DOSSIÊ TEMÁTICO: VIOLÊNCIA DE ESTADO E POLÍTICA SOCIAL: ENTRE O APARATO ASSISTENCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL
Migração Internacional no Brasil: persistências históricas e tendências contemporâneas
International Migration in Brazil: historical continuities and new trends
Migración Internacional en Brasil: persistencias históricas y tendencias contemporáneas
Migração Internacional no Brasil: persistências históricas e tendências contemporâneas
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, 2020
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 31 Agosto 2020
Aprobación: 04 Diciembre 2020
Resumo: O aumento dos deslocamentos forçados no mundo tem sido evidenciado por dados de organizações internacionais. O artigo contextualiza a migração internacional contemporânea no Brasil como um dos múltiplos fenômenos articulados ao fôlego de expansão capitalista, especialmente a partir dos anos 2000, quando se intensificaram a imigração fronteiriça de nacionalidades haitiana, congolesa, bengali e senegalesa. A partir de referências bibliográficas e análise documental, discutimos que, a despeito de termos conquistado uma legislação reconhecidamente avançada em relação ao refúgio e uma recente lei de migração, no Brasil, a administração estatal da questão migratória se dá muito mais com controle e seletividade, através de mecanismos jurídicos extraordinários, do que com garantias, conduzindo um processo de inclusão e exclusão de imigrantes que remonta aos antecedentes da política migratória brasileira e se alinha ao discurso e práticas internacionais, com crescente perspectiva securitária que delimita a imigração como questão de segurança nacional e criminalizante. Evidencia-se, especialmente a partir de 2016, o afastamento brasileiro dos compromissos internacionais de proteção aos direitos humanos dos migrantes, o que tem causado situações concretas no cotidiano desses sujeitos como ausência ou dificuldade de acesso a serviços de atendimento, perpetuação da situação de migração provisória ou indocumentada.
Palavras-chave: Imigração, Novas situações migratórias, Política Migratória no Brasil.
Abstract: The increase of enforced displacements in the world has been highlighted by data from international organizations. This article contextualizes contemporary international migration in Brazil as one of the multiple phenomena related to the impetus of capitalist expansion, especially since the early 2000s, when border immigration of nationalities such as Haitian, Congolese, Bengali and Senegalese have accelerated. Based on bibliographic references and document analysis, we discuss that, despite having achieved a recognized advanced legislation related to refuge and a recent migration law, in Brazil, the State management of the migratory issue is much more related to control and selectivity through extraordinary legal mechanisms, than through guarantees; This has led to a process of inclusion and exclusion of immigrants that goes back to the previous history of Brazilian migratory policy and aligned with international discourse and practices, with growing perspective of immigration being a security and criminalizing issue. As of 2016, the Brazilian departure from international commitments to protect the human rights of migrants has become evident, causing specific situations in the daily lives of these subjects, such as the absence or difficulty of access to health care services, as well as the perpetuation of the situation of provisional or undocumented migration.
Keywords: Immigration, New migratory situations, Migration policy in Brazil.
Resumen: El aumento de los desplazamientos forzados en el mundo ha quedado en evidencia por datos de organizaciones internacionales. El artículo contextualiza la migración internacional contemporánea en Brasil como uno de los múltiples fenómenos que se articulan al aliento de la expansión capitalista, sobre todo a partir de los años 2000, cuando se ha intensificado la inmigración en la frontera de nacionalidades como haitiana, congoleña, bengalí, senegalesa. A partir de referencias bibliográficas y análisis documentales, discutimos que, aunque se ha logrado una legislación reconocidamente avanzada en lo que se refiere al refugio y una reciente ley de migración, en Brasil, la gestión estatal de la cuestión de migración se pasa mucho más con control y selectividad, a través de mecanismos jurídicos extraordinarios que con garantías, conduciendo un proceso de inclusión y exclusión de inmigrantes que se remonta a los antecedentes de la política migratoria brasileña y se alinea con el discurso y las prácticas internacionales, con una perspectiva creciente de seguridad y de criminalización. A partir de 2016, se ha evidenciado el desvío brasileño de los compromisos internacionales de protección de los derechos humanos de los migrantes, lo que ha provocado situaciones concretas en la vida cotidiana de eses sujetos, como la ausencia o dificultad de acceso a los servicios de atención, la perpetuación de la situación de migración provisoria o indocumentada.
Palabras clave: Inmigración, Nuevas situaciones migratorias, Política Migratoria en Brasil.
1 Introdução
As migrações internacionais têm se intensificado em praticamente todas as regiões do mundo nas últimas décadas, o que tem sido evidenciado por dados de organizações internacionais e registros midiáticos de cenas em que trabalhadores se arriscam em perigosas tentativas de travessia de fronteiras por terra, céu e mar. No Brasil, especialmente a partir dos anos 2000, novos fluxos migratórios têm se constituído e expressam transformações econômicas, políticas, sociais, culturais e tecnológicas que desafiam a percepção social sobre a imigração e a produção de respostas por parte do Estado brasileiro.
Internacionalmente cresce uma perspectiva de controle sobre a entrada de imigrantes nos países, principalmente os de economia central. O Brasil tem absorvido essa concepção, o que não é de todo estranho pois os antecedentes da política migratória no país continham essa direção no trato da questão migratória como um problema de segurança nacional, compreendendo o imigrante como um perigo em potencial.
Buscamos neste artigo abordar, a partir de análise bibliográfica e documental, as principais tendências globais das migrações internacionais que compreendem os movimentos de saída (emigração) em várias partes do mundo e entrada (imigração) em países de destino ou de trânsito ou de circularidade, dinâmicas migratórias complexas existentes na contemporaneidade. Ao mesmo tempo procuramos explicar o entendimento de que embora seja um fenômeno histórico, as migrações não são naturais e suas causas se articulam às dinâmicas estruturais da sociedade e às formas de organização e resistências de homens e mulheres nesse contexto societário. Essas são as preocupações apresentadas na primeira sessão do trabalho.
