DOSSIÊ TEMÁTICO: VIOLÊNCIA DE ESTADO E POLÍTICA SOCIAL: ENTRE O APARATO ASSISTENCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL

A tortura no superencarceramento: Estado brasileiro e questão criminal

Torture in over-incarceration: Brazilian State and the criminal matters

Tortura en el superencarcelamiento: Estado brasileño y la cuestión penal

Fábio do Nascimento Simas 1
Universidade Federal Fluminense, Brasil

A tortura no superencarceramento: Estado brasileiro e questão criminal

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, 2020

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2020 pelos Autores.

Recepción: 31 Agosto 2020

Aprobación: 11 Diciembre 2020

Resumo: O presente ensaio busca problematizar a relação entre o superencarceramento no Brasil e o incremento das práticas de tortura pelos aparelhos de repressão do Estado brasileiro, cuja base material são as formas utilizadas de gestão da pobreza a partir da crise do capital. Entende-se aí que tais formas consagradas de gestão da pobreza possuem particularidades que não podem ser desprezadas na sociedade brasileira, dada a sua formação social de capitalismo dependente, marcada pela autocracia burguesa e pelo racismo estrutural. Para tanto, problematiza-se o reposicionamento da luta de classes nas últimas décadas, a função desempenhada pelo sistema criminal no capitalismo e suas formas no Brasil contemporâneo. Neste sentido, foram utilizadas pesquisas e dados estatísticos que indicam a relação do superencarceramento com o agravamento da tortura.

Palavras-chave: Prisão, Tortura, Violência de Estado, Questão criminal.

Abstract: The present essay seeks to problematize the relationship between over-incarceration in Brazil and the increase in torture practices by the repression apparatus of the Brazilian State. Its material basis is the forms of poverty management used since the capital crisis. It is understood that such consecrated forms of poverty management have particularities that cannot be neglected in Brazilian society, given its social formation of dependent capitalism marked by bourgeois autocracy and structural racism. To this end, we problematize the repositioning of the class struggle in recent decades, the role played by the criminal system in capitalism and its forms in contemporary Brazil. In this sense, we used research and statistical data that indicate the relationship between over-incarceration and worsening torture.

Keywords: Prison, Torture, State violence, Criminal matters.

Resumen: El presente ensayo busca problematizar la relación entre superencarcelamiento en Brasil y el aumento de prácticas de tortura perpetradas por el aparato represivo del Estado brasileño, cuya base material son las formas de manejo de la pobreza utilizadas a partir de la crisis del capital. Se entiende que tales formas consagradas de manejo de la pobreza tienen particularidades que no pueden ser desatendidas en la sociedad brasileña, dada su formación social de capitalismo dependiente marcado por la autocracia burguesa y el racismo estructural. Para ello, se problematiza el reposicionamiento de la lucha de clases en las últimas décadas y el papel que juega el sistema criminal en el capitalismo y sus formas en el Brasil contemporáneo. Así, se utilizaron investigaciones y datos estadísticos que indican la relación entre superencarcelamiento y agravamiento de la tortura.

Palabras clave: Prisión, Tortura, Violencia estatal, Cuestión criminal.

1 Introdução



O Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência
Vladimir Safatle

O presente artigo visa fazer um debate acerca do crescimento exponencial do encarceramento no Brasil e da sua vinculação com a tortura, tendo como parâmetro uma análise sobre Estado brasileiro no capitalismo dependente.

Neste sentido, pretendemos realizar uma análise histórica e conceitual dessas formas de violência do Estado. Assim sendo, será brevemente problematizado o caráter de classe do Estado na sociedade burguesa e quais formas foram assumidas historicamente no Brasil, país cuja inserção dependente no capitalismo se deu a partir da via autocrática, sendo o racismo um de seus elementos estruturais. Em seguida, a questão criminal e seus efeitos da criminalização enquanto instrumento de dominação de classe serão brevemente debatidos.

Partimos do entendimento de que a tortura é uma particularidade da violência de Estado, sendo então uma de suas formas mais agudas. A segunda metade do século XX caracterizou-se no âmbito mundial por uma série de documentos de proteção de direitos humanos, dentre os quais a tortura se colocava como proibida. Nas últimas décadas, e no contexto da crise do capital, assistiu-se a um acirramento das medidas repressivas como contenção de tais contradições.

A esse fenômeno no Brasil damos destaque ao crescimento exponencial da população prisional, a partir dos anos de 1990, e ao aparente paradoxo que se constituiu entre a aprovação da lei da tortura e a sua perpetuação pelo Estado no contexto da democratização.

2 Capitalismo dependente, Estado e questão criminal

O modo de produção capitalista é uma contradição dinâmica, isto é, por mais que ele preserve suas leis gerais, suas formas, estas variam de acordo com o caráter de inserção no mercado mundial. Neste sentido, privilegiamos também, para análise da realidade brasileira, a sua condição de capitalismo dependente, isto é, uma forma particular de capitalismo integrada ao sistema mundial.

