DOSSIÊ TEMÁTICO: "RISCOS E DESASTRES SOCIOAMBIENTAIS"

Atuação Profissional e Desastres: limites e recomendações

Professional Performance and Disasters: limits and recommendations

Actuación Profesional y Desastres: límites y recomendaciones

Samira Younes Ibrahim 1
Brasil
Luiz Henrique de 2
ONG Rede de Cuidados/RJ, Brasil
Catalina Revollo Pardo 3
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Marta de Araújo Pinheiro 4
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Atuação Profissional e Desastres: limites e recomendações

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 23, núm. 1, 2021

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2021 pelos Autores.

Recepción: 25 Septiembre 2020

Aprobación: 08 Marzo 2021

Resumo: Nos últimos anos, profissionais de diversas áreas de conhecimento têm demonstrado interesse crescente pelo tema desastres, com aumento de atores nesse campo, sejam eles vinculados às instituições públicas, privadas, ONGs ou voluntariado, além de grande número de pesquisadores. Este artigo tem como objetivo realizar uma reflexão crítica sobre três desastres ocorridos no Brasil – Vale do Cuiabá (2011), Samarco (2015) e Vale (2019), assim como as possíveis contribuições para a atuação profissional na área. Foram realizadas pesquisas documental e bibliográfica. Os resultados mostram conexões entre os três desastres, destacando-se a atenção primária em saúde como território e recurso em desastres. Este trabalho pretende contribuir para que as ações de profissionais e pesquisadores possam partir de uma demanda centrada nas pessoas e nas comunidades afetadas, com recomendações necessárias para atuação.

Palavras-chave: Desastres, Atuação profissional, Comunidade, Crítica Decolonial, Atenção Primária em Saúde.

Abstract: Professionals from various fields of knowledge have shown increasing interest in the topic of disasters, leading to an increase in actors at this field, whether linked to public or private institutions, NGOs or volunteering. This article aims to accomplish a critical reflection on three disasters that occurred in Brazil – Vale do Cuiabá (2011), Samarco (2015) and Vale (2019) as well as the possible contributions to professional performance in the area. For this, a bibliographic research on the disasters was done. The results show connections between the three disasters and highlights primary health care as a territory and resource in disasters. The work intends to contribute so that the actions of professionals and researchers can start from a demand focused on the affected people and communities, with necessary recommendations for action.

Keywords: Disasters, Professional performance, Community, Decolonial criticism, Primary Health Care.

Resumen: En los últimos años profesionales de diversas áreas del conocimiento han demostrado interés por el tema de los desastres. Crece el número de actores en este campo, estén ellos vinculados a las instituciones públicas, privadas, ONGs o voluntariado, además del gran número de investigadores. Este articulo tiene como objetivo realizar una reflexión crítica sobre tres desastres en Brasil – Vale do Cuiabá (2011), Samarco (2015) y Vale (2019), además de las posibles contribuciones a la práctica profesional en el área. Se realizó una investigación documental y bibliográfica sobre los desastres. Los resultados muestran conexiones entre los tres desastres, destacándose la atención primaria en salud como territorio y recurso en desastres. Este trabajo pretende contribuir para que las acciones de los profesionales e investigadores tengan origen a partir de una demanda centrada en las personas y comunidades afectadas, con las recomendaciones necesarias para su actuación.

Palabras clave: Desastres, Actuación profesional, Comunidad, Crítica Decolonial, Atención primaria en salud.

1 Introdução

Assim como cresce o número de desastres pelo mundo, cresce também a quantidade e a diversidade de atores envolvidos nesse tema, como profissionais vinculados às instituições públicas, privadas, ONGs ou voluntariado, além de um grande número de pesquisadores.

Acompanhando estudos com os sobreviventes de desastres, constata-se que, mesmo depois de passados anos, o desastre continua, já que os sobreviventes permanecem em sofrimento social, situação esta que: “[…] resulta do que o poder político, econômico e institucional faz às pessoas e, reciprocamente, de como essas próprias formas de poder influenciam nas respostas aos problemas sociais” (KLEINMAN; DAS; LOCK, 1996, p. 1). Um sofrimento que se apresenta, ao mesmo tempo, coletivo e individual.

Diante desse cenário, coloca-se a seguinte questão: como preparar profissionais para atuar em situações de desastre considerando que o sofrimento dos sobreviventes não termina após os primeiros socorros? Acredita-se que para responder à essa questão é necessário inicialmente trazer para discussão aspectos éticos, teóricos e psicossociais que envolvem esses profissionais nas situações de desastre e saber quais os limites para atuação diante do sofrimento dos sobreviventes, inclusive no quesito pesquisa. O emprego da categoria sobrevivente atende ao vivido por pessoas que sofreram desastre. Como no caso do Vale do Cuiabá, que os moradores não se reconhecem como afetados, vítimas ou atingidos, mas sim como sobreviventes (YOUNES-IBRAHIM; PINHEIRO; PARDO, 2019).

Este artigo tem como objetivo realizar uma reflexão crítica sobre os desastres do Vale do Cuiabá - Petrópolis (2011), Samarco (2015) e o da Vale (2019) ocorridos no Brasil e possíveis contribuições para a atuação profissional na área. Foram realizadas pesquisas qualitativas documental e bibliográfica sobre os três desastres. Além disso, com relação ao Vale do Cuiabá, utilizamos como base a dissertação Análise da memória social dos afetados no desastre socioambiental de janeiro de 2011 no Vale do Cuiabá – Petrópolis, RJ (2018), que foi realizada com subsídio do CNPq, no Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS/UFRJ). Este artigo também tem relação com pesquisa de doutorado em andamento no mesmo programa. Este trabalho pretende contribuir para que as ações dos profissionais e dos pesquisadores tenham origem a partir de uma demanda centrada nas pessoas e nas comunidades afetadas, com recomendações necessárias para atuação.

Para refletir sobre esses aspectos, tomaram-se os seguintes desastres como referência para o estudo: o da região serrana do Estado do Rio de Janeiro em 2011 – foco no Vale do Cuiabá (Petrópolis - 2011); o desastre da Samarco (2015); e o da Vale (2019), estes dois últimos no Estado de Minas Gerais.

Nesta introdução, os três desastres serão apresentados com suas respectivas características e desdobramentos. A Seção 2 trata do enquadramento teórico-metodológico. A terceira seção apresenta os resultados do estudo com pesquisa documental e bibliográfica sobre os desastres em questão, acrescidos de considerações sobre os resultados da dissertação realizada sobre o desastre no Vale do Cuiabá. A Seção 4 evidencia a atenção primária em saúde e desastres. Na Seção 5, estão apresentadas as considerações finais e, por último, as referências utilizadas para a elaboração desta pesquisa foram listadas.

1.1 O Desastre no Vale do Cuiabá – Itaipava – Petrópolis

Na noite do dia 11 e na madrugada do dia 12 de janeiro de 2011 aconteceu o desastre socioambiental da Região Serrana do Rio de Janeiro. Sete municípios foram abrupta e diretamente atingidos por escorregamentos e enxurradas: Nova Friburgo, Teresópolis, Sumidouro, Bom Jardim, Petrópolis, São José do Vale do Rio Preto e Areal. Oficialmente, esse desastre provocou 964 mortes, com mais de 300.000 afetados (RIO DE JANEIRO, 2014, A, p. 7 e 12). E, segundo a Defesa Civil, deixou mais de 45.000 desabrigados e desalojados (BRASIL, 2012, p. 63).

Sem desconsiderar a gravidade e a extensão do desastre, que também continua presente nos outros municípios, este estudo se concentrará na municipalidade de Petrópolis, que se localiza na Região Sudeste do Brasil, no topo da Serra da Estrela e pertence ao conjunto montanhoso da Serra dos Órgãos (PETRÓPOLIS, 2014).

