DOSSIÊ TEMÁTICO: "RISCOS E DESASTRES SOCIOAMBIENTAIS"
Mobilidade cotidiana em tempos de incertezas: um estudo em áreas de desastres ambientais
Daily mobility in times of uncertainty: a study in areas of environmental disasters
Movilidad cotidiana en tiempos de incertidumbre: un estudio en áreas de desastres ambientales
Mobilidade cotidiana em tempos de incertezas: um estudo em áreas de desastres ambientais
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 23, núm. 1, 2021
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 25 Septiembre 2020
Aprobación: 31 Marzo 2021
Resumo: A mobilidade cotidiana no espaço é uma das características fundamentais da contemporaneidade e vem se apresentando como marca imprescindível da conexão das pessoas com o mundo, com os recursos e as oportunidades. Entretanto, as desigualdades sociais expressas no espaço também se traduzem nas condições de movimentar-se pela cidade, que se tornam mais acirradas, sobretudo para os grupos sociais em áreas com ocorrências de desastres ambientais. Em tempos de ampliação das incertezas e novos riscos, a relação entre a mobilidade e a imobilidade nessas áreas se torna ainda mais complexa. Através de entrevistas de caráter qualitativo, o objetivo exploratório deste artigo é refletir e suscitar elementos empíricos sobre a mobilidade cotidiana para o trabalho de pessoas residentes em áreas que experimentaram a ocorrência de desastres em Campos dos Goytacazes/RJ. Elas vivem, nesses tempos de incertezas agravados pela pandemia do novo coronavírus, o dilema da necessidade simultânea de permanência em casa e de saída para trabalhar.
Palavras-chave: Mobilidade Cotidiana, Desastres Ambientais, Risco, Pandemia.
Abstract: The daily mobility in space is one of the fundamental characteristics of contemporary times and it has been presenting itself as an essential mark of the connection of people with the world, with resources and opportunities. However, the social inequalities expressed in the space are also reflected in the conditions of moving around the city, which become more difficult, especially for social groups in areas with occurrences of environmental disasters. In times of growing uncertainty and new risks, the relationship between mobility and immobility in these areas becomes even more complex. Through qualitative interviews, the exploratory objective of this article is to reflect and collect empirical elements about the daily mobility to the work of people living in areas that have experienced the occurrence of disasters in Campos dos Goytacazes (Brazil). In these times of uncertainty aggravated by the pandemic of the new coronavirus, they face the dilemma of the simultaneous need to stay at home and go out to work.
Keywords: Daily Mobility, Environmental Disasters, Risk, Pandemic.
Resumen: La movilidad diaria en el espacio es una de las características fundamentales de la contemporaneidad y se presenta como una marca imprescindible de la conexión de las personas con el mundo, con los recursos y las oportunidades. Sin embargo, las desigualdades sociales expresadas en el espacio también se reflejan en las condiciones de desplazamiento por la ciudad, que se vuelven más difíciles, especialmente para los grupos sociales en áreas con ocurrencias de desastres ambientales. En tiempos de creciente incertidumbre y nuevos riesgos, la relación entre movilidad e inmovilidad en estas áreas se vuelve aún más compleja. A través de entrevistas cualitativas, el objetivo exploratorio de este artículo es reflexionar y plantear elementos empíricos sobre la movilidad laboral diaria de las personas que viven en áreas de ocurrencia de desastres en Campos dos Goytacazes (Brasil). En estos tiempos de incertidumbre agravados por la pandemia del nuevo coronavirus, ellas afrontan el dilema entre la necesidad simultánea de quedarse en casa y salir a trabajar.
Palabras clave: Movilidad Diaria, Desastres Ambientales, Riesgo, Pandemia.
1 Introdução
A mobilidade espacial é um processo social fundamental para garantir o acesso à cidade, assim como aos bens, recursos e oportunidades que ela pode oferecer. Porém, o processo histórico de ocupação e apropriação do espaço nas cidades brasileiras se deu de forma bastante desigual, aliado às disparidades sociais e econômicas, que são ainda mais problemáticas para os grupos sociais em áreas com ocorrências de desastres ambientais, como as inundações. Em tempos de ampliação das incertezas e novos riscos, a relação entre a mobilidade e a imobilidade nessas áreas se torna bastante complexa, uma vez que as desigualdades se manifestam não apenas no lugar de moradia dos grupos sociais, mas também no acesso ao sistema de mobilidade urbana, em seus modos de deslocamento, infraestrutura, distância e preço.
Nesse sentido, o objetivo exploratório deste artigo é refletir e suscitar elementos empíricos sobre a mobilidade cotidiana para o trabalho nesses tempos de incertezas agravados pela pandemia no novo coronavírus. A questão envolve analisar as experiências e percepções sobre as condições de mobilidade x imobilidade para trabalhadores que estão vivendo o dilema da necessidade simultânea de saída para trabalhar e de permanência em casa, mediante novos riscos de um mundo em pandemia. Neste artigo, tal questão é problematizada para trabalhadores que vivem em áreas com ocorrência de desastres, pois eles já apresentam uma experiência em situações de risco e incertezas decorrentes dos desastres ambientais. Sendo assim, essas áreas se apresentam aqui como o contexto socioambiental para tratar sobre as condições de reprodução social e garantia de sobrevivência para os grupos sociais populares, o que passa fundamentalmente pela questão da mobilidade, sobretudo no caso da pandemia.
Partimos da hipótese de que as condições de mobilidade para trabalho se alteraram não apenas pelo incentivo à imobilidade, mas também devido a mudanças para aqueles que precisam se mover mesmo no contexto da pandemia, reforçando as desigualdades já existentes. A metodologia para realização desse estudo exploratório consistiu na realização de entrevistas de caráter qualitativo com trabalhadores da localidade de Ururaí em Campos dos Goytacazes/RJ, questionando-os sobre as condições sociais e ambientais do bairro, as vivências, experiências e percepções sobre as dificuldades enfrentadas no contexto da pandemia, em especial o acesso ao trabalho e à mobilidade cotidiana.
Este texto está estruturado em 5 seções, incluindo esta introdução. Na seção seguinte, são apresentados elementos teórico-conceituais para refletir sobre os desafios para a mobilidade cotidiana no cenário de riscos e incertezas ampliados pela disseminação do novo coronavírus, contextualizado a partir dos processos de ocupação e apropriação do espaço da cidade, com foco sobre as áreas de desastres. Na terceira seção faz-se uma contextualização do estudo de caso exploratório realizado e da área onde se concentraram as entrevistas, assim como uma explanação sobre o método de pesquisa. Na quarta seção, são apresentados os resultados obtidos de forma analítica sobre as condições de mobilidade, à luz das questões e da abordagem teórica. Por fim, a quinta seção apresenta as considerações finais do texto.
2 Desigualdades na cidade e condições de mobilidade em contexto de riscos e incertezas
A cidade tem como pressuposto de sua formação a concentração de bens materiais e imateriais, como construções, recursos, equipamentos, oportunidades e novas relações sociais. Jatobá (2011) trabalha com uma perspectiva sobre a urbanização no sentido de que tal processo poderia contribuir para que os indivíduos e famílias pudessem alcançar melhores oportunidades. Nesse contexto, a circulação da população, sobretudo nos horários específicos de trabalho, se torna fundamental para garantir o acesso à cidade e suas oportunidades. Entretanto, os tempos de incertezas trazidos pela síndrome respiratória aguda através do coronavírus (Sars-CoV-2) colocaram em xeque esse traço marcante da cidade, ou seja, o que diz respeito à concentração e movimentação de pessoas e bens imateriais. A disseminação de casos confirmados de Covid-19 no mundo levou à Organização Mundial da Saúde (OMS) a considerar a situação como uma pandemia em março de 2020, e a principal medida para conter a doença passa pela restrição da mobilidade.
