DOSSIÊ TEMÁTICO: VIOLÊNCIA DE ESTADO E POLÍTICA SOCIAL: ENTRE O APARATO ASSISTENCIAL E A CRIMINALIZAÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL

Pandemia e violência

Pandemic and violence

Pandemia y violencia

Mauro Luís Iasi 1
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil

Pandemia e violência

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, pp. 655-666, 2020

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2020 pelos Autores.

Recepción: 02 Octubre 2020

Aprobación: 10 Octubre 2020

Resumo: As dimensões da violência e da pandemia se encontram num terreno histórico de pleno desenvolvimento de relações reificadoras, alterando nossa atitude perante a morte, produzindo um estranhamento e um anestesiamento das consciências diante de diferentes formas de manifestação da violência: subjetiva, simbólica e sistêmica. A particularidade da formação social e histórica brasileira, com o esgotamento da Estratégia Democrática e popular e sua linha de conciliação de classes, se manifesta em uma inflexão conservadora marcada pelo irracionalismo e a agudização da polarização social que leva a um país fraturado. As bases históricas do capitalismo dependente e da forma política autocrática são os fundamentos para compreender nossa atitude diante da pandemia e a violência que nela se expressa.

Palavras-chave: Violência, Pandemia, Ideologia, Manipulação/catarse, Reificação.

Abstract: The dimensions of violence and the pandemic are in a historical terrain of full development of reifying relationships, changing our attitude towards death, producing a strangeness and anesthetizing consciences in the face of different forms of violence: subjective, symbolic, and systemic. The particularity of the Brazilian social and historical formation, with the exhaustion of the democratic and popular strategy, along with its course of class conciliation, manifests itself in a conservative tone marked by irrationalism and the worsening of the social polarization that leads to a fractured country. The historical bases of dependent capitalism and the autocratic political form are the foundations for the understanding of our attitude towards the pandemic and the violence that is expressed in it.

Keywords: Violence, Pandemic, Ideology, Manipulation/catharsis, Reification.

Resumen: Las dimensiones de la violencia y la pandemia se encuentran en un terreno histórico de pleno desarrollo de relaciones cosificantes, cambiando nuestra actitud ante la muerte, produciendo extrañeza y anestesiando las conciencias frente a diferentes formas de violencia: subjetiva, simbólica y sistémica. La particularidad de la formación social e histórica brasileña, con el agotamiento de la Estrategia Democrática y Popular y su línea de conciliación de clases, se manifiesta en una inflexión conservadora marcada por el irracionalismo y el agravamiento de la polarización social que conduce a un país fracturado. Las bases históricas del capitalismo dependiente y la forma política autocrática, son las bases para comprender nuestra actitud ante la pandemia y la violencia que en ella se expresa.

Palabras clave: Violencia, Pandemia, Ideología, Manipulación/catarsis, Cosificación.



“Os espanhóis, com seus cavalos, suas espadas e lanças
começaram a praticar crueldades estranhas; entravam nas vilas,
burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e os homens velhos;
nem mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e as faziam
em pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em um redil.
Faziam apostas sobre quem, de um só golpe de espada,
fenderia e abriria um homem pela metade (...)
arrancavam os filhos dos seios das mães e lhes esfregavam
a cabeça contra os rochedos enquanto ouros lançavam
à água dos córregos rindo e caçoando”1
Frei Bartolomé de Las Casas (1474-1566)

1 Introdução

Nascemos sob o signo da violência. O Novo Mundo, a Civilização, o Cristianismo aqui chegaram com a espada e purgaram estas terras com sangue, fogo e iniquidade. Se em uma Europa marcada pelo pesadelo fascista, Benjamin (1994) pode sentenciar que não há nenhum monumento da civilização que não seja simultaneamente um monumento à barbárie, podemos dizer que aqui tal diferença se dissipa, civilização e barbárie se irmanam num único e íntegro massacre.

Os conquistadores riam e caçoavam, faziam apostas, erguiam forças próximas ao chão para que os pés desesperados prolongassem o sofrimento dos corpos pendurados. Tudo isso antes do exercício sistemático da violência institucionalizada pela escravidão dos povos originários e daqueles sequestrados na África para dar sequência ao empreendimento da colonização.