Em seguida, nos aproximamos da realidade contemporânea das migrações internacionais no Brasil, pretendendo apresentar um panorama da conjuntura imigratória e da política de reconhecimento e atendimento que o Estado brasileiro vem adotando em relação a essa questão. Por fim, apresentamos algumas considerações que apontam para os desafios colocados à implementação de uma política de migração com caráter humanitário numa conjuntura de ataque regressivo e conservador que determina contínuas adversidades cotidianas aos imigrantes, assim como ao conjunto dos trabalhadores.
2 Tendências da Migração Global
O início do século XXI consolidou as previsões das agências internacionais e de pesquisadores que anunciavam a intensificação sem precedentes das migrações internacionais. Conforme aponta Wihtol de Wenden1, desde meados dos anos de 1970 as migrações internacionais tomaram dimensão crescente, 77 milhões em 1975, 120 milhões em 1999, 150 milhões no início dos anos 2000 e 244 milhões em 2016 (2016, p. 18). O mundo está em movimento em novas rotas e direções que se manifestam nos sentidos Sul-Norte, Norte-Sul, Sul-Sul e em novas situações migratórias que envolvem especialmente as condições de refugiado e de imigrante econômico.
Em 2013, a Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) registrou um número maior de deslocados forçados desde a 2ª Guerra Mundial, daquele ano em diante a instituição vem divulgando números cada vez mais alarmantes. Em 2019, segundo o Relatório Global Trends Forced Displacement foram 79,5 milhões de pessoas em deslocamentos forçados devido a conflitos, perseguições e desastres ambientais. Os números e causas são registrados de formas diferentes pelas agências da Organização das Nações Unidas, segundo a Organização Internacional para a Migração (OIM) em seu Informe sobre las Migraciones en el Mundo, em 2019 3,5% da população mundial era migrante interno ou internacional. Mais da metade do total dos migrantes internacionais estão em países da Europa e nos EUA.
A OIM considera migrante a “pessoa que se muda de seu local de residência habitual, seja dentro de um país ou através de uma fronteira internacional, temporária ou permanentemente, e por uma variedade de razões”2, ressalva que adota uma definição bem abrangente que inclui trabalhadores migrantes, migrantes contrabandeados e estudantes internacionais. Em 2018, a Organização Internacional do Trabalho em sua publicação Women and men in the informal economy registrou 164 milhões de trabalhadores migrantes, os destinos principais desses trabalhadores são Europa, EUA e países árabes.
Apesar de esses números serem frequentemente tomados como uma questão emergencial, a agenda internacional sobre migrações protagonizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) é permeada de estatísticas e informações que nem sempre esclarecem as dinâmicas migratórias. Para Basso (2018), esse tipo de abordagem mais oculta do que desvela o caráter estrutural das migrações. O autor entende a emigração em busca de melhores de condições de vida como um fenômeno contínuo na sociedade capitalista, cujas origens estão ligadas ao colonialismo histórico que foi base para a criação do mercado mundial e da divisão internacional do trabalho com desigualdades importantes entre as regiões do mundo.
As permanências dessas cisões mantiveram os países ex-colonizados em condição de dependência como “fornecedores naturais de força de trabalho a baixo custo” para os países centrais e os interesses do mercado neles representados (BASSO, 2018, p. 14). No contexto da mundialização do capital, em especial após o término da Guerra Fria, mudanças qualitativas e quantitativas nos movimentos migratórios significaram redefinição da política migratória dos países, sobretudo os de economia central.
Tais mudanças sugerem não se tratar de uma questão residual e passageira e sim de um elemento sintomático e característico do capitalismo globalizado. Especialmente a partir da crise de 2008, as bases de acumulação de capital vêm sendo renovadas através de investimentos especulativos de capital financeiro, exigindo para sua expansão a reestruturação produtiva do trabalho e reconfiguração dos Estados-Nacionais, em escala mundial. A proliferação de conflitos armados e expulsão de trabalhadores do campo, seja pela mecanização dos processos produtivos ou pela degradação ambiental e eventos climáticos, se somam às drásticas transformações que afetam as condições de vida e trabalho, dinamizando o crescimento dos deslocamentos humanos no mundo, tanto na dimensão nacional com os deslocamentos internos3, quanto na travessia de fronteiras internacionais.
Para Singer4 (1980), as migrações são um fenômeno social historicamente condicionado, sendo resultado de um processo global de mudança. Logo, a análise desse fenômeno não deve ser desconectada das alterações que o desenvolvimento da acumulação capitalista provoca, especialmente na divisão social do trabalho. Nesse sentido, podemos considerar que os fluxos migratórios internacionais são um processo social com causas estruturais que se expressam de forma desigual e com particularidades nos diversos países do globo terrestre. Tais desigualdades podem configurar fatores determinantes para migração, além da consolidação e da permanência de relações hierarquizadas e dependentes entre regiões. Da mesma forma, as crises e mudanças no modo de acumulação de capitais interferem e promovem fluxos migratórios.
O mesmo autor adverte que tais determinações estruturais são acompanhadas de determinações intermediárias que condicionam questões objetivas e subjetivas. Os fatores macrossociais que produziram e motivaram a migração incidem sobre as classes sociais e econômicas, mas não da mesma maneira sobre todos os membros de cada classe. Logo, questões como quem pode migrar e que mudanças são produzidas nas relações sociais a partir desse movimento são pertinentes.