Capitalismo dependente1 compreende, grosso modo, a particularidade da periferia do capitalismo com sua inserção associada e subordinada ao imperialismo. Osorio (2017), com base no pensamento de Ruy Mauro Marini, destaca as suas duas principais características: a ruptura do ciclo do capital entre a esfera da produção para a sua realização e a condição de superexploração. Deste modo, podemos sinalizar que há uma priorização da produção em atender o mercado externo, ao passo que, internamente, constitui-se uma estreita e poderosa esfera de consumo. Por seu turno, a generalização da superexploração2 envolve uma apropriação pelo capital de parte do valor de consumo do trabalhador, que se dá através de um salário abaixo do valor dessa força, implicando assim um prolongamento da jornada de trabalho e um prematuro desgaste da força de trabalho, que também se favorece pela abundância do exército de reserva.

Em linhas gerais, nos países de capitalismo dependente como os da América Latina, o Estado tem uma função protagonista. De um lado, ele conjuga os interesses de uma classe dominante, esta que assume um processo de concentração e centralização aguda de capitais, associado subalternamente ao capital imperialista e, por outro lado, esse mesmo Estado necessita, para manter o patamar de superexploração de forma contínua, do farto uso de seus aparelhos de repressão. Desta forma, as estratégias históricas de manutenção da elevada desigualdade social nesses países tendem ao agravamento da violência coercitiva do Estado. Não por acaso, a democracia liberal estável se tornou um acidente histórico nessas formas de sociedades capitalistas.

É importante situar no processo histórico que a condição de dependência é estruturante na América Latina, mas também dinâmica. Vale dizer que países como Brasil, Chile, México e Argentina, por exemplo, possuem um vasto parque industrial e se consolidam como economias de grande porte no capitalismo internacional. Ocorre que sua base socioeconômica ainda é predominantemente de fornecimento de matérias-primas e ela estabelece tal relação estando subordinada ao grande capital-imperialista.

Ao analisarmos a realidade sócio-histórica brasileira, priorizamos os conceitos de autocracia burguesa e do racismo estrutural. Sendo uma forma particular de capitalismo dependente, a formação social brasileira expressa sua condição heteronômica; isto é, os processos sociais internos se vinculam, historicamente submetidos ao mercado mundial, articulando dialeticamente subdesenvolvimento e desenvolvimento, dependência e império.

A autocracia burguesa exprime a via de desenvolvimento capitalista predominante no Brasil, esta que se estrutura para atender o interesse de uma pequena parcela da classe dominante e que alija a participação popular dos processos decisórios (FERNANDES, 2006). Por seu turno, a inserção do Brasil nas relações capitalistas se deu pela articulação da oligarquia latifundiária com a emergente burguesia a partir do caráter colonial, dependente e antidemocrático. Tal condição histórica define o papel desenvolvido pelo Estado na república brasileira pois ao demarcar a dificuldade da burguesia brasileira de exercer sua hegemonia, este mesmo Estado faz uso constante da força sempre associado subalternamente ao capital monopolista. Trata-se assim de uma autocracia de base política arrefecida de valores democráticos que se justifica a si mesma e a seu poder que corrobora a predominância de uma classe dominante violenta, patriarcal e racista em sua essência.

Além disto, a inserção no mercado mundial foi proporcionada por três séculos e meio de trabalho escravo oficial da população sequestrada do continente africano, pela expropriação dos povos originários indígenas e devastação das riquezas naturais. É importante situar que as opressões empreendidas no capitalismo se articulam dialeticamente à exploração, na qual a alienação operada é essencial para o processo de supremacia da classe dominante. Neste ínterim, o racismo, enquanto mecanismo complexo exprime um processo histórico, político, estrutural e estruturante das relações sociais no Brasil. Além de ser o país na história da humanidade que mais se utilizou de população escravizada, a ideologia e repressão racista promoveram uma das mais profundas desigualdades sociais e raciais do planeta. O racismo estrutural (ALMEIDA, 2018) funciona, assim, para fomentar a superexploração e legitimar o mecanismo da violência estatal, de modo a aprofundar a racialização da questão criminal, em especial contra a população negra na sociedade brasileira.

Por conseguinte, Almeida (2018) pontua que a conotação histórica atribuída a raça se fundamenta a partir de duas características: a biológica atribuída à identidade racial como cor de pele e traços físicos; e a étnico-cultural que se relaciona à origem geográfica, à língua, religião ou outras formas de expressão cultural. Há assim três concepções de racismo que se complementam na prática: a individualista pautada na relação entre racismo e subjetividade; a institucional na articulação entre racismo e Estado que atua no funcionamento das instituições e o racismo estrutural na relação estabelecida entre racismo e economia, ou seja, no conjunto da produção e reprodução da vida social. Os estudos de Goés (2018)3 demonstram a importância histórica da ideologia eugênica para legitimação do racismo no Brasil, bem como sua reatualização na cena contemporânea.

Ao analisar os processos de dominação na sociedade capitalista, é importante frisar o essencial papel que o Estado exerce na unidade dialética da coerção e consenso. O Estado, ainda que se configure em importante esfera de luta social, tem em seus fundamentos uma nítida dimensão de classe. Ou seja, por mais que a forma política do ente estatal apresente uma relativa autonomia em sua burocracia, o Estado que conhecemos é efetivamente o Estado burguês; e justamente por operar institucionalmente em aparentemente independência das classes sociais é que se faz a dominação da sociedade capitalista também com mais eficácia. O Estado é expressão da relação das classes sociais, e não o seu contrário. Mandel (1982) destaca três principais funções do Estado no capitalismo tardio: i) garantir as condições gerais da acumulação capitalista; ii) gerir os aparelhos privados de hegemonia e iii) operar os instrumentos de repressão.

