DOSSIÊ TEMÁTICO: VIOLÊNCIA DE ESTADO E POLÍTICA SOCIAL: ENTRE O APARATO ASSISTENCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL
Pandemia, crise e expropriações: auxílio emergencial e contradições da focalização
Pandemic, crisis and expropriations: emergency aid and contradictions in targeting
Pandemia, crisis y expropiaciones: subsidio de emergencia y contradicciones en la focalización
Pandemia, crise e expropriações: auxílio emergencial e contradições da focalização
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, 2020
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 31 Agosto 2020
Aprobación: 24 Octubre 2020
Resumo: O presente artigo tem como objetivo trazer elementos para pensar a crise sanitária a partir da crítica da crise capitalista, das expropriações como processo permanente no modo de produção capitalista e sua íntima relação com as contradições deflagradas com a pandemia da Covid-19. Nesta direção, intenta também trazer uma síntese do auxílio emergencial, problematizando os limites colocados pela focalização das políticas sociais, como tendência à desproteção social. Trata-se de ensaio com revisão de bibliografia, cujo método de análise se assenta no materialismo histórico e dialético. Assim, adotamos a crítica marxista para análise da crise capitalista e compreensão dos desdobramentos da crise sanitária, problematizando os processos recentes de expropriação de direitos sociais. A discussão também está assentada numa compreensão da política social como componente contraditório da ação do Estado para reprodução da classe trabalhadora, procurando trazer para o texto uma breve retomada sobre a incidência da via focalista na política social brasileira e os paradoxos que ela repõe em um cenário de destruição do já frágil sistema de proteção social brasileiro.
Palavras-chave: Pandemia, Crise, Expropriações, Auxílio Emergencial.
Abstract: This article aims to bring elements to the discussion of the health crisis based on the criticism of the capitalist crisis, of expropriations as a permanent process in the capitalist production mode, and its intimate relationship with the contradictions unleashed by the Covid-19 Pandemic. It also presents a synthesis of emergency aid and discusses the limitation placed by the focus of social policies as a tendency to the lack of social protection. This is an essay with a literature review based on historical and dialectical materialism. Thus, we adopted Marxist criticism to analyze the crisis and understand the consequences of the health crisis, investigating recent processes of expropriation of social rights. The discussion is also based on an understanding of social policy as a contradictory component of the State action for the reproduction of the working class, aiming at presenting a brief review of the incidence of the focalist path in the Brazilian social policy, as well as the paradoxes that it restores in a scenario of destruction of the fragile Brazilian social protection system.
Keywords: Pandemic, Crisis, Expropriations, Emergency aid.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo aportar elementos para pensar la crisis de salud desde la crítica a la crisis capitalista, a las expropiaciones como un proceso permanente en el modo de producción capitalista y su íntima relación con las contradicciones desatadas con la pandemia de Covid-19. En esta dirección, también se pretende traer una síntesis de los subsidios de emergencia, cuestionando los límites que pone el enfoque de las políticas sociales, como tendencia a la desprotección social. Se trata de un ensayo con revisión bibliográfica, cuyo método de análisis se basa en el materialismo histórico y dialéctico. Así, adoptamos la crítica marxista para analizar la crisis capitalista y comprender las consecuencias de la crisis de salud, problematizando los recientes procesos de expropiación de derechos sociales. La discusión también se fundamenta en la comprensión de la política social como componente contradictorio de la acción del Estado para la reproducción de la clase obrera, buscando traer al texto una breve reanudación de la incidencia del camino focalista en la política social brasileña y las paradojas que restituye en un escenario de destrucción del ya frágil sistema de protección social brasileño.
Palabras clave: Pandemia, Crisis, Expropiaciones, Subsidio de Emergencia.
1 Introdução
O presente artigo procura trazer elementos para pensar a crise sanitária a partir da crítica da crise capitalista, das expropriações como processo permanente no modo de produção capitalista e sua íntima relação com as contradições deflagradas com a pandemia da Covid-19. E, neste sentido, trazer uma síntese do auxílio emergencial, problematizando os limites colocados pela focalização das políticas sociais, como tendência à desproteção social.
Na primeira seção, trazemos aspectos gerais da Pandemia e algumas reflexões, assentadas na crítica marxista da economia política, para explicitar a dinâmica da crise do capital como crise estrutural, assumindo como argumento central que a crise sanitária, ainda que a intensifique, não é sua causa precípua.
Em um segundo momento, optamos por uma discussão mais teórica acerca das expropriações como opção de método para fundamentar a abordagem sobre a necessidade de ampliação da focalização para segmentos de trabalhadores, cujos direitos vêm sendo expropriados recentemente ou que nunca foram alcançados pela proteção social trabalhista.
Por fim, uma última parte traz a explanação acerca do auxílio emergencial como principal medida do governo Bolsonaro para intervenção sobre as necessidades dos trabalhadores que, em função das medidas de contingenciamento, ficaram impossibilitados de trabalhar e auferir algum rendimento, refletindo sobre os limites e contradições da focalização.
O método que orientou este ensaio foi o materialismo histórico-dialético, recorrendo a categorias de análise da obra marxiana e de autores da tradição marxista, das quais destacamos: capital, classe trabalhadora, desenvolvimento capitalista, crise, expropriação. Também recorremos a conceitos fundamentais para os objetivos aqui delimitados como Estado, política social e proteção social. A abordagem deste trabalho tem caráter ensaísta, com revisão bibliográfica e documental (fonte secundária).
2 Pandemia da Covid-19: crise do capital e crise sanitária
Ainda que notícias da grande mídia apontem para melhorias nos chamados “indicadores de confiabilidade” na economia brasileira, parece estar suficientemente claro que o mundo enfrentará uma grande recessão. A narrativa de intelectuais orgânicos, agências multilaterais e da mídia de massas é que “o mercado” entrou em colapso em função da Pandemia do novo coronavírus e sua doença, a Covid-19. Embora seja verdade que a paralização das atividades econômicas produtivas, em função das medidas de contingenciamento, tenha jogado água no moinho de contradições do capital, contribuindo com a irrupção da crise, não é a pandemia a causa precípua dela.
O primeiro caso do novo coronavírus identificado na China, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, teria ocorrido em 08 de dezembro. Mesmo com as drásticas medidas de contenção da doença – inclusive com controle e rastreamento das pessoas – em pouco tempo a doença se disseminou e não tardou para ser classificada como uma pandemia e para que a OMS decretasse Situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional, em 30 de janeiro de 2020.
A confirmação do primeiro caso da doença no Brasil se deu em fevereiro. Considerando o potencial de contaminação, os efeitos deletérios sobre os sistemas de saúde, produção de bens e serviços e na vida das pessoas de um modo geral, instituições sanitárias, universidades, grupos de pesquisas e pesquisadores renomados apontavam a gravidade da situação e a necessidade da adoção de medidas de enfrentamento à pandemia.
No dia 20 de março o Congresso Nacional aprovou, por unanimidade, “estado de calamidade pública” e, sequencialmente, vários estados passaram a adotar medidas de isolamento social. O governo federal, sobretudo na pessoa do presidente da República, adotou uma postura negacionista, explicitando em vários momentos uma opinião anticientífica e irracional, procurando disseminar a ideia de que a doença não era grave. É de conhecimento generalizado sua afirmação irresponsável de que se tratava apenas de “uma gripezinha”.
