DOSSIÊ TEMÁTICO: "RISCOS E DESASTRES SOCIOAMBIENTAIS"

A apropriação dos territórios quotidianos pelos grafitos. Do risco social à multiterritorialidade

Appropriation of daily territories by graffiti. From social hazard to multi-territoriality

La apropiación de los territorios cuotidianos por los grafitos. Del riesgo social a la multi-territorialidad

Fátima Velez de Castro 1
Universidade de Coimbra (UC), Portugal

A apropriação dos territórios quotidianos pelos grafitos. Do risco social à multiterritorialidade

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 23, núm. 1, 2021

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2021 pelos Autores.

Recepción: 20 Septiembre 2020

Aprobación: 26 Febrero 2021

Resumo: Os Riscos Sociais, entendidos como uma das áreas de estudo dos Riscos Antrópicos, encerram em si uma variedade e complexidade fenomenológica, que abarcam desde o trabalho, à vida familiar, às relações sociais, entre outras. As ciências cindínicas antrópicas deparam-se com novos desafios gerado pelo quotidiano, sendo necessária a análise dos territórios numa perspetiva multiescalar. Além disso, é necessário ter em conta a dinâmica das comunidades, no que concerne à forma de estar, de interpretar e de atuar, o que pode levar ao desenvolvimento de tensões e fricções sociais. Neste trabalho, pretende-se discutir os riscos sociais a partir de uma visão multiterritorial, a partir da questão ao atrito social ligada à grafitagem, partindo do estudo de caso da Universidade de Coimbra como património classificado da UNESCO – World Heritage Areas. O número de turistas e de visitantes aumentou de forma impressionante, tendo transformado a dinâmica da própria cidade e da área protegida, nomeadamente através da reabilitação e preservação do edificado. Todavia, e apesar desse cuidado, a zona da universidade e da alta têm sido alvo de intensas grafitagens, o que levanta problemas de ordem epistemológica, cívica e institucional.

Palavras-chave: Riscos Sociais, Fricções Sociais, Grafito, Multiterritorialidade.

Abstract: Social hazards, understood as one of the fields of study of Anthropic hazards, contains a variety and complexity of phenomena that encompass work, family life, social relations, among others. Anthropic cindinic sciences are faced with new challenges generated by everyday life, demanding territorial analysis in a multi-scale perspective. Furthermore, it is necessary to bear in mind the dynamics of the communities, concerning their way of living, interpreting, and acting, aspects that may lead to the development of social tensions and frictions. This paper aims to discuss social risks from a multi-territorial view, starting with the issue of social frictions related to graffiti and based on the case study of the University of Coimbra as heritage classified by UNESCO – World Heritage Areas. The number of tourists and visitors has increased impressively, having transformed the dynamics of the city and of the protected area, namely through the rehabilitation and preservation of buildings. Despite this, the University and the upper part of town have been the target of intense graffiti, raising epistemological, civic and institutional issues.

Keywords: Social hazards, Social Frictions, Graffiti, Multi-territoriality.

Resumen: Los Riesgos Sociales, entendidos como una de las áreas de estudio de los Riesgos Antrópicos, encierran en sí mismos una variedad y complexidad fenomenológica, que abarcan desde el trabajo, a la vida familiar, a las relaciones sociales, entre otras. Las ciencias cindínicas antrópicas se deparan con nuevos desafíos generados por el cuotidiano, siendo necesario el análisis de los territorios en una perspectiva multiescalar. Además, es necesario tener en cuenta la dinámica de las comunidades, en lo que concierne a la forma de estar, de interpretar y de actuar, lo que pode llevar al desenvolvimiento de tensiones y fricciones sociales. En este trabajo, se pretende discutir los riesgos sociales a partir de una visión multi-territorial, a partir de la cuestión del atrito social relacionado al grafito, partiendo del estudio de caso de la Universidad de Coimbra como patrimonio clasificado por UNESCO – World Heritage Areas. El número de turistas y de visitantes ha aumentado de forma impresionante, habiendo transformado la dinámica de la propia ciudad y del área protegida, particularmente a través de la rehabilitación y preservación del edificado. Todavía, y a pesar de ese cuidado, la zona de la universidad y del alta tienen sido objeto de intensos grafitos, lo que trae problemas de orden epistemológica, cívica e institucional.

Palabras clave: Riesgos Sociales, Fricciones Sociales, Grafitos, Multi-territorialidad.

1 Introdução e problemática: as ciências cindínicas em diálogo com a arte urbana

Os Riscos Sociais, entendidos como uma das áreas de estudo dos Riscos Antrópicos, encerram em si uma grande variedade e complexidade fenomenológica. Questões associadas ao trabalho (precariedade, exploração patronal, burnout, desemprego, etc.), à vida familiar (pobreza, alienação parental, violência doméstica, etc.) e às relações sociais (isolamento, solidão, etc.), são partes integrantes dos riscos sociais, numa base individual. Numa base coletiva, as ciências cindínicas antrópicas interessam-se por temas como o comportamento das multidões (histerias de massas, pânico, atitudes de grupo, etc.), tensão social (atritos comunitários, etc.), repressão (estigmatização, violência, etc.), saúde (epidemias, pandemias, etc.), justiça (rutura do sistema prisional, etc.), criminalidade (terrorismo, violência, etc.), migrações (tráfico, racismo e xenofobia, desterritorialização, etc.), entre outros (VELEZ DE CASTRO; FERNANDES, 2019). São cada vez mais os novos desafios impostos pelo(s) quotidiano(s), cuja dinâmica impele a(o) geógrafa(o) a interpretar o território numa perspetiva multiescalar, tendo em conta a convivência de comunidades diferenciadas na forma de estar, de olhar, de percecionar, de interpretar e de atuar no espaço. Essa multiplicidade de atuações leva, muitas vezes, ao desenvolvimento de tensões e fricções socio-territoriais, pelo que o papel da geografia é cada vez mais importante na abordagem cindínica (LOURENÇO; AMARO, 2019; LOURENÇO; VELEZ DE CASTRO, 2019).