No período de 1945 a 1973, muitos fluxos migratórios se constituíram a partir de políticas de recrutamento por questões demográficas nos países mais afetados pela 2ª Guerra Mundial, para garantir força de trabalho com valor rebaixado na produção industrial, de fluxos por iniciativa dos próprios trabalhadores de países periféricos em busca de melhores condições de vida e de refugiados a procura de proteção. Se, naquele contexto de reconstrução dos países e suas economias, concessões de cidadania eram possíveis aos imigrantes que rumavam do Sul para o Norte global, sob a hegemonia do capital financeiro, ações de controle, seletividade e expulsão determinaram uma condição de não cidadão (BASSO, 2018; CASTLES; MILLER, 2004).
O aparato repressivo é combinado a uma retórica de ordenamento e acolhida, potencializado a partir dos ataques em território norte-americano em 11 de setembro de 2001, que serviram de justificativa para flexibilização e rompimento com normativas internacionais de direitos humanos e para disseminação de uma percepção sobre as migrações internacionais na lógica militar e securitária. Não obstante, a disponibilidade de grandes contingentes esperançosos de melhores oportunidades possibilita o refinamento seletivo. A permeabilidade das fronteiras impõe a exigência de imigrantes mais qualificados ou altamente qualificados e de pessoas dispostas apenas ao trabalho sem expectativas de proteção social e laços de pertencimento, “protótipos da hiperflexibilidade, forçados a movimentos frequentes num ir e vir entre países de origem e o país de acolhimento provisório – mais do que isso: desejosos de fazê-lo” (BASSO, 2018, p. 16). Com isso, as políticas migratórias ao mesmo tempo em que tomam mais forma de anti-imigração, conformam uma disciplina para o trabalho obediente e desprotegido do imigrante.
Para os Estados de destino do norte global e seus empresários, a imigração ao mesmo tempo em que é justificativa para o rebaixamento da proteção social já tão derruída nesses chamados “países de acolhida”5, configura um mercado de incorporação de força de trabalho precarizada que contribui para o “saudável desequilíbrio do mercado de trabalho”6, ao mesmo tempo em que cria um potencial conflitivo (lucrativo) de restrição de vistos, militarização das fronteiras, surgimento de campo de refugiados e lotação de instituições de cárcere. Castles & Miller (2004) ressaltam o avanço de mecanismos mediadores entre imigrantes e as instituições políticas e econômicas que envolvem desde organizações de recrutamento, organizações não governamentais, empresas privadas, advogados, até contrabandistas, constituindo uma verdadeira indústria da migração que não necessariamente servem de apoio ao migrante e que aciona estratégicas econômicas, políticas e culturais.
A crescente restrição nos países centrais associada aos fluxos de investimentos de capital em países periféricos criaram a possibilidade, nos anos 2000, de impulsos temporários de desenvolvimento nessas regiões, como o Brasil, por exemplo, que se tornou rota de trânsito e de destino para imigrantes oriundos também de economias periféricas, se inserindo com maior intensidade nos fluxos Sul-Sul7. São muitas as situações migratórias na atualidade e cada vez mais países se veem afetados pelas dinâmicas de emigração e imigração. Diferentes categorias migratórias se encontram nas mesmas rotas: refugiados, deslocados ambientais, apátridas, imigrantes econômicos, muitos indocumentados8 e sujeitos a nichos de trabalho chamados de 3D: difficult, dirty, dangerous (difíceis, sujos, perigosos).
Outras expressões da migração contemporânea têm adquirido importância nos estudos e políticas como os migrantes que transitam entre diferentes países e vivem nessa circularidade, tendo a mobilidade como condição de vida e trabalho, são os transmigrantes. A emigração de pessoas altamente qualificadas de países da periferia para o centro, o chamado braindrain, tem sido caracterizado como exemplo da mobilidade a serviço do capital, força de trabalho com menor custo e já formada. Alfredo (2018) explica que o marco desse fenômeno foi o contexto pós Segunda Guerra, mas se intensificou a partir da reestruturação produtiva. Políticas migratórias diferenciadas para atração dessa força de trabalho específica têm sido organizadas concomitante ao endurecimento e criminalização dos trabalhadores pouco qualificados e pobres.
Há forte presença feminina no contingente migrante, estima-se9 que elas sejam cerca de 50% dos migrantes internacionais. Atendem à divisão sexual internacional do trabalho que atribui a mulheres migrantes, pobres, não brancas e, em muitos casos, indocumentadas, atividades domésticas ou relacionadas ao cuidado de idosos, crianças e de saúde, o que levou a estudos sobre global carechain, definido por Hochschild (2011) como uma série de ligações pessoais entre pessoas ao redor do mundo baseadas no trabalho pago ou não pago de cuidado (cuidadores que dependem de cuidadores para trabalhar), e caredrain, deslocamento de profissionais da área da saúde, especialmente da grande área da enfermagem (WIHTOL DE WENDEN, 2016). Importante mencionar a maior exposição das mulheres migrantes a violências, à prostituição e ao tráfico de pessoas.
Entre o sonho e o pesadelo, a imigração representa uma expectativa de dignidade de trabalho e de condições de vida para homens e mulheres, trabalhadores superexplorados10 do sul global que enfrentam mares, muros, polícias em fronteiras terrestres, aeroportos e atravessadores, em busca desse objetivo. Aos que consumam a travessia11, o tratamento xenófobo e racista completa o circuito de expropriação, exploração e opressão.
Medidas crescentemente agressivas frente a migrantes e refugiados são tomadas, dentre as quais se podem apontar o levantamento de barreiras físicas ao deslocamento através das fronteiras e mesmo no interior dos territórios nacionais. Tais barreiras serão (…) como dispositivos de política migratória, atuando tanto de forma a constranger deslocamentos quanto no reforço de imagens favorecedoras da xenofobia (PÓVOA NETO, 2008, p. 394).
