DOSSIÊ TEMÁTICO: "RISCOS E DESASTRES SOCIOAMBIENTAIS"
Vozes dos atingidos por desastres: experiências de organização no estado do Rio de Janeiro
Voices of those affected by disasters: experiences of organization in the state of Rio de Janeiro
Voces de afectados por desastres: experiencias de organización en el estado de Río de Janeiro
Vozes dos atingidos por desastres: experiências de organização no estado do Rio de Janeiro
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 23, núm. 1, 2021
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 25 Septiembre 2020
Aprobación: 28 Febrero 2021
Resumo: Partindo de uma compreensão dos desastres como fenômenos processuais e socio-históricos, que desencadeiam e são provocados por múltiplos fatores, o presente artigo irá apresentar uma síntese sobre o processo de formação e as lutas protagonizadas por três Movimentos em três distintos municípios do estado do Rio de Janeiro que são atravessados por diferentes tipos de desastres ou por discursos de “riscos” de desastres. A metodologia adotada na elaboração deste artigo se baseou na revisão de literatura sobre o tema e na sistematização dos relatos que as representantes desses Movimentos e também autoras deste texto realizaram no II Seminário Internacional de Riscos e Desastres, em 2019, intencionando mostrar as formas através das quais processos de desastres se materializam em diferentes espaços, além de dar visibilidade às lutas desses movimentos, que estão nas regiões serrana e norte fluminense do estado. As narrativas reforçam a construção e permanência dos desastres – no espaço e no tempo – e desvendam as ações e omissões praticadas por diferentes agentes que acabam por fomentar tais processos.
Palavras-chave: Atingidos por desastres, Organização popular, Região Serrana, Norte Fluminense.
Abstract: Starting from an understanding of disasters as procedural and socio-historical phenomena, which trigger and are caused by multiple factors, this article will present a synthesis about the formation process and the struggles carried out by three movements in three different cities in the state of Rio de Janeiro that are crossed by different types of disasters or by speeches of “risks” of disasters. The methodology adopted in the elaboration of this article was based on the literature review on the theme and on the systematization of the reports that the representatives of these Movements and also authors of this text made at the II International Seminar on Risks and Disasters, in 2019, intending to show the ways through which disaster processes materialize in different spaces, in addition to giving visibility to the struggles of these movements, which are in the Serrana and Norte Fluminense region. The narratives reinforce the construction and permanence of disasters - in space and time - and unveil the actions and omissions practiced by different agents that end up promoting such processes.
Keywords: Affected by disasters, Popular Organization, Região Serrana, Norte Fluminense.
Resumen: A partir de la comprensión de los desastres como fenómenos procedimentales y sociohistóricos, desencadenantes y provocados por múltiples factores, este artículo presentará una síntesis sobre el proceso de formación y las luchas que llevan a cabo tres Movimientos en tres municipios distintos del estado de Río de Janeiro que son atravesados por diferentes tipos de desastres o por discursos de “riesgos” de desastres. La metodología adoptada en la elaboración de este artículo se basó en la revisión de la literatura sobre el tema y en la sistematización de los informes que los representantes de estos Movimientos y también autores de este texto realizaron en el II Seminario Internacional sobre Riesgos y Desastres, en 2019, con la intención de mostrar las formas en que los procesos de desastre se materializan en diferentes espacios, además de dar visibilidad a las luchas de estos movimientos, que se encuentran en la regiones Serrana y Norte Fluminense del estado. Las narrativas refuerzan la construcción y permanencia de los desastres - en el espacio y el tiempo - y desvelan las acciones y omisiones practicadas por diferentes agentes que terminan impulsando dichos procesos.
Palabras clave: Afectados por desastres, Organización Popular, Região Serrana, Norte Fluminense.
1 Introdução
Os desastres, seja do ponto de vista de sua ocorrência concreta ou do ponto de vista da análise teórica, comportam mais elementos do que à primeira vista daríamos conta de identificar. Sua compreensão enquanto processo – ou seja, como um fenômeno que é construído, no tempo e no espaço, a partir da combinação de ações ou omissões coletivas ou individuais e de um modo de viver e de (re)produzir – ilumina a percepção de alguns desses elementos, sem os quais são reduzidos a eventualidades ou emergências provocadas pela ocorrência de fenômenos físicos, em sua maioria, naturais. No arcabouço desses “outros elementos” a serem considerados estão distintos projetos políticos e econômicos, formas de sociabilidade, conflitos diversos, questões de raça, classe e gênero e organização popular, para indicar alguns.