Interessante mencionar uma característica territorial de Petrópolis que é um extenso trecho da municipalidade fazer parte da Área de Proteção Ambiental (APA), criada pelo Decreto n. 87.561, de 12 de setembro de 1982 e também pertencer à Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA) (BRASIL, 2007). Destaca-se o fato de que, além da APA (Federal), seu território também compõe a Reserva Biológica de Araras (Estadual), a Reserva Ecológica da Alcobaça (Federal) e o Parque Nacional da Serra dos Órgãos (Federal).

O município de Petrópolis está distribuído em cinco distritos: Petrópolis (sede – 143 km²), Cascatinha (274 km²), Itaipava (121 km²), Pedro do Rio (210 km²) e Posse (63 km²). O desastre de 2011 atingiu diretamente o Distrito de Itaipava, afetando vários bairros e resultando em 71 óbitos, 187 desabrigados e 6.956 desalojados (CEPED. UFSC, 2011). Entre os bairros mais afetados, está o Vale do Cuiabá, que faz parte da APA Petrópolis (BRASIL, 2007, p. 453) e pertence à área rural de Itaipava.

Estudo realizado pelo CEPED (2011), da Universidade Federal de Santa Catarina, mostrou que Petrópolis teve 50.000 afetados diretos no desastre. Esse relatório revelou que, após quatro meses, a maior parte das organizações externas já não atuavam mais no município e que a população atingida dependia de doações e de aluguel social. Para alguns sobreviventes, a dependência do aluguel social permanece até os dias de hoje.

1.2 Os Desastres da Samarco e da Vale, no Estado de Minas Gerais

O Estado de Minas Gerais faz parte da Região Sudeste e é o maior produtor de minério de ferro do Brasil. No centro-sul do Estado encontra-se o complexo denominado Quadrilátero Ferrífero, formado por vários municípios, Mariana e Brumadinho estão entre eles (GEOPARK, 2020).

Em 5 de novembro de 2015, ocorreu o rompimento da barragem de Fundão, pertencente à mineradora Samarco Mineração S.A., cujo capital é controlado pela Vale S.A. e pela BHP Billiton Brasil Ltda. O rompimento derramou 34 milhões de metros cúbicos de lama e de rejeitos e causou a morte de 19 pessoas (FREITAS; SILVA; MENEZES, 2016). A destruição começou na região de Mariana, Estado de Minas Gerais, seguiu por vários municípios até chegar, 11 dias depois, ao Estado do Espírito Santo e daí para o Oceano Atlântico, um mar de lama que fez um percurso de mais de 600 km. No caminho atingiu 35 municípios em Minas Gerais e quatro no Espírito Santo. Imediatamente, afetou o abastecimento e comprometeu a qualidade de água para 1,2 milhão de pessoas, danificou o ecossistema, violou direitos de trabalhadores e abalou o trabalho de pescadores e de agricultores. O percurso do desastre atingiu terras de comunidades tradicionais, como os índios Krenak, Tupiniquim e Guarani, além de quilombolas (LACAZ; PORTO; PINHEIRO, 2017; LOSEKANN, 2017; PoEMAS, 2015).

Em 25 de janeiro de 2019, houve outro rompimento de barragem, o da Mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale. Dessa vez, 12 bilhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração foram ejetados sobre o município de Brumadinho (BRASIL, 2019a). Um desastre que deixou 259 mortos e, até novembro de 2020, 11 pessoas continuavam desaparecidas (ANDRADE; COLODETI; ADAID, 2020). Também afetou o trabalho e a subsistência de moradores, com o comprometimento da agricultura, na criação de animais e no turismo local. Uma ação do Ministério Público de Minas Gerais foi realizada contra funcionários da Vale, com denúncia por crime ambiental e homicídio doloso, quando há intenção de matar, e, também, contra a mineradora Vale S.A. e a Tüv Süd Bureau de Projetos e Consultoria Ltda, empresa encarregada das auditorias de segurança da barragem (MINAS GERAIS, 2020).

Considerando a multidimensionalidade dos desastres, estima-se que os da Samarco e da Vale ocasionaram inúmeros danos físicos e subjetivos. Desastres com perdas que vêm acompanhadas de sofrimento social de todos os afetados. Apenas a visão da dimensão técnica não dá conta da compreensão de todos os aspectos que fazem parte desses desastres.

Entende-se que os desastres da Samarco e da Vale se situam dentro do que Zhouri et al. (2018, p. 37) definem como desastre tecnológico: “[…] um desastre atribuído em parte ou no todo a uma intenção humana, erro, negligência, ou envolvendo uma falha de um sistema humano, resultando em danos (ou ferimentos) significativos ou mortes”. Além disso, compreende-se que esses desastres são acrescidos de comprometimento social e ambiental desde a concepção da instalação das empresas.

2 Enquadramento Teórico-Metodológico

Com a compreensão de que desastres não são eventos pontuais (VALENCIO; SIENA; MARCHEZINI, 2011), sendo construídos ao longo do tempo por danos sociais, econômicos, políticos, materiais e ambientais (MASKREY, 1993), buscamos neste artigo ampliar a discussão para além do momento do ocorrido imediato chamado “desastre”.

Na metodologia foram utilizadas as pesquisas bibliográfica e documental. Na pesquisa bibliográfica usamos referências teóricas publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites. Com relação à pesquisa documental, recorremos a fontes mais diversificadas e dispersas, sem tratamento analítico, tais como: jornais, revistas, relatórios, documentos oficiais, cartas, filmes, fotografias, relatórios de empresas, vídeos de programas de televisão, entre outros. (SILVEIRA; CÓRDOVA, 2009, p. 31).

O sistema de análise escolhido foi o de procedimento de exploração do material colhido, priorizado por P. Henry e S. Moscovici (BARDIN, 2016), cujo quadro de estudo não é determinado previamente, ocorrendo a partir do exame do conteúdo bibliográfico e documental.

Privilegiou-se uma análise socio-histórica a partir de um mergulho em algumas diretrizes da crítica decolonial com o interesse de localizar epistemologicamente de onde partem os limites e as recomendações propostos neste artigo. Distinguimos nos desastres a importante presença das ações da Atenção Primária em Saúde (APS), que faz parte do Sistema Único de Saúde (SUS), questão contemplada no presente trabalho.

As ideias do coletivo de pensamento crítico latino-americano, Projeto Modernidade/Colonialidade, explicam a colonização da América como um ato constitutivo da modernidade e do padrão de dominação material e simbólico, denominado colonialidade do poder (VIVEROS VIGOYA, 2016). A compressão de que há um “outro” criado por um sistema de conhecimento imperial é indispensável para compreender como a crítica decolonial analisa o conhecimento gerado a partir de epistemologias coloniais da história “universal” ou da filosofia ocidental, na qual o “outro” é uma criação europeia que parte da colonização na relação de alteridade entre as/os negras/os, as/os indígenas e as/os europeias/os e que é mantida até a atualidade, de muitas maneiras.

Importante destacar que, para Quijano (1999), a colonialidade e o colonialismo são fenômenos diferentes, mas que estão interligados. O colonialismo representa a dominação de alguns povos e territórios sob o domínio de outros, sob os enquadramentos dos tratados de dominação colonial dos diferentes territórios colonizados e, analiticamente falando, é anterior à colonialidade. Por sua vez, a colonialidade refere-se ao sistema de dominação e de classificação universal existente no mundo, que permaneceu após a dissolução dos tratados de vínculo colonial entre as colônias e seus países colonizadores. Para o autor, ainda, o colonialismo acabou com o fim desses tratados coloniais, mas a colonialidade permanece como padrão de opressão até os dias de hoje (QUIJANO, 1999). Complementando, para Mignolo (2007), o modelo masculino, branco e cristão é o modelo “universal” dominante. O conceito da colonialidade do poder de Quijano (1999) é o elemento fundamental do atual padrão de poder. A colonialidade do poder problematiza a classificação social ligada à ideia de raça gerada há 500 anos junto com a colonização da América pela Europa com a implementação do sistema capitalista globalizado. É a mais profunda e duradoura expressão da dominação colonial. A classificação racial está presente em todas e em cada uma das áreas de existência social, constituindo a mais profunda e eficaz forma de dominação social do atual padrão mundial de poder.

