DOSSIÊ TEMÁTICO: "RISCOS E DESASTRES SOCIOAMBIENTAIS"

Processos de vulnerabilização e desigualdades abissais: seria a terra plana e o coronavírus redondo?

Vulnerability processes and abyssal inequalities: would the earth be flat and the coronavirus be round?

Procesos de vulnerabilidad y desigualdades abismales: ¿sería la tierra plana y el coronavirus redondo?

Sergio Portella 1
Fundação Oswaldo Cruz, Brasil
Simone Oliveira 2
Fundação Oswaldo Cruz, Brasil

Processos de vulnerabilização e desigualdades abissais: seria a terra plana e o coronavírus redondo?

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 23, núm. 1, 2021

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2021 pelos Autores.

Recepción: 06 Octubre 2020

Aprobación: 01 Marzo 2021

Resumo: Em um mundo construído por processos de vulnerabilização e desigualdades abissais, poderíamos classificar a pandemia do Covid-19 como um desastre biológico natural? O processo de naturalização das crises provocadas pelas emergências sanitárias, como a pandemia, ou de desastres em geral, é uma tendência no modo como a imaginação ocidental trata desses problemas. A construção de comunicação sobre a pandemia segue essa tendência e podemos seguir essa naturalização, como um modus operandi, seja em uma pandemia, seja em um desastre, quando chamado de natural. Este ensaio segue esse modus operandi no seu passo a passo para a pandemia do coronavírus. Como se naturaliza um desastre ou uma pandemia? O ato de naturalização dos eventos extremos, busca justamente estabilizar fatos. Esse “natural” seria indiferente à ação humana, amoral, atemporal, e caracterizado por um automatismo comandado por leis alegadamente imutáveis – físicas, naturais ou tão imutáveis quanto: de Deus. Fica bem claro que natural e divino são aqui sinonímias. Naturalizar, objetivar, coisificar, reificar, dar contornos, limitar, isolar: é assim que se constroem fatos e suas naturezas! Mas aqui, também temos a invisibilização dos processos de vulnerabilização das populações: a crença num mundo plano e num vírus redondo!

Palavras-chave: Desastres, Pandemia, Desigualdades, Processo de vulnerabilização.

Abstract: In a world built by processes of vulnerability and abyssal inequalities, could we classify the Covid-19 pandemic as a natural biological disaster? The process of naturalizing crises caused by health emergencies, such as the pandemic, or disasters in general, is a trend in the way in which the Western imagination deals with these problems. The construction of communication about the pandemic follows this trend and we can follow this naturalization, as a modus operandi, whether in a pandemic or in a disaster, when considered natural. This essay follows this modus operandi in its step-by-step approach to the coronavirus pandemic. How is a disaster or pandemic naturalized? The act of naturalizing extreme events seeks to stabilize facts. This "natural" perception would be indifferent to human, amoral, and timeless action, and characterized by an automatism commanded by allegedly immutable laws - physical, natural or as immutable as: from God. It is quite clear that “natural” and “divine” are synonymous here. Naturalizing, objectifying, reifying, outlining, limiting, isolating: this is how facts and their nature are constructed! Here, however, we also have the invisibility of the process of population vulnerability: the belief in a flat world and a round virus!

Keywords: Disasters, Pandemic, Inequalities, Vulnerability Process.

Resumen: En un mundo construido por procesos de vulnerabilidad y desigualdades abismales, ¿podríamos clasificar la pandemia de Covid-19 como un desastre biológico natural? El proceso de naturalización de las crisis provocadas por emergencias sanitarias, como la pandemia, o los desastres en general, es una tendencia en la forma en que la imaginación occidental afronta estos problemas. La construcción de la comunicación sobre la pandemia sigue esta tendencia y podemos seguir esta naturalización, como modus operandi, ya sea en una pandemia o en un desastre, cuando se le considera natural. Este ensayo sigue este modus operandi en su paso a paso para la pandemia de coronavirus. ¿Cómo se naturaliza un desastre o una pandemia? El acto de naturalizar los eventos extremos busca estabilizar los hechos. Este "natural" sería indiferente a la acción humana, amoral, atemporal, y se caracteriza por un automatismo comandado por leyes supuestamente inmutables, físicas, naturales o tan inmutables como: de Dios. Está muy claro que aquí lo natural y lo divino son sinónimos. Naturalizar, objetivar, cosificar, delinear, limitar, aislar: ¡así se construyen los hechos y su naturaleza! Pero aquí también tenemos la invisibilidad de los procesos de vulnerabilidad de la población: ¡la creencia en un mundo plano y un virus redondo!