Esses tempos de incertezas trazem muito mais questões do que respostas, uma vez que a mobilidade no período da pandemia é indicada apenas para aquilo que seria essencial. Entretanto, aquilo que é essencial pode variar para os distintos grupos sociais. Nessa linha, as ações políticas de enfrentamento da pandemia baseadas somente no distanciamento social podem ser insuficientes para os grupos mais pobres. Ou seja, as políticas e ações precisam considerar a diversidade das demandas sociais.
A princípio, as informações iniciais que cruzam as condições de contágio e o enfrentamento da pandemia com questões sociais e ambientais, revelam que esse momento parece agudizar as desigualdades históricas já existentes (ALMEIDA, 2020; O COMBATE…, 2020; HAESBAERT, 2020). A insegurança, que já parecia significativa em nossas cidades, se torna mais notória, associada aos riscos, incertezas e vulnerabilidades. Mover-se na cidade se torna uma atividade bastante problemática.
Sendo assim, em uma perspectiva que considera a dimensão da existência através das subjetividades dos grupos afetados, este texto trata sobre as experiências e percepções a respeito da mobilidade cotidiana para o trabalho, por parte dos moradores em áreas de desastres, no contexto das restrições da pandemia.
2.1 Urbanização e o processo histórico social marcado por desigualdades e riscos
O contexto da pandemia acabou por exacerbar a exposição aos riscos associada às desigualdades sociais, econômicas e ambientais na cidade. A princípio, habitar nas cidades teria relação com uma diminuição dos riscos e da insegurança, como as situações de desastres. Como aborda Marandola Jr. (2014, p. 43), mesmo que sempre haja alguma incerteza, na cidade seria possível aproveitar as condições da concentração de bens, recursos e oportunidades que são oferecidos, inclusive a potencialidade do conhecimento científico e tecnológico de intervir e controlar os eventos da natureza. Entretanto, no histórico processo de ocupação do espaço urbano no Brasil vinculado ao aprofundamento do capitalismo no país, observa-se a formação de uma cidade fortemente desigual, com fenômenos como segregação, periferização e fragmentação urbana.
Jatobá (2011) também aponta que o processo de urbanização ocorreu acumulando uma série de precariedades, com potencialização dos riscos e das situações de vulnerabilidade social. Segundo Gottdiener (1993), as mudanças socioespaciais na cidade são reguladas pela lógica da acumulação de capital, e o resultado desse processo numa sociedade capitalista é o desenvolvimento desigual e injustiças sociais que são distribuídas espacial e demograficamente. Assim, falamos de uma cidade que teria potencialidades para promover acesso a direitos e oportunidades, mas que, tendo seu desenvolvimento pautado pela lógica da acumulação capitalista, se torna bastante desigual da distribuição dos custos e ganhos sociais, econômicos e ambientais, a depender da localização dos grupos sociais.
Nas áreas que tiveram uma urbanização precária, não há apenas incerteza, mas um risco associado a essa ocupação. Sendo assim, “em primeiro lugar, em vez de encará-los como incertos, agora eles poderiam ser compreendidos e previstos, no tempo e no espaço. A incerteza é substituída pelo risco, com suas probabilidades, fatores causais e propostas de gestão para lidar com os desastres” (MARANDOLA JR., 2014, p. 43).
O grande diferencial da modernidade líquida em relação aos outros períodos da história é justamente essa sobreposição de riscos: oriundos da imprevisibilidade da natureza e da sociedade; da produção tecnológica e científica; da insegurança social generalizada. Esses riscos se encontram no tempo presente, em um contexto espaço-temporal especialmente incerto, o que torna os perigos ainda mais dramáticos. (MARANDOLA JR., 2014, p. 38).
Assim como o desastre, a princípio, teria origem em um fenômeno natural e, na verdade, faz parte de um processo social, a pandemia do novo coronavírus teria sua gênese em fatores biológicos e de saúde, mas sua disseminação e enfrentamento também têm revelado que apresenta estreita relação com o processo histórico (tempo e mudanças) de cada formação socioespacial, com sua estruturação marcada por uma organização e interações específicas dos elementos do espaço (SANTOS, 2008, p. 76-77). Por isso, antes de pensar sobre as condições de mobilidade na cidade pós-pandemia em áreas vulneráveis, foco deste artigo, temos que pensar e contextualizar os problemas existentes na cidade pré-pandemia que, no caso de algumas áreas, já apresentam um histórico de eventos adversos, como constantes deslizamentos, alagamentos e inundações, que podem ser considerados desastres ambientais.
Como nossa problematização a respeito dos dilemas da mobilidade cotidiana para o trabalho na pandemia se dá em uma área com histórico de desastres ambientais, é importante conceituar o que entendemos como desastre ambiental. Na perspectiva sociológica, além do “momento do desastre”, existe um histórico de ações relacionadas aos processos de ocupação e apropriação dos lugares que precisa ser considerado na análise dos desastres. Apesar de não haver uma definição única e consensual de desastres, é necessário destacar que “o paradigma atual envolve uma série de noções inter-relacionadas, mas duas das noções mais fundamentais são as seguintes: (1) os desastres são fenômenos sociais inerentemente, e (2) a origem dos desastres se encontra na estrutura social ou no sistema social” (QUARANTELLI, 2015, p. 37).
No Brasil, diversos autores tratam sobre os mecanismos sociais, políticos, econômicos e ambientais que operam nos processos de ocupação e apropriação do espaço, afirmando que a cidade desigual está na origem da concepção de “desastre como um processo socialmente construído” (CARMO, 2014, p. 4), uma relação que é parte de um processo de construção social, pois foi produzida a partir da ação da sociedade que produz e distribui, de forma desigual, os riscos ambientais e sociais, em diferentes situações de vulnerabilidade (DESCHAMPS, 2008).
A vulnerabilidade de expressivos contingentes humanos na inserção em áreas susceptíveis no território urbano decorre, ainda, da naturalização de um ordenamento territorial socialmente perverso, fruto da indiferença cotidiana do cidadão comum à estrutural iniquidade distributiva, fruto da frágil interlocução política dos empobrecidos, os quais têm seus direitos de cidadania diuturnamente contestados, e também da míope capacidade técnica do setor público, o qual opera em prol de interesses corporativos mais do que pelo bem estar social. (VALENCIO, 2009, p. 10).
Portanto, em áreas que apresentam riscos de desastres, a pandemia reforça a dimensão da incerteza no que se refere às condições de reprodução social, que passam pelo acesso ao trabalho e à mobilidade cotidiana. Mais uma vez a ideia de que os problemas urbanos são para todos se refaz com a ideia de que o vírus atinge a todos, assim como a noção de que os desastres afetam a todos. Na verdade, o desenvolvimento urbano brasileiro produziu cidades desiguais que reproduzem condições desiguais de enfrentamento dos riscos. Marandola Jr. (2014), ao falar sobre a relação entre riscos no sistema-mundo global e integrado que tínhamos até então, dizia que:
Esse processo de expansão e generalização de um estilo de vida ligado diretamente aos processos globalizatórios tem trazido cada vez mais para o local aquilo que é global, ou seja, aquilo que é externo. Os riscos e perigos produzidos pelos avanços tecnológicos vêm junto com esse sistema globalizado, a maioria sem o acompanhamento de elementos que permitam às pessoas proteger-se ou sequer avaliar sua extensão. (MARANDOLA JR., 2014, p. 14).
