DOSSIÊ TEMÁTICO: VIOLÊNCIA DE ESTADO E POLÍTICA SOCIAL: ENTRE O APARATO ASSISTENCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL
Mulas e Mulheres no Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade*
Mules and Women in Brazil: a question of gender, justice and intersectionality
Mulas y mujeres en Brasil: una cuestión de género, justicia e interseccionalidad
Mulas e Mulheres no Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade*
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, 2020
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 24 Agosto 2020
Aprobación: 19 Octubre 2020
Resumo: Mulas e mulheres na história do Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade têm por objetivo mostrar como a associação da mulher que atua como mula no mercado de drogas não é uma questão do acaso. Resultado de uma pesquisa bibliográfica com teses e dissertações produzidas na última década (2006-2016) sobre mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas nas cinco regiões do país, obteve-se, enquanto um dos resultados, o aprisionamento de grande parte dessas mulheres como trabalhadoras do mercado informal e ilícito de drogas na condição laboral de mulas. Destaca-se a relação intrínseca entre modo de produção capitalista e sistema de justiça, em que esse último não só assegura o direito privado à propriedade, bem como cria mecanismos seletivos e criminalizatórios dirigidos aos segmentos mais pobres e destituídos de direitos na sociedade, esse também composto por mulheres. Tudo isso tem sido determinante para a manutenção do caráter seletivo do sistema de justiça e penal no Brasil, cujos fundamentos filosóficos manifestam-se numa ação permanente, determinando o aprisionamento de pessoas a partir de sua condição de classe, raça, gênero e perpetrada violação do direito à cidadania.
Palavras-chave: Mulheres, Justiça, Mercado de Drogas, Mulas, Interseccionalidade.
Abstract: The paper aims to show how the association of women who act as mules in the drug market is not a matter of chance. It follows a literature review of theses and dissertations produced in the last decade (2006-2016) on women arrested for the crime of drug trafficking in the five regions of the country. One of the results obtained in the study was the imprisonment of most of these women as workers in the informal and illicit drug market working as mules. The intrinsic relationship between the capitalist mode of production and the justice system is noteworthy, in which the latter not only ensures the private right to property, but also creates selective and criminalizing mechanisms aimed at the poorest and deprived of rights segments in society, also consisting of women. All of this has been decisive for maintaining the selective character of the justice and penal system in Brazil, where philosophical foundations are continuously manifested, determining the imprisonment of people based on their condition of class, race, gender and the maintenance of violations of the right to citizenship.
Keywords: Women, Justice, Drug Market, Drug Mules, Intersectionality.
Resumen: Mulas y mujeres en la historia de Brasil: una cuestión de género, justicia e interseccionalidad pretende mostrar cómo la asociación de mujeres que actúan como mulas en el mercado de la droga no es una opción, pero la falta de ella. Como resultado de una investigación bibliográfica con tesis y disertaciones producidas en la última década (2006-2016) sobre mujeres detenidas por el delito de narcotráfico en las cinco regiones del país, uno de los resultados obtenidos fue el encarcelamiento de la mayoría de estas mujeres como trabajadores del mercado informal e ilícito de drogas que trabajan como mulas. Se destaca la relación intrínseca entre el modo de producción capitalista y el sistema de justicia, en el cual este último no solo asegura el derecho privado a la propiedad, sino que también crea mecanismos selectivos y criminalizadores dirigidos a los más pobres y privados de derechos en la sociedad, este también compuesto por mujeres. Todo esto ha sido fundamental para mantener el carácter selectivo del sistema judicial y penal en Brasil, cuyos fundamentos filosóficos se manifiestan en la acción permanente, determinando el encarcelamiento de personas en función de su condición de clase, raza, género y violación perpetrada al derecho a la ciudadanía.
Palabras clave: Mujer, Justicia, Mercado de drogas, Mulas, Interseccionalidad.
1 Introdução
A mula foi a principal forma de transporte no período colonial. No caso brasileiro, vários tipos de animais, destinados a variadas funções, eram trazidos das pradarias do Rio Grande do Sul. Principalmente as mulas foram a força motriz do sistema de transporte para o escoamento da produção interna de várias regiões e períodos no Brasil: o ouro das Minas Gerais, o açúcar e o café de São Paulo e do Rio de Janeiro
(Luiz Adriano Borges).
Quando saímos da prisão e não queremos mais nos envolver no tráfico somos chamadas de 'buceta'. Se você parar vai ter crítica, você favorece e enche o bolso deles, por isso eles não querem que você saia. Quando você sai, você não vale nada (L.)
(Hanna Zuquim Aidar Prado)
Mulas e mulheres na história do Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade têm por objetivo mostrar como a associação da mulher que atua como mula no mercado de drogas não é uma questão do acaso. Resultado de uma pesquisa bibliográfica com teses e dissertações produzidas na última década (2006-2016) sobre mulheres presas na tipificação penal prevista na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, nas cinco regiões do país, obteve-se, enquanto um dos resultados, o aprisionamento de grande parte dessas mulheres como trabalhadoras do mercado informal e ilícito de drogas na condição laboral de mulas. Mas, antes de abordarmos especificamente a situação das mulheres presas na condição de mulas, cabe, todavia, resgatar na formação social e histórica brasileira o papel central que teve a mula animal nas relações comerciais.
A mula foi o animal indispensável durante o processo de colonização no Brasil, período sem estradas e ferrovias. O carregamento de ouro, por exemplo, foi em boa parte feito por esse animal. Luiz Adriano Borges, em artigo intitulado “Mulas em movimento: o mercado interno brasileiro e o negócio de tropas, primeira metade do século XIX”, aborda a importância da mula no desenvolvimento da colônia, bem como os lucros em torno do “negócio de muares brasileiro e como este se desenvolveu em ligação com as regiões da América Espanhola” (BORGES, 2016, p. 207).