A forma política estatal deve ser buscada no seu interior e em suas instituições próprias, para o reconhecimento de sua manifestação imediata, mas só pode ser identificada estruturalmente mediante a sua posição no conjunto da reprodução das relações sociais capitalistas. É justamente tal elemento externo a si que lhe dá identidade. Sociedades do passado houve com algum grau de separação do poder político do poder econômico. No entanto, somente as relações sociais capitalistas constituem formas sociais como a forma-valor, a forma-mercadoria, a forma-sujeito de direito. É apenas entrelaçada estruturalmente nesse conjunto que a forma política estatal se revela. Seus atributos internos podem lhe dar a dimensão de suas variantes, mas sua posição no contexto geral das relações sociais dá-lhe causa, identidade e existência. (MASCARO, 2013, p. 27).

Com efeito, é importante situar que a questão criminal desempenha, assim, um relevante papel de violência coercitiva e ideológica na luta de classes. A questão criminal pode ser entendida como um conjunto de ideias, políticas e instrumentos que se relacionam com o crime, criminalização e poder punitivo. Batista (2017) de forma sintética situa o direito penal como o conjunto de normas e sanções que preveem crimes, a estrutura geral dos crimes bem como aplicação e sanções definidas pelo Estado além de ser uma área de estudo. Por seu turno, sistema criminal são instâncias de realização do direito penal como judiciário, policial e penitenciária ou até algumas extrajudiciais enquanto a política criminal compreende um arcabouço de princípios e recomendações para mudanças no sistema penal. Tais agências repousam historicamente sob uma dinâmica onde o Estado representa um papel central.

Senão vejamos, na sociedade burguesa se construiu uma lógica em torno da qual os conflitos devem ser administrados e mediados através da esfera penal do Estado, sendo este o detentor legítimo do monopólio do uso da força (WEBER, 1999). Deste modo, o Estado, em sua função de regular os conflitos, estaria, assim, através de seus instrumentos, prevenindo a ocorrência da generalização da violência, que inclusive dialoga com a acepção hobbesiana de homem como lobo do próprio homem. Ocorre que a história do direito penal tem demonstrado que sua existência provocou mais mortes e violência coercitiva do que propriamente a tenha evitado. O sistema penal enquanto uma das instâncias do Estado se apresenta como igualitário e justo, mas que na prática funciona como seletivo e repressivo.

Portanto, o sistema criminal vinculado ao Estado é, senão, a expressão da luta de classes. Trata-se de uma das materializações mais eficazes da incorporação universal de interesses particulares de classe. Quando se analisa o fenômeno de ocorrência de crimes, nos quais determinadas classes, ou segmentos de classe, são, efetivamente, punidos pela pretensa universalização das leis penais, deve-se observar que a designação de determinadas condutas como sendo ou não criminosas variam de acordo com as formas de organização social e no interior delas. Ademais, determinadas condutas consideradas crimes variam no tempo e espaço.

Anitua (2008) situa o século XIII como marco do surgimento do direito penal, tendo como referência a instituição do inquérito com a qual se construiu um corpo de técnicos para gerir e executar profissionalmente a punição, cuja pena de inquisição é o seu exemplo mais notório. Podemos observar, assim, que a forma generalizada mais gravosa de punição do Estado absolutista foram as penas corporais de execução pública na qual a tortura figurou como método instituído e adotado oficialmente por esse Estado, sobretudo sob a justificativa de obtenção de prova. Por seu turno, na sociedade burguesa, a pena de prisão se constituiu como uma forma predominante de punição, estando paralela à generalização da proibição oficial da tortura, ao mesmo tempo em que essa prática se dissemina de modo extrajudicial.

Neste prisma, podemos entender, de acordo com a discussão de Oliveira (2016), que comunidades de produção social de apropriação e dependência mútua não precisavam de instituições, ou estas eram muito incipientes, e podiam aprovar e reprovar determinados indivíduos na divisão social do trabalho. As penas eram extremas, como execução e banimento; e mesmo assim, em momentos de estabilidade era feito o possível para evitar a diminuição de contingentes da força de trabalho. Nesta modernidade, a partir de um maior grau de especialização da força de trabalho e da apropriação privada de excedentes econômicos, os sujeitos alvos do sistema criminal são aqueles de baixa produtividade. Senão vejamos que, por exemplo, no capitalismo historicamente a população carcerária é composta majoritariamente, por indivíduos de baixa escolaridade.