Tendo em conta tudo isto, assim como as diretivas emanadas do Marco de Sendai (2015), é urgente identificar os fatores de risco de uma sociedade, assim como dotar as comunidades de mecanismos de resiliência, o que, no caso em análise, significa reconhecer a origem das tensões e as consequências para o quotidiano do território envolvido no processo. Este trabalho tem como principal objetivo abordar os riscos sociais a partir de uma visão multiterritorial, fruto do resultado da sobreposição de vários layers (sociais, culturais, políticos), neste caso a partir da questão do atrito social gerado pela arte urbana, concretamente pela grafitagem, partindo de um estudo de caso da UNESCO – World Heritage Areas – mais especificamente da “Universidade de Coimbra, Alta e Rua da Sofia”, em Portugal. Desde a classificação, atribuída em 22 de junho de 2013, a cidade de Coimbra reforçou sua centralidade na Região Centro de Portugal, o que se traduziu num renovado interesse público e privado pelo património e pelas atividades desenvolvidas na academia, refletido num aumento do investimento nas áreas do turismo, da construção, da restauração, do lazer, entre outras.

O número de turistas e de visitantes aumentou de forma significativa, estando a transformar a dinâmica da própria cidade e da área protegida, nomeadamente através da reabilitação e preservação do edificado. Segundo dados de Rocha (2019) oriundos do serviço de Turismo da Universidade de Coimbra, em 2014, UC foi visitada por 293.000 turistas; em 2015, esse valor aumentou para 355.000 turistas; em 2017, passou para 501.000 turistas; em 2018, teve um ligeiro decréscimo, ou seja, recebeu 482.000 turistas. Isto significa que, só nos primeiros dois anos de classificação (2013 e 2014), a UC registou um aumento de 20% dos seus visitantes (Gráfico 1).

Número absoluto de turistas que adquiriram bilhete para visitar a Universidade de Coimbra no período de 2013 a 2019
Gráfico 1.
Número absoluto de turistas que adquiriram bilhete para visitar a Universidade de Coimbra no período de 2013 a 2019
Fonte: Turismo da UC e o autor (2020)

Num estudo recente, Moreira, Santos & Ávila (2019) apontam para um crescimento de 51% do número de visitantes no circuito turístico da Universidade entre 2013 (ano da inscrição na UNESCO) e 2017, para uma taxa de variação média ao ano de 19,5%. Estes autores manifestam uma preocupação no que concerne à gestão territorial e patrimonial pois, para além de ponderarem questões de sustentabilidade, chamam a atenção para a necessidade de se analisar as alterações na capacidade de alojamento, na sazonalidade e no nível de internacionalização do destino. Destacam a urgência de se avaliar a integração do património que se localiza na área de Património Mundial e na área de proteção do bem na experiência turística, numa lógica que se enquadra na dimensão dos riscos antrópico-sociais, que nos propomos estudar.

É neste sentido que se pretende abordar a problemática da grafitagem, enquanto arte urbana, uma vez que a zona da Universidade e da Alta têm sido alvo de intensas grafitagens. Partiremos de três dimensões, traduzidas em questões-chave de contraste: dimensão epistemológica (trata-se de uma forma de arte ou de insalubridade?); dimensão cívica (é uma forma de liberdade de expressão ou um atentado ao civismo?); dimensão institucional (pode ou não se perder o estatuto de World Heritage Area?).

Tendo em conta o exposto, será apresentada a área de estudo e a metodologia de trabalho científico utilizada na recolha de dados que, em conjunto com a revisão bibliográfica dos autores discutidos no enquadramento teórico, auxiliarão na reflexão em torno da problemática apresentada.

2 Metodologia e área de estudo: uma abordagem qualitativa numa área classificada pela UNESCO

Por se tratar de um estudo geográfico visual, foi considerada a perspetiva metodológica qualitativa de Rose (2012), Sturken & Cartwright (2002), baseada no registo fotográfico de imagens fixas, tendo em conta a dimensão estética (arte-meio) e ética (uso-fim). Além disso, também foi tida em conta a perspetiva de Quivy & Campenhoudt (2008), Freixo (2009), Stake (2016), assim como a posição de Shurmer-Smith (2002), relativa à observação direta do espaço público, uma vez que constitui um dos elementos essenciais do “saber fazer” da geografia social e cultural, que acaba por disponibilizar informações a outras ciências. Neste âmbito, foi realizada uma observação direta sistemática, uma vez que nos constituímos como indivíduos exteriores ao fenómeno da arte de rua (não participantes, portanto). O tipo de informação obtidas resumiu-se a caraterísticas ou partes de objetos (paredes, portas, etc.), que foram objeto de intervenção irregular, por parte de elementos externos aos seus possuidores ou usuários (LÉSSARD-HÉBERT et al., 2005). Nessa lógica, foram realizados 421 registos fotográficos, obedecendo não só a estes critérios de objetificação, mas também à variante cronotópica.

Assim, em termos temporais, as fotografias foram recolhidas num período de 11 meses – de setembro de 2018 a julho de 2019 – com o objetivo de cobrir o ano letivo. Fazemos a ressalva de se ter optado por valorizar a variante macrotemporal, já que se considerou o ano em lato sensu, isto é, numa lógica de sequência temporal sistemática, relacionada com a presença efetiva de estudantes no espaço em estudo. A variante microtemporal, relacionada com temporalidades mais curtas ou brevemente determinadas, ligada a eventos políticos, sociais, culturais, etc. não foi essencial para a definição da cronotopia do estudo, por se considerar já como estando presente, de forma ubíqua, na própria natureza e produção dos grafitos.