Os riscos à saúde já eram considerados por Beck (2010) como tema de processos de racionalização e de conflitos sociais. Ao falar da sociedade de risco, o autor apontou que os riscos e ameaças atuais são produzidos em uma dimensão global, mas são colocados para os sujeitos os enfrentarem na dimensão individual. (BECK, 2010, p. 26; 31-32).
Os riscos e ameaças atuais diferenciam-se de seus equivalentes medievais fundamentalmente por conta da globalidade de seu alcance (ser humano, fauna, flora) e de suas causas modernas. São riscos da modernização. São um produto de série do maquinário industrial do progresso, sendo sistematicamente agravados com seu desenvolvimento ulterior. (BECK, 2010, p. 26).
Embora Beck (2010) esteja falando de riscos decorrentes do desenvolvimento científico, tecnológico e industrial, esse referencial é importante para situar a problemática dos riscos à saúde, o estado da crise ambiental contemporânea e a relação entre tais dimensões globais e as experiências locais, assim como o seu enfrentamento. Obviamente os riscos são de diversas ordens, podem abranger não apenas os aspectos diretamente identificados como ambientais, mas também as condições habitacionais, o acesso ao trabalho, a segurança alimentar, as oportunidades educacionais etc., apresentam ainda relação com a estrutura social, ou seja, são sentidos de forma distinta pelos grupos sociais em diferentes os lugares. Ou seja, a localidade onde este estudo se detém para investigar tais questões vive a experiência de riscos anteriores decorrentes uma precária urbanização, agora associados a riscos globais de um mundo em pandemia.
Apesar de algumas diferenças na abordagem dos autores (MARANDOLA JR., 2014, p. 52-55), a questão dos riscos para Beck (2010), assim como para Giddens (1991), passa pelas transformações da modernidade e operam como uma dimensão fundamental para compreensão dessa nova sociedade. Para Giddens, os novos riscos não são mais externos, são produzidos e se tornam intensos e generalizados, evidenciam ainda a incapacidade de controle e de responsabilização. Além disso, interferem na relação entre leigos e peritos mediante a ausência dos mecanismos tradicionais de confiança.
A linha de base para a análise tem que ser a inevitabilidade de viver com perigos que estão longe do controle não apenas por parte de indivíduos, mas também de grandes organizações, incluindo os estados; e que são de alta intensidade e contêm ameaça de vida para milhões de seres humanos e potencialmente para toda a humanidade. O fato de que eles não são riscos que alguém escolhe correr, e de que não há ‘outros’ que poderiam ser responsabilizados, atacados e inculpados, reforça o sentido de agouro tantas vezes notado como uma característica da época atual. (GIDDENS, 1991, p. 117).
Podemos ver que o reconhecimento dos novos riscos da modernização trazidos por esses autores faz sentido neste tempo de incertezas trazido pela pandemia. A própria disseminação do vírus acompanhou essa lógica de expansão, transferindo os riscos entre países de diferentes níveis de desenvolvimento, assim como evidenciando a lógica de descontrole e insegurança. Da mesma forma, a dificuldade de domínio da situação por parte de diversas organizações internacionais e governos nacionais expõe a intensidade do problema.
Por tudo isso, não só o espaço desconhecido e distante, mas o próprio espaço conhecido da cidade, do centro, do bairro, o espaço de vida referente ao lugar cotidiano de circulação e mobilidade, se tornou espaço de risco e insegurança. A casa é apontada como o lugar por excelência da proteção e, no contexto de incertezas durante pandemia, o “fique em casa” seria um reforço a essa perspectiva. Entretanto, dependendo das condições desse habitar e do seu entorno, este também pode ser um lugar inseguro para muitos grupos sociais, especialmente para aqueles que já enfrentaram situações de desastres, como as inundações. Aliás, há outras inseguranças como a econômica, pois a permanência em casa também pode trazer outros tipos de riscos, o que mostra que o dilema entre ficar em casa e sair para trabalhar passa pelas questões ligadas à mobilidade x imobilidade.
2.2 O dilema mobilidade x imobilidade e o confronto entre as lógicas de escolha e constrangimento
A relação entre a estruturação do espaço e as condições de deslocamento revela que o movimento de população, produtos, energia e informação são fundamentais para a compreensão da organização do espaço urbano e regional. Mas o espaço intraurbano, segundo Villaça (1998), é estruturado essencialmente pelo deslocamento das pessoas (pela mobilidade cotidiana realizada por diferentes grupos sociais): que pode ser um deslocamento para a produção – geralmente os movimentos entre lugar de moradia e lugar de trabalho – ou um deslocamento para a reprodução – que envolvem as diferentes atividades realizadas no espaço urbano, para consumo, lazer, escola etc. (SILVA, 2012). Ou seja, a mobilidade é a marca da cidade, com suas potencialidades e riscos.
No caso do Brasil, o sistema de mobilidade urbana já apresentava uma série de contradições e inseguranças prévias à pandemia do coronavírus. O processo de urbanização se deu de forma acelerada e desorganizada e as cidades formaram-se e cresceram dentro de uma cultura voltada para o automóvel, permitindo maior espraiamento urbano, isto é, menor vinculação do uso do solo à acessibilidade estrutural por meios coletivos (LENTINO, 2005).
Além disso, a própria organização social do espaço reforça a problemática da mobilidade, uma vez que a população mais pobre e que reside nas áreas mais periféricas (as quais muitas vezes também apresentam ocorrência de desastres) é a que utiliza o transporte coletivo geralmente ofertado de forma irregular, insuficiente e inadequada, evidenciando as difíceis condições de mobilidade. Ao mesmo tempo, a população que reside nas áreas mais centrais ou próximas ao centro é a mesma que utiliza em maior medida o transporte motorizado individual. Essa lógica contraditória marcou a organização da cidade e da mobilidade, desde as grandes metrópoles até as cidades de porte médio e pequeno.
A partir desse contexto, a pandemia exacerba as contradições da mobilidade espacial, revela o quanto vivemos num mundo de redes e conexões avançadas, ao mesmo tempo em que boa parte da população enfrenta grandes barreiras para se mover no espaço urbano. A vida social implica muitos problemas de mobilidade e imobilidade, de movimentos forçados e de fixidez escolhida por parte de pessoas. Segundo Urry (2007), “onde a mobilidade é forçada, isso pode gerar privação social e exclusão” (URRY, 2007, p. 8-9), o que ocorre quando os grupos sociais são constrangidos a mover-se. Entretanto, para aqueles que, por qualquer motivo, são restringidas as possibilidades de mobilidade, também operam múltiplas formas de exclusão. Sendo assim, a mobilidade não é somente fenômeno individual, mas constitui-se em um processo social.
Mobilidade implica também o envolvimento em riscos, acidentes, doenças e especialmente prejuízos ambientais globais. O mundo móvel contemporâneo parece ser caracterizado por impressionantes novos perigos e restrições para pessoas, lugares e ambientes, assim como por novas oportunidades para as arriscadas vidas móveis (URRY, 2007).