Nosso continente é uma imensa cicatriz no corpo torturado do planeta, marca indelével em que se misturam a dor, o sofrimento, a raiva, mas, também o riso e o escárnio do opressor, o descaso e a insensibilidade. Por séculos cultivou-se o descaso, a arte de viver ao lado do sofrimento ignorando-o, atravessado pela morte negando-a. A radical negação da morte foi o caminho para sua glorificação, perpassando-a com novas significações, transmutando-a em purificação, salvação ou simplesmente um gozo fúnebre. Freud (2009, 2013) acreditava que nossa atitude diante da morte expressava uma tentativa de invisibilizá-la, seja pela sua casualidade natural incontornável, seja por sua negação diante da ameaça à existência. Uma atitude narcisista que gera uma crença de imortalidade. Por outro lado, o impacto da mortalidade leva à crença de uma possível superação pela separação entre corpo e alma, base de todo comportamento religioso.

Quando somos, no entanto, assolados por uma pandemia como a que nos envolve no presente, nossa atitude perante a morte não se sustenta. Diante da matança sistemática da guerra, por exemplo, não conseguimos manter nossa antiga atitude perante a morte no momento em que ainda não desenvolvemos outra, levando, segundo pensa Freud, a uma desorientação e paralisia de nossa capacidade funcional (FREUD, 2009). Em situações normais, a morte de outras pessoas distantes nos atinge pouco, mas pessoas próximas produzem um efeito profundo em nosso psiquismo desencadeando o chamado “trabalho do luto”, isto é, o esforço para desinvestir a libido colocado no objeto amado que deixou de existir.

Em certas circunstâncias o luto assume uma forma patológica pela impossibilidade de realizar a perda, gerando o que o pai da psicanálise denomina de melancolia. Tal processo ocorre, segundo a hipótese psicanalítica, por uma profunda identificação na qual o objeto tomou o lugar do ego, de maneira que sua perda é seguida por uma crise da autoestima, sofrimento profundo e autoflagelação.

O que nos interessa aqui é que tanto o luto como a melancolia implicam o estabelecimento de laços profundos que nos ligam ao outro, levando Freud a concluir que: “Se o objeto não tiver para o ego um significado tão grande, reforçado por milhares de laços, sua perda não se prestará a provocar um luto ou uma melancolia” (FREUD, 2013, p. 45).

A nós parece que o anestesiamento da consciência diante da mortandade, da guerra ou da pandemia, traz à tona um elemento ainda mais perturbador. O fato que para nosso padrão civilizatório, os milhares de laços que nos ligam aos outros foram radicalmente rompidos, permitindo que a morte seja de um radicalmente outro que não nos atinge (IASI, 2020). Mesmo na cotidianidade, a morte de um número significativo de pessoas, em um acidente, numa catástrofe natural ou em qualquer outra forma, parece provocar nas consciências uma reação de solidariedade e desconforto, ainda que não desencadeie nada parecido com o luto ou a melancolia. Mas, não a indiferença, o que nos leva a pensar que nas circunstâncias da pandemia no Brasil e da guerra, algo distinto se produziu. Nossa hipótese é que se rompeu a identidade que nos liga aos outros e precisamos nos perguntar o porquê.

Nós agimos e reagimos em uma circunstância determinada, isto é, nossa reação não é definida simplesmente pela natureza do fato com que nos defrontamos ou a base biológica de nossos impulsos. Somos seres sociais e históricos, o que significa dizer que agimos nos terrenos da história não como queremos, mas determinados por toda a história pregressa e as circunstâncias que dela derivaram (MARX, [1852], p. 203). O passado não é um fantasma que nos atormenta apenas como lembrança, mas como afirma Benjamin “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1994).

2 Em que momento nos encontra a pandemia

A pandemia nos atingiu como um país fraturado (IASI, 2018). Sempre fomos uma formação social dividida e profundamente desigual, mas há momentos em nossa história em que esta abismal desigualdade assume a forma de uma fratura, isto é, circunstâncias onde a cisão de nossa sociedade em interesses antagônicos e inconciliáveis emerge das determinações mais profundas até a consciência dos seres humanos que se mobilizam em blocos sociais antagônicos e em luta de maneira que o antagonismo inconciliável dos interesses de classe se apresentem como antagonismo e confronto dos indivíduos e grupos que conformam uma determinada sociedade em uma conjuntura dada. Aqui é necessário destacar que, por vezes, tal antagonismo estrutural se apresenta como uma unidade de contrários tensa que pode se apresentar como aparente harmonia e ordem sem que com isso não se elimine o antagonismo.

A história recente de nossa formação social foi marcada pelo esgotamento de uma estratégia de conciliação de classes, consubstanciada no longo ciclo de governos petistas, o que abriu espaço para o golpe de 2016 e a ascensão da extrema direita como alternativa de governo. O ódio, o preconceito, o ressentimento foram transformados em arma política e para tanto o outro tem que assumir a forma de inimigo a ser aniquilado, um radicalmente outro tem que emergir para permitir a unidade do bloco conservador e reacionário.