São muitos os exemplos de retóricas racistas e xenófobas que se constituíram plataforma política de partidos de extrema direita em países do norte global. Como observa Lisboa (2020), alguns desses Estados investem na criminalização do imigrante e na atribuição a eles de toda responsabilidade pelas perdas sofridas pelos trabalhadores autóctones em relação as oportunidades e condições de trabalho. O imigrante como bode expiatório camufla a crescente desigualdade social e deterioração das relações trabalhistas em curso com a reestruturação produtiva. Itália, Reino Unido, Hungria, Austrália e EUA representam bem essa tendência que vem sendo absorvida com maior fôlego no Brasil desde 2016 e produziram as circunstâncias para a eleição em 2018 de um governo que se declara alinhado a dominação norte-americana e a interesses conservadores.
Tais processos históricos devem ser compreendidos como culminância de processos tensos e contraditórios de construção de hegemonia que reformataram as democracias liberais na Europa e EUA numa perspectiva contrarreformista e de aprofundamento de medidas neoliberais, que se desenvolveram mundialmente com diferentes processualidades (DEMIER, 2017). No Brasil, constituiu um regime cada vez mais regressivo em relação a direitos sociais e impermeável à participação popular, o que forma o caldo político e social propício para criminalização, discriminação e militarização do atendimento aos novos fluxos de imigrantes no Brasil oriundos de países fronteiriços, África e Ásia.
3 Migração Internacional no Brasil
Atualmente, segundo dados da Polícia Federal divulgados através do Portal de Imigração12, o Brasil tem cerca de 750 mil imigrantes, incluindo todas as condições migratórias previstas em lei, incluindo ainda os imigrantes vindos em períodos anteriores aos anos 2000. Esse número representa menos de 1% da população do país, mesmo com estatísticas subestimadas devido aos que entram de forma indocumentada e com a intensa imigração recente de haitianos e venezuelanos13, que causa de fato novas demandas, especialmente para os municípios de fronteira. Portanto, “somos um país de imigração modesta” (PÓVOA NETO, 2018).
Se tomarmos os dados de 2019 da Divisão de População do Departamento de Economia e Assuntos Sociais das Nações Unidas (DESA), América Latina e Caribe recebem o menor número de imigrantes internacionais do mundo e, na América Latina, a Argentina é apontada como destino mais procurado. Porém, essa migração, ainda que modesta, do ponto de vista da análise percentual no Brasil, movimenta enorme contingente de trabalhadores fora de seus locais de origem e concentrados em pequenos municípios fronteiriços ou em grandes centros urbanos com estrutura incipiente para acolhimento e integração.
Como bem apresenta Villareal (2018), a América do Sul e o Caribe são produtores de emigração, o grande contingente de migrantes de origem nesses territórios vivem em sua maior parte fora de sua região, indo para EUA e países da Europa. No entanto, a partir da década de 1970 os deslocamentos intrarregionais cresceram na América Latina devido às restrições nos principais países de destino e ao custo alto do projeto migratório para tais países. A constituição dos blocos regionais e dos acordos bilaterais entre os países da América do Sul que envolvem acordos de livre circulação e de residência representam um elemento importante nessa migração regional, somados à preferência pelos países com melhores índices econômicos e possibilidade de oportunidades de trabalho, qualificado ou não.
São ainda aspectos relevantes as situações de deslocamento forçado, especialmente da Venezuela que sofre há anos uma crise econômica por conta da queda do preço do petróleo, principal commodity do país, o que comprometeu sua política interna. O país sofre embargos financeiros das potências econômicas por causa da permanência quase isolada na América Latina de um posicionamento anti-imperialista. Esses fatores vêm causando uma longa instabilidade política, interna e externa e o deterioramento dramático das condições de vida de sua população, tornando os emigrantes venezuelanos o segundo maior grupo de deslocados forçados do mundo. Quatro milhões de venezuelanos deixaram o país até meados de 2019 (ACNUR,2020; OIM, 2020).
As principais tendências migratórias no Brasil no século XXI têm sido: a recepção de migrantes internacionais, solicitantes de refúgio e brasileiros retornados; emigração de brasileiros para outros países, movimento que vem crescendo desde 2010, segundo o Ministério das Relações Exteriores estima-se que 2,5 milhões de brasileiros vivam fora do Brasil; país de trânsito de pessoas que desejam chegar a um terceiro estado de destino (BRASIL; OIM, 2018).
O relatório de 2019 divulgado pelo Ministério da Justiça, referente aos dados de 2010 a 2018, indica
significativa a chegada de imigrantes no país, especialmente composta por novos fluxos migratórios, caracterizados por pessoas originárias do hemisfério sul. Diferentemente das imigrações do final do século XIX e princípios do XX, em que os fluxos migratórios para o Brasil eram protagonizados por pessoas do norte global, basicamente por europeus, na atualidade são imigrantes do sul global que ocupam o ranking das primeiras nacionalidades no país. Destacam-se os haitianos, principal nacionalidade no mercado de trabalho, os venezuelanos, fluxo migratório que cresceu de forma significativa a partir de 2016, além de outras nacionalidades tais como os senegaleses, bolivianos, colombianos e bengalis (CAVALCANTI; OLIVEIRA; MACEDO, 2019, p. 5).
No Brasil, a chegada de imigrantes do Haiti, de países da África e vizinhos latinos na primeira década dos anos 2000 mobilizaram reações políticas de xenofobia, racismo e criminalização desses, retratados como invasores e perigosos quando, naquele período, a presença de imigrantes europeus era maior no país (ALVES, 2019). Hoje, essas nacionalidades compõem um grupo significativo no Brasil.