Palabras clave: Desastres, Pandemia, Desigualdades, Proceso de vulnerabilidad.

1 Introdução


(Quino/Toda Mafalda, Buenos Aires: Ediciones de La Flor, 1993. p. 49)

O texto que ora apresentamos situa-se na área da redução do risco de desastres (RRD) e saúde pública, numa fina articulação entre reflexão teórica e trabalho empírico e se baseia na participação na mesa-redonda, Cidades, desastres e políticas urbanas, durante o II Seminário Internacional de Riscos e Desastres socioambientais: abordagens interdisciplinares, ocorrido em Campos de Goytacazes, Rio de Janeiro, em 26 e 27 de novembro de 2019. Esta área do saber, RRD e saúde pública, muitas vezes é caracterizada por uma abordagem que se pauta majoritariamente por uma lógica de operacionalização de conceitos e de teste positivista de dispositivos sociotécnicos de enquadramento das populações, de estudo das percepções quanto ao risco, das respostas e formas de recuperação pós-evento, respaldada no conceito de resiliência, e na identificação mensurável de pessoas e grupos vulneráveis.

Na literatura nesta área do saber é menos comum a interrogação conceitual originária e genealógica, que permita perceber não só a emergência dos conceitos, mas a sua concretização em políticas públicas, instituições e num tipo de linguagem e de materialidades que conforma os corpos, as comunidades, os saberes e a possibilidade de pensar alternativas e na sua consecução em dinâmicas de atuação democráticas e portadoras de uma cidadania plena. A reflexão comum orienta-se também por instituições internacionais (ONU) e mecanismos (Estratégia de Redução dos Riscos de Desastres, os Marcos de Hyogo e de Sendai) que incorporam uma urgência de atuação na prevenção e redução do risco de desastres a partir de uma racionalização, naturalização e universalização dos conceitos e das metodologias marcada de forma expressiva por uma dupla delegação, com orientação do topo para a base, e no reforço de legitimidade das prioridades dos Estados-nações e das suas lógicas administrativo-burocráticos.

Portanto, na apresentação em Campos, a preocupação foi manter a nossa perspectiva e refletir sobre como é difícil mantê-la, valorizando o rico ambiente deste seminário, expresso neste dossier, e que seguiu tão bem as indicações do primeiro: existem processos de vulnerabilização que antecedem e possibilitam os desastres, e emergências sanitárias, que a nossa imaginação ocidental insiste em invisibilizar. Essa perspectiva é o que nos anima e a entoamos como um mantra: Manter a perspectiva do Sul! É como a tirinha da Mafalda em epígrafe, do agora imortal Quino. Nela, Miguelito, amigo de Mafalda, primeiro está de cabeça para baixo, depois está numa posição intermediária, e por fim, fica na posição de cabeça para cima. No último quadrinho, vemos que para conseguir esse efeito, Mafalda teve que arrumar um jeito de colocar o mundo ao revés e literalmente ancorá-lo nessa posição. Quando produzimos conhecimento também devemos ter o cuidado de Mafalda e produzir uma desconstrução crítica dos pressupostos subjacentes aos modelos de atuação dominantes na área de redução do risco de desastres. Mas, não é uma tarefa fácil como nos quadrinhos. Mesmo na ficção científica, quando naves espaciais se aproximam da Terra, ou em animações do Planeta azul, ela sempre está nesta posição hemisfério norte/hemisfério sul com a europa centralizada, como se o espaço também tivesse essa orientação norte/sul expressa pela dicotomia em cima/embaixo.

Quino mais uma vez pode nos ajudar com outra tirinha. Mafalda entra no quarto da pequena amiga Liberdade que se esforça para pregar na parede um mapa-múndi e exclama: “Mas, Liberdade, você está pondo ao contrário!” A amiguinha responde: “Ao contrário com relação a quê? A Terra está no espaço e o espaço não tem em cima nem embaixo. Esse negócio do norte ser o de cima é um truque inventado pelos que acreditam estar em cima, para nós continuarmos acreditando que estamos embaixo. O pior é que se continuamos acreditando, vamos continuar embaixo. Mas, a partir de hoje, acabou-se!” Mafalda volta pra casa correndo, bate a porta e sua mãe pergunta: “Onde você estava?” Mafalda assustada, responde: “Não sei, mas alguma coisa acabou de acabar”.