Neste ponto incide uma determinação mais profunda e essencial. Os milhares de laços que nos unem como seres sociais não se desfazem de uma hora para outra, é marca constitutiva de nossa sociabilidade, isto é, a ordem da mercadoria e do capital, ordem esta, em que as relações entre seres humanos assumem a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas, como afirma Marx (2013, p. 147). A fratura política encontra no terreno das relações mercantis sob a ordem do capital as condições para o pleno desenvolvimento da reificação, o outro é algo distante, coisificado, subsumido na mediação do mercado, o outro só existe para mim através da mediação da mercadoria.

Reificadas as relações humanas, podemos compreender com espanto que a pandemia que atinge neste momento em que escrevo, mais de três milhões de pessoas e que já ceifou mais de cem mil vidas, pode preocupar menos do que a recuperação da economia, que crianças importem menos que a volta às aulas, que o limite de leitos de internação não preocupe tanto quanto a reabertura de shopping centers.

No entanto, quando tratamos especificamente do Brasil, nos chama atenção um elemento que vai além destas determinações, ainda que, estou convencido, se funde nelas. A fratura política e o governo de extrema direita com seu comportamento negacionista e irracional diante da pandemia, faz emergir um elemento que, se é próprio da forma presente da luta de classes, encontra suas raízes na história de nossa formação social. A temperatura da luta de classes e o limite da política de conciliação, fez expressar-se como alternativa à extrema direita e o comportamento político reacionário.

Sabemos que todo conservadorismo é, por definição, uma reação diante de processos de mudança, no entanto isto implica afirmar que não podemos compreender o conservadorismo como um processo único ou inequívoco, não existe “o” conservadorismo, pois ele é, neste sentido, histórico. Ele se apresenta na aurora do mundo burguês como reação aristocrática, como reação burguesa diante da sublevação proletária em 1848 ou 1871, como contrarrevolucionário diante da revolução russa de 1917, como ascensão do nazifascismo diante da crise do capital e a revolução proletária. No Brasil como reação metropolitana diante dos interesses de elites coloniais, ou como reação centralizadora diante das ambições descentralizadoras dos chamados liberais, ou reação liberal contra os planificadores de 1930 ou 1964, como golpismo de 1964 diante do reformismo e assim por diante.

O que há de particular na manifestação conservadora atual é que ela é parte da reação à crise estrutural da ordem burguesa e capitalista e indica um profundo ressentimento pelos efeitos que causa. No entanto, o conservadorismo não pode apresentar-se como autenticamente antissistêmico uma vez que não pode ser anticapitalista, por isso se apresenta como defensor de um capitalismo puro, ultraliberal, guiado por um Estado forte e autoritário, aos moldes dos governos militares, capazes de garantir a ordem. Só pode apontar para um futuro que se vislumbra olhando para trás.

Este amálgama aparentemente contraditório não deveria nos surpreender uma vez que é a reapresentação de uma expressão política conhecida. Sua base é a forma autocrática do Estado Burguês no Brasil e o capitalismo dependente. O desconcerto diante da emergência desta forma particular de conservadorismo é proporcional à ilusão segundo a qual o caráter autocrático do Estado brasileiro teria ficado preso a um passado superado e substituído por uma modernização que ao democratizar a sociedade brasileira imporia como necessidade a forma de um Estado Democrático de Direito e estabeleceria como terreno da luta de classes os termos de uma disputa política mediada por normatizações jurídicas impessoais e objetivas, portanto neutras no que tangem aos interesses de classe em disputa.

Quando da emergência da primeira grande guerra, Freud apresentava seu incômodo com o fato de as nações civilizadas estarem metidas em uma matança sem limites para resolver seus interesses, quando, como civilizadas, haviam desenvolvidos marcos jurídicos e políticos que poderiam mediar seus conflitos sem o recurso à violência. Numa passagem significativa chega a afirmar que:

Estava-se, pois, preparado para que a humanidade se visse ainda, por muito tempo, enredada em guerras entre os povos primitivos e os civilizados, entre raças humanas diferenciadas pela cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluídos ou incultos da Europa. Mas das grandes nações da raça branca, dominadoras do mundo, às quais coube a direção da humanidade, que sabia estarem ocupadas com os interesses mundiais, e cujas criações são os progressos técnicos no domínio da natureza e os valores culturais, artísticos e científicos, destes povos esperava-se que saberiam resolver de outro modo as suas discórdias e seus conflitos de interesses. (FREUD, 2009, p. 5).