Entre as características atribuídas à mula, além da força física, expressa na capacidade de andar por horas e com baixo gasto de energia, os donos de mulas alegavam que se tratava de um bicho obediente, passivo, dócil e que aceitava o comando com maior facilidade. Alegavam que, por ser fêmea e oriunda do cruzamento do asno macho com a égua, era mais inferior que outros animais das espécies que provêm (equinos e asininos). A mula foi considerada, segundo Borges (2016), o animal visto como o mais adaptado ao transporte de cargas, tendo sido muito utilizado até meados do século 20, principalmente em locais de topografia acidentada. Outra questão era a resistência às enfermidades, as mulas adoeciam pouco e, de modo geral, eram longevas. O mercado de muares ultrapassou as fronteiras coloniais. A mula cumpria dupla função nesse negócio, pois era bicho de valor por ser o principal meio de transporte, sobretudo em áreas de extração mineral e, ao mesmo tempo, carregava matéria-prima para exportação. Com esses carregamentos, estradas e ligações inter-regionais foram sendo criadas no país, além das fronteiriças, em especial no Rio Grande do Sul com o Uruguai (BORGES, 2016). Podemos dizer que a mula durante e depois da colonização, até meados do século XX, teve papel central na abertura de rotas de comercialização, exportação e exploração de recursos naturais no país, gerando uma dinâmica de mercado interno e externo.
Situando brevemente a importância das mulas no carregamento de mercadorias, podemos pensar na correlação com as mulas mulheres na contemporaneidade no mercado de drogas. Das 12 produções analisadas, em oito1 delas o termo mula apareceu. Na tese de Ludmila Carneiro (2015) e nas dissertações de Luciana de Souza Ramos (2012) e Carla Serqueira Lima (2016) foram dadas maior ênfase ao trabalho das mulheres na atividade de mula. As demais citaram de forma mais pontual o que seria uma mula do tráfico.
Nessa esteira importa destacar a relação intrínseca entre modo de produção capitalista e sistema de justiça na formação social e espacial brasileira, em que o ordenamento jurídico não só assegurou o direito privado à propriedade, bem como criou mecanismos seletivos e criminalizatórios dirigidos aos segmentos mais pobres e destituídos de direitos e cidadania na sociedade, entre eles as mulheres. O artigo em tela busca mostrar o caráter seletivo do sistema de justiça e penal, cujos fundamentos filosóficos manifestam-se numa ação permanente, determinando o aprisionamento de pessoas a partir de sua condição de classe, raça e gênero. Tomando como ponto de referência as formulações marxianas e a criminologia crítica, afirma-se que uma mulher na ocupação laboral de mula não poder ser uma traficante, tampouco responder pelo crime de tráfico, visto que sua atuação não corresponde ao domínio dos meios de produção no mercado de drogas, mas sim de trabalhadora informal, logo, o seu aprisionamento responde somente à ação penal e criminalizatória pela condição ilícita de sua atividade.
2 Mulas, Mulheres e Mercados de Drogas: o corpo é capital global
Sobre o favorecimento do crime na extração de lucros, Marx (2017) segue atualíssimo, pois, na sua avaliação, essa foi uma forma estratégica de acobertar os grandes crimes e ao mesmo tempo lucrar com os/as despossuídos/as, tanto no trabalho forçado com sanção penal, quanto no pagamento de multas aos proprietários de madeira via Estado. Essa relação é análoga ao caso dos grandes bancos que lavam dinheiro do tráfico, e diante do seu poder de lucros sobre esse mercado, detém o poder político de parar uma investigação pública e seguirem lucrando. Ao mesmo tempo, pelo crime de tráfico, são presas mulheres que carregam drogas em seus corpos, boa parte introduzida na região genital e outro tanto ingerida em forma de cápsulas, o que explica o lugar desumanizado em que estão atuando.
Ser mula, segundo as oito produções analisadas que abordam esse conceito, é ser uma mulher que não chame a atenção da polícia, não tenha perfil de “traficante”, seja honesta e não crie problemas. Por isso ser mula, hoje, no mercado de drogas, segundo essas produções, é como ser a mula do passado colonial, carrega mercadorias e apenas faz a rota mandada. As mulheres atuantes como mulas, de modo geral, transportam drogas para seus companheiros, filhos, netos e maridos presos, tendo de ingressar com a droga no dia de visitas, ou fazem-na em condição de mochileiras, levando de um estado/país para outro. Tipificado como “trafico” de pequena escala: “já que só é possível manejar a quantidade de drogas que se invisibilize grudada ao corpo ou em seu interior, seja nas cavidades vaginais ou anais. A introdução por meio da ingestão, neste caso, não é possível porque não há horas suficientes para a droga ser expelida.” (CARNEIRO, 2015, p. 180).
O primeiro caso é o que mais aparece nessas produções, porque são presas em flagrante durante a revista íntima e, conforme apontam as autoras, em alguns casos são usadas para que um carregamento maior entre enquanto elas são detidas. Estamos falando de mulas-iscas que, por vezes, são contratadas justamente para serem presas, sem que as mesmas saibam. Em média, essas mulheres ganham entre 600 e 2 mil reais para atuarem como mulas. Os preços mais baixos são justamente os que implicam maior risco, no caso, o de tentar ingressar no sistema prisional. Outra questão importante é o número de mulheres mais velhas nessa atuação, tanto pelo fato de “chamarem menos a atenção”, bem como por estarem também em condições mais degradantes de acesso ao trabalho formal. Na investigação de Hannah Prado (2016, p. 117) fica evidente como essas mulheres são mal remuneradas, visto que o valor da droga intramuros prisional chega a valer quase 11,6% a mais que no mercado extramuros.