A ideia de raça na América Latina, segundo Quijano (1999), foi uma maneira de legitimar as relações de dominação impostas pela conquista e, também, criar o estabelecimento da Europa como uma identidade superior à América. Com a expansão do colonialismo europeu pelo resto do mundo, conduzido pelo desenvolvimento da perspectiva eurocêntrica do conhecimento, a ideia de raça provou ser o instrumento mais eficaz, duradouro e universal de dominação social.

De acordo com Quijano (1999), o fenômeno do poder está caracterizado como um tipo de relação social, constituído pela copresença permanente de três elementos: dominação, exploração e conflito. A colonialidade do poder afeta diversas áreas da existência social: (a) do trabalho; (b) do sexo; (c) da autoridade coletiva e pública; e (d) da subjetividade/intersubjetividade.

Esse padrão de poder é o primeiro conhecido por ter caráter e vocação global, o que hoje chamamos de globalização: “A ‘globalização’ é, sobretudo, uma re-concentração da autoridade pública mundial, em rigor uma re-privatização do controle da autoridade coletiva, sobre a qual se aprofundam e aceleram-se as tendências básicas do capitalismo” (QUIJANO, 1999, p. 13).

A divisão internacional do trabalho (centros-periferias), a hierarquização étnico-racial das populações, não se transformou significativamente com o fim do colonialismo e a formação dos Estados-nação na periferia. O fenômeno parece mais uma transição do colonialismo moderno para a colonialidade global, processo que tem transformado as formas de dominação implantadas pela modernidade, mas não a estrutura das relações centro-periferia na escala mundial (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007) perpetradas pelo desenvolvimento.

O desenvolvimento, como aponta Escobar (2014), é uma prática que liga conhecimento e poder de uma racionalidade completamente diferente com a racionalidade que tem existido nos territórios. Depois da Segunda Guerra Mundial, se desenhou a estratégia do Norte Global para invadir o denominado terceiro mundo, para ser libertado da sua “pobreza” e da sua “ignorância”. Com o conhecimento e as estratégias de poder, os planejadores do desenvolvimento rural, somando-se a outros profissionais, como agrônomos, engenheiros agrícolas, nutricionistas, psicólogos e, também, com os pacotes tecnológicos e as inversões de extensão, têm como estratégia impor aos camponeses a lógica do monocultivo com pesticidas, fertilizantes e endividamento para mudar a mentalidade e a racionalidade das pessoas e das comunidades tradicionais e rurais.

Esse modelo de desenvolvimento carrega consigo, na atualidade, a responsabilidade de desastres. E as estratégias de atuação dos profissionais e voluntários envolvidos no trabalho com as pessoas e comunidades afetadas por desastres estão construídas com a perspectiva das políticas desenvolvimentistas.

O desenvolvimento e a colonialidade do poder compreendem a natureza como um recurso. Para as políticas globais de desenvolvimento, os denominados recursos naturais devem ser explorados e dominados. Para tratar da atual produção da natureza no contexto do capitalismo pós-fordista, pretende-se aqui se aprofundar na categoria da biocolonialidade do poder.

A produção hegemônica da biodiversidade, atualizada pelas elites corporativas e as empresas transnacionais dominantes, se materializa por meio dos regimes jurídicos globais imperiais. A biocolonialidade do poder se faz evidente nos acordos internacionais, como os Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio e o Convênio Internacional da Diversidade Biológica, entre outros, que dão especial destaque à noção de “escassez”, de “perda” dos recursos naturais, ou “diminuição” da biodiversidade, e propõem soluções de tipo tecnocientífico, potenciadas pelas ciências da vida. A partir desse discurso, as populações e os ecossistemas próprios dos “países em desenvolvimento” do Sul ganham um novo valor. Antes vistos como “obstáculos para o desenvolvimento”, dadas suas peculiaridades biológicas e culturais, agora passam a ser entendidos como “guardiões da biodiversidade”, pelo potencial de seus conhecimentos ancestrais (CASTRO-GÓMEZ, 2005b ULLOA, 2004 apudCAJIGAS-ROTUNDO, 2007, p. 169). Mesmo assim, eles geram novos mecanismos de subordinação dos sistemas de conhecimento não ocidentais e de sua particular construção de natureza (LANDER, 2002 apudCAJIGAS-ROTUNDO, 2007, p. 177, tradução nossa).

Para complementar, são trazidas como discussão as ameaças existentes na relação do homem com a natureza (MOSCOVICI, 2007). Ao estudar os desastres em questão da perspectiva da biocolonialidade do poder, constata-se a visão que o Estado e as empresas têm com a prática de “remover” os sobreviventes de seu território, não considerando o valor material e, menos ainda, o valor imaterial estabelecido na relação com a terra, o seu lugar de viver e de habitar. Uma prática que subordina o ser humano à acumulação de capital desenvolvimentista, predominando um modelo de ruptura homem X natureza (MOSCOVICI, 2007), próprio do desenvolvimento, negando as cosmovisões das comunidades tradicionais nas quais a pessoa e a natureza compõem uma unidade.

A crise ecológica e social também tem levado muitos visionários a propor uma transição ecológica e cultural profunda em direção a parâmetros socionaturais muito diferentes dos atuais, como único caminho para que os humanos e os não-humanos possam finalmente coexistir de forma mutuamente enriquecedora, transcendendo os modelos da modernidade capitalista, segundo o qual, o humano se constrói explorando o não-humano. (ESCOBAR, 2014, p. 15)

Nesse desafio da convivência centrada na vida, ameaçada diariamente por projetos de “desenvolvimento”, qual a base que pode ser utilizada para lidar com os conflitos resultantes dessa dissonância? Uma delas pode ser a de Paz, no sentido proposto por Escobar (2011), “[…] entendida como um conjunto de processos econômico, cultural e ecológico que trazem consigo uma medida de justiça e equilíbrio da ordem social e natural – é o significado mais profundo da ecologia da diferença que de alguma forma ajuda os mundos e o conhecimento.” (p. 78, tradução nossa).

As correntes críticas condenam a universalidade da categoria humana, pois possuem a intenção de apagar e de homogeneizar as diferenças. A modernidade ocidental enuncia o humano como um homem, branco, heterossexual, cristão, de classe média ou alta, capitalista, adulto, urbano. A construção dessa categoria pela modernidade ocidental teve e tem o nítido propósito de colonizar os territórios e as pessoas que os habitam. Essa colonização está e esteve fundamentada no desenvolvimento que justifica a apropriação e a exploração das pessoas e de seus territórios, tomando esses seus territórios para serem usados como terras ou minas e apagando todos os seus legados socioculturais. A homogeneização sociocultural foi e é a principal estratégia do desenvolvimento para colonizar os territórios, e a categoria de Humano é uma construção dessa estratégia da colonização.

Mas, ao mesmo tempo, é fundamental destacar que, depois da Segunda Guerra Mundial, surgiu uma necessidade global de repensar o mundo e é nesse contexto pós-guerra que se dá a construção dos direitos humanos. Este artigo adota o princípio de que todos somos iguais reconhecidos nas diferenças (SANTOS, 2008). E, busca-se uma ética centrada na “comunidade de vida”, abrangendo todos os seres vivos, conciliando a produzida dicotomia homem X natureza.

3Resultados: encontro e conexões de três desastres

Esta seção apresenta os resultados do estudo com pesquisa documental e bibliográfica sobre os desastres: Vale do Cuiabá – Petrópolis (RJ, 2011), Samarco (2015) e Vale (2019), além de aprofundar-se nas características históricas e psicossociais que evidenciam as conexões entre os três desastres.

3.1 O Vale do Cuiabá: história e aspectos psicossociais

Os primeiros habitantes de Itaipava foram os antigos índios Goitacases e a presença de objetos indígenas encontrados nos rios petropolitanos sugeriu que eles usaram o território em seus movimentos migratórios, principalmente no circuito para a região que atualmente está inserida no estado de Minas Gerais e vice-versa (ALVES NETTO, 2010; WINTER, 2017).