Sob essa postura, calcada no obscurantismo, o governo Federal se mostrou extremamente negligente e ineficiente no enfrentamento à pandemia, passando longe do que se esperava de um governo minimamente sério. Além de não conseguir elaborar e implementar um plano nacional, liderando e articulando as ações dos estados para essa empreitada, o governo Federal se emaranhou entre troca de ministros, escândalos políticos e inoperância para reorganizar o sistema de saúde e medidas de proteção social aos brasileiros; Rodrigues e Stampa (2020, p. 89) chamam atenção para o fato de que o governo Bolsonaro – em forte consonância com sua postura subserviente aos EUA – não só convergiu com os argumentos chulos de Donald Trump, como revelou “indícios adicionais do alinhamento automático do Brasil à tomada de decisões estratégicas nos EUA”.
Na esteira da conduta negacionista do governo e da sua obsessiva defesa da cloroquina como panaceia para enfrentar a Covid-19, os grupos que compõem a base de apoio político bolsonarista, colocam em planos de falsa concorrência a garantia da saúde das pessoas ou a “saúde” da economia. Além disso, estes grupos também passaram a empregar a mesma estratégia de minimizar a gravidade da doença e seus efeitos sobre a vida e salubridade das pessoas, com feitos de notória irresponsabilidade coletiva e delírios irracionalistas, que incluíam e incluem: organização de passeatas, manifestações antidemocráticas e contra STF, aglomerações em frente ao Planalto e em vários espaços do país, agressões à impressa, banalização do uso das máscaras e das mortes, defesa ferrenha da cloroquina e as já conhecidas disseminações de fake news.
Caponi (2020) chama atenção para o fato de que a crescente aceitação social do negacionismo científico em conjunto com a desconsideração de argumentos racionais em diversos âmbitos, que vão desde o terraplanismo até a condenação da suposta “ideologia de gênero”, passando pelo criacionismo e pela rejeição às ciências humanas e sociais, já eram adotados e propagado por Bolsonaro desde sua campanha, assumindo cada vez mais presença em seu governo e no modo como ele mobiliza suas bases de apoio.
Particularmente, no que se refere à pandemia, esse negacionismo se traduz na aceitação de intervenções sem validação científica, como a divulgação e exaltação de uma terapêutica de eficácia não comprovada e com efeitos colaterais extremamente sérios como a cloroquina, ou a defesa de uma estratégia de intervenção que contraria a posição da Organização Mundial de Saúde (OMS), denominada por Bolsonaro como “isolamento vertical”. Trata-se de fato de duas estratégias solidárias. Pois, existindo uma “bala mágica” que permita um suposto tratamento eficaz, não haveria motivos para continuar mantendo a quarentena (CAPONI, 2020, p. 211).
O cenário que vivenciamos nestes cinco meses é de terra arrasada. A conjugação da crise sanitária com o desastre social, já promovido pelo neoliberalismo dos últimos anos e sua radicalização sob o atual governo de extrema direita, que envolve o país em crises políticas e institucionais, adensa as desigualdades sociais e aprofunda o hiato entre as diferentes classes sociais, uma vez que a pandemia não é vivenciada da mesma forma por todos os sujeitos. Ela é determinada – em primeira instância – pela localização dos sujeitos no âmbito das relações produtivas.
Em 24 de agosto já são mais de 3 milhões e 600 mil contaminados e mais de 100 mil mortes.1 Enquanto isso, o governo flexibiliza as medidas de isolamento social – que nunca foram realmente efetivas – e procura catalisar “um novo normal”, para que a engrenagem da “economia” não pare. Sob o argumento de que a manutenção das medidas de isolamento e a paralização das atividades consideradas essenciais atravancam a produção econômica e podem levar o país à quebra. O governo Bolsonaro, principalmente através do ministro da economia ultraliberal Paulo Guedes, ainda que adotando a cartilha neoliberal mais radical, não alçou alavancar a economia como pretendiam, mas a pandemia veio como que “a calhar” com a necessidade de apontar um vilão para culpar pela recessão econômica enfrentada pelo país. Aliás, essa é a tônica do discurso oficial mundo a fora, conforme indicamos no início. Mas de fato, pode-se dizer que o novo Coronavírus tem a responsabilidade sobre o atual cenário de crise?
Não é novidade que as crises do capitalismo sejam explicadas, pela economia política burguesa, como resultantes de causas externas ao capitalismo, seja por conta do intervencionismo demasiado do Estado na economia, pela falta de moralidade de alguns investidores despudorados, pelo excesso de endividamento das famílias, pela fala de liberdade ou pelas barreiras criadas por legislações restritivas que impediriam o fluxo “normal” de capitais. Enfim, sempre é amplo o leque de fatores que podem ser identificados como culpados, exceto o próprio capital. São sempre abalos externos que desestruturam os automatismos de mercado – que levariam irremediavelmente ao equilíbrio constante.
No entanto, desde uma perspectiva da crítica da economia política, assentada no marxismo, podemos evidenciar que as crises são componentes inerentes ao modo e funcionamento do capitalismo. Superando uma visão estanque da crise, essa compreensão demonstra que a forma social do capital é viabilizadora de crises. No capitalismo contemporâneo, é na década de 1970 que localizamos eclosão da crise estrutural do capital que se arrasta até os dias atuais, com momentos curtos de recuperação tímida das taxas de acumulação.
A ofensiva neoliberal desencadeada a partir de então não pode deixar de ser pensada como resposta do capitalismo mundializado – através de suas personificações – aos movimentos que abalaram a estrutura de organização da produção que sedimentava o regime de acumulação dos 30 anos pós-Segunda Guerra Mundial. A financeirização da economia, com a consequente transformação de países dependentes, como o Brasil, em plataforma de valorização financeira (PAULANI, 2008), foi o mecanismo central para retomada do crescimento das taxas de lucros.
O rápido suspiro do capitalismo global no início dos anos 2000 esteve assentado nas estratégias de produção do regime de acumulação flexível, tendo como base a expansão do capital financeiro e aumento estrondoso do capital fictício. Operando mediante fusões cada vez mais orgânicas entre capital industrial e capital portador de juros, o mainstream do grande capital mundial financeirizado busca extrair mais valor de produções futuras e, através de vários mecanismos de investimentos e artimanhas, quer realizar a façanha de fazer dinheiro sem passar pela mediação do trabalho produtivo.
A eclosão da crise do sistema financeiro internacional, em 2008, tinha como epicentro os Estados Unidos, começando pelo mercado imobiliário, atingindo bancos e as movimentações das Bolsas de Valores de todo o mundo. Colocou o mundo capitalista no cerne de uma “profunda turbulência” político-econômica, jogando o regime de acumulação flexível no labirinto que ele mesmo criou. Naquele contexto, a “culpa da crise” era localizada na falta de regulamentação das transações financeiras e na falha de caráter e moral dos operadores deste ramo.
Como se percebe, o regime de acumulação com dominância da valorização financeira tem a formação de crises, ocasionadas pela recorrente geração de bolhas de ativos, como sua característica mais marcante. Ele é por isso estruturalmente frágil. Ao longo dos últimos trinta anos, o poder detido pela riqueza financeira foi moldando as instituições de modo a criar um modo de regulação compatível com um processo de reprodução capitalista sob seu comando. Completado esse processo, o sistema encontra-se no auge de sua fragilidade (PAULANI, 2010, p. 8).