M. ganhava R$ 600,00 para levar 50 gramas de droga (maconha) para seu namorado que vendia dentro da prisão por mais de 10 vezes o preço de compra da droga (R$ 7.000,00). Isto acontece, pois, o valor das drogas no interior do presídio é muito alta, por conta da dificuldade de entrar neste espaço. Ela explica que gostava do risco que corria e começou por vontade própria, mas relata que foi também por conta da pressão de amigos do namorado, que a coagiam dizendo que uma mulher deve ‘fortalecer seu homem’ que está preso, ou seja: levar drogas se arriscando do ponto de vista de sua saúde, segurança e recebendo pouco por isto. (PRADO, 2016, p. 117).
Quanto à motivação dessas pesquisas, todas atentaram como questão o aumento de mulheres presas nos últimos anos e os poucos estudos sobre o tema. Buscam, em parte, responder o porquê do ingresso, algumas delas alegando a questão afetiva, outras afirmando autonomia, outras colocando de forma dual a relação entre vitimização e punição, em que interrogam se as mulheres são vítimas ou protagonistas. Nesse aspecto, há uma falta de compreensão quanto às redes de afetos e sobrevivência que constituem a realidade de homens e mulheres pobres. No caso dos homens traficantes, tem-se a ideia concebida de que a mulher ora é cúmplice e passiva, ora é atuante. Se ela está situada no discurso de passiva, está mais propensa a ser vítima das estruturas machistas, se está mais ativa e exerce liderança, está em certa medida rompendo com esse “papel” tradicional de sexo/gênero.
São análises limitadas do ponto de vista da materialidade social e reduzem a crítica feita à construção social de sexo/gênero, porque entendem que as opressões não estão organicamente vinculadas às estruturas sociais, mas sim a partir das relações que são ou não estabelecidas entre pessoas mais passíveis às ações de criminalização. Pensar por essa via é criar uma imagem fixada de que toda relação afetiva entre pessoas envolvidas no mercado de drogas, em especial no caso de mulheres que são “apenas mulheres” de traficantes é, por “natureza”, violenta e desigual, enquanto que as não casadas e atuantes no mercado de drogas estariam em processo de “empoderamento”. Como demonstração de que essa análise é equivocada, boa parte das mulheres que foram presas na condição de mulas entrevistadas nas 12 produções eram solteiras. Nota-se, portanto, que:
A discriminação interseccional é particularmente difícil de ser identificada em contextos onde forças econômicas, culturais, e sociais silenciosamente moldam o pano de fundo, de forma a colocar as mulheres em uma posição onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de subordinação. Por ser tão comum a ponto de parecer um fato da vida, natural ou pelos menos imutável, esse pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes, invisível (CRENSHAW, 2002, p. 176).
Nesse aspecto, os estudos parecem distantes da realidade social dessas mulheres, na medida em que situam o debate entre autonomia ou submissão. Além de dicotômico, implica um grau de engessamento da realidade que só pode ser feito por quem fora dela está. As mulheres – pobres – assumem desde muito cedo responsabilidades no âmbito do cuidado que lhes atribuem também desde muito cedo uma carga de experiência de vida e social que ultrapassa, por vezes, a possibilidade de análise de quem se aproxima de forma pontual e circunscrita à essa realidade em busca de respostas prontas e fechadas.
Confutando essas associações, adotou-se no presente estudo a perspectiva interseccional, cujo um dos fundamentos é a visibilidade das diferenças de intragrupos marginalizados. Para a autora Kimberlé Crenshaw, analisar somente as desigualdades de gênero, por exemplo, não permite mostrar as especificidades da subordinação interseccional de raça, classe, casta e etnia. Ainda segundo a autora, a concepção contemporânea de Direitos Humanos declarada pela Organização das Nações Unidas apresenta lacunas quanto à garantia e exigibilidade desse conjunto de direitos às mulheres, na medida em que sua aplicabilidade ocorre sem a distinção de gênero, ao mesmo tempo, esse não reconhecimento da diferença entre os sexos/gêneros reforça as desigualdades, entre elas a de raça. E, afirma:
A importância de desenvolver uma perspectiva que revele a analise a discriminação interseccional reside não apenas no valor das descrições mais precisas sobre as experiências vividas por mulheres racializadas, mas também no fato de que intervenções baseadas em compreensões parciais e, por vezes, distorcidas das condições das mulheres são, muito provavelmente, ineficientes e, talvez, até contraproducentes (CRENSHAW, 2002, p. 177).
Por isso, associar a mula apenas ao lugar da passividade, ou de menor valor, assume uma difusividade de negar que a precariedade de vida da mulher a retira de qualquer passividade em nome da sobrevivência. Há que se fazer a distinção desse cargo dentro da estrutura do mercado de drogas e também fora dele. A ideia de passividade pode guardar relação com o discurso atribuído à figura histórica da mula, em que esse passa a ser reafirmado pelo sistema patriarcal no tocante ao ingresso das mulheres no mercado de drogas. Porém a mulher na condição laboral de mula não está apenas como sujeita passiva, porque suas demandas concretas e materiais colocam-na em um lugar de não inércia. Todavia, os “atributos” que são levados em conta para o seu ingresso se estabelecem exclusivamente na relação desigual entre sexo/gênero. Visto que:
[…] a inserção da mulher no tráfico por meio desta atividade leva em conta a construção social de sua identidade. Atributos de ‘vulnerabilidade’, determinados pelo seu gênero, classe, idade, nacionalidade, etnia, etc., não só são necessários como fundamentais para que exerçam esta função. Isto significa que a mulher pelo fato de ser mulher (ou pela construção de gênero socialmente atribuído a ela) se encaixa no papel de mula, pois possui as características que possibilitam o exercício deste papel. (CHERNICHARO, 2014, p. 113).