Guardadas as devidas proporções, a ingênua consciência cidadã de nossa época proclama seu desconcerto com o fato de cidadãos da ordem democrática e civilizada, da civilização que com seus progressos técnicos, valores culturais elevados, com sua refinada cultura e conhecimento científico, teria aprendido conviver em sociedade, tenha agora tornando-se palco para a plena irracionalidade, a negação da ciência, a burla da lei, o preconceito, a violência e a barbárie. Muitos estavam dispostos a aceitar o fato que tais comportamentos sobrevivessem entre os segmentos “incultos”, nas regiões periféricas e faveladas, entre negros e índios, mas não entre as “raças brancas”, entre os que estariam destinados a ser os dominadores do mundo. Mas, veem, atônitos, um jovem supremacista branco de dezessete anos com seu fuzil automático matar a tiros dois manifestantes em Kenosha, mas Kenosha não é um vilarejo na África e este mais um episódio de guerra tribal ou um genocídio como na República Democrática do Congo onde quatro milhões de pessoas foram assassinadas em 2006. Kenosha fica no estado de Winsconsin nos EUA e o ocorrido se deu em 2020.

A civilização se apresenta como barbárie e para nós, como vimos, isto não é novidade. A política como mentira, manipulação, engodo e violência. No alvorecer do mundo moderno, Maquiavel preconizava que não poderíamos compreender o fenômeno político se purgássemos dele a violência aos moldes da filosofia política clássica. Muitos, de forma errônea, imaginam que desta maneira o pensador florentino estaria defendendo o uso puro e simples da violência, quando em verdade nos alertava para o fato de que a violência é um recurso sempre utilizado e quase sempre decisivo no jogo e luta de interesses que compõem um Estado. Interessantemente a consciência burguesa de um modo de produção especificamente capitalista apresenta a violência como excludente da política, como estava em Aristóteles e se reapresenta em Hannah Arendt e depois em Habermas.

Zizek (2014) diferencia três momentos da violência, uma violência subjetiva, a expressão mais visível por ser aquela vivida na cotidianidade, a violência simbólica, encarnada, por exemplo na linguagem2, e a violência sistêmica, enraizada nos sistemas econômicos, políticos e culturais. As duas últimas, diferente da violência subjetiva, apresentam-se invisíveis, o que não significa dizer que são menos objetivas e efetivas. O filósofo esloveno procura compreender este fenômeno recorrendo à Hegel, quando afirma que em nossa sociedade existiria uma espécie de “identidade especulativa” de opostos de forma que certos aspectos da vida não aparecem como não marcados ideologicamente, parecendo neutras ao senso comum. Afirma Zizek:

Chamamos ideologia aquilo que não se inscreve nesse pano de fundo: o zelo religioso extremo ou a dedicação a uma orientação política particular. Em termos hegelianos, o importante aqui seria o fato de que é precisamente a neutralização de certos traços num pano de fundo espontaneamente admitido o que marca nossa ideologia em seu grau mais puro e eficaz. (…) Mutatis mutantis, o mesmo vale para a violência. A violência social na sua forma mais pura manifesta-se como seu contrário, como a espontaneidade do meio que habitamos, do ar que respiramos. (ZIZEK, 2014, p. 41).

Podemos compreender isto com um breve exemplo. Costumamos identificar a ideologia nas afirmações do tipo – bandido bom é bandido morto – que poderia se classificar como adesão a uma orientação política particular, neste caso de um extremismo de direita. Mas o lugar no qual a ideologia se manifesta de forma eficaz, porque orienta a ação dos seres humanos numa determinada direção e produz um efeito no real, é na violência policial que matou 5.804 pessoas em 2019, no entanto esta acaba por constituir o pano de fundo que se naturaliza e, em consequência disso, torna-se invisível.

Algo semelhante ocorre na situação de pandemia. As expressões da ideologia nos comportamentos políticos negacionistas (“é só uma gripezinha”, “com certos medicamentos é possível prevenir e evitar o adoecimento”, “uma histeria”, etc.) é apenas um elemento do universo ideológico em operação e uma forma de violência simbólica. No âmbito sistêmico temos um longo e muitas vezes invisível processo no qual o padrão de acumulação exigiu o chamado saneamento financeiro do Estado que impõe cortes nos gastos públicos, privatizações e desmontes de serviços, entre eles os investimentos em ciência e tecnologia e atendimento à saúde. Quando nossos militantes protestam contra o desmonte do SUS, afirmando que saúde não pode ser mercadoria, seu comportamento é imediatamente identificado como “ideológico”, uma vez que expressaria adesão a uma posição política de esquerda. Ao mesmo tempo o brutal corte de gastos para beneficiar capital financeiro fica remetido ao pano de fundo como se fosse inquestionável como o fato que se você não tem dinheiro diante do caixa do supermercado deve devolver a mercadoria que havia tentado comprar.