 Projeção Peters adaptada
Figura 1.
Projeção Peters adaptada
Fonte: Adaptado a partir da Projeção de Peters (2020)

2 O controle populacional e os três biopoderes

A partir de propostas teóricas ancoradas na teoria do ator-rede, como por exemplo as de Bruno Latour (LATOUR, 2001) e Michel Callon et al. (CALLON et al., 2001), ou na teoria dos desastres a partir de uma visão não europeia sobre a lógica de desenvolvimento, como a avançada por Allan Lavell et al. (LAVELL et al., 2020) e Norma Valencio (VALENCIO, 2016), além da mobilização de conceitos como os de ecologia de saberes e das desigualdades abissais de Boaventura de Sousa Santos, procuramos manter o planeta na perspectiva do sul.

Mas precisamos de mais aliados para manter a ancoragem. Não basta utilizarmos a metáfora da Casa Grande e Senzala de um Brasil, hoje, dominado em sua política interna por capitães do mato e feitores. É preciso complexificar nossa descrição com Milton Santos (SANTOS, 1998) e Boaventura Santos (SANTOS, 2007) também, dizendo que a globalização, baseada na financeirização da economia, funciona dinamicamente, através de um capitalismo corporativo, mesclado ao patriarcalismo e à colonialidade. E que esse modelo de desenvolvimento, baseado na exploração e consumo radical de recursos da natureza (e nessa natureza está incluída a humanidade), se sofisticou na forma de biopoderes. Precisamos de Foucault, Butler, Mbembe, Fassin, além do pensamento decolonial, Fannon, Quijano, Mignolo para conseguir entender que a operação dos biopoderes da financeirização, médico-farmacêutico e digital – que se misturam, se complementam e se reforçam, criaram uma população de corpos endividados, medicalizados e digitalizados, expressas muitas vezes através de necropolíticas, principalmente quando os corpos têm a etiqueta de imigrantes. É um modelo baseado na insustentabilidade do uso dos recursos e na desigualdade dos corpos.

A partir da reflexão crítica sobre a literatura existente, a abordagem empírica, centrada no desastre que afetou em 2011 a zona serrana com maior incidência em Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis, e acompanhando o desenrolar dos desastres-crimes em Mariana e Brumadinho, aplicando formas de produção de dados participativas, veiculadoras de transformação das práticas porque baseadas na práxis e no viver quotidiano de resistência e de sobrevivência, traz todo um novo quadro conceitual e de atuação que se plasma na noção de desnaturalização dos desastres. Esta noção, é suficientemente sensível para permitir o fortalecimento das pessoas, grupos e populações normalmente etiquetados como vulneráveis, ativando redes de solidariedade e de reflexão que permitam uma maior preparação perante eventos extremos e a definição de estratégias locais consequentes. Poderíamos falar sobre a desnaturalização dos desastres, como o fizemos durante o seminário em Campos, utilizando qualquer um desses estudos. Porém, como diria Carlos Drummond de Andrade, no meio do caminho tinha uma pedra… e o seu nome era pandemia.

3 A naturalização da pandemia no Brasil

As reflexões que se seguem foram enviadas no formato de notas ao Observatório Osiris do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e veiculadas em 10/06/2020 (PORTELLA; OLIVEIRA, 2020b) e têm a sua origem primeira na tese de doutorado de Sergio Portella, defendida na Universidade de Coimbra (PORTELLA, 2017). Ainda era uma tendência, mas podemos hoje afirmar que, infelizmente, o processo de naturalização da pandemia no Brasil está consolidado, e as mortes diárias não chocam a mais ninguém. Para muitos a pandemia já passou e alguns políticos já usam a expressão no tempo da pandemia. Mas ela ainda está aí e com vigor e sua realidade de reorganização social não mais passará.

Por isso, perguntamos: Em um mundo construído por processos de vulnerabilização e desigualdades abissais, poderíamos classificar a pandemia do Covid-19 como um desastre biológico natural? O processo de naturalização das crises provocadas pelas emergências sanitárias, como a pandemia, ou de desastres em geral, é uma tendência no modo como a imaginação ocidental trata desses problemas.