O lugar laboral de mula ainda que seja em grande parte ocupado por mulheres, não é específico do sexo/gênero feminino. Os homens também atuam nessa atividade e, de modo geral, fazem as travessias de maior risco – logístico e de valor do carregamento. O que se tem hoje é uma apreensão grande de mulheres no exercício dessa atividade em locais específicos, tais como: prisões, portos, aeroportos e rodoviárias. É preciso entender que as mulas atuam também fora dessa rota e, nesse caso, não temos o mesmo índice de aprisionamento de mulheres. Não podemos afirmar que é uma atividade exercida exclusivamente por mulheres e que o sexo/gênero é definidor. Pois, em se tratando de grandes carregamentos “ou de longas distâncias, situações as quais envolvem volumosos montantes de dinheiro sendo a/o transportadora/r responsável pela operação, são utilizados aviões, navios, ônibus e carros. Aqui a presença predominante é dos homens, responsáveis pela transação (CARNEIRO, 2015, p. 97-98).
Quanto à pesquisa de Luciana Ramos (2012, p. 87), ao adotar uma perspectiva criminológica crítica, feminista e antirracista, a autora não somente compreende o tráfico de drogas enquanto mercado, bem como mostra as contradições inerentes ao modo de produção capitalista, manifestas na compra e venda da força de trabalho e das relações desiguais entre sexo/gênero, raça e classe. Das críticas apresentadas pela autora, destacam-se as relativas à precariedade do trabalho formal, expresso no rebaixamento da remuneração real da força de trabalho, e ao racismo como estruturante no aprofundamento dessas desigualdades, na medida em que mulheres negras, além de todos esses fatores, ganham menos, são mais criminalizadas e mortas por serem negras.
Ainda segundo Ramos (2012), no Brasil, perpetua um racismo assimilacionista, dentro e fora da prisão, em que sugere um branqueamento de todos/as. No âmbito prisional, isso foi destacado diante da falta de padronização, em que ora são as mulheres que se autodeclaram ou os/as agentes penitenciários/as na triagem que colocam. As mulas também são em maioria negras. A discussão sobre raça ainda não é vista como intrínseca à de classe e gênero enquanto fundante da formação social brasileira. No caso da pesquisa de Costa Lima (2016), a autora fez a seguinte observação:
Cumpre destacar que três das entrevistadas eram negras e as demais (05) brancas. E isto dito pela observação da pesquisadora, e não pela autodeclaração dessas mulheres. Com efeito, o elemento raça não apareceu nas narrativas da pesquisa. Em nenhum momento elas se identificaram enquanto negras, brancas […] nem demostraram qualquer interesse em levantar discussão a respeito (COSTA LIMA, 2016, p. 52).
Vejamos que, do ponto de vista analítico, a não declaração em ser mulher negra e o fato de não ter sido um tema narrado, não quer dizer que essa questão não tenha importância, pelo contrário, mostra que, em se tratando de espaço prisional, as formas de operacionalização do racismo fazem-se estruturalmente, o que de fato torna a vida das mulheres negras mais supliciantes do que a de mulheres brancas. “Não demostrar interesse” diz mais sobre o racismo do que o fato de falar sobre ele. Quando se fala das estruturas opressivas e racistas, há um componente de reconhecimento das relações de opressão e dominação, o que difere radicalmente quando não se fala, reproduzindo assim o mito de uma “democracia racial”. Ao adotar essa premissa, negam o conteúdo racista no aprisionamento de mulheres em maioria negras, pobres, com baixa escolarização, solteiras e com filhos. O mesmo vale para o respaldo da suposta “criminalidade feminina”.
Na produção de Marcilaine Oliveira, por exemplo, a “criminalidade feminina” e o aumento do aprisionamento estão associados ao poder de autonomia dessas mulheres em escolherem/optarem pelo tráfico de drogas. Sugere, assim, que esse aumento é resultante de uma maior participação da mulher no espaço e vida pública. A partir de aspectos subjetivos, a autora argumenta que as pessoas, no caso, as mulheres, partilham de um rótulo desviante. Por outro lado, essas mulheres narram para a autora que ingressam por uma questão material, e encaram o tráfico como um trabalho. A pesquisa de Oliveira (2014) busca saber quais são os gastos relativos ao dinheiro vindo do mercado de drogas. As mulheres dizem que compram ou melhoram suas casas, asseguram maior bem-estar econômico e material aos filhos e família, tornando improcedente a ideia de busca pelo mercado de drogas como maior participação na vida e espaço público, visto que suas demandas são ainda de ordem privada, ou seja, ligadas ao sustento da família.
Já para Sintia Helpes (2014), o ingresso das mulheres no sistema prisional guarda relação com o endurecimento da legislação penal, por isso são mais aprisionadas porque estão em atividade de maior risco e expostas, como é no caso das mulas. Mas, ao dialogar com a perspectiva da carreira desviante, desconsidera a dinâmica de mercado impressa no tráfico de drogas.
Situação similar na produção de Janete Biella (2007, p. 88-116), estudo esse que, das produções analisadas, foi o primeiro a ser produzido pós legislação antidrogas de 2006. Para a autora, o ingresso das mulheres está vinculado às relações afetivas com companheiros e familiares. Parte também da premissa do comportamento desviante, e situa o pensamento sexista e androcêntrico enquanto balizadores das desigualdades entre homens e mulheres, porque segundo a autora, e concordando com ela nesse aspecto, existe uma visão de mundo e de socialização impressa a partir do masculino. Nessa pesquisa, as mulheres entrevistadas narram que há uma discrepância entre o que elas têm de drogas na apreensão da polícia em suas casas, e o que é posto nos autos do processo. Segundo as entrevistadas, são quantidades sempre superiores as que elas possuíam. Quanto à atuação da polícia, consideram contraditória essa instituição desempenhar dupla função, de prender e fornecer provas para o sistema de justiça e penal.