Em termos espaciais, e como já foi referido, o estudo de caso foi realizado em Portugal, no município de Coimbra (Mapa 1-A), o qual contava com 133.940 habitantes em 2018 (PORDATA, 2020). Em termos específicos, os dados foram recolhidos em área classificada pela UNESCO como Património Mundial da Humanidade (Mapa 1-B).

 Localização do município de Coimbra em Portugal Continental (A) e da área de estudo na cidade de Coimbra (B)
Mapa 1.
Localização do município de Coimbra em Portugal Continental (A) e da área de estudo na cidade de Coimbra (B)
Fonte: A- Wikipédia (2020) e B- http://www.uc.pt/ruas/monitoring/instruments/regulation (2019)

São três os pontos integrados nesta classificação, embora o trabalho de campo tenha contemplado dois - a área da Universidade e da Alta - onde a presença de grafitos é mais intensa e diversa (Fotografia 1). É também aqui que se verifica uma grande concentração de estudantes e de turistas, que muitas vezes são o alvo das mensagens inerentes. No ano letivo em que decorreu o estudo (2018/2019), estavam inscritos na UC 25.188 estudantes, sendo que 21% do total de matriculadas(os) eram estrangeiras(os), de 105 nacionalidades, (UNIVERSIDADE DE COIMBRA, 2020). A rua da Sofia, localizada na Baixa da cidade, é dominada sobretudo pela função comercial e pela presença de serviços de saúde, justiça, entre outros. Nesta área, a grafitagem é muito menos intensa, passando os poucos registos quase despercebidos da(o) transeunte.

Pormenor de grafito no Colégio de Santo António da Pedreira – Casa da Infância Doutor Elysio de Moura, na Alta de Coimbra
Fotografia 1.
Pormenor de grafito no Colégio de Santo António da Pedreira – Casa da Infância Doutor Elysio de Moura, na Alta de Coimbra
Fonte: A autora (2019)

Tendo em conta o enquadramento da problemática e da estrutura do trabalho, assim como da metodologia e da área de estudo, urge a discussão teórica em torno do tema da grafitagem, enquanto representação das quotidianidades urbanas. Em destaque, estará o forte enlace da temática com o campo dos riscos antrópicos e sociais, no que diz respeito às clivagens e fricções territoriais, decorrentes da relação, nem sempre harmoniosa, entre a arte de rua e a propriedade pública/privada, entre as(os) artistas grafiteiras(os) e a comunidade autóctone de proprietárias(os) e usuárias(os).

3 Discussão teórica em torno da grafitagem e da sua relação com os riscos sociais

3.1 Antes de tudo, a terminologia: grafitagem versus pichação

A discussão teórica não podia ser feita, sem antes se realizar uma breve reflexão terminológica sobre o significado das palavras “grafito” e “pichação”. Em Portugal, em termos coloquiais e até mesmo em contexto académico, é vulgar o uso da palavra “grafito” / “grafite” / “grafíti” ou “grafitagem”, sendo muito menos comum ou até mesmo ausente a designação de “pichação”. Esta situação pode estar relacionada com as diferenças linguísticas entre o “português de Portugal” e o “português do Brasil”, nomeadamente com as especificidades de vocabulário. Todavia, não deixa de ser alheio o fato da palavra “pichação”, em algumas áreas do território português, remeter para um vocábulo grosseiro, pelo que se prefere usar a palavra “grafito”, “grafite” ou “grafitagem”, para designar o(s) fenómeno(s) em causa.

Mondardo & Goettert (2008) referem que, de uma forma geral, ambos os termos remetem para imagens de baderna, bagunça, sujeira, de práticas negativas de indivíduos que maculam muros, paredes, monumentos de cidades. Embora o objetivo seja o de passar uma mensagem, ou seja, de revelar uma expressão dos movimentos político-simbólicos, na prática gera tensões e fricções entre as comunidades de moradores/usuários, o poder local e os artistas de rua, que recorrem a esta forma de arte para difundir as suas ideias. Tartaglia (2015) afirma que o grafito se distingue por revelar imagens vibrantes e dinâmicas, que se apropriam dos espaços urbanos, embora com esta contingência de inquietação e perturbação da ordem pública.

A plataforma Priberam (2020)1 apresenta “pichação” com o significado ligeiramente diferenciado: em Portugal, entendido como “inscrição ou rabisco, geralmente de teor político, em fachadas de edifícios, muros ou outras superfícies”; no Brasil, entendido como uma “crítica maldosa, difamatória”. Já o “grafito” trata-se, no original, de uma “técnica de incisão com ponta em superfície dura”, assim como “desenho, inscrição, assinatura ou afim, feito geralmente com tinta de spray, em muros, paredes e outras superfícies urbanas”.

Tendo em conta a discussão apresentada, iremos abordar o tema, usando o termo “grafito”: por um lado, o fato de se tratar de um texto redigido em português de Portugal, justifica a opção pelo contexto linguístico-significativo já apresentado; por outro, o material recolhido, embora com evidente diferenciação estética e estilística, remete para uma mensagem, um conteúdo simbólico, na grande parte dos casos revelando um dinamismo vibrante, tal como identifica Tartaglia (2015).

3.2 Os espaços urbanos e a grafitagem: dos riscos sociais ao risco patrimonial

Fernandes, Trigal & Sposito (2016) chamam a atenção para o fato de as convulsões sociais serem cada vez mais frequentes e diversas, fruto da dinâmica dimensão ideológica, social e política das comunidades, que parece estar (quase) sempre subjacente. Lourenço (2015) refere que a incapacidade de o ser humano viver em harmonia com o seu semelhante, dentro dos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, e ainda com os ecossistemas urbanos, tem gerado desequilíbrios sócio-territoriais evidentes. É por isso que, segundo Clifford et al. (2009), a geografia humana tem vindo a dar cada vez mais atenção a fenómenos sociais desestabilizadores, que interferem na dinâmica dos territórios, criando entropias ao normal funcionamento das quotidianidades comunitárias.