A construção de comunicação sobre a pandemia segue essa tendência e podemos seguir essa naturalização, como um modus operandi, seja em uma pandemia, seja em um desastre, quando chamado de natural. Estas reflexões seguem esse modus operandi no seu passo a passo para a pandemia do coronavírus.

Como se naturaliza um desastre ou uma pandemia? Essa é uma questão importante para um amplo número de pesquisadores em riscos e desastres, pois não se naturaliza apenas com discursos e narrativas. Esse efeito se consegue a partir de um processo multifacetado, no qual podemos encontrar padrões. Uma das primeiras pesquisadoras a observar estes padrões foi Claudia Natenzon da Universidade de Buenos Aires (Argentina), em seus estudos sobre as enchentes recorrentes – e naturalizadas – da baixa Buenos Aires.

O ato de naturalização dos eventos extremos busca justamente estabilizar fatos e deslocá-los de seus nexos socio-históricos, diria Valencio (2016). Esse “natural” seria indiferente à ação humana, amoral, atemporal, e caracterizado por um automatismo comandado por leis alegadamente imutáveis – físicas, naturais ou tão imutáveis quanto a biologia de um vírus. Algo fora do tempo, algo de Deus/Diabo. Fica bem claro que natural e divino são aqui sinonímias. Naturalizar, objetivar, coisificar, reificar, dar contornos, limitar, isolar: é assim que se constroem fatos e suas naturezas! Mas, o principal resultado, é que assim temos a invisibilização dos processos de vulnerabilização das populações resultantes das políticas e decisões da gestão estatal e do modelo de desenvolvimento dominante: a crença num mundo plano e num vírus redondo! O ovo ou a laranja de Colombo que estão pousadas sobre um prato ou sobre o tampo plano de uma mesa universal made in europa! As declarações do presidente brasileiro vão nessa direção ao discursar sobre a inevitabilidade da morte: Sou Messias, mas não faço milagres, diz brincando com o próprio nome, tentando se separar do que está acontecendo: algo completamente natural na sua concepção, que não tem nada a ver a como o povo brasileiro foi organizado. Vírus chinês, comunavírus, diz o ministro das relações exteriores brasileiro! Em seu máximo, um vírus produzido em laboratório, no entanto, nada mais “natural” em nossa sociedade hoje! Fake news de teorias conspiratórias que a Organização Mundial da Saúde descartou peremptoriamente (LIY, 2021).

Nesse sentido, Natenzon (2003) apresenta importantes características que devem ser consideradas nas discussões sobre desastres; e elas podem – infelizmente – ser encontradas na maior parte das narrativas construídas para explicar e justificar as ações em torno destes eventos. Num desastre, numa emergência, num rompimento de barragem, ou mesmo, numa pandemia. O que fizemos foi extrapolar tais características apontadas de Natenzon (2003) e chamá-las de processo. Como em um bom roteiro cinematográfico, nove são os pontos de conformidade no desenrolar do processo de naturalização de um desastre.

O primeiro ponto está relacionado à concepção do desastre enquanto resultado de uma causa natural – ou sobrenatural – sem nenhuma (ou pequena) intervenção humana. Tal concepção transforma os desastres em naturezas imprevisíveis descolando-os dos nexos socio-históricos que possibilitam a sua ocorrência. A invisibilidade do vírus tem características de um ser sem-corpo, um quase-ser, um fantasma. Vingativo. A natureza está se vingando da humanidade, fala recorrente mesmo entre cientistas e pensadores!

Esse sentimento de surpresa de imprevisibilidade gera o segundo ponto, que é a concentração da intervenção governamental na resposta aos desastres em detrimento da prevenção e, em especial da organização comunitária preventiva, que é relegada para segundo plano. Raros sãos os casos em que há planos de contingência comunitários, mas mais raros ainda são os planos dedicados à reconstrução de forma a conseguir que ela assuma uma dinâmica preventiva. Isso justamente porque a pandemia não é considerada uma resultante de um processo histórico, mas a consequência de uma ameaça naturalizada e imprevisível. A delimitação temporal e espacial (o isolamento do vírus) faz parte do ato de naturalizar o desastre e, assim, contê-lo dentro de um nicho espaço-temporal que evite externalidades que atinjam perigosamente a gestão política do território em crise. Separar a crise sanitária de modo a torná-la extemporânea, independente do modelo econômico, é então fundamental para se chegar a uma inversão estratégica. Os nexos socio-históricos e suas vulnerabilidades que geram o ambiente para o surgimento da crise passam, magicamente, a ser consequência da crise. E assim, só podemos responder! Respondemos sem entender profundamente o que possibilitou a crise: o modelo de desenvolvimento! E, o mantemos!