Na divisa do Vale do Cuiabá, onde hoje é a serra que liga Itaipava ao município de Teresópolis -BR 393, se localizava o lugar em que se encontravam os escravos que fugiam das fazendas locais e os que vinham fugidos do Estado de Minas Gerais: o Quilombo da Tapera. Essa comunidade existe em Petrópolis há 173 anos (FREITAS, 2018). Os moradores da Tapera mantinham as tradições, suas casas eram de pau a pique e os membros das famílias casavam entre si (OLIVEIRA, 2014). Viviam assim até serem atingidos pelo desastre de janeiro de 2011, quando as famílias foram obrigadas a sair do local. Após o desastre, em novembro de 2011, a Fundação Palmares (2016) reconheceu a Comunidade Quilombola Tapera. As famílias quilombolas só voltaram a morar no local no final de 2013, um retorno acompanhado de mudanças na comunidade: com casas de PVC com revestimento de concreto, energia elétrica, água encanada, coleta de lixo e ônibus escolar para as crianças.

Ainda sobre a história da região, em 1830, a província do Rio de Janeiro incentivou a vinda de 150 casais portugueses para o território (SABÓIA, 2012). Depois disso, a região não ganhou novos destaques, até a descoberta do ouro no Estado de Minas Gerais, quando os exploradores perceberam que se utilizassem o caminho dos escravos, poderiam cortar o longo e perigoso trajeto da estrada até as terras mineiras e construíram com trabalho escravo o atalho do Caminho Novo do Ouro, que, em 1858, recebeu o nome de Estrada União e Indústria. Com a criação dessa variante, a coroa portuguesa concedeu as Sesmarias, que mais tarde originaram as grandes fazendas da região. O sistema de Sesmaria consistia na distribuição de lotes de terras doados a alguém de confiança da Coroa com o objetivo de povoar e cultivar sua colônia na América. Esse funcionamento foi amplamente utilizado no período colonial brasileiro, começando com as capitanias hereditárias em 1534, só finalizando no período da independência em 1822.

A partir de 1932, chegaram famílias da sociedade carioca para passar férias na região. Essas famílias adquiriram terras, construíram grandes fazendas e haras. No caso de haras, removeram morros e fizeram mudança no curso de rios para gerar espaços planos (SABÓIA, 2012).

Observou-se que, no percurso de conquista e de ocupação do território, ocorreu mudança na percepção e na relação do homem com a natureza. Florestas, rios e terras passaram a ser tratados com a visão de consumo e a serviço do capital (WINTER, 2017).

Historicamente, o Vale do Cuiabá é uma região que sempre apresentou contraste entre os moradores e trabalhadores locais e os proprietários de sítios, fazendas, haras e pousadas, como citado anteriormente. Os proprietários e empresários reconstruíram com recursos próprios os danos causados pelo desastre. Anteciparam-se aos órgãos públicos em várias ações, como vacinação, doações, serviços assistenciais. Esse contraste foi chamado pela mídia de “os dois lados do vale”.

Tal situação pode ser analisada pela ótica da desigualdade, eliminando a possibilidade de o desastre ser considerado natural:

A desigualdade ambiental pode manifestar-se tanto sob a forma de proteção ambiental desigual como de acesso desigual aos recursos ambientais. A proteção ambiental é desigual quando a implementação de políticas ambientais - ou a omissão de tais políticas ante a ação das forças do mercado - gera riscos ambientais desproporcionais, intencionais ou não intencionais, para os mais carentes de recursos financeiros e políticos: os mais pobres, os moradores de áreas desvalorizadas e etnias marginalizadas. Se há diferença nos graus de exposição das populações aos males ambientais, isso não decorre de nenhuma condição natural, determinação geográfica ou casualidade histórica, mas de processos sociais e políticos que distribuem de forma desigual a proteção ambiental. (ACSERALD; MELLO; BEZERRA, 2009, p. 73).

A ausência do direito à moradia sempre foi um fato presente na história dos moradores de “um lado” do Vale do Cuiabá e não aconteceu a partir do desastre de 2011. Isso evidencia um modo de ação patriarcal, em que o empregado sem direito acaba sempre sendo devedor de seu patrão. Grande parte dos afetados trabalhava e trabalha nas fazendas, nas pousadas e nos haras da região, muitos sem vínculo empregatício formalizado (PINHEIRO, 2014).

Em um diagnóstico socioambiental, realizado em 2006, por uma das famílias tradicionais que desenvolve ações sociais na região do Vale do Cuiabá, o perfil dos moradores foi traçado: moravam no Vale do Cuiabá 1.429 pessoas, a maioria vivendo há mais de cinco anos, o que garantia um tipo de posse e de direitos em favor dos moradores; educação: 62% com ensino fundamental completo, 9% com ensino médio, 5% de analfabetos e nenhum com terceiro grau; não foram identificadas ações socioambientais implementadas pelo governo, mas observaram-se programas desenvolvidos pela igreja local (entre eles: alfabetização de adultos, doação de alimentos e medicação, mutirão de limpeza de rios); 182 pessoas residiam em imóvel próprio (sem informar se possuíam documentação), 178 eram cedidos (parte cedida pelos proprietários das fazendas, sítios, pousadas), 29 alugados e três eram ocupações (PINHEIRO, 2014). Tal cenário já evidenciava a ausência do poder público na região.

Assim, a questão da ausência de direito à moradia no Vale do Cuiabá foi construída ao longo de anos até chegar ao desastre socioambiental de 2011, quando o Estado violou direitos constitucionais na remoção da comunidade afetada e ficou em destaque a inexistência de uma política de proteção e de defesa civil em favor dos sobreviventes.

A construção histórico-político-social-econômica do Vale do Cuiabá mostra um caminho que mantém desigualdades e ausência de direitos básicos. O desastre de 2011 colocou uma lupa sobre as diferenças nas condições de vida dos habitantes, além de mostrar a não transparência nos critérios de remoção e de alocação das famílias e as ameaças de que não iriam receber nada caso não aceitassem as exigências determinadas pelas autoridades.

O uso do desastre como forma de resolver questões pendentes anteriores a ele é corrente (WEINTRAUB; VASCONCELLOS, 2013). No caso apresentado, descobriram-se soluções para situações trabalhistas de muitos anos não regularizadas, casas sem documentação legal (que talvez dessem direito à posse) e “limpeza da área” (retirada dos mais vulneráveis) para que a região ficasse mais bonita para os “donos da terra” das pousadas para o turismo.

Após o dia 12 de janeiro, o desastre esteve no centro da atenção nacional durante grande período, um chamariz para a chegada de inúmeros voluntários, instituições de ajuda humanitária, universidades, ONGs, políticos e artistas. Inclusive interferindo na auto-organização dos sobreviventes nos abrigos. Um exemplo foi o abrigo do Divino, no final do Vale do Cuiabá:

Na proporção do aumento do “assédio”, diminuiu o espaço de participação da comunidade na gestão do abrigo do Divino. A presença massiva de políticos, empresários, mídia televisiva e escrita, voluntários, visitantes interferiu na convivência entre os desabrigados, na construção de rotinas, prejudicando a auto-organização do grupo, comprometendo o processo de formação de uma comunidade temporária. Esta dinâmica instalada ao redor dos desabrigados prejudicou o tempo e o espaço de cuidar da dor e de encontrar formas próprias de enfrentamento da situação. Além disso, isto comprometeu a realização dos rituais de passagem. (YOUNES-IBRAHIM, 2012, p. 299).

A retirada do grupo deste abrigo ocorreu após um movimento de desmobilização para com as famílias e, também, ameaças da Prefeitura e do Estado, com um discurso de que os que permanecessem abrigados no “Divino” não teriam direito à indenização (PINHEIRO, 2014, p. 186; VALENCIO, 2011, p. 81-83).