Compreendemos, no entanto, que não se trata disso, ainda que fraudes, manipulações, enriquecimento ilícito, entre outros mecanismos também componham as artimanhas dos operadores desses mercados (HARVEY, 2004a). Tratava-se, na verdade, de uma manifestação parcial da crise estrutural do capital, que conforme Mészáros (2011) tem como características centrais: seu caráter global e não setorial, seu alcance mundial, sua extensão temporal. A crise que ora vivenciamos não é outra coisa senão mais uma manifestação acirrada da crise estrutural do capitalismo, que em função das medidas de isolamento e contingenciamento da Pandemia foi possivelmente precipitada e, com certeza, aprofundada.
A fragilidade do capitalismo financeirizado fica patente também no contexto de eclosão da pandemia, que coloca óbices ao circuito de valorização do capital. Os circuit breaker nas principais Bolsas de Valores no mundo, sobretudo em março, são uma amostra da tênue rede de negociatas que sustenta o capitalismo na cena contemporânea. Quando a “imprensa especializada” fala em “mercados nervosos” eles procuram camuflar o que de fato abala o sistema nervoso central do capital: a imprescindibilidade da produção de valores e mais valor, que somente pode vir da exploração do trabalho vivo. Na medida em que os trabalhadores são impossibilitados de acessar espaços de trabalho e produzir, a espinha dorsal do modo de produção capitalista sofre abalos.
Conforme atestava Marx (1985), na seção I do Livro II de O Capital, a reprodução ampliada do capital ou acumulação acontece somente se o processo de rotação do capital resultar em valor-capital acrescido. O giro global que o capital realiza – circulação-produção-circulação – exige mudanças de formas – de capital monetário para capital produtivo e para capital-mercadoria – que ocorrem sucessiva e simultaneamente durante todo o processo. Quanto menor o tempo de rotação do capital, maior probabilidade de auferir taxas mais ampliadas de acumulação. Obstáculos de naturezas variadas em quaisquer dos momentos do giro global do capital vai criar sérios problemas para os capitalistas.
A paralisação da produção de mercadorias e serviços em função das medidas de isolamento social provoca quebras nas cadeias produtivas e embargos à movimentação e mudança de forma do capital. Nunca é demais lembrar que o valor produzido precisa ser realizado no consumo, no âmbito da circulação. Os abalos nas Bolsas de Valores quando a Europa chegava no pico da pandemia não estão desvinculados da compreensão de que o sistema financeiro somente resiste parasitando o capital produtivo e o mais valor, presente e futuro, e este somente se realiza sob exploração do trabalho vivo.
De acordo com Lapavitsas (2020), desde a eclosão da crise de 2007-2009 – que pôs fim a era de ouro das finanças – a economia mundial vem sendo marcada por baixo crescimento, lucratividade insuficiente, o crescimento da produtividade baixo e os investimentos não mostram nenhum dinamismo. Por outro lado, as finanças também estavam com problemas, expressos na menor rentabilidade e na inexistência do dinamismo extraordinário do período anterior (parte dos anos 1990 e início dos anos 2000). Nessa direção, “se a crise historicamente sem precedentes de 2007–2009 marcou o auge da financeirização, a nova crise do coronavírus cristaliza sua deterioração” (LAPAVITSAS, 2020, p. 153).
3 Expropriação de direitos e intensificação da tragédia sanitária
Conforme sinalizamos no item anterior, a irrupção da crise sanitária no Brasil aprofundou a crise capitalista que se mostrava resistente mesmo às duras investidas da ortodoxia neoliberal do governo Bolsonaro. Acoplada ao avanço do conservadorismo, a nova onda neoliberalizante hiperautoritária deste governo avança na esteira das expropriações radicais contemporâneas, abocanhando parte dos ganhos da força de trabalho para garantia da reprodução ampliada do capital.
Essa perigosa fase que nós atravessamos está marcada por um novo neoliberalismo que canaliza e explora os ressentimentos, as frustrações, o ódio, o medo de diferentes frações da população, dos pobres e dos ricos, para direcioná-los contra bodes expiatórios. Esses últimos podem ser imigrantes, pessoas consideradas preguiçosas, vagabundas, parasitárias, as minorias sexuais ou étnicas, partidos ou líderes políticos de esquerda, pouco importa (LAVAL, 2018).
De acordo com Laval (2018), vive-se uma crise global das democracias liberais em todo o mundo e é nesse contexto que países como o Brasil – de redemocratização recente – tornam-se mais expostos às mudanças hiperautoritárias neoliberais. Embora o conservadorismo não seja algo distante da nossa história, ao contrário compõe a nossa formação social, assim como a cultura antidemocrática, sua exponenciação, no período recente reflete a radicalização da luta de classes no capitalismo dependente.
Com a erosão das bases do projeto político de conciliação de classes petista, ganhou espaço uma acomodação medonha em torno das nossas piores marcas estruturais: a superexploração do trabalho, os vetores antidemocráticos, os preconceitos e a discriminação, além de aprofundar processos de desigualdade social, pobreza e reprodução dos processos de expropriação. Além disso, o nacionalismo defendido pelo bolsonarismo congrega subserviência ao capital estrangeiro, sobretudo ao norte-americano.
A intensificação da crise em conjunção com o ultraconservadorismo bolsonarista repõe em bases ainda mais dramáticas nossa condição de dependência, além de colocar em patamar ainda mais aviltante o processo de expropriação. Estas, não apenas relativas às condições materiais de reprodução da existência dos trabalhadores, mas expandidas a direitos históricos individuais e coletivos.
Conforme apontado por vários estudiosos marxistas (BOSCHETTI, 2018; FONTES, 2010, 2018; LUPATINI, 2018), as expropriações não são processos que apenas constituíram as bases da acumulação de capital na transição do feudalismo para o capitalismo. Apesar de terem sido estas expropriações originais imprescindíveis, o ato de expropriar – seja através da mediação do Estado ou não – não se resumem a formas pretéritas de liberação da força de trabalho para o assalariamento capitalista. São, portanto, pressuposto e resultado reproduzidos em qualquer etapa da história do capital. Fontes (2018) assinala que “a expansão dos processos de acumulação, concentração e centralização produzem, incessantemente, levas de trabalhadores disponíveis para o capital, mesmo entre aqueles já expropriados” (FONTES, 2018, p. 24).
Os processos de expropriação, portanto, são imprescindíveis para reproduzir uma superpopulação relativa, que pressiona a massa de trabalhadores para sujeição à exploração, compõe força de trabalho facilmente acessível para o capital e pressiona para baixo os salários. Seja do ponto de vista do trabalhador individual, seja do ponto de vista da humanidade de uma forma geral, as expropriações tendem a mercantilizar e tornar capital dimensões, elementos e esferas da vida que ainda não haviam sido mercadorizadas. A relação entre financeirização e expropriação se torna cristalina, na medida em que somente pela produção/realização da forma valor-mercadoria em valor-capital, numa escala cada vez mais exponencial, pode alimentar o parasitismo do capitalismo contemporâneo.
Todo o conjunto da vida social torna-se subordinado à lógica da produtividade que é, na verdade, o que gera o valor que deve cobrir a rentabilidade financeira dos diferentes detentores do capital portador de juros.