Partindo dessa afirmativa, se constrói o presente artigo, no qual três das autoras, representantes de três grupos situados em três diferentes cidades no Estado do Rio de Janeiro, que compartilham uma trajetória de lutas em defesa do direito à vida, à segurança e à moradia digna diante de distintos processos socioambientais que culminaram em ameaças a esses direitos, relatam suas experiências, os desafios e as conquistas desses movimentos.
Essas experiências1 foram reunidas e compartilhadas na mesa intitulada “Vozes dos atingidos por desastres” durante a realização do II Seminário Internacional de Riscos e Desastres, em 2019, intencionando mostrar as formas através das quais tais processos se materializam em diferentes espaços, e, principalmente, dar visibilidade às lutas desses movimentos, que estão na Região Serrana e Norte Fluminense do estado, nos municípios de Petrópolis, São João da Barra e Campos dos Goytacazes.
A metodologia adotada na elaboração deste artigo envolveu revisão de literatura e a sistematização, nos itens 2.1, 2.2 e 2.3, do conteúdo apresentado na ocasião do evento citado. Seu objetivo é ilustrar como alguns conflitos que normalmente ficam latentes acabam por vir à cena de forma mais explícita em contextos de desastres, como é o caso das disputas pelo território e da luta pela moradia, assim como contribuir para registrar a memória das lutas e resistências dos grupos em tela.
Todavia, para além do objetivo principal citado anteriormente, a discussão realizada neste artigo traz para debate e aprofunda outras questões, entre as quais a processualidade, a permanência e o alcance dos desastres quando, para a grande mídia ou para aqueles que não são atingidos, eles já são vistos e tratados como um fenômeno superado.
2 Desastres e luta por moradia no estado do Rio de Janeiro
O estado do Rio de Janeiro, conhecido por suas belas paisagens, carrega também a característica de ser um território marcado pela ocorrência de variados tipos de desastres, que emergem a partir de movimentos de massa, enxurradas e alagamentos, e também o que registra mais mortes em decorrência deles, de acordo com o Atlas Brasileiro de Desastres Naturais (ATLAS…, 2013), que analisou os desastres ocorridos no país entre 1991 e 2012. O mesmo documento indica que o estado é o terceiro da região e do país onde se identificaram, no período, as maiores ocorrências de movimentos de massa, e também um grande volume de alagamentos, favorecidos em grande medida pelos processos de urbanização desordenados. A região norte do estado estaria entre as que registram ainda a maior frequência de desastres no país.
Dentre as explicações para esse histórico estão a densidade demográfica, a forma de ocupação desordenada em áreas ditas de “risco”, e elementos climáticos, tais como as chuvas intensas e a localização do estado em uma área de transição entre diferentes climas (ATLAS…, 2013).
Somando-se ao exposto, a população fluminense, especialmente a do norte do estado, também lida com as contradições resultantes do investimento em atividades econômicas que, com a promessa de desenvolver a região e gerar trabalho e renda, acabaram por causar impactos de grande magnitude sobre o meio ambiente e aprofundar a concentração de renda e as desigualdades sociais. É o caso das atividades de produção e exploração de petróleo, a partir da década de 1970, assumindo importância até então ocupada pelas atividades ligadas à produção sucroalcooleira, e a instalação do Complexo Industrial e Portuário do Açu (CRUZ, 2003, 2015).
Essas informações buscam ilustrar o cenário e as condições em que formas de organização popular se impõem como uma via necessária de enfrentamento e resistência a projetos que, sob o discurso de beneficiar igualmente a toda população, alimentam contradições, conflitos e causam prejuízos para uma parcela que, por vezes, encontra-se também excluída dos espaços decisórios e de poder, ainda que essas decisões e o próprio exercício do poder incidam em dimensões essenciais das suas vidas.
Nesse sentido é que, nos itens que se seguem, as representantes do Movimento do Aluguel Social e Moradia de Petrópolis, na Região Serrana, da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida Humana – SOS Atafona, e da Associação de Moradores da Margem da Linha do Rio, na região norte do estado, três das quais também autoras deste artigo, realizam uma exposição sobre a formação, as pautas e o modo de organização desses grupos que compõem, como um desdobramento e aprofundamento da apresentação realizada no evento já mencionado.