Nessa cidade ainda mais complexa em meio à pandemia, a principal medida adotada em diferentes lugares do mundo apresenta estreita relação com o controle da mobilidade humana através da restrição do ir e vir da população, uma vez que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o distanciamento físico e social é o caminho mais importante para conter a disseminação da Covid-19 (OPAS, 2020). Sendo assim, o tempo de incertezas da contemporaneidade, elevadas pela pandemia, colocou uma série de limitações à liberdade de circulação em todo o mundo, sobretudo nas cidades.
Nessa situação, o controle da mobilidade cotidiana para o trabalho no contexto da pandemia se torna muito problemático, demandando uma série de ações por parte do poder público para possibilitar um deslocamento mais seguro, sobretudo para as populações mais pobres. Até porque a disseminação do vírus no Brasil e as suas condições e formas de enfrentamento apresentam um viés espacial e social bem marcante (HAESBAERT, 2020; LEIVA; SATHLER; ORRICO FILHO, 2020).
Uma característica básica dessa pandemia, de importante manifestação geográfica, é que ela, ao sair da China, começa no topo da pirâmide socioeconômica, entre as classes mais privilegiadas. (…) Agora, porém, trata-se de uma contenção às avessas. A pandemia, quem diria, veio subverter essa ideia de contenção dos subalternos pelos hegemônicos: são os próprios privilegiados que precisam se autoconter, confinar-se, pois foram eles que, inicialmente, no caso latino-americano, “carregaram o mal”. Embora muitos tenham solicitado que suas empregadas domésticas ficassem em casa, inúmeros trabalhadores (…) devem ter garantida sua mobilidade, ainda que sob condição de grande vulnerabilidade (como nos transportes públicos superlotados do Rio de Janeiro). Os pouco esclarecidos, entretanto, dizem que o vírus “é democrático”, que “atinge a todos por igual”. O vírus não tem nada de democrático (…). (HAESBAERT, 2020, não paginado).
Como mostram alguns estudos, tudo indica que a disseminação da doença nos países latino-americanos começou entre os ricos e foi repassada aos pobres trabalhadores em contato com estes (LEIVA; SATHLER; ORRICO FILHO, 2020; ROSSI, 2020). Entretanto, os ricos têm mais condição de se isolar, já os pobres precisam continuar circulando para prover seu sustento em condições extremamente precárias.
Interessante observar que os grupos sociais que detinham o poder de experimentar a mobilidade e a conectividade espacial do mundo globalizado, também são os mesmos que, no momento da pandemia, apresentam as condições de garantir sua imobilidade espacial com maior conectividade virtual. Ou seja, a mobilidade ou imobilidade é um ativo (KAZTMAN, 1999) que pode ser acionado a depender dos riscos que a realidade local-global apresenta. A ampliação ou restrição do espaço de vida pode ser ativada para os mais ricos, mesmo em um contexto de constrangimento (como o imposto pelos decretos de distanciamento social em várias cidades brasileiras). No geral, é uma lógica de escolha que opera para esse grupo social, enquanto para os mais pobres, mesmo constrangidos a ficar em casa, muitos precisam se movimentar pela cidade.
Conforme aponta o dossiê elaborado pelo Observatório das Metrópoles, justamente por essa clivagem social e espacial e pelo fato da (i)mobilidade estar no centro do controle da doença, “neste momento tornam-se mais graves falhas centrais do transporte público no Brasil como a falta de recursos para garantir a universalização política pública de mobilidade urbana como direito” (O COMBATE…, 2020, p. 8).
Além disso, o drama entre “ficar” e “sair” também revela o confronto entre as lógicas de escolha e constrangimento presentes na mobilidade cotidiana, ou seja, ao mesmo tempo que operam perspectivas de escolha por parte dos sujeitos, enfatizando que há uma decisão individual num contexto de liberdade ao empreender um movimento no espaço, também operam perspectivas de constrangimento, que precisam ser consideradas, pois muitos grupos sociais são constrangidos a se mover, ou querem fazê-lo, mas são impedidos por condições diversas (SILVA, 2012). Por isso, também é preciso considerar as lógicas de imobilidade que operam nas condições de reprodução social dos indivíduos e famílias.
Sendo assim, deslocamentos forçados ou mesmo restrições à mobilidade estão no centro das questões mais cruciais para o enfrentamento da pandemia. Para os grupos populacionais residentes em áreas de desastres, geralmente tratadas como áreas de risco, a imobilidade relacionada ao “ficar em casa” pode se tornar algo ainda mais complexo. Como visto na seção anterior, às condições ambientais pré-pandemia ligadas ao histórico de desastres e situações de vulnerabilidade para muitas famílias, soma-se o risco de empreender a mobilidade cotidiana para trabalho devido à possibilidade de contágio pelo vírus Sars-Cov-2, ou o risco de aceitar a imobilidade e talvez não garantir o sustento familiar, mesmo com programas de auxílio visando à transferência de renda, devido à falta de abrangência ou mesmo insuficiência para muitas famílias alcançadas.
Por isso, nosso interesse em analisar as condições de mobilidade x imobilidade para as pessoas residentes em áreas que já apresentam um histórico de vulnerabilidades socioambientais, como a necessidade de enfrentamento dos desastres. Tal abordagem permite olhar para uma população que já apresenta uma experiência coletiva em lidar com um contexto bastante adverso e, num contexto de sobreposição de desigualdades sociais e ambientais, focaremos na dimensão da mobilidade para o trabalho.
3 Contexto empírico e metodologia
As questões trazidas por este estudo, a fim de analisar as condições de trabalho e mobilidade na pandemia para pessoas residentes em áreas que já apresentam um histórico contexto de desastres, foram investigadas em uma localidade do município de Campos dos Goytacazes, no norte do estado do Rio de Janeiro. Sendo assim, é importante trazer alguns esclarecimentos sobre a evolução da doença na cidade e o contexto no período da pesquisa.
O primeiro Decreto Municipal (nº 021/2020) referente à pandemia saiu em 13/03/2020, quando ficou estipulado que algumas medidas poderiam ser adotadas para enfrentar a emergência de saúde resultante do coronavírus. Dentre elas estavam o isolamento, entendido como a separação de pessoas e bens contaminados, transportes intermunicipais, mercadorias, entre outros, a fim de evitar a contaminação ou a propagação do vírus; e a quarentena, restringindo atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, bem como outros serviços que poderiam reproduzir a doença.
A suspensão das aulas ocorreu em 16/03/2020, seguindo o decreto estadual. O fechamento do comércio e as mudanças mais efetivas na rotina da cidade começaram em 23/03/2020, com o Decreto nº 030/2020 que suspendia as atividades comerciais presenciais não consideradas essenciais. Nesse mesmo dia, o primeiro caso de Covid em Campos foi registrado (23/03/2020): um homem de 37 anos que estava em São Paulo – cidade com diversos casos confirmados. O primeiro óbito ocorreu em 11/04/2020.
No fim do mês de abril, a prefeitura de Campos fechou uma parceria com a Associação Brasileira de Recursos em Telecomunicações – ABR Telecom. Por meio de uma plataforma digital “Fique bem, fique em casa”, a Secretaria Municipal de Segurança Pública, através do Centro Integrado de Segurança Pública (CISP), consegue monitorar o índice de isolamento social na cidade. No mês de maio, o percentual de isolamento variava entre 40 e 45%, quando o ideal era 70%, motivo pelo qual foi decretado lockdown na cidade entre os dias 18/05/2020 e 24/05/2020, a partir do Decreto nº 099/2020.