É também no estudo de Biella (2007) que aparece de forma inédita a dimensão privada da venda de drogas, em que boa parte das mulheres entrevistadas no ano da pesquisa (2007) tinham sido presas em suas casas, local em que realizavam o comércio varejista de venda e uso de drogas, o que lhe deu subsídios para entender o mercado de drogas e a inserção de mulheres situados em uma dinâmica doméstica. Situação que muda na última década (2006-2016), como bem esclarece Feitosa Lima (2016), ao mostrar o aumento de prisões realizadas fora do espaço doméstico, porém não totalmente desvinculado do privado, já que nessas pesquisas mencionadas há narrativas de mulheres que foram presas durante a revista íntima no sistema prisional.
O Relatório World Drug Report 2018: Women and drugs Drug use, drug supply and their consequences2 produzido pela United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), apresenta um panorama da situação das mulheres no mercado de drogas no mundo, entre os anos de 2012-2016, com três questões centrais: (a) o papel das mulheres na colheita ilícita, cultivo e produção de drogas; b) o papel das mulheres no narcotráfico; e (c) contato das mulheres com o sistema de justiça criminal. Aponta-se no relatório que pouca consideração é dada mundialmente à participação das mulheres no mercado de drogas, que vai desde o cultivo ilícito de drogas, produção de drogas e tráfico de drogas até a venda no varejo. Além disso, salienta que há poucos estudos abordando o processo de criminalização de mulheres, porque segundo os/as a analistas, o sistema de justiça e penal sempre considerou que as organizações de tráfico de drogas são predominantemente operadas por homens, e que o papel desempenhado pelas mulheres no narcotráfico é relativamente insignificante em comparação com o sexo masculino (UNODC, 2018, p. 25).
O relatório situa globalmente o papel das mulheres no narcotráfico de cultivo, produção e tráfico, a fim de fornecer uma visão dos aspectos específicos que motivam o ingresso das mulheres nesse mercado. Dos 98 países que forneceram dados separados por sexo/gênero durante o período de 2012-2016 ao UNODC, 90% das pessoas que tiveram contato com o sistema de justiça e penal eram homens. Todavia o relatório aponta que a taxa de mulheres presas por participarem do comércio de drogas ilícitas no sistema global de delitos de tráfico de drogas está aumentando em todo o mundo, em particular, entre as mulheres com baixa escolarização, sem oportunidade de trabalho formal e em situação de violência de gênero (UNODC, 2018).
Por outro lado, o relatório explica que não está claro o porquê do aumento no número de mulheres presas por tráfico de drogas. Sinalizam que há fatores como maior penalização por parte do Estado, maior atuação do sexo/gênero feminino, mas que as funções ainda não são claras, pois há uma grande maioria de mulheres atuando como mulas e pequenas varejistas. No entanto esses não são necessariamente os únicos papéis que desempenham; afirmam que as mulheres atuam em diversas áreas no mercado, exercendo também liderança. Um dado importante desse documento é o que mostra que boa parte das produções e dados sobre mulheres no mercado de drogas são produzidos na América Latina, ainda que a participação de mulheres nas redes de tráfico de drogas também ocorra em outras regiões. Na hierarquia entre os sexos/gêneros, o relatório demonstra que os homens ainda dominam as principais posições no mercado de drogas, mas que algumas mulheres lideram grupos de tráfico “e são percebidas pelos homens como colegas de trabalho ou agentes da lei como ‘profissionais’ traficantes de drogas ou membros de alto nível da organização ilícita” (UNODC, 2018, p. 25-29).
No relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen mulheres) de 2017, os dados sobre mulheres estrangeiras no sistema prisional foram divulgados. Segundo o documento, “89% das unidades prisionais que participaram do levantamento afirmaram possuir informações acerca da nacionalidade para todas ou parte das pessoas privadas de liberdade na unidade”, totalizando 529 cidadãs estrangeiras. Desse total, 63% delas estão custodiadas no Estado de São Paulo. Sobre o lugar de origem, os dados mostram a globalização do mercado de drogas, visto que 48 são da Europa, 37 da Ásia, 323 da América e 1 da Oceania (BRASIL, 2017, p. 48).
Não há informação sobre a tipificação criminal, mas pela porcentagem de mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas em aeroportos e rodoviárias, a possibilidade de que as estrangeiras estejam presas pelo crime de tráfico, via ocupação laboral de mula, é muito provável. Essas apreensões, contudo, não correspondem ao carregamento internacional de drogas. Todavia algumas pesquisas, sem situar a estrutura financeira e logística desse mercado, tendem a associar o tráfico internacional como uma atividade exclusiva das mulas, o que em parte serve para ocultar um sistema global e financeiro desse mercado e penalizar mulheres em carregamentos irrisórios se comparados aos levados em contêiner3.
Segundo dados do Infopen de 2020, entre junho a dezembro de 2019, o Brasil tinha 34.365 mulheres presas. Desse total, 50,94% (17,506) respondiam por crimes relacionados ao mercado de drogas, tipificado na Lei nº11.343/2006. Nesse mesmo documento, há dados sobre aprisionamento de mulheres estrangeiras, sendo a maioria do continente americano (239), com maior incidência sobre bolivianas 37,24% (89); venezuelanas 17,15% (41); paraguaias 15,6% (36); colombianas 10,04% (24); e peruanas 5,02% (12).O documento ainda o aponta o continente africano em segundo lugar em população estrangeira feminina, com 52 mulheres em privação de liberdade no Brasil, e desse total 34,62% (18) são oriundas da África do Sul; 19,23% (10) de Angola; e 15,38% (8) tipificado como outros países do continente africano. Isso evidencia como o mercado de drogas se estrutura globalmente, sobretudo se beneficiando da força de trabalho feminina de países com histórico de colonização, escravização, expropriação, periferização e dependência econômica. Mostra, assim, a face mais predatória do modo de produção capitalista mundial, porque sua dominação e exploração sobre as mulheres ocorrem de forma sistêmica. A contribuição de Silvia Federici (2019, p. 184-186) nessa esteira é muito válida, quando a autora afirma que a globalização é uma guerra contra as mulheres, e que a ação sobre isto é política.