2.1 Movimento do Aluguel Social e Moradia de Petrópolis
Petrópolis, distante 68 km da capital do estado, contava com uma população de aproximadamente 295.917 pessoas de acordo com o censo de 2010. Os dados do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil situam-na como uma das cidades com maior IDH do estado do Rio de Janeiro, sobretudo se avaliadas as dimensões de longevidade e renda. Buscas simples na internet dão conta de apresentar uma cidade turística, comercial, atrativa e lembrada como local escolhido, no período imperial, para abrigar a corte. Com outros municípios2 forma a Região Serrana, popularmente conhecida pelo clima e pela paisagem.
Desde janeiro de 2011, no entanto, a Região Serrana e a cidade de Petrópolis começaram a ser lembradas não apenas por seus atrativos ecológicos e atividades comerciais, mas também por ser o espaço onde a soma de um fenômeno meteorológico, características ambientais e decisões humanas se encontraram, materializando um desastre de grande magnitude, até hoje considerado uma das maiores catástrofes do país3. Os trabalhos de Valencio, Siena, Marchezini (2011) e Busch e Amorim (2011) explicam que a intensa precipitação pluviométrica em contato com um solo formado por “rochas com camada fina de terra e coberta por Mata Atlântica, com alta declividade” gera solos mais instáveis e propensos a deslizamentos; e que somado a isso tem-se o histórico de desmatamento e ocupações irregulares ao longo de encostas e margens dos rios que teriam favorecido os trágicos acontecimentos na região em 2011.
Rememorar as características ambientais da região e os eventos meteorológicos ocorridos na data serve para ilustrar a dimensão socio-histórica de um desastre e desse especialmente. Em primeiro lugar, as proporções do evento se expressam nos números de mortos, desaparecidos, desabrigados e desalojados – segundo relatório do Banco Mundial foram “905 mortos, mais de 300 mil pessoas afetadas e 4,78 bilhões de reais em perdas e danos” (BANCO MUNDIAL, 2012 apud DUTRA, 2018, p. 147); não fosse isso, apesar do impacto das chuvas, o desdobramento seria outro.
Em segundo lugar, trabalhos como de Busch e Amorim (2011) apontam que desde 2005 se iniciou na cidade de Petrópolis a construção de um planejamento participativo voltado para o desenvolvimento sustentável e desde 2010, pelo menos, um mapeamento de áreas consideradas de risco no município já existia, no entanto esbarraram na falta de recursos, na dificuldade de mobilização da população e na ausência de planejamento para resolver os problemas identificados.
Passados quatro anos do ocorrido, mais de 4.000 famílias ainda vivenciavam o desastre: algumas na dependência do aluguel social ofertado pelo município e no aguardo de novas moradias, outras sem o benefício, apesar dos laudos de interdição e demolição de suas casas. Foi em decorrência dessa situação que em Petrópolis se organizou o Movimento do Aluguel Social e Moradia.
O Movimento atualmente está articulado a movimentos de outros municípios do estado que compartilham dessa pauta e através de sua organização têm conseguido trocar experiências e fortalecer a luta em espaços distintos, inclusive nos espaços da política institucional, como é o caso da Comissão das Vítimas das Tragédias da Região Serrana que conta também com lideranças de movimentos de outras cidades da região, como Teresópolis, São José do Vale do Rio Preto, Areal e Sumidouro.
A história da formação do município e a cultura local inicialmente impuseram desafios para essa organização colocando para os membros do movimento a necessidade de adequar a linguagem e as pautas à realidade local, o que garantiu legitimidade para o movimento e garantiu que o direito das famílias ao acesso à moradia fosse conquistado: em julho de 2020 mais de 300 famílias que fazem parte do movimento receberam suas casas no conjunto habitacional Vicenzo Rivetti4, que por anos esteve parado sem cumprir com a função da moradia.
2.2 Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida Humana – SOS Atafona
Ao norte do estado do Rio de Janeiro, no distrito de Atafona, outro movimento se organizou a partir do impacto de um processo aparentemente natural, mas não só. Atafona está localizada no município de São João da Barra, tem uma população estimada em 36.423 pessoas – projeção para o ano de 2020, segundo o IBGE (2020), e desde sua elevação à categoria de Vila, ainda no século XVII tinha na atividade pesqueira uma característica marcante.
Fontes oficiais sugerem que a prosperidade alcançada pelo município a partir de 1970 deve-se à descoberta do petróleo na região e ao beneficiamento com os royalties, antes de se tornar, ele mesmo produtor, nos anos 2000. Além do petróleo, a mesma fonte apontava, anos atrás, que a instalação do Complexo Logístico Industrial e Portuário do Açu levaria ainda mais desenvolvimento para o município e para a região como um todo.