A imensa escala da concentração não resulta apenas na condensação da propriedade sob a forma da empresa, ou mesmo do conglomerado multinacional: transborda para todas as atividades da vida social e, onde não existem, precisa criá-las, como, por exemplo, através da expropriação de formas coletivas de existência para convertê-las em produção de valor (saúde, educação); da expropriação da própria condição biológica humana para convertê-la em mercadoria, já dominantes nos transgênicos e nas patentes de vida, mas apenas iniciando-se sobre a própria genética humana (FONTES, 2010, p. 203).
As expropriações incidem continuamente sobre todos os aspectos da produção e reprodução da existência para tornar homens e mulheres cada vez mais vulneráveis e suscetíveis ao trabalho assalariado, não importando as condições mais aviltantes e degradantes que esse trabalho imponha. Nesse ínterim, cabe pensar os processos de destruição de direitos como expropriação de bens coletivos e individuais. Os direitos – mesmo considerando seus limites no âmbito do significado da emancipação política compatível com a sociabilidade burguesa – são dispositivos que viabilizam condições, acessos e proteções que contribuem para reprodução material da existência da classe trabalhadora.
Entendendo a expropriação “como exigência da autoexpansão do capital” (LUPATINI, 2018), temos um fundamento teórico-metodológico para compreender que os direitos (sociais e trabalhistas), ao passo que impõem certos limites à exploração do capital sobre o trabalho e que, minimamente, compõem formas de distribuição do valor socialmente produzidos, são e serão objeto de “desejo do capital”. Na medida em que se expropriam direitos que garantiam maior margem de manobra e viabilizavam condições para os trabalhadores pleitearem melhores condições de trabalho e vida, o capital e o Estado – forma política da dominação burguesa2 – criam condições para que os trabalhadores tenham que se sujeitar a qualquer tipo de trabalho e em quaisquer condições.
A expropriação é correlata da pilhagem do trabalho e impele o conjunto da classe trabalhadora ao escrutínio cada vez mais barbarizado da exploração capitalista.
[…] o capital tem lançado mão de uma estratégia deliberada e sistemática composta por um conjunto de táticas que, observadas à luz do materialismo dialético, revelam a combinação entre distintas formas de acumulação (primitiva, por espoliação e ampliada), dando corpo ao que chamamos de pilhagem territorial. Além da escassa geração de empregos mal remunerados e instáveis, para os trabalhadores o resultado não poderiam ser outro senão um trabalho visceralmente precário e degradante, contraditoriamente e até certa medida adequado às exigências de mercado (certificações internacionais) conformadoras das políticas internas de saúde e segurança do trabalho das grandes corporações do segmento […] (PERPETUA, 2016, p. 9).
O projeto político-governamental bolsonarista vem promovendo uma miríade de contrarreformas, que expropriam direitos numa vertiginosa ofensiva contra as políticas sociais e a quaisquer dispositivos progressistas. Se a agenda neoliberal é empregada no Brasil desde os anos 1990, essa nova onda neoliberalizante, por seu caráter fascista e ultraconservador, coloca o Brasil na dianteira dos processos antidemocráticos, antirrepublicanos e de radicalização dos ataques à classe trabalhadora, partidos de esquerda, setores progressistas, movimentos sociais e todo grupo que se insere nas chamadas “minorias” (feministas, mulheres, LGBTQI+, indígenas, negros, imigrantes, entre outros).
O que está colocado como grande contradição – que é inerente ao próprio capitalismo e os regimes de acumulação que ele engendra – é que essa nova ofensiva neoliberal procura reverter os efeitos da crise estrutural do capital e da própria agenda neoliberal que se configura como “a nova razão do mundo” (DARDOT; LAVAL, 2016) desde fins de anos 1970. Esses processos não são exclusivos do Brasil, ao contrário, são tendências que vêm desde as estratégias das economias centrais. Os defensores do neoliberalismo criam uma espécie de tautologia, quando tentam resolver os problemas que ele mesmo engendra, com doses mais fortes do seu programa que, ao invés de combater as causas, potencializam seus efeitos. Nos dizeres de Mascaro (2013, p. 10), “diante da mais recente crise econômica e política do capitalismo contemporâneo, a neoliberal, os teóricos manejam, como ferramentas de análise e até como meios de solução, as mesmas medidas quantificadas e forjadas no seio das próprias instituições neoliberais”.
Já no governo Dilma tivemos uma inflexão importante para uma política econômica mais ortodoxa, com endurecimento de metas de superávit primário e retração da ala política do governo mais afeta ao chamado “neodesenvolvimentismo”. Com o impeachment de Dilma e a sua substituição pelo vice Michel Temer, o Brasil envereda num movimento brusco para garantir as contrarreformas impostas pelo grande capital nacional e internacional, chegando a garantir a aprovação da Emenda Constitucional Nº 95, que institui o “novo regime fiscal”, da Lei de Terceirização e da reforma trabalhista.
A Reforma da Previdência – núcleo duro da agenda ofensiva sobre os direitos sociais e trabalhistas – ficaria a cargo do governo seguinte, feito realizado com extrema agilidade pelo governo Bolsonaro, com perdas de largo espectro para os trabalhadores, aumentando tempo e valor de contribuição, ampliação da idade mínima e diminuição do teto para cálculo da aposentadoria, entre outras. Afeta o eixo estruturante da constituição da Previdência social pública no Brasil quando desmantela a forma de contribuição tripartite e o princípio da solidariedade intergeracional. Em todos os sentidos, a contrarreforma previdenciária abre nichos de valorização há tempos ambicionados pelo capital financeiro, pois empurra os trabalhadores para o mercado de fundos de pensões e aposentadorias complementares.
Os processos que suprimem as condições de subsistência asseguradas pelos direitos conquistados e ampliados no capitalismo tardio pelo Estado Social, e que subtraem as condições materiais que possibilitam à classe trabalhadora deixar de vender sua força de trabalho em situações determinadas (como é o caso das aposentadorias, seguro-desemprego, seguro-saúde ), ou que a obrigam a vendê-la por meio de contratos diretos com o capitalista, sem a mediação de Estado (a exemplo do trabalho sem regulação), constituem processos contemporâneos de expropriação social (BOSCHETTI, 2018, p. 154).
A Pandemia atinge um Brasil atolado na estagnação econômica, embutido de feições fascistas, cuja sociedade encontra-se cada vez mais conservadora e em que a classe trabalhadora é retalhada entre aqueles que ainda têm emprego formal – mesmo com todas as perdas viabilizadas pelas contrarreformas atuais – e uma massa de trabalhadores informais, desprotegidos e emaranhados na trama da “uberização total” (ANTUNES, 2020). Isso, porque processos recentes de expropriação social “agem nessa intersecção entre trabalho e direitos sociais, de forma a instituir ‘novos’ e ‘modernos’ processos de disponibilização da força de trabalho para acumulação do capital” (BOSCHETTI, 2018, p. 152). O desastre social que fica explicitado em função das medidas de contingenciamento à pandemia é apenas em parte determinado por ela, uma vez que sua determinação principal é a própria configuração do capitalismo dependente brasileiro face à reconfiguração neoliberal em andamento, assentada na radicalização das expropriações e da superexploração da força de trabalho.
4 Contradições da focalização
As medidas do governo federal para enfrentamento à pandemia da Covid-19 e os impactos sobre a renda e condições de vida da sociedade brasileira – sobretudo a classe trabalhadora mais empobrecida e desprovida de direitos trabalhistas – vêm sendo marcadas pela falta de compromisso político mínimo com o bem-estar coletivo, com a má vontade pessoal do presidente, a incapacidade administrativa de seu staff técnico em planejar e executar ações coordenadas e unificadas com os estados e municípios, sua subserviência completa às demandas do capital, enfim: pela continuidade e adensamento do neoliberalismo com tempero fascista e super dosagens de conservadorismo.