A pandemia, no entanto, apresenta-se incomodamente como caminho que eleva ao campo do visível a contradição sistêmica oculta por sua naturalização ideológica. Diante da escala das contaminações, das necessidades técnicas (testagens, equipamentos, desenvolvimento de vacinas, etc.) e propriamente médicas (tratamento ambulatorial, internações em UTIs, etc.), e, de forma mais enfática, os milhares de mortes; o edifício ideológico começa a apresentar rachaduras.

Neste ponto é que a trajetória anterior de uma formação social incide de forma decisiva. As milhares de pessoas morrendo e o sofrimento de seus familiares têm que ser incorporados aos registros da violência simbólica e isso é realizado de várias maneiras. A forma mais burlesca que mal disfarça seu caráter altamente manipulatório encontramos no discurso oficial. No momento em que o país se encontrava com a macabra cifra de 113 mil mortos, o governo chamou uma atividade em Brasília cujo nome era significativamente “O Brasil vencendo a Covid-19”. No mesmo registro presenciamos durante toda a pandemia o argumento falacioso de que os números de casos e mortos encobriam a verdade, uma vez que se misturava nos contágios e mortos outras causas naturais (comorbidades, problemas respiratórios, idade avançada, etc.).

Há, no entanto, uma outra forma mais sutil, mas não menos perniciosa que podemos presenciar diariamente nos meios de comunicação. Ao criticar o governo pelo negacionismo, pela incompetência explicita ao enfrentar a pandemia e pelas barbaridades evidentes, os meios de comunicação operam uma espécie de catarse coletiva que é acompanhada de uma matematização da doença (estatísticas de contágio e mortes, picos e patamares, cores laranja e vermelha, áreas de crescimento, recuo ou estabilidade em mapas coloridos, etc.) que serve ao propósito de rotinização da barbárie e simulacro de luto pela manipulação emotiva (homenagem aos trabalhadores da saúde, às famílias dos que faleceram, a opinião de especialistas, etc.).

O que vem junto no pacote da catarse é a defesa do saneamento financeiro do Estado, a necessidade de flexibilizar (com responsabilidade) para salvar a economia e o mercado (inclusive o do ensino, expondo crianças ao contágio), a defesa da ordem institucional supostamente democrática que vigia e limita a irresponsabilidade do Poder Executivo. Ainda que politicamente contribua para o isolamento da extrema direita no poder, esta ação dos meios de comunicação, é, do ponto de vista ideológico, mais eficaz que o caráter burlesco do governo miliciano. Neste campo a ideologia opera de forma mais eficaz em sua missão de encobrir o caráter sistêmico da violência enquanto a forma tosca da turba que ocupa o planalto corre o risco de evidenciar as contradições tornando-as mais visíveis.

Entretanto, seria um erro conceber estes dois momentos como polos excludentes, antes constituem mais uma manifestação da “identidade especulativa de opostos” a que se refere Zizek. Enquanto no plano do visível vemos o choque entre o governo de extrema direita negacionista e os meios de comunicação que se preocupam com as pessoas e ouvem a ciência, os opostos se irmanam na defesa do pano de fundo sistêmico que reproduz como naturalidade inquestionável, portanto permitindo que a ideologia opere de forma mais pura e eficaz.

Um elemento, no entanto, permanece obscuro. Como esta operação se torna eficaz nas consciências das pessoas? Em outras palavras, por que as pessoas se submetem à manipulação ou à catarse, ou melhor seria dizer ao conjunto da operação manipulação/catarse?