No início de junho, por meio do Decreto nº 118/2020, foi apresentado o plano de retomada de atividades econômicas e sociais – Campos daqui pra frente. O documento prevê a adoção de cinco níveis de atenção diferentes, classificados por cores (branca, verde, amarela, laranja e vermelha), as quais representam o estágio do risco de disseminação da doença, sendo a branca de menor atenção e a vermelha de atenção gravíssima.
Após alguns dias, a partir do Decreto nº 152/2020, o munícipio entrou na fase amarela, em 01/07/2020 foi permitida a reabertura do comércio de rua, abertura de salões de beleza e estética, barbeiros e cabelereiros, igrejas e templos religiosos, lojas de automóveis e concessionárias, mediante a adequação a uma série de medidas de distanciamento e higiene. Nesta mesma data, Campos atingiu a marca de 1.941 casos confirmados e 132 óbitos (114 confirmados e 18 em investigação).
A pesquisa foi realizada com pessoas moradoras da localidade de Ururaí em Campos dos Goytacazes/RJ no período de 15 a 22 de junho de 20201. Aos informantes foram comunicados os objetivos da pesquisa, os procedimentos e forma de divulgação, tendo sido registrado o aceite em participar do estudo2. No período de realização das entrevistas, embora não mais em lockdown total, o município estava no nível 43 (fase laranja considerada pela prefeitura como lockdown parcial), ainda com uma série de restrições, funcionando apenas serviços essenciais. Ou seja, a circulação da população na cidade ainda era restringida.
Nesse contexto, o objeto de estudo desse artigo são as condições de mobilidade ou imobilidade na localidade de Ururaí em tempos de pandemia, pois a localidade já apresenta um histórico de situações de desastres ligado a um contexto de desigualdades e vulnerabilidades em relação a outras áreas da cidade. Buscamos compreender como alguns trabalhadores e trabalhadoras estavam lidando com a necessidade simultânea de permanência no lugar e de mobilidade para o trabalho mediante novos riscos de um mundo em pandemia, ou seja, o dilema entre “ficar em casa” e “sair para trabalhar”.
A fim de analisar a hipótese de que as condições de mobilidade se alteraram não apenas pelo incentivo à imobilidade para o trabalho, mas também a mudanças para aqueles que precisam se mover mesmo no contexto da pandemia, o método considera a dimensão da existência na busca da compreensão do fenômeno, sendo importante ouvir das próprias pessoas suas experiências com os dilemas destes tempos, a fim de captar seus sentidos e significados. Essa operacionalização também permite considerar como as questões globais contemporâneas são vividas e experimentadas no nível individual/familiar, a partir da subjetividade dos indivíduos.
As entrevistas foram feitas por telefone, tendo como entrevistadores os autores deste artigo. Reconhecemos que a entrevista é uma técnica de produção de evidências que apresenta vantagens e limitações. “A entrevista é uma conversa que pode ser mais ou menos sistemática, cujo objetivo é obter, recuperar e registrar as experiências de vida guardadas na memória das pessoas. O entrevistador tem um papel ativo na busca de lembranças e reflexões (…)” (LIMA, 2016, p. 26).
No caso da entrevista por telefone, perde-se a possibilidade de contato e interação com o entrevistado, assim como a observação de suas reações e expressões, mas também pode ser que alguns entrevistados se sintam mais à vontade para falar, o que foi possível notar em algumas entrevistas. No que se refere à memória, é importante analisar as falas no contexto de outras informações sobre a realidade investigada, o que buscamos realizar através do estudo de investigações anteriores (SIQUEIRA, MALAGODI, 2013; TAVARES et al., 2017). Nesse sentido, utilizamos a entrevista semiestruturada, na qual “o entrevistador define previamente um conjunto de temas ou eventos e pergunta ao informante sobre eles, com vistas à obtenção dos dados para a construção das trajetórias” (ALONSO, 2016, p. 14).
A técnica de seleção dos entrevistados seguiu a amostragem por bola de neve, um método de seleção por redes de contato, a fim de acessar grupos populacionais de interesse para pesquisa4. Um dos principais benefícios é a confiança que pode ser gerada entre pesquisador e pesquisado devido ao contato ter sido mediado por alguém conhecido, um dos problemas refere-se à representatividade, pois “a partir desse tipo específico de amostragem não é possível determinar a probabilidade de seleção de cada participante na pesquisa” (VINUTO, 2014, p. 203), ou seja, não garantimos que os resultados sejam representativos para toda a população envolvida no fenômeno estudado. Nesse sentido, reconhecemos a possibilidade de um viés na própria seleção dos informantes, já que ficaram restritos aos que foram abordados/indicados e aceitaram participar da pesquisa. Entretanto, essa forma de seleção é interessante para estudos exploratórios sobre determinado tema, assim como para sondar o uso de outros métodos complementares em fases posteriores da pesquisa. Por esses motivos, consideramos interessante para esta investigação.
Apesar do aproveitamento dos contatos por indicação, foram estabelecidos alguns critérios para efetivamente realizar a entrevista: ser morador de Ururaí, ter mais de 18 anos, ter experiência prévia de trabalho ou estar trabalhando, entrevistar uma pessoa por família. O objetivo era abarcar a diversidade de pessoas quanto à situação de trabalho e mobilidade, até para buscar apreender as mudanças ocorridas com a pandemia do novo coronavírus. Fazia parte do horizonte da investigação considerar pessoas que tiveram suas casas afetadas por inundações na localidade, já que este é o contexto de interesse. Mas optamos por não usar isso como critério, deixando que aparecesse aleatoriamente entre os informantes indicados, a fim de obter percepções de quem já passou por outras situações acentuadas de riscos e incertezas e quem não passou. A amostra resultou na realização de 21 entrevistas, sendo sete homens e 14 mulheres.
Vale notar que Ururaí fica em torno de dez quilômetros do centro da cidade e é cortada pelo rio Ururaí e pela BR 101, rodovia que liga o município de Campos tanto ao norte quanto ao sul do país. A localidade teve um processo de ocupação ligado à atuação da usina Cupim, que desempenhou um papel importante durante o período de intensa produção sucroalcooleira do município, com vários trabalhadores indo residir na localidade por estarem próximos ao local de trabalho. Ao mesmo tempo, devido ao fato de muitas residências serem próximas ao rio, as inundações fazem parte da experiência de vida de muitos moradores, o que os leva a ter uma vivência pretérita com o contexto de desastres.
A localidade apresenta um contexto socioeconômico bastante heterogêneo, mas que, de forma geral, revela condições de infraestrutura urbana, domiciliares, de rendimento, escolaridade etc. similares às das áreas mais periféricas do município de Campos, o que tornou preocupante também a propagação do novo coronavírus nesses espaços. Outros estudos (ALMEIDA, 2020; HAESBAERT, 2020; LEIVA; SATHLER; ORRICO FILHO, 2020) também mostraram a complexidade da disseminação do vírus em áreas periféricas e de concentração da população pobre e trabalhadora.