Os programas de ajuste estrutural apesar de serem promovidos como uma forma de recuperação econômica, destruíram a subsistência das mulheres, tornando impossível para elas reproduzir suas famílias e a si mesmas. Um dos principais objetivos dos programas de ajuste estrutural é a ‘modernização’ da agricultura, ou seja, sua reorganização em uma base comercial e de exportação. Isso significa que mais terra é direcionada para o cultivo comercial e mais mulheres – as principais agricultoras de subsistência do mundo – são deslocadas. As mulheres também foram desalojadas pelos cortes no setor público, que resultam na destruição de serviços sociais (FEDERICI, 2019, p. 184-186).
Somado a isto, as relações econômicas marcadamente periféricas e dependentes dos países latino-americanos revelam que o declínio no acesso ao mercado formal e lícito de trabalho, tem oportunizado ao mercado de drogas uma logística global de captura de força de trabalho informal e precarizada, em especial de jovens e mulheres. Assim tem sido o cenário brasileiro, em razão da perda de capacidade produtiva e diversificada, estando a economia interna cada vez mais dependente da demanda externa. Logo, a possibilidade de criar e gerar empregos deflagra-se, pois, em primeira instância, o que se assegura diante de contextos de crise estrutural do capital é a soberania dos Estados centrais. Para fins de exemplo, citemos a retirada de empresas estrangeiras, e com ela a massa de desempregados/as, a pressão no barateamento de matéria-prima para exportação, o aumento no preço das importações e a crise generalizada nas pequenas empresas nacionais que, diante do cenário global, tornam-se inaptas à competividade.
Na realidade dos países da América Latina produtores e exportadores de drogas, como México, Colômbia, Paraguai, Bolívia, Peru e Brasil, mulheres em situação de desemprego e informalidade atuam nesse nicho em diversas atividades, entre elas na condição de mulas. Nessa atividade laboral, informal e ilícita cumprem a tarefa de transporte corporal de drogas, em boa parte com destino aos presídios e pequenos comerciantes locais e/ou regionais. Todavia, independente da atividade laboral que desempenham, essas mulheres são as mais vulneráveis do ponto de vista econômico e jurídico, pois além da baixa remuneração para esse trabalho, estão em maior risco de aprisionamento e vigilância policial. Subsídios esses necessários para compor o crivo analítico do aumento exponencial de mulheres encarceradas entre 2006-2016 no Brasil. Para se ter uma ideia, entre 2000 e 2016, a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou em 455% no Brasil conforme dados do levantamento Nacional de informações penitenciárias (Infopen mulheres) de 2018. Nesse período de 16 anos, o país aprovou a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, em que uma das finalidades é a de intensificar a política de guerra às drogas nas espacialidades periféricas do país.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, o número de desempregados/as, no Brasil, foi de 12,6 milhões de pessoas. Quanto à população subutilizada, essa chegou ao número de 28,1 milhões. Segundo o Instituto, não houve variação significativa frente ao trimestre anterior, mas subiu 2,6%, o que representa mais 703 mil pessoas em relação ao mesmo período de 2018. Assim, 11,7 milhões foi o número de empregados/as do setor privado sem carteira assinada, e 24,2 milhões (recorde da série histórica iniciada em 2012) os/as trabalhadores/as autônomos/as; sem direitos e sem renda fixa, 4,8 milhões de pessoas desalentadas (BRASIL, 2019).
No que se refere aos determinantes de classe, raça, sexo/gênero e geração, os dados do IBGE de 2019 não revelam novidade, visto que o desemprego segue maior entre mulheres pretas e não brancas, jovens e não jovens. A maior parcela de desempregados/as, 57,2% correspondem à faixa etária dos 25 a 59 anos, 31,8% dos 18 a 24 anos, 8,3% para os/as menores de idade e 2,6% para os/as idosos/as. As mulheres representam 52,6% da população desocupada e 64,6% da população fora do mercado de trabalho formal e remunerado. São elas as mais afetadas, se comparadas aos homens. Em relação ao desemprego, a taxa, para eles, ficou em 10,9%, no 1º trimestre e, para elas, 14,9%. Na questão racial, a média nacional de brancos/as desocupados/as foi de 12,7% no trimestre, enquanto que, para pretos/as e não brancos/as, ficou acima da média: 16% e 14,5%, respectivamente.
A partir desses dados e do estudo bibliográfico, é possível afirmarmos que o aumento de mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas no Brasil guarda relação direta com o desemprego estrutural vinculado a uma nova forma de acumulação nos países periféricos e dependentes, via desindustrialização e informalidade forçada no circuito global das drogas. Sobre isso é preciso que se analise a extensão do crack e a inserção da força de trabalho feminina numa economia periférica e dependente como a brasileira, pois são elas, as mulheres, que atuam no mercado que tem o maior número de consumidores/as dessa substância no mundo: os/as brasileiros/as. Por ser o crackuma droga barata e “inferior”, pela quantidade de alterações químicas comparadas às outras, a atuação de mulheres no mercado varejista, por vezes, é lida da seguinte forma: uma droga de baixo valor é vendida pelo sexo inferior.
Essa afirmativa parte do último relatório publicado pela UNODC (2020), em que situa o Brasil como nação mais consumidora da substância em nível mundial, e que a crise provocada pela Covid-19 tende a não só aprofundar as desigualdades, mas a ampliar em virtude da mesma o aumento de jovens e mulheres no mercado de drogas. Todavia, a UNODC salienta, que não se pode obter um dado exato sobre esse impacto, mas as restrições impostas pelos Estados, como fechamento de fronteiras vias terrestres, áreas e circulação das pessoas implicaram na queda da demanda no varejo de drogas e nas exportações e importações. Com isso, os mercados de drogas já estão a sentir queda nos lucros e, também, na pureza das substâncias, sobretudo, da cocaína. Ainda segundo o relatório a redução na oferta de trabalho formal para mulheres e jovens pode contribuir no aumento desses segmentos na informalidade no mercado de drogas durante e pós-pandemia.