Temos que voltar por um instante ao desconforto de Freud diante da guerra. Além de se espantar que seres civilizados estavam se matando como bárbaros nos campos de batalha, Freud também se preocupava com o fato de que os governos haviam logrado adesão de seus povos no empreendimento da matança e isso só pode se realizar porque os governantes haviam subvertido um dos pontos do pacto civilizado no que tange à relação dos governos com seus cidadãos. Diz Freud: “estava sobretudo proibido servir-se das extraordinárias vantagens que o uso da mentira e do engano proporcionam na luta com os outros homens” (FREUD, 2009, p. 5). Era necessário transformar o “outro”, o “estrangeiro” em “inimigo” e para tanto era preciso mentir, dissimular, não apenas contra o inimigo, mas na própria relação com seus cidadãos. Segue Freud:

Não só se utiliza contra o inimigo a astúcia permissível (ruses de guerre), mas também a mentira consciente e o engano intencional (…) O Estado exige dos seus cidadãos máximo de obediência e de abnegação, mas incapacita-os mediante um excesso de dissimulação e uma censura da comunicação e de expressão das opiniões, que deixa sem defesa o ânimo dos assim intelectualmente oprimidos frente a toda a situação desfavorável e a todo o boato desastroso (FREUD, 2009, p. 9).

Assim, o pai da psicanálise se vê diante de um fato constrangedor: os seres da mais alta expressão civilizatória e cultural, incluindo homens de ciência, se veem envolvidos na manipulação e se prestam a respaldar aventuras sanguinárias3. Diz o autor: “refiro-me à falta de discernimento que se revela nas melhores cabeças, à sua obstinação e impermeabilidade aos mais vigorosos argumentos, à sua credulidade acrítica perante as afirmações mais discutíveis” (FREUD, 2009, p. 17).

Todos nós, inclusive Freud, somos muito influenciados por um princípio do esclarecimento que, por vezes, nos prejudica a compreensão. No fundo temos uma fé inexplicável na razão, isto é, na premissa que o entendimento da verdade e suas determinações, em outras palavras, a ciência, uma vez estabelecida ilumina a questão e afasta a possibilidade de acreditar nas “afirmações mais discutíveis”. No entanto, não é o que ocorre, pois não se trata do diálogo entre argumentos ou, pior ainda, premissas e hipóteses de um enunciado científico. Como o próprio Freud argumenta na sequência de seu raciocínio, não podemos compreender nosso intelecto como uma força independente de nossa vida sentimental, em outras palavras, das paixões e impulsos básicos, ainda que o esforço científico exige que o intelecto tenha que trabalhar “subtraído a ação de intensos impulsos emocionais” (FREUD, 2009, p. 17). Mas, não somos todos filósofos.

Logo que o intelecto se depara com a resistência emocional e afetiva, os seres mais inteligentes se comportam de súbito sem nenhum discernimento, produzindo o que o autor identificou como uma “cegueira lógica”. O que falta à precisa descrição do fenômeno em Freud e a categoria de ideologia. Ao nosso ver a tal “cegueira lógica” não se apresenta simplesmente pelo fato que egos enfraquecidos foram tomados pela força das paixões, deformando sua compreensão, ainda que isto ocorra. As ideias, valores, representações que constituem a consciência social de uma época são, na nossa compreensão, a expressão ideal das relações sociais nas quais os seres humanos produzem sua existência. Estas relações são interiorizadas na forma de representações, ideias, valores, e mesmo na formação de nosso psiquismo, no que concordamos com a aproximação psicanalista. O que distingue a aproximação marxista é que para nós é necessário considerar que o real que se interioriza se apresenta como uma cisão de interesses antagônicos e inconciliáveis de classe, ou nos termos de Wilhelm Reich (1977), o que escapa ao Freud é que o princípio da realidade nas condições atuais diz respeito a sociedade capitalista4. Isto implica que as representações que compõe nossa consciência social servem ao domínio de uma classe sobre outra e sua necessidade de reproduzir as condições sobre as quais este domínio se alicerça.

Desta maneira a consciência social de nossa época assume a função de ocultar as determinações da sociabilidade capitalista (a propriedade privada, a forma mercadoria, a exploração do trabalho, a acumulação privada da riqueza socialmente produzida, etc.); naturalizar o existente e apresentá-lo como inevitabilidade, tornando-se uma justificativa e uma defesa laudatória do real; isto se dá pela inversão que não se produz no campo da ideologia, mas do real, inversão na qual os seres humanos se apresentam como mercadorias e suas relações como se fossem relações entre coisas, o Estado como possibilidade da vida genérica cindindo a dimensão política da existência e suas formas na sociedade civil burguesa, como cidadãos no Estado e indivíduos envoltos na concorrência do mercado; tudo isto como meio de apresentar os interesses particulares como se fosse gerais, a consciência do mundo burguês como se fosse a forma de expressão ideal do conjunto da sociedade. Em poucas palavras, a consciência social assume a forma de uma ideologia nos termos de Marx.