Em 2017, num contexto sócio-político caracterizado por forte polarização e inflamado por conta da crise política e da retórica anticorrupção que dominou o país, um ato autodenominado “Anti-imigração” ocupou uma das principais avenidas da cidade de São Paulo bradando contra a então recém-aprovada “Nova Lei da Migração”, os participantes acusavam os imigrantes de serem estupradores e bandidos, especialmente os de religião islâmica. Na mesma cidade, em 2019, um estabelecimento comercial conhecido como um espaço de apoio e ativismo pela causa dos refugiados foi atacado com bombas e gás de pimenta. Em maio de 2020, um imigrante congolês de 47 anos foi assassinado a facadas na Zona Leste de São Paulo, dois outros congoleses ficaram feridos e relataram que o agressor, ao atacá-los, afirmou que “os estrangeiros só queriam receber dinheiro do governo, enquanto os brasileiros estão sofrendo”14.
Lembremos ainda do ocorrido em agosto de 2018 na cidade fronteiriça de Pacaraima, em Roraima, em que um crime atribuído a imigrantes venezuelanos motivou agressões e incêndios em barracas e abrigos em que se encontravam famílias venezuelanas, com pertences e documentos queimados. Acuados, muitos retornaram ao país de origem.
Esses fatos demonstram que:
Apesar de ter uma legislação reconhecidamente avançada em relação ao refúgio e uma recente lei de migração que substituiu a perspectiva da segurança nacional que fundamentava a legislação anterior, no Brasil nos últimos anos emergiram expressões de autoritarismo e conservadorismo latentes em sua constituição político-cultural e que encontrou na conjuntura internacional e na crise política e econômica interna terreno fértil para seu fortalecimento nas relações sociais cotidianas e nas propostas de reformas nas políticas sociais (PAIVA; DIAS, 2019, p. 2).
O Brasil é signatário de convenções internacionais que situam a imigração no âmbito dos direitos humanos e a Lei do Refúgio (Lei n. 9.474/97) está situada nesse compromisso. Ainda assim, o país deixou de se comprometer com a Convenção da OIT de Proteção aos Trabalhadores Migrantes e Suas Famílias, de 1990. Nenhum dos países centrais com grandes fluxos imigratórios ratificaram essa convenção. Em 2017, foi a aprovada a Lei de Migração (Lei n. 134450), chamada de nova Lei de Migração, que substituiu o Estatuto do Estrangeiro, legislação promulgada em 1980 no período da ditadura civil-militar com conteúdo baseado na segurança nacional e na proteção do trabalhador nacional, consolidando a perspectiva inaugurada com a ascensão de Vargas ao poder em 1930, que definia oposição entre trabalhadores nacionais e estrangeiros e acionava diversos dispositivos de controle, ameaça, vigilância e deportação aos imigrantes, especialmente os vinculados a organizações políticas de trabalhadores.
Uma observação importante se refere à Lei nº 6.964/81, que introduziu mudanças no Estatuto do Estrangeiro, dentre elas a possibilidade de concessão de anistia a indocumentados, ou seja, uma possibilidade de regularização migratória, ainda que provisória15, aos imigrantes que entraram no país sem documentação ou permissão oficial e aos que entraram regularmente, mas permaneceram após o prazo permitido. Sob a vigência do Estatuto do Estrangeiro, foram quatro anistias migratórias, em 1981, 1988, 1998 e 2009.
As anistias se tornaram uma alternativa pontual ao perfil excludente e seletivo da política migratória que só era permeável a trabalhadores qualificados que atendessem os interesses do capital nacional e transnacional. A constituição histórica de um circuito legalizado para os profissionais altamente qualificados e explicitamente desejados pelas empresas e outro para indocumentado cujas condições legais atribuíam uma condição criminalizante e de exposição a trabalhos mal remunerados e degradantes não se excluem no mercado de trabalho, ambos respondem a demandas de setores econômicos específicos. Na primeira anistia migratória em 1981 foram contemplados 39 mil imigrantes, dentre eles um significativo contingente de coreanos e bolivianos trabalhadores do setor têxtil em São Paulo (BRASIL; OIM, 2018; VILLEN, 2018). A política migratória pode funcionar como “reguladora” da provisoriedade e da condição indocumentada que, por sua vez, pode contribuir para violações não só no trabalho.
As anistias permaneceram como um dispositivo da política migratória mesmo após a mudança do paradigma legal para a nova Lei da Migração. Ainda assim, muitos imigrantes não conseguem se beneficiar, seja pela dificuldade de providenciar a documentação exigida ou por não ter dinheiro para pagar os procedimentos. Em 2017, mesmo ano de aprovação do novo marco legal, um Projeto de Lei16 propôs anistia que contemplasse os indocumentados até a data da aprovação da nova lei. No final de 2019, a portaria conjunta dos Ministérios da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e das Relações Exteriores (MRE), de n. 10, de 05/12, abriu possibilidade de senegaleses no Brasil que aguardam resposta de pedido de refúgio solicitarem autorização de residência por dois anos. Segundo dados do Comitê Nacional para Refugiados17, existiam aproximadamente 8.000 pedidos de nacionais oriundos do Senegal interessados em serem reconhecidos como refugiados, em 17 anos apenas 15 solicitações foram deferidas, os senegaleses são considerados imigrantes econômicos.
A mobilização pela aprovação da nova Lei de Migração foi longa e contou com muitos sujeitos coletivos organizados em associações, movimentos sociais, acadêmicos e pesquisadores, organizações não governamentais, coletivos de imigrantes e refugiados e de emigrantes brasileiros que reivindicavam proteção legal por parte do Estado brasileiro. Desde os anos 90, a preocupação com os direitos humanos na política migratória ganhou vulto, a Lei do Refúgio é um dos desdobramentos dessa luta. O contexto dos anos 2000 com a eleição de governos progressistas que apontavam para tendências à esquerda na América Latina contribuiu para o envolvimento de setores governamentais na mudança da legislação migratória no Brasil para os imigrantes não contemplados no ordenamento jurídico do refúgio e para a construção de acordos regionais no âmbito do Mercado Comum do Sul, o Mercosul.