Cabe destacar que a relação entre trabalho informal lícito e ilícito para mulheres pobres e com baixa formação profissional no Brasil não se faz sem contradições. Das 12 produções bibliográficas analisadas sobre mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas entre 2006-2016, 04 (BIELLA, 2007; HELPES, 2014; LIMA, 2016; RAMOS, 2012) abordaram com maior ênfase o trabalho lícito e informal, em especial como empregadas domésticas remuneradas, anterior ao mercado de drogas. Mesmo com a Lei complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, que dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico, a falta de regularização e garantia de direitos está longe de ser superada, mais de 70% das que desempenham essa atividade laboral estão na informalidade, é o que apontam os dados do IBGE sobre o perfil das trabalhadoras domésticas divulgados em 2018. Ainda segundo o Instituto, desde outubro de 2015, quando passou a ser obrigatório o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), as domésticas sem carteira assinada passaram de 4,2 milhões para 4,4 milhões (BRASIL, 2018).
No que se refere a atuação das mulheres no mercado de drogas varejista, um dos fatores de ingresso diz respeito à possibilidade de seguirem exercendo os cuidados domésticos, mantendo, assim, o “papel social” atribuído ao sexo/gênero, bem como a manutenção do cuidado em todos os seus aspectos. Essas mulheres, diferente dos homens, mantêm uma relação protetiva na gestão do lar, ingressam no mercado de drogas, quase que exclusivamente por questões de ordem material, para prover aos filhos e a si própria, almejando melhor acesso à moradia, alimentação e poder de compra. Tanto é que o dinheiro que ganham do trabalho no tráfico é investido no âmbito da família. Isso explica também o porquê de mulheres no mercado de drogas não ascenderem socialmente como os homens, pois como no mundo do trabalho formal e lícito, são elas as responsáveis em colocar suas rendas à disposição da família.
Para as mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas, esse mercado apresenta-se como trabalho que dá maior remuneração e implica menor deslocamento, se comparado ao mercado de trabalho formal (com média de deslocamentos que variam de 2h a 4h diárias) e/ou informal lícito. O tráfico de drogas reforça a ideia do trabalho doméstico ao apropriar-se dele, mas o desloca para a esfera do ilícito. Basta observar que a atuação dessas mulheres está implexa na possibilidade de coadunar a atividade doméstica com a venda de drogas no âmbito privado. A questão territorial, por exemplo, é central nessa dinâmica de venda varejista. Nenhuma dessas mulheres vende crack na área socioespacial mais cara da cidade em que vivem, pelo contrário, vendem de modo geral em suas áreas, casas e arredores segregados espacialmente. Não por acaso, a criminalização dos sujeitos repercute diretamente no lugar em que vivem. É na territorialidade apartada que o aparato bélico do Estado, a representação do/a inimigo/a, o controle penal e vertebração neoliberal expressam-se conjuntamente.
Sobre mulheres e venda de crack, Philippe Bourgois, em seu livro En Busca de Respeto: vendiendo crack en Harlem (2015), aborda a relação entre sexo/gênero, no que ele denomina de economia subterrânea. Analisa os efeitos desse mercado sobre as mulheres, pois essas estão em novo espaço público feminino, que é a venda de drogas, mas sob a dominação masculina. Nesse aspecto, aponta para as expressões de violência de gênero e os limites das pautas feministas na luta pela garantia dos direitos individuais, tendo em vista que, na realidade das mulheres pobres e periféricas, a distância no acesso e reconhecimento desses direitos são infinitamente maiores que na realidade de mulheres de classe média e alta. Com efeito, as mulheres que trabalham no mercado de drogas só passam a ter algum reconhecimento social via judicialização e criminalização de suas vidas, na condição de ré, e não anteriormente na de sujeita de direitos –, elemento suficiente para compreendermos os limites das pautas feministas hoje, no Brasil e na América Latina, e a urgência de incorporação e radicalidade com o debate interseccional.
Ainda na esteira do autor, o crack é uma droga consumida em grande parte por pessoas desempregadas e em situação de rua, e vendida por pessoas que estão excluídas do mercado de trabalho formal. E, por ser uma droga com baixo custo e prover efeitos como perda do sono e fome, não tem seu uso associado apenas ao vício, mas contraditoriamente, é também usada por uma questão de sobrevivência precária, desumana e invisível nas ruas. No dizer de Bourgois (2015, p. 21) “el crack es la droga lumpen por excelencia. Es una sustancia que capta el sufrimiento social y la precariedad de nuestra época”. Assim, a informalidade não aparece como exceção, mas como regra nas relações de trabalho, e mais, como forma permanente de sobrevivência para essas mulheres. A ideia de acesso ao mercado de trabalho formal, assegurado e com direitos garantidos, torna-se cada vez mais remota. Objetivamente as mulheres presas por tráfico de drogas e suas famílias não ingressam no mercado de drogas como exclusiva alternativa, mas são compelidas diante das necessidades estruturais a ocuparem esses postos de trabalho.
A criminalização de suas vidas e corpos se faz não só pela estrutura jurídica e penal seletiva do país, mas também pela violação permanente de acesso do direito humano ao trabalho assegurado. Isso explica em parte os estudos sobre “empoderamento” das mulheres nos mercados de drogas. Nessas pesquisas há afirmações de que as mulheres estão sendo presas pelo crime de tráfico de drogas por estarem ficando mais autônomas e ocupando o espaço público. Todavia, não atentam para o fato de que a maioria dessas mulheres antes de ingressarem no mercado informal, varejista e ilícito de drogas, eram trabalhadoras domésticas informais. Outro elemento dos estudos é o de serem solteiras, o que supostamente lhes atribuiria um lugar “emancipado” em relação à figura masculina.
