desigualdades.

4 Considerações finais

A população em situação de rua é um complexo fenômeno, grave expressão da “questão social”, manifestada pela ocupação de espaços públicos para reprodução da vida de sujeitos apartados de seus direitos. Trata-se de sujeitos que compõem a superpopulação relativa ou população excedente que provoca o rebaixamento dos salários e contribui para o aumento dos superlucros. Além do desemprego, da relação direta com o mundo do trabalho, com a inserção precarizada nesse mundo do trabalho e mesmo nas respostas residuais e assistenciais em detrimento da proteção social pelo trabalho e pela previdência social, podemos compreender que há outras determinações fundamentais para compreensão da conformação do fenômeno no Brasil, destacando-se a sociabilidade burguesa, que espraia seus mecanismos para todos os aspectos da vida humana, aprofundando inclusive individualismos e preconceitos.

Conseguimos perceber, diante de todo o exposto que há permanências importantes, heranças históricas que estão “entre nós” nos serviços destinados à população em situação de rua, nas violências de Estado, nas legislações, posicionamentos e mesmo no cotidiano dos sujeitos: o higienismo, a criminalização e os discursos da ordem, do progresso, do desenvolvimento e da “beatificação do trabalho”. Elas estão nas repostas do Estado e mesmo nas requisições que a sociedade em geral realiza aos governos para responder à permanência de pessoas nas ruas. Isto demonstra a moralização e individualização, que contribuem para naturalização não somente do fenômeno, mas também da violência perpetrada contra pessoas em situação de rua, inclusive por meio do “recolhimento compulsório”, a estratégia do recolhimento em geral ou da noção da “recuperação”, tendo como parâmetro o “produtivismo”.

A permanência das respostas filantrópicas assim como o recrudescimento e mesmo destinação de fundo público para entidades filantrópicas e de viés confessional demonstram retrocessos nas conquistas de direitos da população em situação de rua. Há uma regressão de direitos, desmanche de políticas sociais em geral, como saúde, assistência social e principalmente trabalho e previdência social, um avanço do conservadorismo que nunca se foi, mas que hoje torna mais nítida sua relevância para a acumulação capitalista no âmbito urbano.

A gestão urbana que visa o lucro em detrimento das necessidades humanas escancara o limite dos direitos nesta ordem, embora defendamos a sua garantia. A realidade demonstra a incompatibilidade entre a propriedade privada que funda essa sociabilidade e a garantia de direitos humanos para todas as pessoas. A defesa da propriedade privada aprofunda as desigualdades sociais, o que contribui também para a conformação do fenômeno população em situação de rua.

Referências

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Notas

1 Vide SANT’ANNA, E. Para 43% dos brasileiros, número de moradores de rua aumentou. Folha de São Paulo, 4 jan. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/01/para-43-dos-brasileiros-numero-de-moradores-de-rua-aumentou.shtml. Acesso em: 1ago.2020. Neste caso, destaca-se na notícia que a percepção de aumento do número de pessoas vivendo nas ruas foi maior no caso das capitais dos estados.
2 A pesquisa pode ser consultada em Natalino (2020).
3 O poema pode ser encontrado em:http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/Lucia_Poema.pdf. Acesso em: 28 set. 2018.
4 Vide o verbete “chacal” no dicionário “Michaelis”. Disponível em http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=chacal. Acesso em:1 ago. 2020.
5 Marx (2013) realiza uma análise dos diferentes “matizes” da superpopulação relativa: flutuante, latente e estagnada, além de um sedimento “mais baixo” que habita a esfera do pauperismo. Sobre a superpopulação relativa flutuante, o autor disserta “Nos centros da indústria moderna […] os trabalhadores são ora repelidos, ora atraídos novamente em maior volume, de modo que, em linhas gerais, o número de trabalhadores ocupados aumenta, ainda que sempre em proporção decrescente em relação à escala da produção. A superpopulação existe aqui sob uma forma flutuante” (MARX, 2013, p.716). Já sobre a superpopulação relativa latente, está relacionada aos fluxos entre o rural e o urbano, estando uma parte da população rural “continuamente em vias de se transferir para o proletariado urbano ou manufatureiro e à espreita de circunstâncias favoráveis a esta metamorfose.” (Ibid. p.717). Pressupõe-se, neste caso, “[…] a existência no próprio campo de uma contínua superpopulação latente, cujo volume só se torna visível a partir do momento em que os canais de escoamento se abrem, excepcionalmente, em toda a sua amplitude” (Ibid. p.718). Já a superpopulação relativa estagnada “forma uma parte do exército ativo de trabalhadores, mas com ocupação totalmente irregular. Desse modo, proporciona ao capital um depósito inesgotável de força de trabalho disponível. Sua condição de vida cai abaixo do nível médio normal da classe trabalhadora […] Suas características são o máximo tempo de trabalho e o mínimo de salário” (Ibid. p. 718).
6 Vide no caso brasileiro a intensa retração de direitos da classe trabalhadora, havendo medidas entre as quais a aprovação da Lei 13467 de 2020 ou Reforma Trabalhista e da Emenda Constitucional 103 de 2019 ou Reforma da Previdência.
7 A palavra “trecheiros”, nesta pesquisa, refere-se a pessoas em situação de rua migrantes, que geralmente transitam entre as cidades em busca de trabalho.
8 A Lei Orgânica da Assistência Social – Lei no8742, de 7 de dezembro de 1993 - prevê a organização da Assistência Social como Política de Seguridade Social não contributiva. Foi alterada em 30 de dezembro de 2005 pela Lei 11258, que tem como objetivo acrescentar na organização da Assistência Social o Serviço destinado a pessoas em situação de rua. A LOAS está disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11258.htm. Acesso em: 5 nov. 2020.
9 O Sistema Único de Assistência Social fora instituído legalmente por meio da Lei 12435 de 06 de julho de 2011 e tem como objetivo dispor sobre a organização da Assistência Social a partir de um sistema único. De acordo com Brasil (2011), “O desafio mais atual colocado ao SUAS para se assegurar a institucionalidade da Política de Assistência Social no Brasil se refere ao aprimoramento da gestão e à qualificação da oferta dos serviços”. A Lei do SUAS está Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12435.htm#:~:text=Altera%20a%20Lei%20n%C2%BA%208.742,a%20organiza%C3%A7%C3%A3o%20da%20Assist%C3%AAncia%20Social. Acesso em: 5 nov. 2020.
10 Para maiores informações, vide CFESS, Nota Técnica “mudança na Política de Drogas e as implicações para o trabalho de assistentes sociais”. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/Nota-tecnicalei13840-2019-.pdf. Acesso em:1 ago. 2020.
11 Vide matéria “Ministério da Cidadania vai ampliar vagas em Comunidades Terapêuticas”. Disponível em: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/ministerio-da-cidadania-vai-ampliar-vagas-em-comunidades-terapeuticas. Acesso em:1 ago. 2020.

Notas de autor

1 Assistente Social na Secretaria Municipal de Assistência Social de Itaguaí. Doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Rio de Janeiro/RJ - Brasil. E-mail: remarfre@gmail.com.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): FREITAS, R. M. de. População em situação de rua e as respostas do Estado nas tramas da cidade capitalista. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 22, n. Especial, p. 928-951, 2020. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p928-951. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15807.

COMO CITAR (APA): Freitas, R. M. de. (2020). População em situação de rua e as respostas do Estado nas tramas da cidade capitalista. Vértices (Campos dos Goitacazes), 22(Especial), 928-951. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p928-951.

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