No que concerne aos espaços urbanos no âmbito dos riscos antrópicos, Velez de Castro & Fernandes (2019) referem-se ao “urbicídio”, entendido como uma degradação lenta e gradual da condição urbana e da urbanidade. Neste caso, os riscos sociais cruzam-se com as geografias do medo e da desconfiança, já que os espaços urbanos, hoje mais rápidos e velozes, têm vindo a promover o aumento da distância (social, cultural e política) entre atores, colocando em causa princípios e valores nos quais assentava a urbanidade. Esta ideia surge na linha do defendido por Kervern (1995) e Beck (2015), pelo que consideramos que, nesse sentido, a grafitagem pode ser entendida como uma atividade quase sempre causadora de instabilidade, de conflitos, de mal-estar, sobretudo se representar uma apropriação espacial espontânea e ilícita. Além disso, é associada à insalubridade e à degradação do espaço construído, assim como a conflitos internos dos grupos que aí habitam. Chega a haver uma aura de receio pela segurança, onde se estabelece a ideia de iniquidade territorial, onde o normal funcionamento do sistema social é posto em causa por diferenças de poder sobre o espaço físico e simbólico.

Mendes (2015) acrescenta que são muitas vezes as populações mais jovens as que estão associadas a este tipo de fricção social. Enquanto arte urbana, os grafitos apropriam-se do espaço público e do privado, constituindo-se como uma forma de expressão da insatisfação e da incerteza em que muitas destas camadas juvenis vivem. Nesta linha de ideias, Campos (2013) vai mais longe, ao defender a perspetiva do risco, não apenas na consequência que o ato da grafitagem provoca, ao “desfigurar” o património construído, ao baralhar o referencial memorialístico e identitário, mas também do ponto de vista do artista de rua. O autor refere que o grafiteiro provoca o risco e vive ele próprio no confim do perigo e da violência, na consubstanciação de atos e gestos de eminente limite, ao arriscar o bem-estar e a própria vida. A observação empírica de grafitos realizados em lugares de difícil acessibilidade – túneis de metro, estações de comboios, pisos superiores de edifícios, áreas vigiadas, etc. – causam espanto ao(à) observador(a), que tenta entender como foi possível à(ao) grafiteiro(a) aceder a esses pontos estratégicos para realizar o trabalho.

No fundo, trata-se da expressão da multiterritorialidade, em que a comunidade, na sua pluriconstituição, se expressa segundo esquemas de comunicação diferenciados. Como referem Castro & Gamba Junior (2018), a grafitagem estabelece uma forma de ligação direta entre quem executa e quem o observa. Todavia, é daí que se gera a situação de risco, mais concretamente de risco patrimonial, quando os grafitos são usados como forma comunicativa em espaços e bens considerados de uso (e interesse) público ou privado (Esquema 1).

Do risco social ao risco patrimonial
Esquema 1.
Do risco social ao risco patrimonial
Fonte: O autor (2020)

A discussão em torno do uso do espaço público tem vindo a ganhar relevo, no que diz respeito à perspetiva simbólica e fenomenológica da construção dos territórios, mediada por processos de troca, conflito e controlo (SOLOVOVA; MATOS; NOLASCO, 2016). No que concerne às tensões daí derivadas, a arte de rua consegue fazer a ponte entre o individual e o coletivo, como projeto e realização, sendo as grafitagens e o muralismo expressões dessa mesma interdimensionalidade (MOREIRA, 2010, 2016).

Tomando em linha de conta a grafitagem em espaço público, Martins et al. (2016) referem que o património construído integra o pano de fundo do nosso quotidiano e inclui, não só os ícones culturais e “lugares classificados” protegidos por lei, mas também as paisagens do quotidiano, que fazem parte da memória individual e coletiva. Por isso, quando há a introdução indevida e “inapropriada” de elementos que chocam com a representação original, gera-se o sentimento de perda de lugares com significado patrimonial e cultural. Esta situação tem grande impacte nas populações, pois o património construído desempenha um papel crucial no sentimento de pertença ao lugar, na construção da topofilia, na manutenção da memória individual/coletiva, assim como na constituição da identidade cultural das comunidades (Esquema 2).

Risco, memória e identidade
Esquema 2.
Risco, memória e identidade
Fonte: A autora (2020)

Sobre esta questão, Andersen (2009) defende que:

Traces are most commonly considered as material in nature (material traces may include ‘things’ such as buildings, signs, statues, graffiti, i.e. discernible marks on physical surroundings), but they can also be non-material (non-material traces might include, for example, activities, events, performances or emotions). (ANDERSEN, 2009, p. 5).

Este autor, a partir de uma visão da geografia cultural, chama a atenção para o fato de os lugares estarem sempre em diálogo com a cultura e o contexto envolvente. Isto significa que são constituídos por traços deixados em algum lugar pela vida cultural, o que irá marcar, de forma indelével a paisagem, quer em termos estéticos, quer mesmo em termos dinâmicos e vivenciais.

3.3 A fricção social e o contraditório na génese da construção de paisagens multiterritoriais

Sobre a arte pública e a sua expressão materializadas nas ruas, com os grafitos, Caetano (2017) defende que aquilo que, muitas vezes, é visto como uma invasão estética indesejável, valoriza os espaços como local de criação artística, pois torna a cultura mais acessível e democrática. Fort & Gohl (2016, p. 22) referem que

Ao analisarmos essas manifestações, não apenas pela perspectiva reducionista do vandalismo, mas partindo da sociedade e da cultura, temos uma ampliação de análise que permite a construção de caminhos diversos, principalmente na relação entre cultura e comunicação de massa e na reprodução ou resistência aos sistemas de dominação, revelando um caráter político importante no gesto de pichar e grafitar.