Deste modo, a gestão da pobreza e as suas formas mais elementares como o pauperismo são administradas pelo Estado burguês através de um binômio assistencial e penal, tendo ambos funções coercitivas e consensuais. Com efeito, os crimes e as penas cumprem um papel indispensável na reprodução social na sociedade capitalista; tanto para neutralizar determinados segmentos indesejáveis da classe que vive de seu próprio trabalho, como para a movimentação de atividades econômicas relacionadas a tais práticas. A naturalização ideológica dos conflitos como sendo parciais, tendo o sistema de justiça, que é dotado de racionalidade e imparcialidade, corresponde a uma das formais mais eficazes que o direito burguês realiza e controla a luta de classes. De acordo com Baratta (2016, p. 213),

O elemento ideológico não é contingente, mas inerente à estrutura e à forma de funcionamento do sistema penal, assim, como este, em geral, é inerente à estrutura e ao funcionamento do direito abstrato moderno. A forma da mediação jurídica das relações de produção e das relações sociais na sociedade capitalista moderna (o direito igual) é ideológica: o funcionamento do direito não serve, com efeito, para produzir a igualdade, mas para reproduzir a desigualdade. O direito contribui para assegurar, reproduzir e mesmo legitimar (esta última é uma função essencial para o mecanismo de reprodução da realidade social) as relações de desigualdade que caracterizam a nossa sociedade, em particular a escala social vertical, isto é, a distribuição diferente dos recursos e do poder, a consequência visível do modo de produção capitalista.

Ressalta-se que a criminalização dos pobres não é generalizada no capitalismo, já que a pobreza é estruturante e funcional a esse modo de produção. Deste modo, a seletividade criminalizatória que é operada no Estado burguês diz respeito àqueles segmentos da classe trabalhadora que manifestam as contradições mais elementares dessa sociabilidade, como o pauperismo, por exemplo; ou que proporcionam latentes obstáculos ao processo de acumulação capitalista e sua reprodução também ancorada em uma lógica racializada. Outrossim, em determinadas conjunturas alguns segmentos médios tidos como opositores do sistema também são criminalizáveis.

3 Tortura e superencarceramento no Brasil

A prisão é a forma por excelência de punição institucionalizada do Estado capitalista. Embora a mesma exista desde os remotos tempos, a sua generalização como execução penal só se estabeleceu a partir das revoluções burguesas. É mister estabelecer que na etapa histórica conhecida como acumulação primitiva (MARX, 1982), as protoformas do sistema prisional foram as Casas de Correção, estas formadas pela assistência aos pobres e oficinais de trabalhos forçados, cuja lógica se baseava através de uma imposição, muitas das vezes violenta, para que se pudesse adquirir compromisso e disciplina para a manufatura.

Podemos situar que é no século XIX, a partir dos pressupostos dos direitos liberais, que se consolidou a individualização da pena de prisão; o isolamento como meta; e a progressividade do regime. A pena de prisão atende a três dimensões fundamentais do Estado burguês: i) do ponto de vista da economia política, a proporcionalidade entre delito/pena e seu cálculo, em tempo, bem afeita à lógica de valorização da mercadoria; ii) no aspecto da violência de Estado diz respeito ao uso da violência legítima, já que o crime seria uma ofensa à sociedade e iii) responde à ideologia preventiva liberal, segundo a qual a existência de penas e seus cumprimento inibiria a prática de crimes (SIMAS, 2020). Importante ressaltar que embora em muitas das sociedades capitalistas, as penas corporais, como a tortura, fossem proibidas na prática, elas são disseminadas extrajudicialmente, especialmente por esse mesmo Estado.

Neste ínterim, cabe registrar que, historicamente, em sociedades de classes anteriores ao capitalismo, a tortura fora adotada como um método oficial de punição, tanto como um instrumento investigatório quanto para punição. No Estado absolutista, por exemplo, as penas, como mutilação de órgãos, e execuções públicas objetivaram a manifestação da autoridade monárquica, bem como o descarte de corpos não era tão significativo para aquela sociabilidade que não havia criado um sistema de produção de excedentes tão expressivo. Deste modo, podemos identificar que somente após as revoluções capitalistas que se dissemina a proibição das penas públicas corporais, pois, além da necessária emergência dos direitos individuais liberais, foi preciso preservar uma população viva para ter a disponibilidade de venda de força de trabalho, e também de se constituir um exército industrial de reserva. A proibição da tortura pelo Estado se faz, então, necessária para que ela seja praticada nos subterrâneos por esse mesmo Estado numa lógica da dominação de classe. Em síntese, tortura e prisão estabelecem uma simbiótica relação sob a sociedade do capital.

As práticas de tortura fazem parte das fissuras da formação social brasileira, sendo larga e historicamente perpetrada contra grupos socialmente discriminados e sujeitos insurgentes em períodos ditatoriais e de instabilidade política. Essa forma extrema de violência foi introduzida nesta latitude a partir da invasão portuguesa e carrega o fardo indelével de séculos de escravidão oficial das populações indígenas e africanas. O enfrentamento a esse legado sociocultural nunca foi uma prioridade na agenda do Estado brasileiro.