Em setembro de 2011, foi criada pela Câmara dos Vereadores de Petrópolis, a Comissão Especial de Acompanhamento e Fiscalização das determinações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Chuvas do Vale do Cuiabá, que tinha como objetivo acompanhar e promover a interlocução dos afetados no desastre de 2011 com o governo e os órgãos públicos (PETRÓPOLIS, 2013).

O relatório das atividades do ano de 2015 dá destaque para o fato de que: “[…] Nestas audiências, observou-se a constante dificuldade de fazer com que o Poder Executivo cumpra o seu papel em prestar assistência às vítimas dos desastres ocorridos no Vale do Cuiabá” (PETRÓPOLIS, 2015, p. 2). O relatório evidenciou: a existência de recadastramentos das famílias mesmo após cinco anos do desastre, o desalinhamento entre as instituições envolvidas; a permanência de 814 famílias com aluguel social desde 2011; a indefinição quanto aos terrenos e responsabilidades sobre o processo e o início de construção das moradias; a denúncia de famílias que ainda não receberam indenizações.

Até 2019, a única entrega de casas aos sobreviventes aconteceu a partir da doação da terra por parte de uma família tradicional da região, proprietária de uma das fazendas do Vale do Cuiabá. No início de 2014, foram entregues as 24 casas construídas por meio de doações organizadas pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN) e, em outra parte do terreno, o governo do Estado do Rio de Janeiro instalou 50 casas pré-fabricadas que foram entregues posteriormente (PINHEIRO, 2014, p. 164 e 171). O primeiro conjunto de casas é chamado de “Condomínio Marília Cápua” e o segundo de “As Casinhas”. Considerando o tamanho das áreas construída e externa das casas do Condomínio (dois andares, três quartos, sala, cozinha, banheiros, varanda, quintal) em comparação com “as Casinhas” (com 39,41 m2 - sala, cozinha, dois quartos, banheiro, pré-fabricada, sem privacidade), constata-se a repetição e manutenção das diferenças dos “dois lados do vale” (IBRAHIM, 2018).

3.2 Dados Históricos e Psicossociais sobre a Região de Mariana e Brumadinho (MG)

A região que atualmente é chamada de Minas Gerais era habitada por índios até o século XVI, quando teve início a colonização portuguesa desse território.

A história de Mariana tem 324 anos e caminha com a colonização do Brasil e o Ciclo do Ouro. Em Minas, surgiu como a primeira vila, a primeira capital e o primeiro bispado. Desde 1696, a região foi uma das principais fornecedoras do minério para Portugal. Em 1745, foi nomeada cidade, e o nome Mariana foi em homenagem à esposa (Maria Ana D´Áustria) de D. João V, rei de Portugal. Mariana possui grande patrimônio arquitetônico (MARIANA, 2020).

O município de Brumadinho está localizado no Vale do Paraopeba cuja trajetória se entrelaça com a história do Brasil, com destaque para o período de disputas territoriais durante o Ciclo do Ouro desde cedo, cenário da presença da colonização portuguesa e dos “insubmissos” da Guerra dos Emboabas que fugiram para a região buscando também sair dos altos pagamentos de tributos para a Coroa Portuguesa (VISITE O BRASIL).

Em terras do município de Brumadinho, encontram-se marcos da história do Brasil, entre eles, o Forte de Brumadinho, localizado na Serra da Moeda, na Cadeia do Espinhaço, considerada Reserva da Biosfera pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), território de importância como patrimônio natural e cultural.

Atualmente, as ruínas que representam o complexo da exploração de ouro e que possuem potencial econômico e social estão localizadas nas terras de propriedade da empresa de mineração Vale S.A. (TOFANI; TOFANI, 2019, grifo nosso). A região também acolhe comunidades tradicionais, resultantes dos movimentos colonizatórios. Assim, essas riquezas se constituem em “[…] um singular conjunto de saberes, celebrações, formas de expressão e lugares passíveis de reconhecimento como bens culturais de natureza imaterial” (TOFANI et al., 2015; TOFANI, 2018). Nesse sentido, o Forte Brumadinho deve ser compreendido como um bem que faz parte de um complexo arqueológico, representante da exploração aurífera.

Quem se desloca por essa região encontra com frequência os marcos da mineração registrados no território (buracos, fendas, túneis abandonados), causando inclusive mudança no cenário. Um desses registros fica, justamente, próximo ao Forte de Brumadinho: “[…] é a imensa cata a céu aberto ou talho aberto que se produziu à frente do forte para extração de jazida aurífera lá descoberta […]” (TOFANI; TOFANI, 2019, grifo dos autores) que, equivocadamente, é percebida como se fosse de formação natural, como um cânion ou grota. É a natureza que, com suas cicatrizes, também registra as memórias de séculos de exploração de ouro e minério.

Mas mesmo com todo o valor histórico e ambiental, a região é foco de interesse de outra empresa de mineração: a Gerdau Açominas (GOMES, 2020). A empresa quer ampliar sua exploração na região e entrou com um pedido de licença junto ao governo de Minas Gerais para instalar uma cava de exploração de minério de ferro e montar uma nova pilha de estéril de armazenamento de resíduos de minério, próximo ao Monumento Natural da Serra da Moeda e à Estação Ecológica de Arêdes. O projeto proposto pela mineradora está em cima da zona de amortecimento das áreas de proteção. Entre outras consequências, está o risco para o abastecimento de água para a região, pois várias nascentes serão comprometidas (ABRACE…, 2020).

3.3 Reflexões sobre o Rompimento das Barragens da Samarco e da Vale

Diversos estudos têm indicado que o rompimento das barragens da Samarco (Mariana) e o da Vale (Brumadinho) não foram acidentes, pois havia sinalizações do perigo que as barragens representavam para a região, além de mostrarem como a Indústria Extrativa Mineral (IEM) possui procedimentos estratégicos para instalar e gerir suas empresas em territórios planejadamente escolhidos por elas (ACSERALD, 2017; LACAZ; PORTO; PINHEIRO, 2017; LASCHEFSKI, 2020; LOSEKANN, 2017; PoEMAS, 2015).

Os processos de licenciamento de barragens apresentam evidências de irregularidades, com denúncias de influência das empresas em níveis estadual e federal. Há uma manipulação política com empresas mineradoras fazendo grandes doações para campanhas políticas de candidatos a cargos públicos – 78,4% para governos estadual e federal (LACAZ; PORTO; PINHEIRO, 2017, p. 9; LASCHEFSKI, 2020, p. 104; PoEMAS, 2015, p. 29). Como exemplo, destaca-se o Projeto de Lei 2.946, que foi aprovado em novembro de 2015, apenas 20 dias após o rompimento da barragem da Samarco, tornando-se lei em janeiro de 2016. Essa lei (Lei 21.972) criou a superintendência de Projetos Prioritários (SUPPRI) para agilizar os processos de licenciamento em andamento, com recomendação de voto (LASCHEFSKI, 2020, p. 105).

Mundialmente é sabido que, quando a qualidade do minério diminui, aumenta a quantidade de rejeitos e, consequentemente, o tamanho das barragens; assim como existe relação entre o aumento do risco de rompimento de barragens quando ocorre a fase de baixa de preços no mercado de minério (ACSERALD, 2017; ZONTA; TROCATE, 2016, p. 24), período no qual se aumenta a pressão para que a produtividade e o lucro dos acionistas cresçam.

Estudos mostram a ocorrência de injustiça e de racismo ambiental presentes na escolha do local para a construção de indústria de mineração (ACSERALD, 2017; ZONTA; TROCATE, 2016). A tendência pela região acompanha uma lógica discriminatória (ACSERALD, 2017) com a preponderância de comunidades com força política minoritária, econômica e socialmente vulneráveis. Nos casos da Samarco e da Vale: população rural, ribeirinhos, quilombolas e indígenas. E a estratégia das empresas é dificultar o desenvolvimento de outras atividades econômicas que possam fazer frente à minério-dependência, levando à manutenção da vulnerabilidade social, ambiental, cultural, econômica e política. Atividades locais relevantes no cotidiano das comunidades, como o artesanato, a agricultura familiar, o turismo rural, a produção artesanal de queijos, de cachaça e de doces, dificilmente é contemplada nas políticas públicas (LASCHEFSKI, 2020, p. 106).