O governo não tardou em oferecer subsídios às empresas capitalistas, socializando, com o conjunto da sociedade, os custos da crise. A PEC 10/2020 (transformada na Emenda Constitucional Nº 106/2020), denominada de “PEC do Orçamento de Guerra” demonstra como o círculo de ferro do ajuste fiscal é facilmente maleável quando se trata dos interesses do capital. Sob a narrativa de facilitar os gastos do governo no combate ao Novo Corona Vírus e os efeitos da pandemia, a EC 106/2020 institui Regime Extraordinário Fiscal, Financeiro e de Contratações. Permite, por exemplo, que o banco Central atue diretamente nos mercados secundários de títulos privados, além de tirar os limites impostos pelas rígidas regras fiscais financeiras do Brasil. Na prática, isso viabiliza a compra de derivativos sem lastros e compra de títulos podres sem identificar beneficiários e sem nenhuma transparência.
Por outro lado, a Medida Provisória n. 936/2020cria o Programa Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, que concretamente é uma medida que atende as emergências dos empregadores e onera os trabalhadores. Prevê a possibilidade de redução proporcional de jornada de trabalho e de salários; Pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e Renda; e a suspensão temporária do contrato de trabalho. De acordo com juristas e pesquisadores do campo trabalhista (GONÇALVES et al., 2020,) a MP não traz benefícios aos trabalhadores do mercado formal e impacta negativamente na renda e massa salarial. A medida alivia a folha de pagamentos das empresas, “possibilitando a redução de custos salariais que podem variar entre 25% e 100% da folha de pagamentos para empresas pequenas e médias, e entre 25% e 70% para empresas grandes” (GONÇALVES et al., 2020, p. 9).
Para os trabalhadores, no entanto, a queda na renda pode variar entre 10,5% e 42,2%, dependendo do cenário de redução da jornada e dos salários. De acordo com projeção feita pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE, 2020), todo trabalhador que ganhasse mais de um salário mínimo teria perdas salariais. Além disso, a MP permite negociações individuais entre trabalhadores e patrões, com exclusão dos sindicatos, fragilizando sobremaneira as possibilidades de negociação em favor dos primeiros.
Em relação às medidas adotadas pelo governo federal em relação aos trabalhadores que estão fora do emprego formal o que observamos foi a resistência do governo quanto à instituição do auxílio emergencial – pensado pelo ministro da economia, a princípio, com o valor irrisório de R$ 200,00 – e que somente foi aprovado no valor de R$ 600,00 em função da pressão da oposição e articulação de setores progressistas. Mesmo assim, o que se deu na sequência foi uma demora, sem explicação plausível, para sanção presidencial do auxílio.
O auxílio emergencial foi regulamentado pela Lei nº 13.982/2020, alterando a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS/ Lei nº 8.742/1993) para adoção de parâmetros adicionais para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e instituiu medidas excepcionais a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19).
A Lei previa o pagamento de um auxílio no valor de R$ 600,00 durante o período de três meses ao trabalhador que cumprisse de modo cumulativo os seguintes requisitos: ser maior de 18 (dezoito) anos de idade, salvo no caso de mães adolescentes; não ter emprego formal ativo; não ser titular de benefício previdenciário ou assistencial ou beneficiário do seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda federal, ressalvado o Bolsa Família; ter renda familiar mensal per capita seja de até 1/2 (meio) salário-mínimo ou a renda familiar mensal total seja de até 3 (três) salários mínimos; no ano de 2018, não ter recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70; exercer atividade na condição de: a) microempreendedor individual (MEI); b) contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social que contribua na forma do caput ou do inciso I do § 2º do art. 21 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991; ou c) trabalhador informal, seja empregado, autônomo ou desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente inativo, inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) até 20 de março de 2020, nos termos de autodeclaração. Além disso, o auxílio emergencial foi limitado a dois membros da mesma família, sendo que a mulher provedora de família monoparental poderia receber duas cotas do auxílio (BRASIL, 2020).
O auxílio emergencial apresenta algumas variações em relação aos programas de transferência de renda operacionalizados no Brasil até o presente momento, sendo três as principais, em nossa compreensão: a renda per capta, o valor do benefício, e o público-alvo. O principal programa de transferência de renda no Brasil, o Programa Bolsa Família, sempre operou com benefícios cujos valores sempre foram mínimos (valor médio por família R$189,00) e a renda per capta muito baixa, justamente em função do público a ser atingido: famílias pobres ou extremamente pobres.
Conforme demonstrado por Silva (2018), programas de transferência de renda se inserem dentro do escopo de uma dada modalidade de política social – focalista e seletiva – que visa garantir condições mínimas para reprodução da fração mais empobrecida da classe trabalhadora e desprovida de direitos. Essa direção social, está em consonância com as tendências dos programas de alívio à pobreza, recomendados pelas instituições multilaterais desde os anos 1980.
Tais programas se inserem no âmbito da política de assistência social que, durante os governos petistas, assumiu centralidade no campo da proteção social, numa espécie de unidade contraditória com as demais políticas que compõem a seguridade social: Previdência Social e Saúde (MOTA, 2008). Sem minimizar os avanços indiscutíveis da política de assistência social no contexto referido, sobretudo em relação ao processo de regulamentação, normatização e institucionalização, a assistência social tornou-se um mecanismo fundamental de gestão das expressões da questão social, mormente aquelas manifestações mais potencialmente disruptivas, como a pobreza absoluta. A forma como a referida política foi carreada em função das demandas de alívio à pobreza confluiu para particularizar uma modalidade de política social compensatória, residual e focalista.
O debate sobre a focalização e a universalização das políticas sociais tem sido objeto de disputas ideoteóricas, político-econômicas e culturais e estão no cerne das disputas em torno da direção a ser adotada pelos Estados no que tange à constituição de sistemas ou mecanismos de proteção social, principalmente a partir da ofensiva neoliberal, que tem como um pilar fundamental, na sua agenda para as políticas sociais, o desmonte, a privatização, precarização e focalização.
Sob a ótica neoliberal, a proteção social deve ser garantida via mercado para aqueles que podem pagar, enquanto que o Estado deve centrar suas ações sobre o segmento mais empobrecido. Nesse prisma, ganha densidade a opção por uma política de assistência social compensatória e focalizada, que despreza moldes universais para a política social e é executada a partir de um formato específico de “enfrentamento à pobreza”.
Na visão universalista das políticas sociais, o mercado é o objeto do embate distributivo, o que supõe um papel decisivo e regulador do Estado. A perspectiva focalizada abandona a dimensão da universalidade inclusiva e faz a opção pela “gestão estratégica da pobreza”, num ambiente adverso à mudança. Este novo paradigma, entretanto, supõe o fortalecimento da capacidade dos pobres para lutarem contra pobreza, como sujeitos deste processo (IVO, 2004, p.60).