A legislação colonial obedeceu às Ordenações Filipinas que tinham em seu núcleo castigos corporais como pena para os mais diversos delitos. O uso comum da força contra escravos, indígenas e grupos insurgentes era praticado majoritariamente por milícias privadas e sob a supervisão da Coroa Portuguesa, numa relação patrimonialista e de estreita distinção do público/privado. O escravo africano sofria duplamente os processos de dessocialização – destituído de seu lugar de origem – e despersonalização, vendido como mercadoria. Além disto, a partir de análise de Maia (2001) há registros que após sua chegada à fazenda, a população escrava já era torturada a partir de açoites e espancamentos como forma de intimidação. A primeira Constituição Federal, a de 1824, garantia em seu artigo 179 a abolição dos açoutes, tortura, marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis. Contudo, o Código Criminal do Império de 1830 previa que se o réu fosse escravo nos casos diversos de pena de morte ou galés, o mesmo receberia açoites; e seu senhor seria obrigado a levá-lo com ferro da maneira que o juiz designasse. Ressalta-se que foi no período imperial quando mais se traficou a população africana conferindo a fase de maior prosperidade dessa trágica atividade econômica.

Já nas primeiras décadas da primeira república é que se incrementou a criação de tipos penais como forma de contenção e controle, via uso da força punitiva das expressões da questão social, sendo a tortura um dos seus componentes, tendo na população negra, recém liberta do escravismo oficial, seu maior alvo. Pode-se constatar ainda que foram nas ditaduras republicanas do século XX que as técnicas da tortura atingiram novos estágios. A ditadura do Estado Novo inaugurou torturas e prisões arbitrárias das camadas médias brasileiras, mesmo que em graus bem menores que os opositores, que eram de origem operária, e as chamadas “classes perigosas” (OLIVEIRA, 1994). Tem-se, na formação da polícia política, cuja unidade mais expressiva foi a Delegacia Especial de Segurança Política e Social (DESPS), o usufruto das técnicas de intimidação e tortura aos opositores do regime que reforçou a criminalização de qualquer dissidência política ao poder varguista (FREIRE, 2011).

Destaca-se, ainda, que foi a partir do golpe militar de abril de 1964 e dos 21 anos de ditadura que a prática da tortura se institucionalizou com novas determinações pelo Estado brasileiro, inclusive aperfeiçoamento e sofisticando as mais variadas técnicas de engenharia de causa dor e sofrimento. O golpe representou um acordo unilateral entre os latifundiários, burguesia, militares e setores médios associados subalternamente ao capital-imperialista. É importante destacar que as ditaduras na América Latina no período atenderam aos ditames da geopolítica do capital-imperialismo realizando, ao mesmo tempo, o ciclo de industrialização desses países dependentes; e agindo na contrarrevolução preventiva no contexto da Guerra Fria.

A ditadura militar brasileira representou a principal fase de instituição generalizada da tortura e maus-tratos no Brasil, tanto que boa parte de seu aparato de repressão e cultura política autocrática apresenta consequências nos dias atuais. Vale dizer que as práticas de tortura no período se desenvolveram a partir de técnicas importadas nas escolas militares do imperialismo, com destaque para a França e os Estados Unidos sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional.

Os 21 anos de ditadura militar marcaram o desaparecimento e morte de centenas de vidas. A política via intimidação e medo tinha na tortura um de seus instrumentos prediletos. O terrorismo de estado, que se intensificou a partir de 1968, especialmente a partir do Ato Institucional Nº 5, que impôs o fechamento do Congresso Nacional por tempo indeterminado; cassação de mandatos parlamentares; suspensão da garantia do habeas corpus; e autorização para sequestro de bens. A partir desse momento e dos primeiros anos da década de 1970 se intensificaram as perseguições e tortura aos opositores do sistema, os “subversivos”, segundo a linguagem do terrorismo de Estado. Nesse grupo estavam desde indivíduos pertencentes a grupos, movimentos opositores organicamente instalados até qualquer cidadão que tivesse ou se manifestasse descontentamento com o regime militar.

A democracia brasileira convive com a herança institucional de instrumentos da ditadura, que permaneceram após a transição lenta e gradual. Podemos destacar a persistência da Lei de Segurança Nacional e o protagonismo das policiais militares na segurança pública subordinadas no limite ao Exército. A lógica da militarização, que pressupõe a guerra e o combate bélico do inimigo, vai muito além das forças militares se espraiando na cultura política das instituições de controle social; como as polícias, o judiciário e o próprio sistema prisional. Com efeito, a repressão policial e suas técnicas de tortura praticadas pelas policiais em periferias e favelas sobretudo contra a população negra se constituem também como herança do período ditatorial.

No âmbito internacional de enfrentamento à tortura, foi a partir do fim da 2ª Guerra Mundial e da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 que se consolidou no mundo ocidental um arcabouço jurídico-normativo de proibição da tortura. Antes expressamente proibida nas cartas mundiais e regionais de direitos humanos, foi somente em 1984 que se estabeleceu no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) a Convenção contra a Tortura, que especifica a definição mundial de tortura e pressupõe instrumentos para seu enfrentamento.

O termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castiga-las por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza, quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de suas funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento e aquiescência (BRASIL, 1991).

A Convenção, até hoje considerada o mais importante instrumento político-normativo sobre a matéria no mundo, apresenta três objetivos em seu conceito: obtenção de informações ou confissões; castigo e intimidação; e coação. Comparato (2010) alerta, porém, para a incompletude de tal definição, já que deveria constar como tortura os crimes de terror praticados pelos Estados aos movimentos políticos considerados subversivos. Além disto, a Convenção abriu possibilidades para o alargamento desse conceito, e um aspecto relevante a ser observado é que o crime de tortura só pode ser praticado pelo Estado através de funcionários públicos ou agentes no exercício de funções públicas; considerando tanto a ação quanto a omissão.