Cabe aqui uma breve consideração sobre as categorias migratórias de refugiado e migrante. É recorrente as aproximações sobre o tema a partir da diferenciação entre migrações forçadas (ou involuntárias) e migrações voluntárias. A primeira se caracteriza pela fuga de guerras e perseguições de diferentes ordens, pelas graves violações dos direitos humanos e pelo fundado temor de perseguição, definindo as bases do refúgio. A segunda é comumente relacionada a busca por melhores condições de vida, o que para o grande contingente populacional do planeta significa busca por melhores oportunidades de trabalho, seriam os imigrantes econômicos. Batista e Parreira (2013) explicam que as duas categorias são protegidas por instrumentos jurídicos internacionais de Direitos Humanos, para os refugiados a proteção está expressa em documentos internacionais específicos que se desdobram em legislações diversas nos países, os imigrantes econômicos têm amparo em tratados e resoluções da ONU.
O processo dinâmico das migrações por vezes acaba ofuscado pelas categorias e status migratórios, especialmente o de refugiado e imigrante econômico. É importante não perdermos de vista que o ato de migrar não é necessariamente uma ação individual, quando um indivíduo migra coloca em movimento uma estratégia que representa uma coletividade, seja por questões de ameaça à sua vida ou por sua sobrevivência econômica. As consequências dessa mobilidade também reúnem um conjunto de interesses e instituições.
Tendo as categorias migratórias uma relação direta com a necessidade de intervenção política sobre a migração, especialmente a internacional, os processos acionados de classificação dos migrantes que se desdobram em acesso a direitos para alguns e obstrução para outros, nem sempre revelam a complexidade envolvida nos deslocamentos. A situação dos venezuelanos é um bom exemplo disso, desde 2015 eles buscam o Brasil e desde então já foram considerados imigrantes econômicos e refugiados.
Basso (2020), ao analisar o crescimento exponencial das migrações internacionais para a Europa, avalia que as causas para os deslocamentos são estruturais e de longo prazo. De imediato, são as guerras e conflitos que causam colapso na segurança dos civis, na estrutura urbana e nas atividades produtivas restando a fuga ou a morte. Porém, a intensificação das desigualdades regionais e alianças destrutivas entre países centrais e periféricos têm provocado, há longos anos, níveis de pobreza que afetam a sobrevivência das pessoas. O fluxo dos refugiados então se une ao fluxo histórico da imigração econômica. Para o autor, essa oposição, que na capilaridade das políticas sociais e ações de atendimento pode se transformar em disputa, em última instância, tem um elemento comum, a agressiva expansão do capital global.
As emigrações sejam causadas por fatores econômicos, políticos, militares, culturais ou mesmo por uma mistura desses fatores, são sempre emigrações forçadas. Ninguém deixa "voluntariamente", alegremente, seu lugar de nascimento. Por isso, prefiro falar de emigrantes e não migrantes, para destacar, sobretudo, que se provém não de lado nenhum, mas de um preciso contexto sociocultural e nacional, e em segundo lugar que, se o deixei, é porque me vi forçado a deixá-lo. Ainda que tenha se tornado de uso corrente falar de migrantes, concordo com A. Sayad em dizer que os humanos não são jamais migrantes (como os pássaros), mas sim sempre emigrantes e imigrantes, posto que os emigrantes, qualquer que seja a consciência que tenham, depois de haverem sido desgarrados de sua própria terra de origem, buscam um novo lugar no qual radicarem-se (BASSO, 2020).
Tomar criticamente as categorias migratórias significa entendê-las como construção necessária em determinados períodos da nossa história. Refugiado e imigrante econômico são classificações que garantem inclusão ou exclusão a um conjunto de direitos e proteção social e são ao mesmo tempo condutos para o reconhecimento e interpretação da migração.
A Lei do Refúgio no Brasil reconhece como refugiado:
[…] todo indivíduo que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (BRASIL, 1997).
Em 2018, o Brasil recebeu 80.057 solicitações de refúgio de 84 países, 61.681 (77% do total) foram de venezuelanos. Foram deferidos, ou seja, reconhecidos como refugiados 777 pessoas, desses 476 eram sírios. No mesmo ano foram concedidas extensão da condição de refugiado para 309 pessoas, dessas 134 eram da República Democrática do Congo, ou seja, do total de reconhecimentos da condição de refugiado, sírios e congoleses foram as principais nacionalidades. Desse total 34% eram mulheres (BRASIL, 2019).
Alguns fluxos pressionam e tensionam as respostas migratórias no Brasil, especialmente sobre a caracterização de refugiados e imigrantes econômicos. Foi assim com os haitianos, principal nacionalidade na recente migração no Brasil, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública (BRASIL, 2019). Muitos elementos estão envolvidos na vinda de haitianos para o Brasil, o terremoto em 2010 aparece como motivação determinante principalmente na grande mídia, mas pesquisadores têm mostrado outros importantes elementos explicativos como a restrição e coerção nos destinos historicamente acessados por eles, como República Dominicana e EUA e a influência da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti – Minustah – coordenada pelo Brasil no território haitiano (FERNANDES, 2015; SEGUY, 2016). No caso dos haitianos foi usado um dispositivo legal de concessão de vistos de permanência humanitários e vistos de permanência.
No caso dos venezuelanos, em 2018, foram concedidas autorizações de residência. Com o aumento do fluxo e as crescentes tensões, especialmente na fronteira em Roraima, com significativo aumento de demanda para os serviços sociais, conflitos envolvendo a população local, situações de deportação e pressão para fechamento da fronteira foram reconhecidos de uma só vez, em 2019, mais de 20.000 solicitações de refúgio de venezuelanos, segundo o Ministério da Justiça18, e até meados de 2020 foram 37 mil reconhecimentos da condição de refugiado.