Boschetti (2003, p. 43-44), ao pensar sobre as diferenças entre direções sociais universalistas ou focalistas para as políticas sociais, assinala que: “a seletividade rege-se pela intenção de eleger, selecionar, optar, definir quem deve passar pela peneira ou pelo crivo, […] esgota-se em si mesma, em seus critérios de “menor elegibilidade” e conforma-se com a redução e a residualidade nos atendimentos. “[…] A focalização passa a ser negativa quando, associada à seletividade, restringe e reduz as ações a poucos e pequenos grupos, desconsiderando o direito de todos”.
Desde a década de 1990, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, a adoção da via focalista para os programas e políticas sociais compõe as estratégias de proteção social para a fração mais empobrecida entre os trabalhadores. Nos governos Lula, ganhou densidade e tornou-se, em função das condicionalidades e critérios rígidos de acesso e seletividade do PBF, o carro chefe da política social. E é com o governo Dilma Rousseff que a focalização ganha um patamar mais sofisticado, com um arsenal técnico-operativo moderno para acentuar a focalização.
O paradigma da focalização ganha ainda mais centralidade com a implantação do Plano Brasil sem Miséria em junho de 2011, sob o mote da garantia do acesso da população mais pobre aos serviços públicos. Não seria demais ressaltar que por meio disso expandiu-se a focalização da extrema pobreza também para outras ações de governo, que, então, deveriam redirecionar o foco das atividades institucionais nesse segmento. Isso foi algo inédito nas práticas de governo engendradas até aquele momento. Segundo Campello e Mello (2014)3, o Plano implanta uma reforma na lógica de atuação do Estado, “que pode ser definida como uma hiperfocalização”. “Baseando-se na hiperfocalização foi possível garantir, simultaneamente, o direcionamento da ação para os que mais precisavam e também a criação de mecanismos de verificação de que aquelas famílias foram realmente beneficiadas pelos diferentes programas do Brasil sem Miséria”. (CAMPELLO; MELLO, 2014, p. 48)
Em nossa compreensão a focalização encerra um modo específico de gerenciamento da pobreza, em um contexto de acirramento da crise e agudização das expressões da questão social, sobretudo, aquelas que expressam a extrema pobreza. Além disso, ao centralizar a transferência de renda condicionada, aciona mecanismos específicos de elegibilidade, atuando sobre a população miserável, sendo importante mecanismo de reprodução da força de trabalho excedente às necessidades do capital e impactando, ainda, na melhoria do consumo interno, como visto antes.
A focalização empreende um modo particular de gerenciar a pobreza na medida em que determina critérios rigorosos de elegibilidade, tal como sinalizamos, encetando a estratégia factual de atuar sobre os “bolsões de pobreza”, cujas expressões oferecem maiores riscos de desestabilização da ordem. Ou seja, desvia a atenção da coletividade quanto às possibilidades de serviços públicos universais e balizam as ações por soluções técnicas, tidas como neutras e mais eficazes, na medida em que consigam focalizar os grupos mais pobres, e, portanto, utilizar os parcos recursos que são direcionados para atendimento das necessidades sociais de modo “eficiente”. Aprofunda a estratificação da classe trabalhadora pobre, ao estabelecer estratégias de subfocalização, definindo não pobres, pobres, extremamente pobres, miseráveis.
Essas dinâmicas vêm aprofundando o hiato e a fragmentação da classe trabalhadora, que já se processa desde os primórdios da recente reestruturação produtiva da década de 1990, e acarretam implicações importantes no que diz respeito à dimensão político-ideológica e organizativa da classe trabalhadora, e transforma necessidades sociais coletivas em penúrias individuais (SILVA, 2020). Ao transformar questões coletivas em carecimentos individuais, tais mecanismos contribuem para desmobilizar quaisquer possibilidades mais concretas de organização política dos trabalhadores, contribuindo para um crescente processo de individualismo e desconstrução do ideário das possíveis pautas do trabalho. Ao fim e ao cabo, há um denso processo de subjetivação em curso que aponta para a naturalização da pobreza e do desemprego, com profundas implicações para a experiência de classe.
A estratégia de focalização dos governos petistas visava – além das questões já elencadas – fazer com que a transferência de renda chegasse exatamente naquele estrato de trabalhadores sem nenhum rendimento, com trabalhos extremamente precarizados e cuja inserção no mercado formal de trabalho seria inviável, por se tratar de uma parcela da classe trabalhadora dispensável para as necessidades imediatas da produção capitalista. Nos termos marxianos, estamos nos referindo ao que seria a fração da superpopulação relativa considerada estagnada (MARX, 2013). A ideia era exatamente chegar nos recônditos mais profundos da pobreza e garantir que esse segmento – historicamente alijado do acesso a bens e serviços públicos – fosse alcançado pelas políticas sociais brasileiras. Estratégias como “Busca Ativa”, Centros de Referência da Assistência Social (CRAS itinerante), Centro de Referência para População em Situação de Rua (Centro Pop), alterações no Cadastro Único para viabilizar cadastramento de pessoas em situação de rua no Programa Bolsa Família e mais uma miríade de dispositivos foram implantados durante o ciclo petista para garantir as ferramentas técnicas de intensificação da focalização.
Sem desvelar a essência do fenômeno pareceria absurdo discordar de uma estratégia desse tipo, mas o que há no seu núcleo são as contradições da política social e da forma social capitalista de gestão da força de trabalho e das expressões da questão social. Isso, porque ao passo que a narrativa da focalização aponta para garantia do acesso às políticas, bens e serviços públicos pela via das condicionalidades dos programas de transferência de renda, o Estado imputa aos usuários obrigações que desconfiguram a própria noção de proteção social. Por outro lado, esse mesmo Estado – mediante sua configuração neoliberal –avança nos processos de expropriação de direitos sociais e trabalhistas, enquanto promove desmonte e precarização das políticas sociais.
Se o projeto de conciliação de classes petistas viabilizou ganhos – ainda que muito frágeis – para o campo do trabalho, a direção neoliberal compunha o cerne das estratégias de gestão da crise do capital no Brasil, sob tais governos. O que vem depois disso, no entanto, é uma radicalização que promoveu uma “nova desertificação neoliberal no país”4.
Essa breve digressão para tratar da focalização, que assenta os fundamentos dos Programas de Transferência de Renda (PTR) no Brasil, era necessária para dar inteligibilidade ao mote analítico que viemos traçando: ao produzir formas sociais políticas e historicamente determinadas (MASCARO,2013) para garantia da reprodução da forma valor como mediação central das relações de produção capitalistas, o capitalismo produz também os paradoxos que a luta de classes insiste em repor na engrenagem não paralisável da história.
A enorme demanda pelo benefício emergencial para os segmentos de trabalhadores mais afetados pelas medidas de isolamento e contingenciamento da Pandemia do Novo Corona Vírus fez cair por terra postulados férreos da focalização, mostrando os flagelos da superexploração da força de trabalho e da radicalização dos processos expropriativos. Somente no primeiro dia de cadastramento mais de 26 milhões de pessoas haviam se inscrito para receber o benefício.5 Este número teria sido muito maior já nos primeiros dias não fosse o limite burocrático imposto às pessoas com situação irregular no CPF, o que demonstra como a burocracia continua a ser mecanismo fundamental para emperrar, dificultar ou inviabilizar o acesso aos direitos. As filas imensas em diversas agências da Caixa Econômica Federal – banco público responsável pela operacionalização do auxílio – de pessoas desesperadas e a forte comoção provocada fez com que o governo recuasse e criasse um mecanismo digital de regularização do CPF, sem que as pessoas precisam ir à Receita Federal.