As mineradoras operam com a prática de terceirização de mão de obra como estratégia para minimizar custos, porém essa prática apresenta alto índice de acidentes de trabalho. Tal forma de funcionamento é acompanhada de comprometimento da condição de trabalho, como intensa jornada e sem ou com pouco período de descanso. Reflexo dessa situação é o fato de que, para cada dez mortos nessa categoria de acidente, oito são terceirizados. Entre 2000 e 2010, a média de acidentes de trabalho, no Brasil, foi de 8,66% e, nesse mesmo período, em Minas Gerais, chegou a 21,99%, muito acima da média nacional (ZONTA; TROCATE, 2016, p. 11).

Outra estratégia das mineradoras é interferir na auto-organização dos grupos de atingidos, intimidando e distorcendo as informações a seu favor. Uma das últimas medidas da mineradora Vale (COTRIN, 2020) foi entrar na justiça em junho de 2020 com um pedido de proibição de manifestações por parte dos atingidos pelo rompimento da barragem em Brumadinho, com a alegação de que as manifestações poderiam resultar em prejuízo para a companhia e confusão em deslocamentos na cidade. Dezesseis pessoas foram elencadas como rés e algumas organizações e movimentos populares foram citados. Em um primeiro momento, a ação foi aceita pela justiça e depois derrubada. Mas foi o suficiente para intimidar as reações dos moradores de Brumadinho (BRASIL, 2019b; LUTAR…, 2020).

A prática utilizada pelas autoridades da não participação dos moradores nas questões que são de seu interesse é uma estratégia para desmobilizar a organização dos sobreviventes e favorecer os benefícios dos que estão em posição de poder. Não há escuta dos sobreviventes para questões de seu interesse. Assim como alocar provisoriamente (que pode se tornar muito tempo) os membros da comunidade em locais diversos, separando a rede social e, às vezes, a familiar.

As políticas sociais privadas das mineradoras são praticadas como se fossem grandes benefícios concedidos às comunidades afetadas e não uma responsabilidade diante do desastre. A prática desse tipo de “assistencialismo” trouxe denúncias por parte da população, como a manipulação realizada por profissionais contratados pela própria empresa causadora do desastre (LUTAR…, 2020; ZONTA; TROCATE, 2016). É importante alertar para a necessidade de se criar espaços de reflexão sobre a atuação de profissionais em desastres (GAILLARD; PEEK, 2019; VALENCIO; VALENCIO, 2018). Seja no sentido de excesso de “oferta” de profissionais em campo, assim como na desarticulação de suas ações com os projetos e com profissionais locais, passando também por um distanciamento das reais necessidades dos sobreviventes.

Para agravar o cenário acima apresentado, por meio de profissionais contratados, as empresas responsáveis pelos desastres criam categorias de classificação dos sobreviventes segundo critérios próprios não transparentes e sem a participação decisória dos afetados (MAPA…, 2018). Critérios esses que acabam resultando na determinação por parte da empresa de “quem tem ou não tem direito” à reparação como moradia, terra, ajuda financeira emergencial e indenização (LASCHEFSKI, 2020, p. 109; LOSEKANN, 2017; ZHOURI et al., 2018, p. 51). Tal estratégia, além de excluir os afetados da participação do que é de seu interesse e futuro, gera clima de desconfiança entre os atingidos, minando a união e o desenvolvimento de ações conjuntas do grupo. Essa prática por parte das empresas estimula a competição e a não cooperação. Assim como também há a tendência de as empresas não reconhecerem as atividades de pescadores, de agricultores e de garimpeiros artesanais como legítimas para receber indenização.

Frequentemente questionada pelos afetados, foi a constituição da Fundação Renova que tem a tarefa de controlar as ações de reparação e de indenizações decorrentes do desastre da Samarco. Um exemplo legalizado em que as empresas mineradoras causadoras do desastre ficaram com o poder de gerir recursos de reparação e decidir quais as ações psicossociais consideram necessárias para os atingidos, assim como sua implementação (BRASIL, 2019b, p. 286, 577, 647 e 659). A estrutura organizacional da Renova contém o conselho curador com sete membros, sendo eles: um membro representando o órgão público federal e os afetados no desastre, três pessoas da Vale e três da BHP, caracterizando a presença majoritária das empresas com poder deliberativo e normativo (LASCHEFSKI, 2020, p. 111-112). Entre suas ações, a Renova contrata especialistas para verificar a legitimidade dos pedidos de ajuda emergencial e das indenizações.

Como reação a tal absurdo, profissionais e afetados têm se mobilizado. Em nota, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) se posicionou da seguinte forma: “O MAB reforça que a Vale não deveria executar as medidas de mitigação e reparação integral, pois, desde o crime da Samarco, a Vale se utiliza dessa posição para controlar ainda mais os territórios e populações atingidas, negando e incorrendo em novas violações de Direitos Humanos.” (LUTAR…, 2020).

Terra de quem? Tanto no caso do desastre da Samarco quanto no de Brumadinho, existem denúncias sobre a apropriação e o uso das terras dos atingidos. Segundo observações, isso ocorre com um discurso de “recuperação ambiental”, com ações que são realizadas em terras dos afetados, e também com evacuações por risco de rompimento, às vezes, sem aviso. Há alertas de que a motivação é para viabilizar outros projetos das empresas, inclusive imobiliários, em que há necessidade de comprar terras e, por isso, viabilizam a queda nos preços, pressionam moradores para venda, e intimidam as comunidades (LASCHEFSKI, 2020, p. 129-133).

A trajetória do antes e do depois dos desastres da Samarco e da Vale evidencia um modelo colonial de poder (PASTRAN; MALLETT, 2020) que mantém às comunidades, a terra, os territórios e a água como objetos de uso para exploração e sua valoração é financeira. Assim, os desastres fazem parte dos danos calculados e, de certa forma, já contabilizados e, em médio prazo, eles não comprometem o lucro das mineradoras, como aponta a manchete no InfoMoney (BLOOMBERG, 2020): “Vale recupera título de maior fornecedora de minério de ferro”.

Destaca-se que, nas regiões dos três desastres analisados, havia registros de que índios e comunidades tradicionais foram os primeiros habitantes que, sofreram com colonialismo e, até hoje, com a colonialidade, que produziu vulnerabilidade socioeconômica das comunidades locais. As estratégias propulsoras extrativas do desenvolvimento vão além da expropriação dos territórios. Esses modelos de ação também se desenvolvem para conseguir a homogeneização cultural dessas comunidades, por meio das abordagens socioculturais capitalistas, próprias da colonialidade do poder (QUIJANO, 1999). No contexto desses desastres, observam-se nitidamente a ausência e o descaso de uma abordagem diferencial para o cuidado dessas comunidades, evidenciando as estratégias de expropriação territorial e de homogeneização cultural da colonialidade de poder.

Para finalizar essa análise crítica, destaca-se o chamado que faz o antropólogo colombiano Arturo Escobar na introdução de seu livro Sentipensar con la tierra. Nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia para compreender que é por meio do encontro de saberes que realmente será possível construir estratégias de cuidado com as pessoas e com as comunidades sobreviventes dos desastres.

O aquecimento global é só a ponta do iceberg da crise ecológica que ameaça a vida no planeta. Neste contexto, se consideramos o fato básico e irrefutável de que todo ser vivo é uma expressão da força criativa da terra, de sua auto-organização em constante emergência, incluindo por suposto aos humanos, aquelas visões de território e da vida que partem desta convicção como as dos povos étnicos que enfatizam a defesa da mãe terra. (ESCOBAR, 2014, p. 14, tradução nossa).

Como é possível notar, os três desastres se parecem em muitos aspectos, mas, essencialmente, são semelhantes no modelo colonial de poder que destaca a prática do consumo, da exploração e do valor financeiro, assim como a separação homem X natureza.