Sobre a nova Lei de Migração, o percurso desde o debate até sua promulgação e implementação tem sido permeado de contradições. No mesmo período em que se intensificam os fluxos migratórios para o Brasil, já com novas configurações, e que a articulação social em torno da mudança na legislação migratória na direção de alinhamento aos direitos humanos se fortalece, alteram-se as direções política e econômicas na América Latina e particularmente no Brasil.
O impeachment de Dilma Rousseff e o impacto da crise mundial nas condições de vida dos trabalhadores marcaram a reemergência de discursos e práticas conservadoras e violentas que persistem na sociedade brasileira e que encontraram na conjuntura de aprofundamento neoliberal circunstâncias propícias para seu incremento. A nova Lei de Migração foi sancionada por Michel Temer e sofreu 20 vetos, mas ainda assim tem sido celebrada como um importante avanço. A regulamentação da Lei é longa e polêmica, pois recupera aspectos muito próximos da legislação anterior como, por exemplo, a possibilidade de criminalização devido à condição migratória (CINTRA, 2020; CINCO…, 2019).
Os avanços mais destacados na nova Lei de Migração são: a adoção da perspectiva de direitos humanos e a adoção da nomenclatura imigrante em substituição a estrangeiro (termo com forte conteúdo excludente); garantia de acesso às políticas públicas; possibilidade de reunião organizativa; previsão de ajuda humanitária; contempla os migrantes internacionais residentes no Brasil, os visitantes, os residentes fronteiriços e os apátridas, e inclui brasileiros que vivem no exterior (BRASIL; OIM, 2018, CINCO…, 2019).
A inflexão no trato da migração internacional no Brasil se consolida no governo de Jair Bolsonaro, iniciado em 2019, com movimentos similares em outros países latinos. Além do reconhecido alinhamento e admiração aos EUA e sua política migratória securitária e violenta, medidas do governo brasileiro têm explicitado o recurso à lógica da segurança nacional, são algumas delas: o ataque aos médicos cubanos que resultou na retirada desses profissionais por seu país por considerarem que os mesmos estavam em risco no Brasil e foram profundamente atingidos em sua dignidade; o incremento da ação militarizada nas fronteiras e expansão do Programa Operação Acolhida com atuação interiorizada em diversos estados do país; a retirada do Brasil do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular das Nações Unidas sob alegação de defesa dos interesses e soberania nacional; a Portaria n. 666 defendida e editada (e posteriormente revogada) pelo então ministro da justiça Sérgio Moro que, além de reatualizar a categoria de pessoas perigosas, previa a deportação sumária de imigrantes.
O Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular proposto pela ONU e assinado pelo governo Temer, representa um compromisso político internacional com a perspectiva de proteção aos migrantes, sem implicar qualquer obrigatoriedade de implementação de ações específicas. Ao se desvincular formalmente do Pacto, o governo brasileiro justificou-se com o zelo pela soberania e segurança nacional, argumentando cuidado com o perfil dos imigrantes que entram no país.
Essa preocupação com o controle da entrada e saída está presente na organização pelo Governo Federal da recepção aos venezuelanos na fronteira norte do Brasil. A Operação Acolhida, criada em 2018 é coordenada pelo Ministério da Defesa19 em conjunto com outros órgãos públicos federais, estaduais e municipais e com organizações na sociedade civil local e internacional. Além da recepção na fronteira e abrigamento, o Programa tem investido na interiorização dos imigrantes, mediando a distribuição dos venezuelanos em diferentes estados do território nacional.
Uma questão importante sobre a política migratória no Brasil, considerando tanto as normativas para os refugiados quanto para os demais imigrantes, é a capilaridade no território nacional, visto que são garantidos os princípios da igualdade e não discriminação e o acesso aos direitos fundamentais. As políticas de seguridade social têm como princípio desde a constituição de 1988 a descentralização e, portanto, devem se materializar e operacionalizar em ações conjuntas e organizadas entre União, Estado e Municípios. No caso de atendimento aos imigrantes, o mais comum é que os atendimentos sejam realizados em situações emergenciais nas localidades, como violências, situação de rua ou ações coercitivas em relação ao trabalho ambulante.
Na pesquisa de informações básicas sobre os municípios de 2018, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – identificou a presença de imigrantes em 69% dos municípios brasileiros, desses 5,5% ou 215 têm serviços especializados de atendimento a esse público.
Os serviços de abrigamento identificados se concentram nas cidades de fronteira ou próximas delas, mas os dados sobre o número de imigrantes nas cidades sugerem que há movimentação para diferentes regiões do país. A cidade de São Paulo é a que concentra maior número de imigrantes e é também o município que tem uma Política Municipal de Atendimento a Imigrantes com serviços governamentais e não governamentais (DELFIM, 2019). No geral, é a atuação das organizações não governamentais que tem tido fundamental relevância no atendimento aos imigrantes no Brasil.
As conquistas na política migratória não nos devem causar distrações, como alerta Cintra (2020) que destaca as crescentes disputas e tensões que acompanham o avanço quantitativo das migrações internacionais nos últimos anos. Um exemplo disso é a Portaria n. 666, editada em 2019, que reatualizava questões como periculosidade do estrangeiro e interesse nacional para justificar a expulsão sumária do país com prazo de 48 h para recursos, que mesmo revogada deixou evidente o cenário de criminalização da migração internacional no Brasil (QUINTANILHA, 2019).
O tratamento aos médicos cubanos no Brasil explicitou que embora os imigrantes qualificados acessem formas mais permeáveis de entrada, outros elementos20 definem a recepção no Brasil, um deles o racismo. Imigrantes haitianos, de países africanos e descendentes indígenas denunciam o que constitui uma das marcas históricas da formação social brasileira, a racialização e a hierarquização das relações sociais de modo a desumanizar e subalternizar os não brancos.