O terceiro ponto está relacionado ao efeito sensacionalista da cobertura pela mídia durante o período de emergência, sem grandes reflexividades e com suas informações paradoxais. Essa forma de noticiar é fundamental para a delimitação espaço-temporal do desastre e a sua naturalização. A valorização do inesperado, do excepcional, do extemporâneo, da fatalidade da morte ou do dano! A natureza descontrolada, vingativa e autoritária como um deus do Olimpo ou do Velho Testamento! A mídia oferece uma notícia imediata cujo interesse é o apelo estonteante do inesperado, com transmissões exacerbadas do desespero alheio. Aqui, temos um outro deus se manifestando também, a natureza humana resultante da multidão de atos que são em seus resultados inconscientes e que apontam para a necessidade do controle; mas que, paradoxalmente, banalizam seus resultados e suas mortes.

O quarto ponto destacado por Natenzon (2003) é que os atingidos - em uma pandemia, os contaminados, sintomáticos ou não - são, assim, conformados como objetos assistenciais; pessoas incapazes de tomar suas próprias decisões, sendo levadas de um lado a outro, sempre tendo um perito que determina suas existências. O discurso oficial garante que o inesperado só pode ser suportado por aqueles que receberam treinamento e o conhecimento para o excepcional: e o perito assume definitivamente a tomada de decisão. O desastre excepcional em sua naturalidade domina o ambiente social, sustentado por um grupo de peritos que em seus discursos se autorreforçam no que ficou conhecido como a dupla delegação: a gestão se apoia na legitimidade do conhecimento do perito técnico-científico, que se apoia na legitimidade da gestão, fechando um círculo de desqualificação do conhecimento diário e local dos cidadãos (CALLON et al., 2001). Esse procedimento é fundamental para manter o controle populacional. Mesmo que ações de solidariedade locais sejam valorizadas pela mídia, elas nunca indicam que tal participação será alçada à posição de deliberação em formulação, implementação e controle social de políticas públicas. No caso do vírus Sars-CoV-2, a incerteza é total e multiplicada diariamente e fortalece a desqualificação local, fazendo parecer que a pandemia é um assunto para peritos em saúde, gestores (comprometidos ou não, irresponsáveis ou não), políticos e, em nossa tragicomédia, generais, mas nunca dos cidadãos contaminados e contamináveis e suas próprias organizações.

A concepção dos atingidos como objetos assistenciais nos levam ao próximo ponto, que no caso do Brasil tomou contornos dramáticos e assustadores, que é a sedutora militarização da ajuda e o controle populacional que ela proporciona. São as instituições militares ou paramilitares que assumem a responsabilidade da gestão maior em uma emergência, dentro da sua lógica de comando e controle, ocupando os espaços numa perspectiva de estado de exceção. Se o estado brasileiro, como um todo, ainda não está sob ditadura militar, o ministério da saúde está! O órgão máximo de controle da epidemia do governo federal foi literalmente ocupado pelos militares, fisicamente, lógica e praticamente, em todos os setores de decisão e logísticos. Foi inclusive ensaiado a manipulação e omissão de dados, típica de regimes autoritários, que ainda não conseguiu se estabelecer por conta da reação da sociedade civil e dos médicos-cientistas, aqui com o apoio inegável do consórcio de imprensa. Mas não sejamos ingênuos: nada mais hierarquizado do que um hospital e a corporação médica: a biomedicina. Mas, a especificidade da história da pandemia brasileira nos colocou diante de um governo federal negacionista, que propunha tratamentos cientificamente ineficazes (HOFFMANN, 2020), como cloroquina e ivermectina, em seus sites institucionais e um garoto-propaganda muito especial, a celebridade da presidência da república. E isso, nos obriga a dar um passo atrás e escolher entre a lógica de comando e controle executada por militares ou por médicos. Melhor que sejam por médicos já que não queremos que nossas mortes sejam menosprezadas com um “e daí?” Podemos prever que no final um dos resultados invisíveis da pandemia será o controle populacional retroalimentado e fortalecido, inclusive digitalmente. Mas, teremos que enfrentar isso depois.