4 Discussão – A Atenção Primária em Saúde como Território e Recurso para Ação em Emergências e Desastres

O sistema de saúde no Brasil, Sistema Único de Saúde (SUS), apresenta algumas características que o difere dos de outros países, principalmente no que diz respeito à Atenção Primária em Saúde (APS). No material bibliográfico e documental, as ações da APS estão presentes nos desastres e, por seu potencial de ação em equipe e conhecimento dos territórios, consideramos relevante para o trabalho sistêmico e contínuo em todo o processo que envolve desastres.

A Atenção Primária em Saúde é a porta de entrada do sistema, capilarizada por todo o território nacional, mesmo nos mais longínquos recantos. Isso nos traz a possibilidade de uma ampla cobertura e participação popular, embora ainda insuficiente para os propósitos de uma saúde universal, integral e equânime, que são os princípios norteadores do SUS (BRASIL, 2000).

O diferencial da Atenção Primária é a Estratégia Saúde da Família (ESF), que substituiu o Programa Saúde da Família (PSF) criado em 1994, uma iniciativa fundamental na reorganização do sistema de saúde. A composição da equipe conta com médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agentes comunitários de saúde que são recrutados nas comunidades, além disso, algumas unidades contam ainda com dentistas e auxiliar de saúde bucal (RODRIGUES; SANTOS, 2009). O principal critério para que a ESF seja considerada como diferencial da Atenção Primária no Brasil é a criação de vínculos entre as equipes e a população, acolhendo e incentivando a participação popular. O que diferencia essa estratégia é ter área adscrita onde as relações entre equipe e usuário acontece no cotidiano do trabalho, levando ao conhecimento mútuo e corresponsabilização (FRANCO, 2006).

Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) são destaques na proposta do SUS. Eles são os profissionais que criam vínculos entre a população do território adscrito de cada unidade de saúde e sua equipe, atuando em sua microárea, já que moram na comunidade, o que traz um conhecimento da cultura, dos hábitos e das peculiaridades de cada região. São os primeiros a serem acionados em situações de alerta e alarme em desastres e são cobrados do preparo das comunidades de forma participativa (ROCHA, 2015).

Os ACSs são representantes vivos da capilaridade do sistema, eles têm um papel dúbio, pois são, ao mesmo tempo, profissionais da saúde e cidadãos do local, o que, muitas vezes, não traz apenas facilidades, mas cria dificuldades no desempenho profissional.

Atualmente estão sendo implantados, com atuação fundamental dos ACSs, os Conselhos Locais de Saúde que fortalecem a possibilidade, na relação instituição/usuário, de permitir o controle social, “[…] uma gestão democrática dos serviços, a humanização das relações entre usuários e trabalhadores de saúde, e amplia a consciência sanitária da população em geral” (SOUZA; SOUZA, 2013).

Assim, nosso SUS tem muitas possibilidades de atuação que ainda não foram desenvolvidas nas Emergências e Desastres (Emedes). Os ACSs têm desempenhado um papel relevante com pouco reconhecimento por parte dos órgãos oficiais, a não ser em raras ocasiões.

A saúde daqueles atingidos por Emedes é o fator principal, ou deveria ser, das ações governamentais nos três níveis municipal, estadual e federal. Lembrando que não somente a saúde física dos envolvidos, mas a multidimensionalidade que compõe o ser humano necessita de atenção e de cuidado. Os recursos econômicos existem profusamente para obras, necessárias, de reconstrução de pontes, taludes, vias expressas, muros de contenção e outras, mas não há verbas destinadas às ações denominadas psicossociais.

As equipes de ESF ocupam lugar estratégico na atenção básica para atuação junto às comunidades que sofrem desastres. O acompanhamento prévio da saúde dos moradores cria um tipo de vínculo que facilita a comunicação em momentos difíceis. O conhecimento do território e o trabalho em equipe agilizam intervenções em situações críticas (OLIVEIRA; POMPEU, 2015).

Esse aprimoramento dos profissionais, não apenas dos ACSs, deve ser foco constante dos gestores que queiram contar com equipes capazes de atuar de forma eficaz nesses momentos. As exigências de rapidez de decisão, infraestrutura prévia de recursos materiais e humanos e plano de contingência atualizado e conhecido pelas unidades, assim como reservas de recursos financeiros, fazem toda a diferença na hora em que os acontecimentos se mostram fora da curva de normalidade do cotidiano.

Uma psicologia para esses fins vem se construindo paulatinamente, mas muitos recursos e técnicas existentes não foram ainda incorporados pelos órgãos responsáveis, como a Defesa Civil, em seu instrumental de combate às Emedes. Princípios da Psicologia Humanista, técnicas de Psicologia Comunitária e propostas como a Terapia Comunitária Integrativa (TCI), esta genuinamente brasileira, encontram-se disponíveis, mas ainda não foram suficientemente reconhecidas como instrumental capaz de levar a resultados mais rápidos, mais humanizadores e mais efetivos do que as ações e padrões repetitivos que têm sido utilizados.

Assim, parece que, por desconhecimento técnico ou por práticas autoritárias, ou ainda por interesses sem escrúpulos, as práticas dessas ações são uma forma de negar cidadania e conhecimento de direitos e desumanizar aqueles que já, há duras penas, lutam para sobreviver e foram castigados com perdas afetivas e materiais e que deveriam, a partir do Estado, encontrar condições para sua recuperação, por meio de ajuda solidária, técnica, compreensiva e dialógica.

Retornando à Atenção Primária em Saúde, cabe ressaltar que, por meio do PSF, houve valorização da saúde mental no SUS. Anteriormente, a Atenção Primária em Saúde não era reconhecida, seguia sem investimento e abandonada à sua própria sorte com prédios inadequados, falta de material, nenhum controle de dados e insuficiência de pessoal (BRASIL, 2011).

Muito ainda precisa ser feito, mas já se tem um norte mais definido, com objetivos a serem alcançados e criação de novos equipamentos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), as Unidades de Acolhimento para Adultos (UA), as Unidades de Acolhimento Infantis (UAI) e outros que acabam por formar as Redes de Atenção Psicossocial (BRASIL, 2011).

Inegavelmente, todo o movimento da Reforma Psiquiátrica é sujeito das transformações sofridas para melhora no tratamento das doenças mentais. “Trazer o louco para a sociedade e fazê-lo conviver com o diferente, com o múltiplo e resgatar-lhe a cidadania […]” faz toda a diferença, como indica Stockinger (2007).

A criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), a implantação dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e dos Centros de Referência Especial da Assistência Social (CREAS), modifica e integra ações possibilitando o trabalho conjunto entre secretarias que unem forças para levar cuidado e acolhimento às populações.

Existem mecanismos e equipamentos da Atenção Primária que ainda são pouco mobilizados e utilizados, principalmente a médio e longo prazo, durante as catástrofes e que podem fazer diferença no processo de resgate subjetivo e objetivo das pessoas que estão em busca de retomada de vida e necessitam de meios e de apoio para reconstruir com dignidade suas potencialidades e habilidades para a sobrevivência, ou melhor, para uma vida plena e digna.

Um exemplo da pouca utilização dos recursos da Atenção Primária encontra-se na pandemia de Covid-19. A falta de direcionamento único e integrado por parte do Ministério da Saúde (MS) – a não mobilização dos recursos, os históricos recortes no orçamento destinado à saúde, o desmonte paulatino que vem sofrendo o SUS nos últimos quatro anos e a abordagem política da emergência sanitária por parte do governo federal – não permitiram que a Atenção Primária pudesse atuar logo no início da pandemia, o que causou a perda de vidas que poderiam ter sido evitadas pela conscientização, educação em saúde, orientação popular e pelo monitoramento da população.