Antes, porém, de ser notada por sediar o referido empreendimento – cujas consequências são questionáveis, uma vez que sua implementação desencadeou e criou novos conflitos em torno das desapropriações e reassentamentos de moradores da localidade, e provocou impactos ambientais de grande magnitude, como a erosão na praia (FIOCRUZ, 2010; SOFFIATI, 2015) – o município, e especialmente o distrito de Atafona, vinha sendo notado pelo processo de erosão marinha, explicado pela junção de múltiplos fatores, alguns naturais, como os ventos, as marés, as ondas, e outros antrópicos, como as barragens construídas no rio Paraíba do Sul que “provocaram a diminuição da quantidade de água e de sedimentos que seguem para o litoral” (PESSANHA, 2011 apud AZEREDO, 2018, p. 168).
Esse processo, observado pelo menos desde os anos de 1975, se traduz no avanço do mar sobre as casas, desaparecendo com elas, com os comércios, afetando as atividades econômicas locais e apagando histórias e locais culturalmente marcantes, caso da Ilha da Convivência, a 850 metros do Pontal que foi residência de pescadores, chegando a reunir 400 famílias, mesmo com a água potável chegando através de barcos, e sem luz elétrica.
Esse cenário levou moradores assíduos, veranistas, comunidade pesqueira e toda a população tradicional a criar, em 2015, o Movimento SOS Atafona, com a finalidade de lutar pela causa do avanço do mar do balneário de Atafona e balneabilidade da foz do rio Paraíba do Sul sendo espaço aconchegante às demandas e anseios de toda a comunidade que ali habita e sofre há 50 anos com a destruição em massa. Atualmente o Movimento tem caráter de pessoa jurídica de direito privado e tem como objetivos:
promover, estimular e apoiar ações e trabalhos em defesa, conservação, preservação e recuperação do meio ambiente, do patrimônio paisagístico e dos bens e valores culturais, prioritariamente no âmbito da Mata Atlântica e Ecossistemas Associados;
promover, incentivar e apoiar a divulgação do patrimônio natural, paisagístico e cultural;
realizar, incentivar e custear pesquisas de caráter científico sobre preservação, conservação, uso e manejo sustentável dos recursos naturais, incluindo fauna, flora, água, solo e ar;
estimular e exigir das autoridades federais, estaduais e municipais, instituições públicas e privadas, pessoas físicas e jurídicas, a adoção de medidas práticas que visem à preservação, conservação, recuperação e manejo sustentável dos recursos naturais e do meio ambiente, bem como ao controle de todas as formas de poluição e degradação;
realizar e divulgar pesquisas e estudos realizados no país e no exterior, referentes à preservação, conservação, recuperação e manejo sustentável dos recursos naturais e do meio ambiente.
O SOS Atafona vem pleiteando junto aos órgãos responsáveis, além de participação efetiva em reuniões no Ministério Público Federal, audiências públicas, a fim de uma solução e como forma de conscientizar a todos que ali habitam de que é necessária a preservação de suas histórias e tradições. Para além, busca por meio de suas ações, a remoção das areias tidas como “dunas”, que por si só apresenta grande impacto aos moradores de sua proximidade, sobretudo no que tange ao direito de ir e vir, além dos prejuízos já causados em residências, e o acesso ao mar. O campo de atuação visa ao caráter socioambiental e ecológico, proteção às comunidades tradicionais e os desabrigados, amplamente protegidas pela Constituição Federal, sem fins econômicos. A finalidade é trabalhar pela defesa, preservação, recuperação e manejo sustentável do meio ambiente, dos bens e valores culturais, objetivando a melhoria da qualidade de vida humana.
2.3 Associação de Moradores da Margem da Linha do Rio
Campos dos Goytacazes, também ao norte do estado do Rio de Janeiro, apresentava em 2019 uma população estimada em 507.548 pessoas. Como uma cidade de grande porte e com número elevado de habitantes apresenta, evidentemente, muitos problemas que decorrem do seu processo de formação socio-histórica, de decisões políticas, das atividades econômicas predominantes, e de como essas dimensões se articulam. Dentre esses problemas estão o acesso a serviços de saúde e assistência social, educação, transporte e moradia, como em muitos municípios brasileiros.