Ao considerar os trabalhadores imigrantes como “discriminados, mas não resignados”, Antunes (2018) nos recorda que os caminhos trilhados são construídos conforme as circunstâncias objetivas colocadas para o trabalhador. À medida que as relações capitalistas de produção e reprodução se expandem e incorporam novas regiões e áreas da vida social, a complexidade da composição da classe trabalhadora se intensifica. A diversidade de gênero, orientação sexual, raça/etnia, geração, região, nacionalidade e/ou qualificação é capturada e estimulada como desigualdade, possibilitando ao capital maior exploração de determinados trabalhadores. Nesse sentido, a articulação dos coletivos de imigrantes com as lutas dos trabalhadores brasileiros pode fortalecer a articulação e a construção de perspectivas políticas menos excludentes, até porque, como alerta Basso (2018), as condições a que estão submetidos os trabalhadores imigrantes se misturam ou prenunciam a dos demais trabalhadores.
4 Considerações finais
Nossa preocupação neste artigo foi apresentar uma síntese das principais tendências das migrações internacionais contemporâneas no mundo e as particularidades no Brasil, que se inseriu na rota dos novos fluxos imigratórios desde os anos 2000. Para a compreensão da migração internacional no Brasil, sua dinâmica e as ações políticas de atendimento, é importante considerarmos os processos mundiais de expansão do capital que se relacionam dialeticamente com as condições de vida e com as lutas e resistências travadas pelos trabalhadores e trabalhadoras do mundo.
O agravamento das desigualdades internas e externas é uma das consequências desse novo momento da economia mundial que gera expulsões de grandes contingentes da força de trabalho, destituindo-os definitivamente de um modo de produção de vida. A complexidade e brutalidade desses mecanismos de expulsão atingem, para Sassen (2016), uma escala jamais vista antes na sociedade capitalista e se expressam na generalização da pobreza em todo mundo, na expulsão dos pequenos agricultores, especialmente nos países pobres, em decorrência da especulação e da ação ambiental degradante, no aumento do encarceramento e nos deslocamentos de grandes contingentes de homens e mulheres que tendem a jamais retornar a seu local de origem.
A retração econômica e a expansão de ações xenófobas e racistas evidenciaram, principalmente por parte dos países centrais, a adoção de políticas cada vez mais baseadas na soberania e na segurança nacional e menos na proteção social, ou melhor dizendo, propondo outra forma de lidar com os mecanismos de proteção. A “guerra ao terror” dinamizada a partir dos eventos de setembro de 2001 e os diferentes conflitos armados pulverizados nos continentes se tornaram justificativa para a organização de medidas restritivas, desestimuladoras e punitivas aos migrantes.
São expressões da dinâmica imigratória atual: o aumento de migrações para países do Sul Global, inclusive com solicitação de refúgio; colaboração entre os países no debate e organização das políticas para imigração com forte tendência repressiva aos imigrantes; surgimento de diferentes categorias migratórias; crescente número de mulheres imigrantes; organização de uma governança migratória transnacional com forte participação de agências da ONU. Ao mesmo tempo em que se acelera o volume das migrações e o aparato coercitivo, se constitui uma indústria da migração com diversos atores envolvidos.
A migração tomada no âmbito das organizações transnacionais se constituiu alvo de normatização e de ações sob a retórica do consenso entre as nações. Essa atuação expressa as relações econômicas, políticas e jurídicas do sistema interestatal e, no contexto de crise do capital em que a intensificação das migrações, em todas as suas modalidades e status, se torna um fenômeno social dramático, uma rede de governança internacional migratória fomentada especialmente por agências da ONU, mas não só por elas, se destaca. As realidades regionais recebem tais orientações, mas não deixam de considerar elementos de sua própria história econômica e política na construção de suas respostas à questão migratória.
A ação política de Estados se valendo do discurso de “interesses nacionais” ou “segurança do país” dinamiza os instrumentos de poder já existentes e mobilizam novos. No Brasil, o contexto político aponta para uma redução do espaço democrático e para reformas regressivas nos direitos sociais. É nesse contexto em que foi aprovada e regulamentada a nova Lei de Migração, um aparato político-jurídico inovador numa realidade nacional que reforça cada vez mais os aspectos seletivos da migração atrelados à restrição de direitos e à securitização que reforça a preocupação com a soberania nacional e a ação policial e militar na questão migratória.
Se por um lado a imigração se apresenta hoje no Brasil com características inovadoras como as referências político-jurídicas e o perfil dos imigrantes, por outro, a presença dos imigrantes, especialmente os de origem periféricas, negros e indígenas, manifestam persistências histórias do passado. Os imigrantes, especialmente os fronteiriços e os não brancos advindos de países também periféricos em busca de proteção emergencial e trabalho, se deparam com a realidade de um mercado de trabalho restrito e uma ofensiva ininterrupta de contrarreforma neoliberal aos direitos de proteção social, além dos componentes históricos do racismo denunciados pelos próprios imigrantes, colocando em xeque o mito do país acolhedor.
Assim como em outras regiões do mundo, no Brasil o aparato do Estado no trato das migrações internacionais tende para o distanciamento dos compromissos de proteção com base no sistema internacional de direitos humanos, ainda que tenhamos avançado nas referências legais. A persistência de mecanismos de controle, discriminação, manutenção de provisoriedade através da excepcionalidade das ações regulatórias e criminalização constrói práticas que contribuem para a violação dos direitos dos imigrantes e os coloca em oposição aos trabalhadores brasileiros.
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Notas
Notas de autor
Información adicional
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COMO CITAR (APA): Dias, A. C. S. (2020). Migração Internacional no Brasil: persistências históricas e tendências contemporâneas. Vértices (Campos dos Goitacazes), 22(Especial), 851-870. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p851-870.