Além disso, antes da pandemia, a ocorrência dos desastres relacionados à água fez com que o poder público municipal considerasse alguns espaços de Ururaí como áreas de risco. Mesmo após a implantação de um programa de reurbanização, como o Bairro Legal5, muitos problemas relacionados à infraestrutura urbana e às condições ambientais permanecem, até porque nem toda a localidade de Ururaí foi comtemplada, principalmente os que moram na área ribeirinha. Com o programa habitacional Morar Feliz6 da prefeitura, várias famílias foram removidas de Ururaí para outras áreas da cidade, justamente por estarem em áreas consideradas de risco. Por isso, a pesquisa foi realizada nessa localidade do município de Campos.
4 Mobilidade cotidiana e condições de trabalho em áreas de desastre: estudo em Ururaí – Campos/RJ no contexto da pandemia
Como nosso objetivo é tratar sobre as condições de mobilidade cotidiana em razão de trabalho, foi importante conhecer primeiramente as condições de trabalho desse grupo. Notamos que a inserção laboral mostra um bairro típico de ocupação da classe trabalhadora, o que, de certa forma, coincide com estudos anteriores sobre Ururaí (TAVARES et al., 2017). Entre os entrevistados, 12 estavam trabalhando e nove não estavam. Vale notar que, no contexto da pandemia, a própria relação de trabalho pareceu bastante complexa – alguns tinham perdido o trabalho há pouco tempo, outros já estavam desempregados antes da pandemia, outros tinham trabalho e estavam se deslocando, outros estavam trabalhando em casa ou aguardando orientações sobre a jornada de trabalho. Entre as ocupações dos informantes, havia auxiliar administrativo, auxiliar de educação, coordenador, estudante, fiscal de loja, gerente de restaurante, trabalhadores da limpeza e serviços domésticos, maquiadora, professora, recepcionista, técnica em enfermagem e vendedor.
Entre os que declararam estar trabalhando, a maioria estava efetivamente tendo que se deslocar por algum período para o trabalho e dois estavam fazendo trabalho remoto. Já entre os que não estavam trabalhando, três também manifestaram expressamente que não estavam trabalhando por causa da pandemia, pois perderam as oportunidades de trabalho. Entre os outros seis, havia situações diferenciadas, em outras perguntas foi possível notar que a pandemia também afetou as condições de reprodução social e a renda, seja no contexto familiar, seja porque as oportunidades foram restringidas. Observa-se então que a restrição da mobilidade ou a imposição da imobilidade levou à perda do trabalho ou à restrição de oportunidades para alguns.
A importância do trabalho apareceu como principal determinante para descumprir a máxima desse período que é o “fique em casa”. A necessidade de mover-se na cidade para trabalhar, mesmo com as recomendações de distanciamento social devido à pandemia, foi apontada por vários entrevistados. Alguns moradores7 disseram que a permanência no trabalho é essencial para continuar garantindo as condições de sobrevivência, embora tenham apontado as mudanças nas condições de trabalho.
Vânia (diarista) – Atualmente trabalho em uma casa apenas, por causa da Covid.
Carla (gerente de restaurante) – Não trabalho todo dia, porque o restaurante teve que fechar. Então no momento só abre para delivery, com muito menos funcionários. Só nos fins de semana que vou para fazer atendimento por telefone.
Pedro (auxiliar de educação) – Trabalho por determinação dos meus superiores.
Pode-se notar que a complexidade dialética entre mobilidade e imobilidade é marcante nesse período. “Ficar em casa” pode levar a uma série de problemas para as famílias, principalmente as residentes em áreas periféricas, que apresentam relações de vulnerabilidade em relação a outros espaços da cidade. Como apontado anteriormente, “(…) estar em casa não é mais estar sempre seguro (…)” (MARANDOLA JR., 2014, p. 14), remetendo ainda, nesse contexto, a outros tipos de insegurança. Embora não seja o objetivo específico deste trabalho, sabemos que as dimensões do ambiente ligadas às condições habitacionais e ao entorno dos domicílios também são elementos importantes para pensar esse contexto, uma vez que algumas moradias não possibilitam a manutenção do isolamento e distanciamento social, mesmo se as pessoas pudessem ficar em casa.
Simultaneamente, ter que sair também conduz a outros riscos com os quais os trabalhadores precisam lidar. Relatos como “eu tenho que trabalhar”, “não tenho como dizer não” e “determinação dos meus superiores” foram marcantes nas falas dos entrevistados, revelando o constrangimento ao qual são impostos, o que os leva a romper a permanência em casa e a mover-se numa cidade considerada ainda mais insegura, com riscos invisíveis.
Alguns tiveram flexibilização no formato e nos horários de trabalho, geralmente com a realização de trabalho remoto ou redução da carga horária diária ou menos dias de trabalho na semana. Vale notar que, para quem teve mudança na jornada de trabalho, estas não foram uma escolha do trabalhador, mas geralmente vinham do empregador, revelando que a margem de escolha e de ação para os trabalhadores, sobretudo os mais pobres, é restrita.
Para outros, não houve alteração na jornada de trabalho. Em certos casos, foi relatado até aumento da carga de trabalho, como no caso de uma professora que também trabalha na gestão escolar. Segundo ela, ao mesmo tempo em que realiza trabalho remoto, também precisa ir à escola e a alguns órgãos públicos para gerenciar as atividades da instituição. Para ela, “a jornada de trabalho até aumentou o dobro” (Maria, professora e gestora escolar). Outra trabalhadora, por atuar na área da saúde, também manifestou que segue trabalhando: “pela necessidade dos pacientes, pois sou da linha de frente” (Joana, técnica em enfermagem).
Entre os 21 entrevistados, dez declararam que não tiveram a renda afetada com a crise do coronavírus. Entre esses, há fiscal de loja, trabalhadora de limpeza, recepcionista, estudantes, professores e outros dois funcionários ligados à educação, como auxiliar e coordenador. Mas observamos que 11 pessoas tiveram a renda afetada com a pandemia, sendo algumas trabalhadoras da limpeza e serviços domésticos, maquiadora, gerente de restaurante, técnica em enfermagem, um auxiliar administrativo e um vendedor. Outros tiveram redução do rendimento porque realmente perderam o emprego. Entre alguns que estavam trabalhando, houve redução salarial devido à mudança na carga horária ou diminuição das oportunidades de trabalho. Alguns entrevistados que não tiveram a renda pessoal diretamente afetada, expressaram que no contexto familiar, a situação foi agravada.
Observamos que nove entrevistados estavam recebendo auxílio do governo. Entre esses, oito disseram que realmente tiveram a renda afetada com a pandemia, apenas uma pessoa disse não ter sido afetada, porque já estava desempregada antes da crise. Entre as 12 pessoas que não estavam recebendo auxílio, a maioria também declarou que a renda não havia sido afetada.
Com relação às condições de deslocamento, boa parte dos entrevistados relataram que o acesso ao sistema de mobilidade urbana a partir da localidade já não era satisfatório. Ainda assim, manifestaram a ocorrência de mudanças na forma de se deslocar, no geral para pior, principalmente pelos ônibus com horários irregulares e superlotados.
Para os 12 informantes que seguem trabalhando, a principal forma de transportar-se pela cidade é através do transporte coletivo, mencionado por sete entrevistados, seja por ônibus ou por vans. A bicicleta apareceu em segundo lugar entre os meios mais utilizados, sendo citada por quatro pessoas. O deslocamento a pé e o transporte por aplicativo foram citados duas vezes, já o uso de carro particular foi apontado apenas por uma pessoa.