Como cultura, Shishito (2017) afirma que os graffitis são mediados por um conjunto de normas, ações, valores e ideologias referenciadas em uma prática ilegal de apropriação do espaço, uma materialidade simbólica. Silva & Melo (2018), em contexto escolar, destacam a grafitagem como forma de expressão sentimental, de questionamento, de rebeldia. Mitchell (2007) já havia abordado esta questão, referindo-se às paisagens – neste caso as urbanas – como uma manifestação do contexto cultural envolvente, assim como das relações entre sociedade-sociedade e sociedade-natureza.

Nesse caso, entendemos que, se por um lado, a arte de rua (grafitagem) criam situações de tensão e crispação social entre grupos (por exemplo, entre os proprietários dos imóveis e os criadores), por outro podem levar à criação de pontos de interesse e, consequentemente, de convergência entre autóctones e alóctones, numa lógica de otimização dos recursos materiais (áreas com necessidade de reabilitação) e imateriais (criação artística). Podemos dar como exemplo o impacte da atuação do artista-sensação Bansky2, cujos grafitos atraem multidões aos lugares em que atua. Atualmente, as suas obras muralísticas são alvo de preservação, pois em muito valorizam cultural e economicamente os espaços em que são implantadas. Ao integrar as paisagens urbanas, este artista tem criado hotspots em várias cidades, num jogo em que a grafitagem sai a ganhar, pois acaba por ganhar uma visibilidade positiva, um novo entendimento estético, uma valoração tipológica. É desta forma que tem vindo a conseguir lugar de respeito e de destaque no mundo das artes, nomeadamente em círculos mais convencionais.

Relacionando este fato com a questão geográfica, Mitchell (2007) assume que a paisagem e as suas manifestações – por exemplo, a arte de rua – resultam de uma construção cultural do entorno socio-territorial, que interage ativamente e participa na sua própria dinâmica evolutiva. André (2012) reforça esta ideia, ao referir que para lá dos debates teóricos e ideológicos, existem as experiências artísticas que nos mostram que é possível um mundo em que a cultura é transportada pelos nossos corpos, pelas nossas festas e pelas nossas experiências performativas, convergindo em rituais de unidade e em celebrações das diferenças que pontuam a nossa comum humanidade. Atente-se na posição de Oliveira & Tartaglia (2009, p. 80), ao defenderem que “o graffiti representa a ação de intervir artisticamente por grupos ou indivíduos no espaço urbano, cujas marcas estão repletas de significados decorrentes de sua experiência urbana capaz de exercer influência (…) sobre o cotidiano de muitos outros transeuntes da cidade”.

No fundo, a grafitagem, enquanto arte urbana, tem como objetivo promover a capacidade de ser vista, de passar uma mensagem, de intervir com a(o) transeunte. Além disso, também revela uma disputa pelas paisagens, as quais pertencem, são construídas e são utilizadas por um conjunto de indivíduos, tanto na expressão una como coletiva. Neste ponto recorremos à reflexão de Haesbaert (2004) sobre o conceito de multiterritorialidade, que diz respeito à consequência direta das relações sociais construídas através de territórios-rede, sobrepostos e descontínuos, de imbricação entre os múltiplos tipos de território. Implica a possibilidade de acesso ou conexão a diversos territórios de uma forma concreta. No campo da disputa territorial, e para o caso concreto em estudo, é visível a sobreposição de layers sobre um lugar em concreto, sendo que cada uma é impressa por indivíduos, grupos ou instituições que se apropriam dessa geografia, tanto formal como informalmente. No fundo, vai ao encontro de Reginensi (2019), naquilo que a autora considera ser a “cidade relacional”, de múltiplos olhares, de múltiplas vivências. E é desse uso variado, dessa vivência multiterritorial, constituída por comunidades com características internamente diferenciadas, que surgem os conflitos. Os usuários e proprietários não querem ver o seu património maculado – seja privado e por isso próprio, seja público de caráter histórico. Contudo, as(os) artistas querem expressar-se, através dos grafitos, passando mensagens políticas, sociais, culturais, numa lógica de subversão e de perigo. Os turistas, os visitantes, os transeuntes, muitas vezes, denunciam um caráter ambivalente, tomando partidos diversos, observando os espaços “de fora”.

Tendo em conta a reflexão efetuada e o enquadramento na dimensão dos riscos antrópico-sociais, na lógica das tensões e fricções que a grafitagem acarreta, iremos de seguida analisar o caso prático proposto, partindo do caso de um território classificado pela UNESCO: a Universidade e a Alta de Coimbra.

4 A grafitagem na “Universidade de Coimbra e Alta” como estudo de caso

4.1 A dimensão epistemológica: uma forma de arte ou de uma manifestação de insalubridade?

A grafitagem tem 2 propósitos basilares: por um lado, numa microescala, serve ao propósito da(o) artista, que testa os seus limites, que vive na adrenalina do perigo, do limite, que lhe dá importância e respeito na hierarquia do(s) grupo(s) de grafitagem. Por outro, numa microescala, o objetivo prende-se com a necessidade de passar uma mensagem, de estabelecer contato unidirecional ou dialogado com a comunidade envolvente, seja ela de caráter transitório (ex. visitantes, turistas) ou de caráter permanente (ex. residentes). Quando ligada ao muralismo, ocupa espaços urbanos específicos, onde pode existir um planeamento antecipado da localização, da temática e das técnicas usadas. A Fotografia 2 representa um trabalho muralístico de grafitagem realizado na República de estudantes do Bota-Abaixo, localizada na Alta de Coimbra, a qual decidiu homenagear um antigo repúblico, que pereceu como preso político durante a ditadura3. Este mural é um dos vários que existem na área protegida da UNESCO, sendo que muitos deles representam momentos ou pessoas ligadas à academia e à vida da própria cidade de Coimbra.