Até o dia 01 de maio haviam 96,9 milhões de cadastros processados pelo Dataprev, dos quais 50,5 milhões foram aprovados. Entre os pedidos reprovados, 32,77 milhões estavam inelegíveis e não puderam receber o auxílio (33,8%), e 13,67 milhões (14,1%) foram classificados como inconclusivos. Entre o Grupo 1 (MEIs, CIs e informais) os cadastros recebidos contabilizavam 46,0 milhões, dos quais foram processados 44,96 milhões (97,7%). 20, 52 milhões foram considerados elegíveis (45,6% dos processados) e 10, 77 milhões inelegíveis (24% dos processados). Inconclusos: 13,67 milhões (30,4% dos processados). Por outro lado, entre os beneficiários do PBF, foram processados 100% dos cadastros (19,9 milhões), sendo elegíveis 19,2 milhões (95, 5 do total) e 0,7 milhões inelegíveis (3,5% do total)6 Ao final do processo de requisição, havia mais de 150 milhões de cadastros, dos quais foram considerados elegíveis 66,9 milhões.
A exposição de dados parece exaustiva, mas eles trazem elementos importantes que precisam ser explicitados. Primeiro, chama atenção a quantidade de cadastros considerados inconclusivos. Isso não é aleatório, mas sim expressão da limitação de um sistema de operacionalização que se assentou na estratégia de uso de aplicativo de celular para requisição dos benefícios. O governo negligenciou o fato notório da gravíssima desigualdade de acesso à internet e mesmo à telefonia móvel que existe no país e as dificuldades que o segmento mais empobrecido tem de manusear tais mecanismos.
O preenchimento dos dados no aplicativo demandava uma significativa habilidade no usufruto dessas tecnologias, podendo, e é o que os dados mostram, gerar confusões na forma de requisitar o auxílio, com informações incompletas ou equívocas, que resultou no montante significativo de cadastros com resultados inconclusivos. Isso apenas para requisição do auxílio, a viabilização dos pagamentos mostrou-se ainda mais inócua, com um aplicativo (Caixa Tem) de péssimo funcionamento, no qual era preciso esperar horas para entrara na “sala de atendimento virtual, e que exigia ainda mais habilidade no manuseio para efetuar cadastro – com e-mail – para que usuário pudesse fazer pagamentos, transferência ou gerar código de saque. Este, por sua vez, com duração de poucas horas, desconsiderando as filas quilométricas formadas nas agências de lotéricas e da Caixa pelo Brasil a fora. Além disso, sequer foi disponibilizado um canal de atendimento direto.
Se pensarmos na condição das pessoas em situação de rua, teremos um quadro que remete tanto a ineficiência operacional, quanto inobservância do governo ante o aparato institucional do Sistema Único de Assistência Social que poderia ter sido acionado para auxiliar estes processos. Mesmo com todo comprometimento das equipes de referência de Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e Centros Pop7 no sentido de oferecer suporte a esta população, a restrição de 01 cadastramento por número de celular colocava óbices até mesmo para requisição do auxílio por intermédio de profissionais para as pessoas em situação de rua. Além disso, a falta de documentos, documentação incompleta e, de início, as irregularidades nos CPFs de parcela importante dessas pessoas também comparecem como entraves para garantia de acesso ao auxílio. Conforme apontamos, esta “ponta” da classe trabalhadora teve o alcance potencialmente fragilizado pela via focalista em tela.
Os impasses e negligência do governo federal em garantir que o auxílio chegasse a quem precisava com a urgência que lhe seria óbvia é também uma demonstração da chantagem em torno das condições de sobrevivência da classe trabalhadora. Condições alarmantes que vão da impossibilidade de garantir a higiene, para evitar contaminação, à fome. Não por acaso, Relatório da ONG OXFAM (2020) aponte o Brasil como epicentro emergente de fome extrema na pandemia, juntamente com Índia e África do Sul. É ilustrativo o fato de o governo ter anunciado a antecipação da segunda parcela depois de ter pago a primeira – ainda que muitos foram os problemas para acesso desse primeiro valor – e logo depois o recuo do governo, alegando falta de recursos. Ademais, indefinições no calendário de pagamentos, falta de celeridade na revisão de cadastros considerados inconclusivos.
Outro ponto central que os dados ajudam a desvelar é a diferença importante entre os cadastros aprovados no grupo dos MEIs, CI e informais de um modo geral e o os beneficiários do PBF. Enquanto que estes últimos tiveram dados processados de modo automático pela base do CadÚnico – instrumento informacional e tecnológico fundamental da focalização dos PTR existentes anteriormente ao auxílio emergencial – os primeiros tiveram que fazer a requisição do auxílio pelo aplicativo específico e é justamente este segmento que estava na berlinda da seletividade e da focalização do PBF. Este grupo de trabalhadores que, na maioria das vezes, precisa trabalhar em jornadas extenuantes, envolver outros familiares em pequenos negócios, intensificar o próprio processo de trabalho “autônomo”, não tem a proteção trabalhista vinculada ao emprego formal – está também já muito fragilizada em função da reforma trabalhista – mas também não está dentro dos rígidos limites impostos pela renda per capita que abaliza aqueles que precisam e os que não precisam da transferência de renda estatal.
Conforme Silva (2020), o enorme contingente de trabalhadores em trabalho informal e sem garantias trabalhistas, a pobreza absoluta de pessoas que sobrevivem através das atividades mais precárias, instáveis e espoliativas, a fragilidade de rendimentos de indivíduos que sobrevivem da autoexploração intensiva e de seus familiares, glamourizados sob o mantra do empreendedorismo, terceirizados, artistas, pequenos comerciantes, vendedores ambulantes, trabalhadoras domésticas, trabalhadores de aplicativos de toda sorte e uma miríade de tantos outros que compõem o fenômeno da uberização do trabalho, demonstrou que a focalização – que viabilizou o apassivamento da parte mais pobre da classe trabalhadora e que suportava o peso da pobreza absoluta, não responde mais às contradições resultantes da destruição dos direitos sociais e trabalhistas. Se até então ela funcionava como uma barreira que contribuía para conter uma parcela da população que historicamente já era alijada da proteção social trabalhista, ela hoje precisa suprir as necessidades de contenção de um segmento amplo de trabalhadores ou tornados órfãos de suporte protetivo das expropriações recentes – reforma trabalhista e previdenciária –ou aqueles que historicamente situados no vasto e amorfo “setor informal”, e atualmente engolidos pelas medidas de isolamento social, explodem as estatísticas de pobreza e da ausência rendimentos
Em 2019, a PNAD Contínua demonstrava que no Brasil havia 11,6 milhões de trabalhadores desocupados e cerca de 38 milhões de pessoas trabalhando sem registro. Entre os informais, 24,5 milhões de pessoas situavam-se no chamado trabalho por conta própria. Tais dados demonstram os efeitos deletérios da reforma trabalhista, que à despeito do argumento de gerar mais emprego, operou a flexibilização completa das relações de trabalho, jogando trabalhadores e trabalhadoras ao domínio inescrupuloso do trabalho intermitente, num contexto em que a justiça do trabalho foi praticamente anulada.