As características geográficas da cidade somadas a décadas de escolhas urbanísticas questionáveis resultaram ainda em uma combinação capaz de fomentar ou mesmo criar condições para desencadeamento de desastres ambientais, como as inundações frequentes que ocorrem em diferentes localidades do município. Tavares et al. (2017) analisando a relação entre política urbana e inundações na cidade lembram que no histórico de povoamento desse território constam a ocupação de planícies de inundação e um planejamento que envolveu a “construção excessiva de diques, que tinham uma dupla função: na área urbana, de proteger a cidade e, na área rural, de ampliar as áreas de fronteira agropecuária e protegê-las das inundações” (2017, p. 13).
As inundações frequentes, embora negadas e tratadas a cada ocorrência como “atípicas”, e o deficit habitacional compuseram a retórica dos recentes reassentamentos no município. A partir de 2008, através do Programa Morar Feliz, a prefeitura de Campos promoveu a criação de novos bairros e de diversos conjuntos habitacionais com a justificativa de levar as famílias para áreas seguras, longe de “beira de rios, lagos e lagoas, e rodovias e ferrovias” que representariam riscos (TAVARES et al., 2017, p. 13). Os desdobramentos desses processos foram analisados e estão registrados em diferentes trabalhos (FARIA, POHLMANN, 2015; MENDES, 2015; MENDES, GOMES, SIQUEIRA, 2014).
Aqui interessa destacar que, apesar de necessário, por suprir parte do deficit habitacional e buscar garantir moradia digna para um número considerável de famílias5, o modo através do qual o Programa foi executado colocou uma série de novas questões, tais como a distância dos locais de trabalho e estudo, o rompimento com as relações de vizinhança e familiares estabelecidas, a ausência da população no planejamento e na tomada de decisões que lhe diziam respeito, bem como os interesses por trás dessa política habitacional.
No ano de 2013 a Prefeitura Municipal deu início à segunda etapa do citado Programa que, então, deveria contemplar com novas moradias, em novas localidades, as famílias também residentes na comunidade da Margem da Linha do Rio6. Esse processo, no entanto, mobilizou os moradores em torno de questionar o interesse no reassentamento, uma vez que não se enquadravam no que parecia ser o principal argumento em favor dos reassentamentos que era a residência em “área de risco”. Segundo o poder público municipal, o risco residia no fato de as moradias estarem localizadas às margens de uma linha férrea, no entanto há anos a referida linha está desativada. Na medida em que esse argumento não se sustentou, recorreram a outros, igualmente desmontados a partir da organização comunitária e das articulações que esta estabeleceu no sentido de construir instrumentos na defesa de seu direito à moradia.
A Associação de Moradores, com apoio das universidades públicas do município7, Defensoria Pública, instituição como o Centro Juvenil São Pedro, entre outros apoiadores, conseguiu garantir uma audiência pública com representantes do governo que buscavam legitimar as remoções para contestar os argumentos e apontar outras soluções e alternativas que realmente se conectassem com os interesses dos residentes na comunidade.
Esse processo não se deu sem conflitos – alguns moradores se colocaram em defesa da iniciativa do poder público; uma parte foi espontaneamente para os novos conjuntos habitacionais do Morar Feliz; outros foram pela pressão simbólica de se verem sem os vizinhos, com as casas vazias sendo demolidas. Outra parte da comunidade resistiu; organizou protestos; fechou a principal rodovia que corta a cidade; passou a ocupar o Conselho de Assistência Social municipal e por fim conseguiu uma nova audiência onde ficou determinado que o governo não poderia dar continuidade às remoções.
A Comunidade da Margem da Linha não se situa entre aquelas nas quais é possível lançar mão do discurso do risco associado ao ambiente como justificativa para as remoções. Valencio (2009) lembra que por muito tempo, no Brasil, recorreu-se ao termo “área carente” para se referir a territórios e grupos deles ocupantes que não eram atendidos pelo Estado em suas diferentes necessidades e que esse termo foi dando lugar à noção de “área de risco”, em um movimento que envolve a resistência e persistência dos grupos em dar sentido e criar pertencimento com o lugar no qual puderam se territorializar, e à necessidade de criar um mecanismo legítimo de contestação dessa territorialização.