República do Bota-Abaixo (fachada), Alta
Fotografia 2.
República do Bota-Abaixo (fachada), Alta
Fonte: A autora (2018-2019)

Este caso concreto de arte de rua, colide com as manifestações espontâneas em áreas que reforçam o caráter de insalubridade urbana. A Fotografia 3 representa a apropriação espacial em áreas degradadas da Universidade, onde a passagem de estudantes se continua a fazer. Por isso, aproveita-se a oportunidade, neste caso, para passar uma mensagem de caráter político, instigando-se a comunidade estudantil a combater o fascismo e a ascensão eminente dos movimentos de direita, que estão na ordem do dia do contexto português e europeu.

Centro Cultural D. Dinis (traseiras), UC
Fotografia 3.
Centro Cultural D. Dinis (traseiras), UC
Fonte: A autora (2018-2019)

São áreas de passagem que ganham o cunho de marginalidade, de insegurança, graças aos grafitos que vêm reforçar a geografia do medo. Recordemos, pois, as ideias de Velez de Castro & Fernandes (2019), que se referem ao “urbicídio” como uma degradação lenta e gradual da condição urbana e da urbanidade. Também Kevern (1995) e Beck (2015) entendem a grafitagem como uma atividade causadora de instabilidade, de conflitos, de mal-estar, resultante de uma luta de poder sobre o espaço físico e simbólico. No caso da Universidade de Coimbra, esta luta verifica-se entre os grupos de grafiteiros e a instituição universitária, que tenta controlar a disseminação dos grafitos, através da constituição de uma equipa de limpeza que, com muita regularidade, tenta apagar os trabalhos (Fotografias 4 e 5).

Faculdade de Medicina (parede lateral), UC
Fotografia 4.
Faculdade de Medicina (parede lateral), UC
Fonte: A autora (2018-2019)

Museu Machado de Castro (parede lateral), Alta
Fotografia 5.
Museu Machado de Castro (parede lateral), Alta
Fonte: A autora (2018-2019)

Os dois exemplos que se apresentam nestas fotos revelam grafitos que foram apagados, sendo que o processo e o resultado merecem a nossa atenção para alguns aspetos. Ao passar tinta branca por cima, são criadas situações de iniquidade entre a construção original e o resultado da operação de “limpeza”, que resulta na sobreposição de tempos e de usos espaciais diferenciados. Deste fato, resulta a criação de camadas diferenciadas por tonalidades e isso é bem visível na Fotografia 4, onde podemos observar até, pelo menos, três “tons-momentos”. Na Fotografia 5, o grafito sobressai na camada de tinta branca que o cobriu, deixando visível a camada inferior. Continua, pois, a individualidade subversiva, que mesmo não estando presente na pessoa do artista, tem continuidade na sua obra. Estaremos face ao conceito de multiterritorialidade, defendido por Haesbaert (2004) e também na lógica das ideias de (MOREIRA, 2010, 2016), consubstanciado por uma disputa territorial, onde indivíduos/grupos de grafiteiras(os) e a UC, lutam pela apropriação dessa geografia da cidade. Esta atitude de “apagamento”, por parte da instituição universitária, em muito se relaciona com as ideias de Martins et al. (2016), os quais afirmam que quando há uma intervenção inapropriada e marginal dos ícones classificados, gera-se o sentimento de perda de lugares com significado patrimonial e cultural, com impacte nas populações usuárias. Neste caso mais ainda, quando está em jogo a possibilidade de perda do estatuto atribuído pela UNESCO.

4.2 A dimensão cívica: uma manifestação da liberdade de expressão ou um atentado ao civismo?

A atitude subversiva dos grafiteiros tem como propósito fazer passar mensagens políticas, sociais e económicas, sendo visíveis três escalas geográficas em foco. A primeira, de cariz global, prende-se sobretudo com a(s) luta(s) contra o fascismo, a atuação extrema-direita, a repressão policial, os efeitos do capitalismo e da globalização, a preeminência do machismo e do patriarcado e a necessidade da atuação feminista. A segunda escala, em estreita relação com a anterior, adquire uma natureza internacional mais localizada, como podemos observar na Fotografia 6.

Grafito em residência privada (fachada principal), Alta
Fotografia 6.
Grafito em residência privada (fachada principal), Alta
Fonte: A autora (2018-2019)

Nesta escala, ganha destaque o contexto social e político do Brasil, sendo que no período em estudo eram visíveis dois tipos de mensagem: uma, de reação à morte da ativista e política Marielle Franco; outra, de repúdio à eleição de Jair Bolsonaro. As paredes da UC e da Alta de Coimbra surgem como arenas de luta em que nos revemos no defendido por Caetano (2017), o qual diz que embora a grafitagem possa ser entendida como uma invasão estética indesejável, torna as mensagens mais acessíveis e democratizadas.

A terceira escala é de caráter local, dizendo respeito ao funcionamento institucional da própria universidade, tanto no que concerne aos órgãos de gestão (compostos por docentes, estudantes, funcionários administrativos e elementos externos à instituição), como à comunidade estudantil (Fotografias 7 e 8).