Entre os dez trabalhadores que precisam se deslocar com frequência mesmo no contexto da pandemia, houve consideráveis mudanças nas condições de deslocamento. Ao questionarmos como foi essa mudança, seis deles manifestaram que houve uma piora no deslocamento por ônibus ou van devido à insuficiência de veículos, atrasos, superlotação e até mesmo a falta de higiene – que deveria ser considerada essencial na mobilidade em meio à crise de saúde pública. Para outros três trabalhadores, as mudanças se deram no sentido de estabelecer outro ritmo de deslocamento e/ou a usar outra forma de transporte – a pé, bicicleta ou carro. Apenas para uma pessoa não houve nenhuma mudança na forma de se deslocar no contexto da pandemia.
Como já apontado, as observações empíricas que contribuem para pensar as questões e relações suscitadas por este artigo se deram a partir de uma área com ocorrência de desastres relacionados à água, pelo histórico das inundações em Ururaí. Entre as 21 pessoas entrevistadas, 13 tiveram suas casas afetadas pelas enchentes8 que já ocorreram na localidade. Essas pessoas, ou seus familiares, amigos ou vizinhos, realmente tiveram que sair de casa e ir para abrigos em escolas ou igrejas, alguns foram para casa de parentes. A situação do desastre é lembrada como um momento difícil enfrentado pelas famílias.
Nesse tipo de olhar, a subjetividade do informante é importante para compreender os mecanismos que operam nas distintas situações, observamos que os moradores de áreas com ocorrência de desastres socioambientais apresentam uma vivência e percepção muito particular em relação à pandemia. A experiência pretérita com os desastres e as desigualdades vividas no cotidiano por essas pessoas afetam sua subjetividade e mesmo a forma como lidam com problemas tão complexos, como a pandemia.
É importante problematizar também que estamos comparando situações que apresentam em comum a gravidade e complexidade da situação (tratada como desastre ou tragédia, ou mesmo uma crise), mas que apresentam temporalidades distintas e dimensões distintas. A mediação depende ainda da memória dos entrevistados, sobretudo em relação aos desastres ambientais que remetem a um contexto passado. Quando trabalhamos com entrevistas que buscam narrativas ligadas à história de vida e trajetórias subjetivas, sabemos que “o entrevistado está sujeito a esquecimentos, confusões e omissões, como à idealização das histórias positivas e à obliteração das negativas – ou vice-versa. E há que se considerar a fabricação de histórias” (ALONSO, 2016, p. 15).
Assim, questionados sobre as condições de mobilidade nesses momentos adversos, para algumas pessoas, ao mesmo tempo em que a imobilidade pela permanência em casa é enfatizada como um fator positivo no contexto da pandemia em relação ao desastre (na pandemia é possível ficar em casa, com as inundações era preciso sair de casa), para outras, a imobilidade é um problema grave por restringir as oportunidades e condições para sobrevivência.
Débora (auxiliar de escritório e agente sanitária) – […] a pandemia só estamos isolados em casa, mas a gente não precisa sair de casa, não está uma correria, a gente tem onde se abrigar, não precisa correr de nada. Foi coisa de louco.
Pedro (auxiliar de educação) – A enchente foi pior, porque não tinha um local para ficar em casa como está acontecendo agora com a pandemia.
Entretanto, houve mais entrevistados que, mesmo já tendo experimentado a enchente, acham que as dificuldades na pandemia são maiores – nove pessoas. E, nesse sentido, o motivo mais citado é justamente a necessidade de isolamento e os problemas para se deslocar e trabalhar. Além disso, em meio aos aspectos ligados à mobilidade cotidiana, motivos como perda emocional, terror psicológico, enfrentamento de riscos também foram citados como problemas difíceis de lidar no contexto da pandemia.
Vânia (diarista) – Na pandemia está sendo pior. Na época da enchente, mesmo tendo que sair de casa, a gente tinha um abrigo, todo dia vinha um carro trazendo doações e ajuda. E nessa época da pandemia as pessoas se isolam e a ajuda não chega. Eu conseguia sair para trabalhar na época da enchente. Nesse sentido, a pandemia é pior.
Carla (gerente de restaurante) – No período da enchente eu entrava na água, a gente se locomovia até mesmo de barco. Mas agora é o ar né, aglomerações […].
Rose (dona de casa) – Na época da enchente foi perda material, mas durante a pandemia estou tendo perda emocional […].
Joana (técnica em enfermagem) – […] a pandemia traz um terror psicológico muito grande.
Luciano (vendedor) - “[…] a pandemia é um risco invisível”.
Para o grupo que já passou pelo enfrentamento da enchente em suas próprias casas, a maior parte (oito pessoas de 13) disse que não enfrentou dificuldades para se deslocar para o trabalho. O que foi apontado até como um ponto positivo em relação à pandemia. Embora tenha ocorrido dificuldades de sair de casa ou do abrigo em que estavam, a enchente não afetou a relação com o mundo do trabalho, considerado essencial para a sobrevivência.
Cleide (recepcionista) – A enchente foi pior, você ficar longe de casa é muito ruim. Na pandemia, mesmo você não podendo trabalhar, você está em casa. Eu conheço pessoas que não estão trabalhando, mas receberam auxílio do governo. A pandemia tem como prevenir, basta você ficar em casa e fazer tudo certinho, já na enchente não tem como prevenir.
Daniela (Auxiliar de Limpeza) – Pelo menos pra mim na enchente dava para trabalhar.
Pedro (auxiliar de educação) – [A enchente] não atrapalhou o deslocamento para o trabalho, mesmo morando em um abrigo eu conseguia ir trabalhar.
Apesar disso, alguns também apontaram que tiveram dificuldade para se deslocar no período da enchente, seja porque saíram de casa e tiveram que estabelecer uma rotina diferente para o trabalho, seja porque as rotas dos ônibus foram alteradas, ou ainda porque “(…) era muita água, não sabia o que era rio e o que era calçada. A correnteza era forte, começou a ter curto, saques/roubos, tivemos que ficar em casa para poder vigiar nossos pertences” (Carla, gerente de restaurante).
Entre os que não passaram pela experiência das enchentes também acham que o deslocamento no bairro e a mobilidade na cidade foram prejudicados, apontando a interdição de ruas, a mudança no itinerário dos ônibus, assim como os horários. Alguns chegaram a relatar a necessidade de usar barco para se deslocar pelo bairro, inclusive para trabalhar.
De todo modo, apesar da relação complexa, a restrição da mobilidade para o trabalho na pandemia se mostrou como algo problemático para as pessoas. É curioso que, mesmo já tendo a casa afetada e sabendo de toda a dificuldade enfrentada no contexto das inundações, vários moradores acham que a pandemia está sendo pior devido à duração do problema, ao risco de morte e às dificuldades de trabalho e de deslocamento.
Já a inundação, por fazer parte da experiência individual e coletiva, permite a utilização de recursos e estratégias conhecidos e maior capacidade de resposta para enfrentamento dos danos e impactos sofridos. Assim, as falas sugerem que os moradores de localidades atingidas pelos desastres adquirem certa capacidade de resistir, absorver e buscar se recuperar da situação adversa conhecida, preservando e restaurando sua estrutura básica. Alguns autores chamam esse esforço de recomposição de resiliência, que dependeria de uma “capacidade acumulada para tal regeneração” (MARANDOLA; HOGAN, 2009, p. 166).