A mídia televisiva apresentou em 19 de agosto de 2020, no jornal Globo News (NÚMERO…, 2020) em Ponto, na edição matinal, pesquisa realizada na Inglaterra que aponta crescimento em torno de 50% dos casos de depressão na população do ano que passou para os dias atuais (2019–2020). A pesquisa foi aplicada em 3.500 pessoas e aponta a faixa etária mais atingida entre 19 e 39 anos. Espera-se um agravamento da situação quando suspenderem a ajuda econômica à população. Esse dado ilustra que apenas o cuidado físico é insuficiente nesses momentos e acertadamente a saúde mental foi colocada como foco governamental para a reconstrução do país.

A saúde mental pode ter um forte aliado na Atenção Primária quando é possível consolidar uma parceria nas ações entre as unidades da ESF e os outros equipamentos já citados. A saúde mental precisa ouvir a música que diz que “o artista precisa ir aonde o povo está” e seguir o exemplo, principalmente nos momentos emergenciais.

O marco de proposição das Funções Essenciais da Saúde Pública (FESP), sistematizado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS, 2002, 2014) é este, “[…] a Redução do Impacto das Emergências e Desastres em Saúde é a décima primeira de todas as 11 FESP”.

Destacam-se duas das quatro ações que constituem essa FESP:

Dois marcos internacionais de 2005 das Nações Unidas reforçaram a redução dos riscos como função essencial da saúde pública: o primeiro na Organização Mundial da Saúde (OMS), aprovando o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) (OMS, 2005). O segundo, na Estratégia Internacional de Redução dos Desastres (EIRD), com o Marco de Ação de Hyogo (MAH), que propõe um conjunto de ações para fortalecer a capacidade de redução do risco de desastres.

Esse conjunto de marcos internacionais (FESP, RSI e MAH) contribuiu para criar estruturas relacionadas à redução do risco de desastres, função essencial da saúde pública no Brasil.

Na Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), no ano de 2005, iniciou-se a estruturação da vigilância em saúde ambiental dos desastres naturais (VIGIDesastres), que passou a integrar a Comissão de Desastres do Ministério da Saúde.

Também na SVS, em 2006, iniciou-se a estruturação do Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde (CIEVS), tendo como função detectar surtos e emergências em saúde pública para levar informações para as respostas em saúde.

Além desses marcos internacionais, o megadesastre da Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, em janeiro de 2011, contribuiu para que no mês de novembro desse mesmo ano fosse criada pelo Ministério da Saúde a Força Nacional do SUS (FN-SUS) para atuar em emergências ou desastres de cunho nacional.

Assim, dentro desse grande esquema de leis, órgãos e de diretrizes está a Atenção Primária, primeiro estágio de atuação junto às populações, capilaridade que desenvolve ações junto ao cotidiano das comunidades, empatia presente na esquina que acolhe e cuida dos cidadãos mantendo funcional, a duras penas, o SUS.

O reconhecimento do papel essencial da Atenção Primária do SUS em desastres se fez presente no manifesto assinado por profissionais e afetados nos desastres da Samarco, da Vale e da Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro que propõe em sua oitava recomendação o seguinte:

Que seja garantida a indubitável e necessária presença do SUS nos espaços de planejamento, decisão e gestão, tais como COE ou comitês de crise, mobilizados em decorrência de emergências em saúde pública ou desastres, bem como em todas as fases do processo de gestão de riscos de desastres. Particularmente nos desastres de origem tecnológica ou com responsabilidade compartilhada (público/privado), a gestão e execução das ações de saúde, bem com a coordenação do cuidado devem ficar sob responsabilidade do SUS. (OFICINA…, 2018).

A presença das equipes de saúde do SUS, com destaque para a atenção básica e suas equipes de ESF, com seu mapeamento do campo e seu relacionamento com os moradores do território, é essencial para a atuação psicossocial em desastres (NOAL; RABELO; CHACHAMOVICH, 2019).

Entende-se que a atenção básica em sua integralidade é um potente instrumento para acolher e integrar o conhecimento dos usuários e desenvolver contribuições locais fundamentais para o trabalho com desastres em todas as suas fases.

5 Considerações finais

Considera-se que os desastres estudados – Vale do Cuiabá (2011), Samarco (2015) e Vale (2019) – apresentam características em comum, seja na história de seus habitantes, seja em ações adotadas ou não pelo poder público e pelas empresas responsáveis pelos desastres. Nos três desastres, a grandeza do número de profissionais e pesquisadores de fora dos municípios merece registro, nem sempre de forma benéfica para os sobreviventes e os profissionais locais.

Entre os aspectos comuns dos desastres do Vale do Cuiabá, da Samarco e da Vale, damos destaque para: ausência de um Estado presente; abandono dos sobreviventes; exclusão da participação dos afetados nos assuntos e nas decisões de seu interesse; morosidade do poder público; intimidação e deslegitimização dos afetados, interferência externa na auto-organização dos grupos; assistencialismo e o não reconhecimento dos direitos; desconsideração com questões subjetivas e culturais das pessoas e comunidades; fragmentação das redes afetivas e sociais; ocupação do território onde habitavam os atingidos; e definição própria dos critérios para indenização, sem a participação da comunidade, ou seja, não transparência, estimulando, principalmente, a competição e a desconfiança nos grupos de sobreviventes.

Historicamente os habitantes dos territórios dos três desastres sofreram com o colonialismo e, sofrem até hoje, com a colonialidade. Tal cenário contribui para a vulnerabilidade multidimensional das comunidades.

Considerando que desastres não são eventos pontuais e são construídos histórica, social, econômica e politicamente ao longo do tempo, entendemos o lugar estratégico em desastres que as equipes da Atenção Primária em Saúde (SUS) ocupam junto às comunidades. São profissionais que, pela natureza de seu trabalho, podem acompanhar os moradores em toda a trajetória do processo do desastre, além de integrar o conhecimento dos usuários para a construção de contribuições locais para as ações em desastres.

Para os profissionais que trabalham em desastres, sejam da rede pública ou não, recomendamos ampliar a compreensão com uma abordagem socio-histórica decolonial, e colocar em discussão aspectos éticos, teóricos, psicossociais, assim como desigualdades existentes pela colonialidade do poder. Localizar e compreender as forças de poder que agem no contexto dos desastres auxiliam o profissional para que seus projetos não sejam manipulados e os direitos humanos sejam construídos e garantidos. A partir dessa abordagem, sugere-se rever se o que tem sido oferecido em termos de trabalho e pesquisa realmente atende ao que os sobreviventes necessitam.

O trabalho, focado nos territórios, nos cotidianos, nos saberes e nas cosmovisões das comunidades e pessoas sobreviventes, é o caminho para construir um enfoque humano, historizado, localizado e diferenciado que contribua para que as ações dos profissionais e dos pesquisadores tenham origem a partir das experiências e das demandas centradas nas pessoas e nas comunidades afetadas, construídas no encontro horizontal dos atores envolvidos nos desastres.

Agradecimentos

Este artigo contou com subsídios do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Programa CAPES/PNPD Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Referências

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Notas de autor

1 Psicóloga. Psicoterapeuta. Membro da ONG Rede de Cuidados-RJ/Psicologia em Emergências e Desastres. Doutoranda em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS) do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: samirayounes@gmail.com.
2 Membro fundador da ONG Rede de Cuidados/RJ. Gerente de Unidades Básicas de Saúde (UBS) da Estratégia de Saúde da Família (ESF) no Município de Petrópolis/RJ – Brasil. E-mail: henriksa@gmail.com.
3 Psicóloga da Universidad de La Sabana. Professora Substituta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-doutoranda em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS) do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: carevollo@gmail.com.
4 Professora Titular no Programa de Pós-graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS) do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: marta.pinheiro@eco.ufrj.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): IBRAHIM, S. Y. et al. Atuação Profissional e Desastres: limites e recomendações. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 1, p. 256-283, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p256-283. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15882.

COMO CITAR (APA): Ibrahim, S. Y., Sá, L. H., Revollo Pardo, C. & Pinheiro, M. A. (2021). Atuação Profissional e Desastres: limites e recomendações. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(1), 256-283. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p256-283.

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