Grafito na Faculdade de Medicina (fachada da entrada principal do estacionamento), UC
Fotografia 7.
Grafito na Faculdade de Medicina (fachada da entrada principal do estacionamento), UC
Fonte: A autora (2018-2019)

Grafito em residência privada (parede lateral), Alta
Fotografia 8.
Grafito em residência privada (parede lateral), Alta
Fonte: A autora (2018-2019)

Na Fotografia 7, a imagem deriva da discussão que teve lugar na academia, acerca da possibilidade de passagem da UC de organismo público a fundação. “Quero o meu ensino livre do vosso desejo de lucro” foi repetido tanto na UC como na Alta, em lugares estratégicos de elevada visibilidade, como foi o caso da porta de acesso ao estacionamento da Faculdade de Medicina, uma das áreas principais de passagem de docentes, estudantes e funcionárias(os) das Faculdades de Medicina, Letras, Direito, Biblioteca Geral, Serviços Académicos, entre outros. Também é um hotspot de turistas e visitantes que, através da grafitagem, se apercebem do que vai acontecendo na UC. A Fotografia 8 diz respeito à praxe4, incitando as(os) estudantes a não participar na iniciativa, por ser considerada alienante, inibidora e repressiva, que em nada favorece a integração de novas(os) estudantes na academia coimbrã.

Os casos apresentados podem ser considerados como uma manifestação da liberdade de expressão, que tenta fazer passar mensagens válidas para os grupos defensores das causas. Porém, também representam um atentado cívico, na medida em que se apropriam de espaços partilhados com outros usuários (ex. proprietários), os quais até podem comungar dos mesmos ideais, mas que não aceitam a conspurcação dos seus bens imobiliários. No caso dos grafitos na UC e na Alta, Campos (2013) e Mendes (2015) levam-nos a abordar a perspetiva do risco em dois sentidos: a do património construído e respetivos(as) proprietários(as), que assistem à alteração do original; a das(os) grafiteiras(os), entendidos como jovens causadores de instabilidade e insegurança. É desta dualidade que surge a dimensão seguinte, focada nos danos que a grafitagem poderá provocar nesta área protegida pela UNESCO.

4.3 A dimensão institucional: as perdas versus os ganhos?

A dimensão institucional – Universidade e Câmara Municipal de Coimbra – parece estar a braços com uma situação complexa, fruto do que Reginensi (2019) considera ser a “cidade relacional”. As vivências múltiplas da cidade de Coimbra, em particular o efeito das grafitagens na UC e na Alta, podem estar a colocar em causa a perda do estatuto de World Heritage Area, atribuído pela UNESCO em 2013. Acresce a esta situação o risco de danos patrimoniais, com a “desfiguração” original da estética dos edifícios classificados, assim como o risco social decorrente das tensões entre proprietárias(os) e grafiteiras(os).

Numa lógica de sistematização, podemos evidenciar o efeito em várias dimensões, ponderando ganhos/perdas, nomeadamente:

Grafito na Rua dos Estudos (rua contígua ao Largo D.Dinis), UC
Fotografia 9.
Grafito na Rua dos Estudos (rua contígua ao Largo D.Dinis), UC
Fonte: A autora (2018-2019)

A Fotografia 9, diz respeito a um grafito numa das principais áreas de passagem da UC, cuja ironia e subtileza toca o humor. É uma mensagem direta para a comunidade de estudantes, a que muitas vezes a opinião pública se refere como não tendo grande apetência para os estudos, mas antes ainda para o lazer e diversão. A mensagem também aparece na lógica já abordada da praxe, sendo uma clara expressão da repulsa das práticas de iniciação que se sobrepõem aos tempos e espaços das aulas. E embora a comunidade autóctone manifeste concordância com estas ideias, não concebe que a expressão das ideias possa ser feita com recurso a grafitagens nas suas residências privadas, assim como no espaço público da UC e da Alta.

Face à reflexão que realizámos sobre ganhos/perdas, não podemos deixar de nos focar sobre dupla significância da grafitagem como arte urbana – ato de vandalismo versus expressão artística. Por isso, urge questionar se o valor da arte de rua, não está dependente de duas variáveis: em primeiro lugar, do valor que é considerado para a arte em si, ou seja, a importância e visibilidade dada pelos críticos e pelos pares; em segundo lugar, da repercussão que isso tem na opinião pública e, consequentemente, nos territórios em causa, criando-se “obras-lugares de culto”.

Já nos referimos ao caso de sucesso e reconhecimento público de Banks, pelo que também merece referência o trabalho de Vihls7, um artista de rua português, cuja obra muralística pode ser apreciada não só em Portugal como em várias partes do mundo. Originário do Seixal, um município industrial suburbano integrante da Área Metropolitana de Lisboa, foi muito influenciado pelos grafitos que observava no seu entorno quotidiano. Usa como técnica a “decapagem”, criando as suas obras com base nas várias camadas de materiais presentes nas paredes das cidades (Fotografia 10).

Mural da autoria de Vihls (Quinta do Mocho), Loures
Fotografia 10.
Mural da autoria de Vihls (Quinta do Mocho), Loures
Fonte: A autora (2017)

Neste momento, o artista recebe múltiplos convites para realizar os seus murais em áreas urbanas como Los Angeles, Cincinnati, Paris, Munique Freetown, Londres, Ho Chi Min, Miami, Joanesburgo, entre muitas outras cidades do mundo. A sua obra, como artista de rua, é reconhecida e amplamente valorizada pelos críticos e pelo público em geral.

Outro exemplo é o da Quinta do Mocho em Sacavém, uma área residencial do município de Loures (integrante da Área Metropolitana de Lisboa), onde tem sido evidente o denominador comum da tensão social, associado a situações de exclusão social e marginalidade. Num culminar de agudização dos conflitos entre moradores e alóctones, gerador de insegurança dentro deste perímetro urbano, houve urgência em atuar através da planificação-ação de estratégias mitigadoras da instabilidade gerada. Optou-se por uma abordagem artística, numa lógica de mitigação dos riscos sociais inerentes, pelo que se desenvolveu a “Galeria de Arte Pública” (GAP), a qual reúne um conjunto de trabalhos de diversos artistas nacionais e estrangeiros, que alia a grafitagem com o muralismo, com o objetivo principal de alterar a imagem deste território marcado pelo estigma de “bairro social” (VELEZ DE CASTRO; NOSSA, 2020) (Fotografia 11).