Segundo Prado (2013), o conceito de resiliência é usado para descrever a capacidade de um sistema em absorver distúrbios e ainda conseguir manter suas funções e estruturas básicas, mesmo que numa forma alterada. Assim, uma comunidade resiliente é aquela que resiste à exposição aos riscos e se adapta para alcançar e manter um nível aceitável de funcionamento e estrutura, tornando-se mais preparada para enfrentar situações críticas (VENTURATO et al., 2014).
Realmente é possível observar esse tipo de comportamento em áreas de desastres, pois outros estudos na localidade em destaque também mostraram isso, como o fato de as pessoas passarem a fazer casa de dois andares já prevendo o enfrentamento das inundações. Entretanto, embora os sistemas de apoio social – familiares, amigos, vizinhos e outros grupos – sejam cruciais para a recuperação (VIANA et al., 2014, p. 118), esse tipo de abordagem não pode ocultar o necessário papel do poder público e da sociedade de modo geral (como outros grupos sociais de outras áreas da cidade) nas ações necessárias para mitigar os problemas enfrentados nessas áreas, seja em situações de desastre, seja no contexto da pandemia, como políticas públicas de infraestrutura urbana, com habitação adequada, saneamento, esgotamento sanitário, pavimentação, mobilidade entre outros.
No que tange às condições e possíveis ações em torno da mobilidade cotidiana para o trabalho, vemos que a mudança na rotina e no modo de deslocamento tem sido marcante neste período, colocando demandas essenciais nessa área. Para Leiva, Sathler, Orrico Filho (2020), “(…) a pandemia e as práticas de distanciamento físico e social alteram os padrões de mobilidade intraurbana” (p. 13). Especialmente o meio utilizado para se deslocar tem sido alvo de discussão de diversos especialistas. Ao mesmo tempo que esse contexto poderia promover políticas públicas de mobilidade voltadas para potencializar formas de movimento mais seguras, eficientes, agradáveis e menos poluentes e desgastantes, como o transporte ativo – pedalar e caminhar (ANDRADE et al., 2016), também há uma preocupação por parte de estudiosos da cidade de que soluções individuais ganhem proeminência, como o transporte motorizado individual, pois aqueles que têm acesso a tal recurso se sentiriam mais seguros em mover-se dessa forma, visando diminuir o risco de contaminação pelo vírus (KUEBLER, 2020; LINDAU et al., 2020).
Sem políticas de mobilidade pensadas para gerar formas de se deslocar mais seguras, mas que também sejam favoráveis para cidades mais justas e sustentáveis, as consequências da pandemia para o deslocamento, sobretudo para a população mais pobre, podem ser ainda mais problemáticas.
Para Schlickmann (2020), esse momento seria uma oportunidade para que os municípios planejassem intervenções urbanísticas na cidade, visando essas novas demandas. Entretanto, com o foco voltado para as ações na área da saúde, dificilmente os governos municipais irão se deter nesse tipo de intervenção. Experiências de algumas cidades que têm investido em novas formas de mobilidade deveriam ser mais estudadas e difundidas (KUEBLER, 2020).
5 Considerações finais
A pandemia do novo coronavírus tem permitido aprofundar reflexões sobre os riscos da sociedade contemporânea especialmente sobre fenômenos que são globais em seu alcance, mas que atingem de modo distinto os grupos populacionais, dependendo do lugar onde vivem e das condições sociais, econômicas e ambientais em que estão inseridos. O levantamento exploratório realizado na pesquisa e explicitado neste texto mostra que os riscos são produzidos globalmente, mas as condições de contágio e enfrentamento da doença são consideradas na escala local, recaindo seus efeitos para os indivíduos e famílias.
Na localidade em estudo, um bairro periférico típico de classe trabalhadora, observa-se que os problemas urbanos e ambientais preexistentes tornaram o contexto da pandemia ainda mais complexo. Entre a necessidade de ficar em casa e sair para trabalhar nota-se que muitas pessoas, sobretudo as mais pobres, enfrentam um complicado dilema, são riscos distintos a serem enfrentados por uma população que já lida com a noção de risco por outros fatores ligados ao ambiente em que vivem. A partir da hipótese colocada sobre as mudanças na mobilidade cotidiana, nota-se que as dificuldades para a mobilidade, sobretudo para o trabalho, já eram recorrentes na localidade e, embora a recomendação seja de evitar o deslocamento, para aqueles que precisam sair de casa, os problemas se agravaram, tanto pelas condições de ligadas à oferta de transporte, quanto pelos riscos a serem enfrentados.
Ao analisar as condições de deslocamento na pandemia em uma área com ocorrência de desastres, observa-se que para aqueles que já enfrentaram inundações em suas próprias residências, a pandemia parece estar sendo uma situação adversa mais difícil do que o desastre, principalmente pela dificuldade de sair para trabalhar, ao menos com os informantes investigados e até o período em que a pesquisa foi feita. O desastre acabou se tornando um processo conhecido para algumas famílias, para o qual existem estratégias de enfrentamento que fazem parte do cotidiano da comunidade. Para algumas pessoas que não enfrentaram a inundação, o contexto da pandemia é problemático, colocando outros tipos de risco, mais invisíveis, mas o desastre é apontado como uma situação mais difícil a ser enfrentada.
De qualquer forma, seja em um contexto ou em outro, a necessidade de atuação do poder público em diferentes escalas se torna fundamental. No que se refere à mobilidade cotidiana para o trabalho, aspecto fundamental para garantir as condições de reprodução social para muitas famílias, apenas políticas restritivas não são suficientes no contexto de uma pandemia, pois é preciso aliar ações que promovam transferências de recursos a formas mais seguras de se deslocar, para aqueles que realmente necessitam.
É preciso compreender que as respostas aos riscos contemporâneos precisam ser abrangentes e articuladas entre diferentes atores e escalas, tanto pela sociedade como pelos governos, sejam locais, nacionais e mesmo por organismos internacionais, com políticas públicas para gerenciamento de risco e enfrentamento de desastres, relacionados a questões ambientais, sociais e de saúde pública. Concentrar a reflexão nessas áreas permite investigar mais a fundo a sobreposição das desigualdades urbanas, sociais e ambientais existentes nesses espaços, assim como as formas de enfrentamento não apenas dos riscos à saúde, mas também dos riscos sociais e ambientais.
Como estudos complementares à reflexão aqui suscitada, para além da questão da mobilidade, entendemos ser importante analisar também as condições de habitação, a configuração da casa em suas dimensões estruturais e usos atribuídos, assim como o entorno dos domicílios, uma vez que também podem expressar as desigualdades na distribuição dos riscos, uma vez que diversas moradias não apresentam um ambiente favorável ao isolamento ou mesmo ao distanciamento social. Sendo assim, o “ficar em casa” pode remeter a outros riscos, que também devem ser considerados.
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Notas
Notas de autor
Información adicional
COMO CITAR (ABNT): TAVARES, É.; VALE, E. A. D.; FIRMO, C. P. Mobilidade cotidiana em tempos de incertezas: um estudo em áreas de desastres ambientais. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 1, p. 351-371, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p351-371. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15884.
COMO CITAR (APA): Tavares, É., Vale, E. A. D. & Firmo, C. P. (2021). Mobilidade cotidiana em tempos de incertezas: um estudo em áreas de desastres ambientais. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(1), 351-371. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p351-371.