Com as medidas de isolamento social, contingenciamento e paralização de todas as atividades econômicas ou não a condição do conjunto da classe trabalhadora foi duramente afetada, mas, certamente o segmento localizado dentro do amplo espectro que envolve MEIs, CI e informais e/ou que trabalham por conta própria, de um modo geral, foi ainda mais duramente atingido, uma vez que ficaram impossibilitados de trabalhar (ou trabalhando em condições extremamente insalubres e precárias, como os entregadores de aplicativos) não cobertos por nenhum mecanismo de proteção trabalhista.
Dados da PNAD Contínua/COVID demonstram que a taxa de desocupação chegou a 13,3% em início de agosto e mais de 18, 3 milhões de pessoas não procuraram trabalho por conta da pandemia. Estudo do IPEA (2020) demonstra que os trabalhadores não formalizados foram os mais duramente impactados pela pandemia. Em maio receberam efetivamente 60% do que habitualmente recebiam e em junho, 63,4%. Os que se encontram nos setores de serviços, que apresentam um alto grau de informalidade e dependem fortemente da maior medida da circulação das pessoas, estão entre os mais prejudicados. “Os cabelereiros, trabalhadores de tratamento de beleza e serviços pessoais receberam efetivamente apenas 46,8% da renda habitual, auferindo uma renda média de somente R$ 721” (IPEA, 2020). Em termos reais os trabalhadores por conta própria receberam efetivamente R$ 28,2bilhões, em oposição aos habituais R$ 445 bilhões (uma diferença de R$ 16,3 bilhões). Ademais, 32% dos domicílios não apresentaram nenhuma renda do trabalho (IPEA, 2020).
No que tange ao impacto do auxílio emergencial sobre a renda domiciliar no mesmo período, o estudo aponta que 6,6% dos domicílios (cerca de 4,5 milhões) sobreviveram apenas com os rendimentos oriundos do auxílio emergencial, quase 1 milhão de domicílios a mais que no mês anterior. Os rendimentos provenientes do auxílio emergencial no mês de junho alcançaram R$ 27,2 bilhões, representando 84% da diferença entre massa salarial habitualmente recebida e a massa efetivamente recebida, sendo que em maio a diferença era de 67% (IPEA, 2020). Os dados apresentados corroboram a abordagem que demonstra como a renda proveniente da informalidade é fluida e incerta, sendo duramente afetada em momentos de crise e a importância do auxílio emergencial na composição dos rendimentos familiares no contexto da pandemia. Por outro lado, as diferenças entre o mês de maio e junho são apenas uma parcial que ratifica as críticas feitas à falta de celeridade para garantir que o auxílio chegasse aos demandantes.
As expropriações operadas mediante as contrarreformas da previdência social e trabalhista, mais as perdas em termos de desfinanciamento possibilitadas pela EC95 demonstram que a nova onda neoliberalizante radicaliza em níveis antes impensáveis8 as condições de exploração da classe trabalhadora e a configuração do Estado, nesse contexto, é incompatível com sistemas de proteção social, mesmo que híbridos e frágeis, como o que se consolidou com Consolidação das Leis Trabalhistas e a Constituição Federal de 1988. Por outro lado, desprotegidos pelo Estado e tornados ainda mais vulneráveis à exploração e subsunção a qualquer forma de trabalho, as contradições e potencial de intensificação da luta de classes com irrupções do campo do trabalho são uma possibilidade iminente.
Ainda no campo das contradições que o Estado precisará intervir para garantir a continuidade das condições da acumulação na periferia do capital, há que se colocar em evidência que as expropriações além de reporem as circunstâncias que empurram o trabalhador para o assalariamento – cada vez menos intermediado por legislações protetivas – incidem também na própria composição dos rendimentos do trabalho, tensionando o valor de sua reprodução para níveis ínfimos.
Mas ainda que seja uma necessidade imanente do capital rebaixar o valor da força de trabalho, ele não pode prescindir que esta mesma força de trabalho tenha condições de sobrevivência material e reprodução. Para tanto, vai intensificar suas investidas sobre o Estado para que este socialize, de alguma forma, os custos da reprodução da força de trabalho. Isso não é uma novidade histórica, pois essa sempre foi uma das funções do Estado capitalista. A novidade reside na forma historicamente concreta em que essa socialização vai se dar, não mais mediante políticas sociais com tendências universalizantes e/ou legislações e direitos trabalhistas sólidos, mas ampliando o escopo de sua ação focalizada. O auxílio emergencial é uma demonstração da necessidade de ampliação da transferência de renda para segmentos dos trabalhadores que antes não se enquadravam nos restritos critérios de acesso do PBF, por exemplo, indicando uma tendência que parece despontar – ainda em acerto para caber dentro dos limites do ajuste fiscal ultraneoliberal – para intervenção do Estado sobre a necessidade de compor o valor da força de trabalho sob o molde da focalização massificada.
O aumento no índice de aprovação do governo Bolsonaro, certamente em função do auxílio, emergencial dá conta de que os programas de transferência de renda são, ainda, um importante mecanismo de legitimação política e conformam importante estratégia para acomodação dos conflitos de classe. O oportunismo despudorado do governo para surfar na onda da tragédia pandêmica já se evidencia com o anúncio do Renda Brasil que pode substituir o PBF, com ampliação da cobertura, mas expropriando direitos como seguro-defeso, salário família e abono salarial (BEHRING; BOSCHETTI, 2020). Se tal proposta se consolidar, teremos um novo espectro da focalização que expandirá a assistencialização não só da pobreza, mas do campo do trabalho precário e uberizado.
5 Considerações finais
A operacionalização do benefício emergencial mostrou que a focalização não resolve os dilemas da reprodução da força de trabalho no segmento mais espoliados – população em situação de rua – e também não respondia por uma gama de trabalhadores que não eram extremamente empobrecidos, mas inseridos em relações de trabalho que compõem um espectro de novas e antigas formas garantia de reprodução da existência e com traço estrutural do mercado de trabalho brasileiro: os informais.
O conjunto heterogêneo de trabalhadores agrupados na abstração criada pela novilíngua neoliberal do empreendedorismo comporta, na realidade, um amplo segmento de indivíduos que, impossibilitados de vender sua força de trabalho mediante o estatuto do emprego formal e seduzidos pelo mantra de se tornar “empreendedor”/“patrão de si mesmo” – como os chamados Microempreendores Individuais (MEI) e trabalhadores por conta própria – , se viram e foram vistos despencando em um dos muitos vácuos produzidos pela neoliberalismo e suas contrarreformas, e atropelados pelas expropriações que, ao surrupiar direitos no campo da proteção trabalhista, tornam-se ainda mais vulneráveis para à exploração capitalista, ao tempo em que não são alcançáveis pelas políticas focalistas.
A crise sanitária desvelou no Brasil o poço sem fundo para o qual estamos caminhando com um Estado que expropria direitos, uma legislação trabalhista golpeada no seu núcleo, e programas sociais que, por não serem universais, criam segmentos não cobertos por nenhuma proteção: são dispensáveis para o mercado ainda formalizado e não comportados no escopo de uma configuração de Estado de neoliberalização radicalizada.
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Notas
Notas de autor
Información adicional
COMO CITAR (ABNT): SILVA, M. M. Pandemia, crise e expropriações: auxílio emergencial e contradições da focalização. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 22, n. Especial, p. 727-747, 2020. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p727-747. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15827.
COMO CITAR (APA): Silva, M. M. (2020). Pandemia, crise e expropriações: auxílio emergencial e contradições da focalização. Vértices (Campos dos Goitacazes), 22(Especial), 727-747. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p727-747