As “áreas de risco”, definidas através de mapas e outras representações cartográficas, minam os espaços e as possibilidades de contestação;
sob uma narrativa de compromisso com o valor maior da vida humana, se procede a uma cartografização da cidade que descarta a compreensão dos fatores de ameaça no terreno de uma dimensão socio-histórica mais abrangente e relacional. O deslocamento involuntário dos moradores da área de risco dá-se na desconsideração dos vínculos desses com sua moradia, relações e hábitos espacializados, isto é, desacoplando bruscamente as pessoas de suas coisas e de seu meio. Obscurece-se, por decorrência, o viés político no qual o poder público opta municiar-se por uma dada interpretação espacial da realidade local. O mapa de risco, cuja feitura e análise são de responsabilidade preponderante de peritos da área de exatas (como engenheiros, geólogos e afins), se apresenta como uma ferramenta conveniente para justificar, na agenda dos investimentos públicos, que o Estado priorize os sujeitos cuja territorialização seja consentida. Destituem-se os demais da possibilidade de exercitar uma figuração em que se reconheça a plausibilidade de suas demandas (VALENCIO, 2009, p. 35).
No caso da Margem da Linha é emblemático que o mesmo Estado que alega o risco da moradia para aqueles que há anos ocupam aquele espaço8, desprovidos de tudo, não veja problema na implantação de outros tipos de investimento na mesma localidade, a exemplo de um shopping, edifícios pertencentes a redes hoteleiras, e condomínios de luxo, como atualmente se vê, o que demonstra que o real interesse com as remoções não passa pela defesa da segurança dos moradores, mas pela especulação imobiliária e por empreendimentos e um projeto de cidade do qual a comunidade destoa.
3 Considerações finais
Parte da história de formação, pautas e conquistas obtidas pelos movimentos narrados neste artigo servem para registrar a sua organização e as contribuições de suas integrantes no II Seminário Internacional de Riscos de Desastres. Essa produção, evidentemente, não dá conta de explorar de modo aprofundado e cronológico todas as questões que perpassam a construção dos desastres nos referidos territórios e a vivência experimentada por aqueles que então passaram a se organizar em torno de pressionar o espaço público para garantir suas demandas, todavia indica alguns elementos que perpassam tais experiências, bem como desdobramentos, trabalhos e temas que estão presentes no contexto, mas nem sempre diretamente indicados, como as noções de desenvolvimento, os discursos em torno do “risco” ou o papel de gênero ocultado nos debates, embora exercido em grande medida por mulheres, ainda mais quando relacionados à questão da moradia, conforme aborda Silva (2017).
Outro ponto a ser observado é que o conteúdo abordado neste artigo, referente ao contexto de formação dos Movimentos e suas pautas, dão significado para o que tratamos como processualidade e permanência do desastre, uma vez que para quem reside distante desses territórios ou, ao menos, em outras condições socioeconômicas onde a territorialização e o sentido da moradia se percebem de outra forma, deixados de ser acompanhados e exaustivamente explorados pela grande mídia dá-se por encerrado o desastre, ao passo que para os atingidos é uma luta permanente, em torno da reconstrução das casas ou acesso a novas moradias, quando não a luta por permanência no território já ocupado lembrando ao poder público que sua tarefa é proporcionar aos habitantes os equipamentos e serviços públicos necessários.
Na ausência dessas ações por parte do Estado, que deveria ser o principal promotor, essas e outras organizações se formam, ocupam o espaço público e institucional, deixando de ser agentes passivos para se tornarem agentes ativos na produção da cidade e do território que querem. Os três grupos apresentados aqui de forma sucinta e seus integrantes acabam por se envolver com outras pautas, e suas demandas, inicialmente centradas na defesa da moradia, têm se desdobrado em articulações e ações que contemplam interesses não só dos atingidos por desastres, como também dos atingidos por investimentos, políticas e projetos excludentes e favorecedores do grande capital.
É digno de nota, ainda, que esses grupos são representados formalmente por três mulheres, na contramão da invisibilidade que as mulheres, sendo maioria da população brasileira, ainda têm nos espaços públicos, e da sua negação enquanto sujeitos políticos, apesar de assumirem diferentes posições de trabalho e tarefas essenciais para a reprodução social (SILVA, 2017). Esses grupos têm se formado politicamente e inspirado outros movimentos e grupos na direção de instrumentalizarem suas demandas a despeito das frequentes tentativas de afastá-los e negar seus direitos em nome do capital e do interesse privado.
Referências
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Notas
Notas de autor
Información adicional
COMO CITAR (ABNT): BERNARDO, A. N. et al. Vozes dos atingidos por desastres: experiências de organização no estado do Rio de Janeiro. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 1, p. 201-212, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p201-212. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15886.
COMO CITAR (APA): Bernardo, A. N., Ramos, C. R. A., Monteiro, C. G. & Ammar, V. V. C. (2021). Vozes dos atingidos por desastres: experiências de organização no estado do Rio de Janeiro. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(1), 201-212. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p201-212.