Essas considerações são postas em xeque quando situamos a participação da mulher nesse mercado na condição de mula. De fato, passa-se a trafegar no espaço público, rompendo em certa medida com a ideia de tráfico doméstico, mas a circulação dessas mulheres é tão cerceada quanto as que fazem dentro de suas casas. Além disso, mostram que trabalhar na condição de mula não é uma escolha, mas uma questão de sobrevivência. Vejamos a narrativa de Rubi, 39 anos, mãe de 8 filhos, solteira, presa pela terceira vez pelo crime de tráfico de drogas, entrevistada por Marcilaine Oliveira (2014, p. 129-131):
[...] ele nos deixava passar muita necessidade. Eu comecei a traficar era menina, com 11 anos. Conheci um traficante. Ele era de Pernambuco. Eu conversando com ele falando que as coisas eram difíceis lá em casa, ele perguntou se eu não queria vender. Ele foi e perguntou se eu não queria aprender? Eu falei: se ganha dinheiro eu quero. Comecei a vender na rua. Vendia maconha e cocaína. Na época era só maconha e cocaína. Agora que a droga se expandiu e tem tudo e qualquer qualidade. Mas, no tempo era só maconha e cocaína [...] nunca vendi droga na minha casa. Minha casa era o meu sossego. Quem quer me encontrar me encontra na rua. Não levo ninguém na minha casa. Nunca fui presa dentro de casa (OLIVEIRA, 2014, p. 129-131).
Ao terem seus direitos retirados, essas mulheres ficam com o paradoxo do viver ou morrer. E entre viver e morrer para elas, há sempre o liame de que, em nome da vida, existe a eminência da morte. Longe de natural, a morte ocorre entre conflitos de grupos rivais em suas espacialidades, pela política de morte do Estado, pelo risco do transporte de drogas via ingestão, e por serem mulheres passíveis e visíveis de criminalização, mas não de direito à cidadania.
3 Considerações finais
O propósito central deste artigo foi o de mostrar o mercado de drogas como meio de ingresso ao trabalho informal e ilícito de mulheres na condição laboral de mula, e como o sistema de justiça e penal opera via criminalização, ao tipificar como traficante mulheres despossuídas de direitos e cidadania. A condição de ingresso das mulheres nesse mercado se sustenta por critérios de discriminação e marginalização interseccional e de divisão internacional do trabalho, em que as mesmas ocupam posições inferiores, e por isso, são facilmente presas, segredas, punidas, exploradas e rapidamente substituídas enquanto força de trabalho.
Assim, como as mulas do Brasil colonial, as mulheres que atuam nessa função estão mais expostas às políticas punitivas de guerra às drogas, de modo que essas além de afetarem desproporcionalmente suas vidas contribuem significativamente para o encarceramento massivo. Isso se dá pelo fato de essas mulheres ocuparem os piores postos de trabalho no mercado de drogas, viverem em espacialidades criminalizadas pelo Estado policial, terem baixa escolarização e formação profissional, serem solteiras, com filhos e sem acesso à renda e trabalho formal assegurado. Esse conjunto de fatores que a destitui da condição de sujeita de direitos, a coloca em condição permanente de invisibilidade e vulnerabilidade política, econômica, social e cultural. Isso explica o fato de o número de mulheres presas por crimes relacionados ao mercado de drogas ser maior proporcionalmente ao seu universo do que o de homens. Enquanto que para elas a tipificação penal de maior incidência é em relação à lei de drogas, com 50,94% (17.507), no sistema masculino essa tipificação fica em segundo lugar, com 19,17% (183.077), conforme dados nacionais do Infopen de 2020.
Sobre espacialidade e tempo, a resposta do porquê o mercado prioriza a periferia, diz respeito à falta de acesso ao mercado formal, à possibilidade de exercer ampla e extensiva seletividade punitiva e racial sobre os mais pobres em uma espacialidade determinada, em que há também maior incidência de dependência e subordinação do sexo/gênero feminino ao masculino. As entrevistadas afirmam que o ingresso no tráfico não dependeu da relação afetiva com homens, mas todos os contatos com os postos de trabalho superiores aos delas com os quais trabalharam eram ocupados por homens.
Por fim, cabe enquanto demanda societária a formulação de estratégias concretas de defesa de uma política responsabilizatória cuja prioridade do sistema de justiça e penal não seja o encarceramento, visto que essas mulheres são chefes de família, com baixa formação profissional e, sobretudo, porque não representam risco para a sociedade. A prisão nesse sentido é um indicador que marca a impossibilidade de ingresso no mercado formal de trabalho, formação profissional, bem como de manutenção dos vínculos com filhos e familiares, esses que em grande são seus dependentes também financeiramente. Há, portanto, o desafio contínuo no enfretamento desse sistema punitivo e seletivo de justiça penal, que assegura a perpetração de ciclos geracionais de famílias no mercado de drogas. O aumento de mulheres presas na condição laboral de mulas conforme analisado nas de teses e dissertações guarda relação direta com a negação ativa do não acesso à cidadania. Justamente por serem as despossuídas, precisam antes de tudo sobreviver – e como escreveu Flora Tristan: “sobreviver não é a mesma coisa que viver.”
Referências
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Notas
Notas de autor
Información adicional
COMO CITAR (ABNT): DUARTE, J. das F. Mulas e Mulheres no Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 22, n. Especial, p. 871-888, 2020. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p871-888. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15821.
COMO CITAR (APA): Duarte, J. das F. (2020). Mulas e Mulheres no Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade. Vértices (Campos dos Goitacazes), 22(Especial), 871-888. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p871-888.