Grafitagens e muralismo na Quinta do Mocho, Loures
Fotografia 11.
Grafitagens e muralismo na Quinta do Mocho, Loures
Fonte: A autora (2017)

Segundo o município de Loures8, esta intervenção baseou-se na requalificação urbana e artística dos edifícios, mas principalmente na mobilização dos moradores em torno da ideia de mostrar o bairro ao mundo e trazer o mundo ao bairro, conseguindo desta forma fomentar o seu sentimento de pertença e integração na área metropolitana a que pertencem.

Trata-se, pois, de exemplos positivos, que nos fazem questionar e abordar soluções, que não só acabam por mitigar as tensões e fricções territoriais internas à comunidade, como projetam uma imagem positiva de segurança e valor cultural em torno da arte de rua, em concreto sobre a grafitagem e as(os) artistas urbanas(os).

5 Considerações finais

A crescente diversidade e complexidade dos riscos sociais tem trazido para a discussão novas problemáticas. Numa base coletiva, o estudo das ciências cindínicas têm vindo a ganhar novos contornos, no que concerne ao interesse em torno das tensões e atritos das populações. As(os) geógrafas(os) têm um papel fundamental no estudo deste tema, tendo em conta toda a linha epistemológica humanista, que derivou na constituição de uma geografia social.

O trabalho apresentado, sobre a apropriação dos territórios quotidianos pelos grafitos, abordou a situação da “UC e a Alta” da cidade de Coimbra, classificadas desde 2013 como Património Mundial da UNESCO. Foi usada uma metodologia qualitativa, baseada na abordagem geográfica visual, com recurso a um repositório de imagens fixas (fotografias), recolhidas durante um ano letivo.

Face à intensa atividade de grafitagem observada nesta área da cidade, discutiu-se a dimensão epistemológica, tratando-se de uma forma de arte e de comunicação que muitas vezes se apropria de espaços insalubres, reforçando a ideia de marginalidade. Também foi abordada a dimensão cívica, considerando-se que os grafitos são uma forma de liberdade de expressão, mas que interferem no território público e privado, onde outros usuários consideram um atentado ao civismo e à urbanidade. Por fim, na perspetiva institucional, destacou-se o risco da UC perder-se o estatuto de “World Heritage Area”, com consequências negativas para a universidade (escassez de receitas advindas dos visitantes) e para o turismo local/regional.

Consequência de uma multiterritorialidade, reflexo da vivência de vários grupos no mesmo território, urge a reflexão sobre como lidar com este tipo de tensões sociais, numa lógica de equilíbrio e bem-estar, em que seja possível articular a arte de rua, nas suas variadas expressões, com a convivência profícua e pacífica, interna e externa às comunidades.

Agradecimentos

A publicação contou com o apoio da RISCOS, assim como também do CEGOT (Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território):


This work was developed in Centre of Studies in Geography and Spatial Planning (CEGOT) and supported by the European Regional Development Funds, through the COMPETE 2020 – Operational Programme ‘Competitiveness and Internationalization’, under Grant POCI-01-0145- FEDER-006891; and by National Funds through the Portuguese Foundation for Science and Technology (FCT) under Grant UID/GEO/04084/2013.

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Notas

1 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, [online]. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/picha%C3%A7%C3%A3o e em https://dicionario.priberam.org/grafite. Acesso em: 14 set. 2020.
2 BANSKY. Página de Instagram. Disponível em: https://www.instagram.com/banksy/?hl=pt . Acesso em: 15 set. 2020.
3 Portugal viveu um regime ditatorial de 1933 a 1974, com o governo de António Oliveira Salazar.
4 Ritual de receção e iniciação dos estudantes do primeiro ano das licenciaturas - “caloiras(os)” - perpetrado por estudantes mais velhos, de anos avançados, com objetivo de promover a integração. Passa, muitas vezes, por práticas abusivas, discriminatórias, misóginas e de humilhação. Mais informações disponíveis em: https://journals.openedition.org/rccs/1147. Acesso em: 16 set. 2020.
5 De referir que o fenómeno da gentrificação, não só em Coimbra, como noutras cidades portuguesas. Mais informações sobre o tema disponível em: https://www.researchgate.net/publication/333649049_Mendes_L_Carmo_A_Malheiros_J_2019_-_Gentrificacao_transnacional_novas_procuras_globais_e_financeirizacao_do_mercado_de_habitacao_em_Lisboa_in_Santos_A_C_coord_-_A_Nova_Questao_da_Habitacao_em_Portugal. Acesso em: 18 set. 2020.
7 VHILS. Site oficial. Disponível em: https://www.vhils.com/. Acesso em: 18 set. 2020.
8 LOURES (Portugal). A visitar em Loures. Disponível em: https://www.cm-loures.pt/Ligacao.aspx?DisplayId=473. Acesso em: 17 set. 2020.

Notas de autor

1 Doutora em Geografia. Professora Auxiliar e Diretora do Mestrado em Ensino da Geografia no 3º Ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário (3CEBES), no Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (UC) – Coimbra – Portugal. E-mail: velezcastro@fl.uc.pt.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): VELEZ DE CASTRO, F. A apropriação dos territórios quotidianos pelos grafitos: Do risco social à multiterritorialidade. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 1, p. 45-68, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p45-68. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15874.

COMO CITAR (APA): Velez de Castro, F. (2021). A apropriação dos territórios quotidianos pelos grafitos: Do risco social à multiterritorialidade. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(1), 45-68. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p45-68.

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