A Anistia Internacional (2003) destaca ainda seis elementos nessa definição: inflição de dor e sofrimento físico e mental; dor e sofrimentos severos; inflição intencional; utilizada como discriminação de qualquer tipo e com consentimento ou aquiescência de funcionário público. A Convenção ainda estabelece que não considerará tortura atos decorrentes de sanções legítimas, o que pode ser problemático tendo em vista os diferentes marcos legais nas diversas regiões do planeta. Por outro lado, o Relator Especial contra Tortura à época entendia que sejam sanções amplamente aceitas e legitimadas pela comunidade internacional, tais como a privação de liberdade; e excluindo desta excepcionalidade a pena de morte, por exemplo (ibid.). Se levarmos em conta as definições e a própria natureza do ato, filosoficamente a prisão é uma forma de tortura.

Vale destacar que, embora houvesse a multiplicação de instrumentos internacionais e ratificação dos países de proibição da tortura, a partir da virada deste século há uma inflexão no já restrito campo dos Direitos Humanos, em especial após o episódio de derrubada das Torres Gêmeas nos Estados Unidos em 2001. No tocante à tortura, observa-se o fenômeno da novilíngua da tortura (MARQUES, 2006), já que ocorre uma ofensiva liderada pelos países imperialistas de flexibilizar o conceito de tortura e de desenvolvimento de novas técnicas a partir de aparatos tecnológicos, tudo em nome do léxico da Guerra ao Terror, inclusive violando “consagrados” direitos civis no interior desses mesmos países.

Outro aspecto de relevo que se destaca neste contexto é a chamada “onda punitiva” (WACQUANT, 2007) que corresponde ao agravamento das medidas repressoras adotadas pelos países ocidentais nas últimas décadas em respostas às contradições geradas pela crise. O superencarceramento é uma particularidade da onda punitiva que merece nosso destaque. Neste sentido, superencarceramento designa o fenômeno de crescimento exponencial da população carcerária mundial que se inicia em meados da década de 1980 e se intensifica nas seguintes (SIMAS, 2020). Tem como pano de fundo as estratégias de política criminal adotadas pelos Estados nacionais em responder ao agravamento das contradições do capitalismo em função de sua crise atual liderada pelos Estados Unidos, que é primeiro lugar em termos de população carcerária mundial. O levantamento de Walmsley (2016) constata que a partir de 2000 a população prisional mundial cresceu 20% e na América do Sul 145%.

Por se tratar de um evento de dimensões internacionais, o superencarceramento apresenta uma miríade de variáveis nas diversas formações sociais e regionais, correspondendo a três variáveis que se relacionam: a implementação particular das agendas impostas pelo capital-imperialista; o padrão das políticas de repressão implementadas pelos Estados; e o reposicionamento da luta de classes. Inequivocamente, há também três fatores que incidem em todos os países que adotaram o superencarceramento: a redução da proteção social por parte dos Estados, agravando a desigualdade; o desenvolvimento do ramo privado, que lucra com as políticas de repressão, com destaque para os complexos industrial-militar/prisional; e a política proibicionista de drogas, ambas ancoradas em uma perspectiva de controle social criminalizatório e racializado de pobres (SIMAS, 2020).

O saldo dessa ofensiva na particularidade brasileira foi um crescimento de 707% da população prisional entre 1990 e 2016 (BRASIL, 2017, p. 9), com o alcance ao terceiro contingente carcerário do mundo, com uma taxa de ocupação das unidades em quase 200% (Figura 1). Vale dizer que dos quatro países com a maior população prisional, o Brasil é o único que mantém crescimento nos índices de encarceramento e, se analisarmos por taxa de aprisionamento, por 100 mil habitantes nos países com população igual ou acima de 20 milhões, o país ocupa a terceira posição com uma taxa de 357.

Evolução das pessoas privadas de liberdade entre 1990-2016
Figura 1.
Evolução das pessoas privadas de liberdade entre 1990-2016
Fonte: BRASIL (2017)

As estatísticas do sistema prisional brasileiro mostram que 51% é semianalfabeta ou possui no máximo o Ensino Fundamental incompleto, e apenas 0,4% possuem ensino superior completo. Fato que evidencia um baixíssimo nível de escolaridade. No que se refere à faixa etária 53,49% possuem entre 18 e 29 anos, evidenciando o perfil majoritariamente jovem da população prisional brasileira (BRASIL, 2017).

Com relação ao tipo penal praticado, os dados demonstram que ao todo 72% (374.588 presos) praticaram crimes contra o patrimônio (sendo 40,98% presos por roubo e furto) ou tráfico de entorpecentes (31%), o que contraria a percepção do senso comum de que o cárcere é composto majoritariamente por condenados por crimes violentos. Acerca de raça/etnia, com base no critério de autodeclaração, as informações de DEPEN (BRASIL, 2017) apontam que 58,2% dos presos são pretos ou pardos. Desta forma, o perfil do preso brasileiro é, em sua ampla maioria, constituído por jovens, negros ou pardos, pertencentes às camadas populacionais mais empobrecidas dos centros urbanos, em sua maioria autores de delitos contra o patrimônio e tráfico de drogas, sendo presos provisórios (aqueles que ainda não foram julgados) quase metade.