Estas ideias e representações, juízos e valores, não se apresentam à consciência dos indivíduos como um discurso articulado ou como as premissas das diversas filosofias, doutrinas ou postulados científicos que compõem o universo ideal do mundo burguês, o que nos levaria à disputa de argumentos e formulações. São antes a forma ideal interiorizada das relações sociais através das quais o indivíduo se socializa nos diferentes grupos intermediários que compõem sua socialização. O que se interioriza não é um valor em si, um juízo ou uma representação, mas a carga afetiva e emocional da aceitação ou rejeição que o indivíduo experimenta ao vivenciar o contato das pulsões internas com o real, suas formas de existência e padrões de comportamento de uma determinada sociedade existente e do grupo que representa a mediação em cada momento e circunstância a relação entre os indivíduos e a sociedade.

Isto significa que um valor ou uma ideia se apresenta em primeiro como substância, assim como o valor das mercadorias se diferencia das formas possíveis de seus valores de troca. São interiorizadas como cargas afetivas e passam a compor nosso psiquismo, seja como exigência externa imposta em um primeiro momento, seja como normas interiorizadas no superego em um segundo momento.

Estou convencido que a variedade da forma dos valores e representações ideológicos, dialogam com esta base psicológica e emocional de forma a produzir aquilo que Althusser (1996) denominou de reconhecimento ou interpelação, processo no qual o valor em uma forma determinada (A) pode fundamentar-se em uma base formada pela interiorização das relações sociais estabelecidas, da mesma forma que um outro valor (B), ainda que aparentemente assuma uma forma de expressão distinta, correspondam a mesma substância interiorizada.

3 Considerações finais

O bárbaro que desconcerta Freud, com sua ferocidade e disposição para a matança na guerra, assim como o indivíduo que ignora as milhares de vítimas de uma pandemia e afirma seu direito e sua liberdade para romper o isolamento social e andar sem máscaras no shopping center; e o intelectual civilizado que assumiu as vantagens de uma vida cultural sofisticada e que desenvolveu a ciência, a tecnologia e as artes, assim como o liberal esclarecido com sua coleção de livros na estante ao fundo, que come com garfo e faca, não acredita na existência de uma mamadeira com bocal peniano para produzir homossexualismo em massa e está convicto da forma esférica do planeta; são partes constitutivas da hegeliana unidade e identidade dos contrários. São expressões da mesma substância, as formas históricas e objetivas da sociabilidade burguesa alicerçada nas relações sociais de produção do modo capitalista de produção em seu estágio atual.

Ambos, assim como a manipulação e catarse, compõem em seu conjunto o esforço da ideologia, assim como se sustentam no mesmo terreno material. Interessante notar, que entre eles existe um desconforto, para os sofisticados ideólogos a extrema direita parece tosca e vulgar, para esta a intelectualidade burguesa com pendores liberais e raízes escravocratas, formula juízos que para a extrema direita soa como se fosse uma rendição ao esquerdismo. A unidade de contrários implica contradição e não aplainamento da diferença.

O que os une é a defesa da ordem e o que os distingue é a ênfase no tipo de violência mais eficaz para garanti-la. A extrema direita aposta na violência explícita, objetiva e física, mas não descarta a eficiência da violência simbólica, o que alguns compreendem como o recurso à chamada guerra híbrida. Os chamados liberais, apostam na violência simbólica e na reprodutibilidade da violência sistêmica, ainda que não descartem a violência explícita da repressão quando necessária. O que importa é que, como afirmamos, estes aspectos se imbricam inseparavelmente e sua eficácia ideológica está na perfeita combinação destes momentos.

Sérgio Buarque de Holanda (1994) achou prudente esclarecer que sua afirmação do suposto “homem cordial”, expressão que tomou de Ribeiro Couto, não deveria ser compreendida como exclusividade de atitudes positivas, uma vez que na substância sua afirmação é uma certa postura estranha às convenções e formalismos, que “não abrange, apenas obrigatoriamente, sentidos positivos e de concórdia”, uma vez que, segue o autor, “a inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado” (HOLANDA, 1994, p. 107, nota 157). Da mesma forma, por analogia, as formas políticas da extrema direita e a suposta sofisticação da crítica “liberal”, nascem do mesmo solo, batem no mesmo coração pulsante do modo de produção capitalista.