É importante, também, observar, no contexto punitivo da democracia brasileira, que cerca de 1 milhão de pessoas foram assassinadas em 30 anos no país, e que o aumento da cobertura da política social na primeira década deste século não significou uma redução significativa do número de homicídios, tampouco de encarceramento. Outrossim, foi a partir da carta constitucional de 1988 que se estabeleceu, no âmbito legislativo, a expressa proibição da tortura e a gradativa adesão brasileira aos documentos internacionais de promoção e proteção dos direitos humanos.

A Lei n.9455/1997 que tipifica o crime de tortura foi assinada em um contexto de mobilização nacional acerca do caso da Favela Naval, em São Paulo, onde um grupo de policiais sistematicamente torturou, extorquiu e assassinou moradores daquela localidade. A referida lei estabelece que a tortura envolve emprego de violência ou grave ameaça para prática de intenso sofrimento físico e mental como método de aplicação de castigo ou medida preventiva, que pode ter motivações de três naturezas: obtenção de informação ou confissão; provocação de ação ou omissão de ato de natureza criminosa; ou por discriminação racial ou religiosa. Embora o texto seja semelhante ao adotado na Convenção da ONU, a maior controvérsia desta lei se refere à ampliação da qualificação do agressor a qualquer pessoa, visto que o sistema internacional considera tortura apenas aqueles atos praticados por agentes do Estado.

Tal diferenciação no texto legal tem demonstrado uma maior tendência do sistema de justiça brasileiro a punir entes privados em detrimento de agentes públicos. Os estudos de Jesus (2014) e Nev et al. (2015) sobre julgamentos baseados na Lei n.9455/97, realizados respectivamente a partir de um Fórum Criminal de São Paulo e casos na segunda instância dos tribunais brasileiros confirmam tal assertiva. Nos casos analisados, há uma lógica do judiciário em apresentar descrédito nas supostas vítimas de agente do Estado, em especial se a mesma for pobre e negra.

Ao analisar os processos qualitativamente, percebemos que existe uma nítida diferença entre os julgamentos dos casos em que figuram como réus pessoas comuns daqueles em que os acusados são agentes do Estado. Nos primeiros casos, o centro do julgamento é o agressor, sua fala é colocada em questionamento a todo momento. Em contrapartida, nos casos envolvendo agentes do Estado, o enfoque do julgamento não é no agressor, mas na vítima. O que está em avaliação é se a vítima está realmente falando a verdade em contraposição à fala do agressor. A condição de vítima, geralmente pessoa presa, detida ou suspeita criminosa, a coloca no centro do julgamento. Não é mais o crime de tortura que é julgado, mas a própria vítima. Ao agressor é conferida toda credibilidade (…) um agente que visa “proteger a lei e a ordem” e cujos atos são considerados partes de sua atividade profissional. Essa fala não difere dos argumentos utilizados pelos torturadores do período da ditadura militar, que insistem em alegar que atuavam em nome da “segurança nacional” (JESUS, 2014, p. 429).

Já nos casos onde o agressor é o agente do Estado, sua chance é três vezes maior de absolvição que o sujeito privado, mesmo que a maioria dos casos denunciados digam respeito à violência praticada por policiais ou agentes penitenciários, cujas maiores motivações são o castigo para o agente privado e a obtenção de confissão para o funcionário público (Figura 2).

Perfil do Réu na 2a Instância dos crimes de tortura no Brasil (%)
Figura 2.
Perfil do Réu na 2a Instância dos crimes de tortura no Brasil (%)
Fonte: Nev et al. (2015, p. 48)

As práticas de tortura operadas pelo Estado são mais disseminadas em espaços de privação de liberdade, ou seja, a natureza dessas unidades e a própria forma como são organizadas favorecem a ocorrência das práticas de tortura, em especial pelo traço violento e racista do Estado brasileiro.

O levantamento de PCN (2016) acerca da tortura no sistema prisional brasileiro detectou que tais práticas se constituem em elementos estruturais na gestão dessas instituições de visíveis seletividades penais. Deste modo, a perspectiva de tortura aponta para um fenômeno amplo e complexo, que vai além da violência típica interpessoal. Assim sendo, o fenômeno do superencarceramento brasileiro confirmou o agravamento de diversas formas de tortura institucional como a superlotação das unidades prisionais; o fornecimento de comidas estragadas; a falta de distribuição de itens mínimos de higiene; o não fornecimento, ou abastecimento irregular, de água em ambiente fechado; a sujeição em celas úmidas e escuras; o não atendimento médico em locais que promovem doenças e, ainda; a humilhação à qual os familiares são expostos, como no caso da revista vexatória.

Em relação à tortura em sua forma mais típica, o estudo de Simas (2020) apontou a prevalência de agressões físicas, dentre as quais se destacam os espancamentos, como no concurso de barra de ferro, e outros instrumentos, espancamentos coletivos, eletrochoque, imposição de isolamento prolongado, queimaduras por exposição prolongada ao sol, longos períodos em determinadas posições constrangedoras e também o uso de gás lacrimogênio, ameaças constantes e a violência sexual particularmente predominante na violência contra mulheres.

Outro fator que merece atenção no âmbito prisional tem sido as situações de massacres e rebeliões, motivados, em geral, por disputas entre facções de comercialização de drogas. Três das dez rebeliões que resultaram em maiores números de mortos ocorreram no ano de 2017 tendo em vista também a tendência à monopolização de algumas dessas facções nas diversas regiões do país4. A política proibicionista e a famigerada “guerra as drogas” têm contribuído significativamente com o cenário de barbárie no sistema prisional.

Vale destacar que, ao longo do período democrático em vigência, foi consolidado todo um aparato pelo Estado brasileiro em seus diversos poderes, no sentido formal de combate ao crime de tortura, inclusive na adesão do Brasil aos diversos tratados de direitos humanos e mecanismos de combate à tortura. Deste modo, podemos compreender que o agravamento da violência do Estado não é um fenômeno que na prática não apresenta incompatibilidade com a democracia liberal; pelo contrário, essa democracia não implica que se abdique da repressão pois ela a pressupõe. Dado o conteúdo autocrático e dependente do Estado brasileiro, essa violência se manifesta de forma mais aguda, sobretudo contra os pobres e negros.

Superencarceramento e tortura estabelecem assim uma relação simbiótica. A perpetuação das práticas de tortura atende a interesses econômicos e políticos que são operados pelo Estado de classe. A tortura é, assim, proibida no direito do Estado burguês para ser praticada de forma extrajudicial de modo a fazer funcionar a lógica desse mesmo Estado. Com efeito, a tortura que se perpetua com o superencarceramento assenta suas bases no desenvolvimento do capitalismo mundial, reificadas pelo Estado burguês com especificidades no Brasil.

4 Considerações finais

O ingresso do Brasil na agenda da onda punitiva está inserido nas estratégias do capital internacional de neutralização de suas contradições, vide o contexto de crise e adoção da cartilha neoliberal. Dentre essas estratégias, destacamos o aumento exponencial da população prisional brasileira a partir da década de 1990 que legou ao Brasil o alcance de constar como terceiro lugar mundial no que tange ao contingente carcerário.

Neste sentido, a análise dos determinantes no contexto do superencarceramento brasileiro deve, necessariamente, considerar o caráter dependente do capitalismo brasileiro de forma autocrática, forte e violenta no âmbito interno e de associação subalterna ao imperialismo. Registra-se que o Estado é uma relação de classe social, sendo uma expressão da luta entre elas; e em sua lógica dialética de coerção e consenso, o sistema criminal ocupa um papel de relevo.

A tortura enquanto um método acentuado e particular da violência ao longo da história se estabeleceu como um instrumento secular de dominação legal que foi instituído pelo Estado. Ocorre que, sob o direito liberal, a tortura passa a ser proibida na legislação do mundo ocidental, mas largamente utilizada, especialmente nos subterrâneos deste Estado em qual, na atual conjuntura, se observa um movimento de flexibilizar seu conceito.

Podemos afirmar que o contexto de superencarceramento brasileiro contribuiu para uma maior disseminação da tortura em locais de privação de liberdade. Para além da violência direta operada pelos agentes, a própria organização do sistema prisional brasileiro, com sua máquina de gerar privações provoca tortura, vide o tratamento penitenciário. Com efeito, o debate em torno da erradicação da tortura e das prisões deve partir de uma concepção de superação da ordem do capital, ainda que algumas reformas sejam urgentes e necessárias.

Referências

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Notas

1 O debate em torno da teoria da dependência no âmbito do marxismo é deveras profícuo, complexo e multifacetado cujas problematizações mais aprofundadas extrapolariam os limites deste trabalho. Sobre uma síntese teórica das principais categorias da teoria marxista da dependência ver Luce (2018).
2 É importante situar que a dinâmica da superexploração não é exclusiva do capitalismo dependente, expressando-se também nos países centrais. Ocorre que nestes países, a superexploração se dá em situações de crise e/ou em segmentos pauperizados da classe trabalhadora como imigrantes e certos grupos étnico-raciais enquanto nos países de capitalismo dependente a superexploração é generalizada.
3 A ideia geral do pensamento eugênico é o estudo para melhoramento da “raça”. Segundo essa visão, as características dos seres humanos inclusive as mentais, emocionais e criativas são transmitidas de forma progênita propondo uma hierarquização fechada entre as raças humanas com supremacia da raça branca de origem europeia principalmente com descendência nórdica.
4 FACÇÕES: um raio X dos grupos que transformaram o crime em uma indústria no Brasil. Revista Superinteressante, Dossiê Superinteressante, São Paulo: Editora Abril, v. 10, Edição 37A, maio 2017.

Notas de autor

1 Doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (ESS/UFF) – Niterói/RJ – Brasil. E-mail: fabiosimas@yahoo.com.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): SIMAS, F. N. A tortura no superencarceramento: Estado brasileiro e questão criminal. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 22, n. Especial, p. 772-786, 2020. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22n12021p772-786. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15828.

COMO CITAR (APA): Simas, F. N. (2020). A tortura no superencarceramento: Estado brasileiro e questão criminal. Vértices (Campos dos Goitacazes), 22(Especial), 772-786. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p772-786.

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