Nós, envoltos lá na dimensão do real, navegamos por entre estes momentos, vivenciando ora a ênfase na violência simbólica, ora os efeitos mais marcantes de uma violência sistêmica, mas sempre vivenciando como uma enorme violência subjetiva. A rotinização da violência, seu caráter histórico e constitutivo de nossa formação social nos educou por séculos a ignorar nossos mortos e a conviver com a violência em suas diferentes formas de manifestação. Como disse certa vez Lima Barreto, nos comportamos como náufragos jogados numa ilha à espera da volta de uma caravela que nos resgate. Olhamos a morte como uma velha amiga, inquietante e assustadora, mas conhecida e corriqueira. Aprendemos a viver com fantasmas e suas correntes, com senzalas e cortiços, com negros sendo atados no pelourinho ou crivados de bala nas quebradas, como crianças inglesas que brincavam e cantavam sob as gaiolas onde cadáveres apodreciam, seguimos fazendo compras mesmo com o defunto coberto por guarda-sóis no chão do mercado, jogando bola ao lado dos corpos que caíram da ciclovia, indo para a escola onde carteiras vazias esperam crianças que encontraram balas perdidas.

Amarildo não aparecerá, as casas da Vila Autódromo estão no chão como o edifício construído pela milícia, Claudia segue sendo arrastada pela viatura, Marielle ainda não chegou em casa, mas nossa tragédia é ser goleado por sete gols pela potência futebolística germânica. Desenvolvemos uma curiosa adaptabilidade diante da barbárie, de maneira que os milhares de mortos de hoje encontrarão seu lugar nesta nau insana e seguiremos viagem.

A pandemia não pode ser responsabilizada por nossa tragédia, ainda que seja dela um capítulo que terá destaque pela forma como foi enfrentada pelo governo mais ridículo de nossa história, pela insensibilidade diante da dor e do descaso. A violência da pandemia, um tanto envergonhada, se juntará à violência que aqui já habita e tomará seu lugar entre as cicatrizes cravadas na pele do país.



“Bem antes de cairmos em batalhas sem sentido
Ainda andando por cidades intactas
Nossas mulheres
Eram já viúvas
E nossos filhos órfãos.
Bem antes de nos lançarem em covas
Aqueles também marcados
Éramos sem alegria. Aquilo que a cal
Nos corroeu
Já não eram rostos.”
Bertold Brecht

Referências

ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. In: ZIZEK, S. (org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BRECHT, B. Poemas 1913-1956. São Paulo: Brasiliense, 1986.

FREUD, S. Escritos sobre a guerra e a morte [1915]. Covilhã: Universidade da Beira Interior, LusoSofia Press, 2009.

FREUD, S. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

IASI, M. L. Nem luto nem melancolia. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/08/21/nem-luto-nem-melancolia/. Acesso em: set. 2020.

IASI, M. L. Um país fraturado. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/09/10/um-pais-fraturado/. Acesso em: set. 2020.

LAS CASAS, F. B. O Paraíso destruído: a sangrenta história da conquista da América. Porto Alegre: L&PM, 2001.

MARX, K. O Capital, livro I, volume I. São Paulo: Boitempo, 2013.

REICH, W. Materialismo Dialético e Psicanálise. Lisboa: Presença, 1977.

ZIZEK, S. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.

Notas

1 LAS CASAS, Frei Bartolomé de. O Paraíso Destruído: a sangrenta história da conquista da América. São Paulo: L&PM, 2001. p. 34.
2 Um bom exemplo de violência simbólica podemos encontrar na música Para matar preconceito eu renasci de Mariana Iris, na qual ouvimos a frase: “seu olhar para a porta de serviço, é um míssil invisível contra mim”.
3 O pobre Freud sofre ainda pelo protagonismo germânico na matança e procura racionalizá-lo. Em outra passagem afirma: “Alimentamos a esperança de que uma historiografia imparcial fornecerá a prova de que precisamente esta nação, em cuja língua escrevemos e por cuja vitória combatem os nossos entes queridos, foi a que menos transgrediu as leis da civilização humana. Mas, em tempos como estes, quem poderá apresentar-se como juiz em causa própria?” (FREUD, 2009, p. 8)
4 “A definição do princípio da realidade como exigência da sociedade permanece formal se não acrescentar, sob a forma que reveste para nós atualmente, é o princípio da sociedade capitalista, baseada na economia privada” (REICH, 1977, p. 47)

Notas de autor

1 Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2004). Professor Associado I do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: mauroiasi@gmail.com.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): IASI, M. L. Pandemia e violência. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 22, n. Especial, p. 655-666, 2020. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p655-666. Disponível em: http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15890.

COMO CITAR (APA): Iasi, M. L. (2020). Pandemia e violência. Vértices (Campos dos Goitacazes), 22(Especial), 655-666. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v22nEspecial2020p655-666.

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