O sexto ponto é que a maioria das soluções propostas pelos políticos frente aos desastres são obras de tecnologia, como pontes, barragens, obras de contenção, que, em geral, reforçam, expandem e potencializam formas já existentes de profunda intervenção no ambiente como, por exemplo, os hospitais de campanha e seus sofisticados respiradouros. E tudo como se tais formas de intervenção fossem as únicas opções de reconstrução e/ou de prevenção. Todas essas formas se organizam na lógica de enfrentamento de desastres naturalizados com escassa compreensão de seus processos sociais. Essas soluções entram, então, no jogo político de interesses entre as empresas privadas interessadas na concessão das ações tecnológicas com os governos locais. E aí temos o desastre como negócio. A corrida tecnológica para a produção da vacina é o exemplo final, com a inevitável discussão de sua patente – aberta ou não.

Em sétimo lugar está o financiamento estatal inevitável e em cascata. Numa situação de calamidade, aproveita-se para se superar a baixa visibilidade pública, para requerer recursos ou benefícios que se é incapaz de capitalizar em rotineiras relações entre as administrações municipais e federais. Na transferência dos recursos, no entanto, os fundos financeiros acionados nunca são repassados integralmente às obras e aos atingidos, com perdas em cascata e sequenciais desvios de verbas nesse percurso. A extensa e geograficamente diversificada lista de equívocos, abusos ou atos ilícitos relacionados com estas dinâmicas de excepcionalidade no contexto da pandemia é uma incontornável evidência.

O oitavo ponto alerta para a resposta da própria sociedade civil, sempre imediatamente solidária, porém fragmentária e, na maior parte das vezes, espontânea e desordenada. Essa situação é quase inevitável diante da falta de transparência da gestão pública pronta para desqualificar as ações locais. Organizações humanitárias tradicionais, e conformadas modernamente no império do trauma, como apontam Fassin e Rechtman (2007), assumem gradativamente a assistência, como Cruz Vermelha, Médicos sem Fronteira, Cáritas e Igrejas, desmobilizando as redes locais e desqualificando as ações de autogestão dos territórios.

O nono ponto destaca a consolidação, nesse processo, das explicações monocausais, tendo como principal explicação a ameaça natural: a pandemia, a chuva forte, a inundação, os deslizamentos de massa, ou a seca, mesmo quando se trata de rompimento de barragens. Os processos que criam nexos socio-históricos são dificilmente associados entre si e colocados no centro das explicações. E a ideologia do desastre natural se reinicia em um novo patamar do seu dominó causal conseguindo produzir a mágica de transformar a causa em consequência: o modelo de desenvolvimento sofre com a pandemia e é então, justificada a sua produção de desigualdades inerente, como uma externalidade, vítima do imponderável. O vírus é naturalizado biologicamente, com novas cepas que sustentam todo o modelo anterior. Os mortos são assim naturalizados estatisticamente pela inevitabilidade do vírus. E o modelo de desenvolvimento também vira vítima e merece cuidados extremos como na falsa e hilária dicotomia: salvar vidas ou salvar a economia? Como se a economia não fosse resultado da relação entre pessoas vivas. E o Brasil vai disputar o título de epicentro mundial da epidemia com os EUA. Não fosse o Sistema Único de Saúde e seus cuidadores e sua academia alinhada ao próprio povo brasileiro já teríamos ganho esta triste corrida.

Mas nunca um ato assassino racista foi tão emblemático. Aquele do modelo de desenvolvimento ajoelhado sobre nosso pescoço e insensível aos nossos apelos: Não consigo respirar! Não é o vírus que compromete nossas vias coletivas e individuais de respiração! São as desigualdades, antigas como Colombo e Cabral, que sempre estiveram aí!

Manter o mapa invertido, a partir da perspectiva do sul, é fundamental. É uma questão de sobrevivência e de dignidade, diante das mudanças climáticas que já estão aqui. Não seria a pandemia uma de suas manifestações? Certamente. Pois, para nós, os desastres são sempre sociais e políticos, e para enfrentá-los precisamos ir além da simples descrição ou denúncia. Devemos mergulhar na cuidadosa construção de novas tessituras a partir da experiência vivida e da proposta de instrumentos analíticos rigorosos marcados por uma significação que permita na sua apropriação a sua incorporação nas vivências quotidianas imediatamente. Aos vivos, o direito óbvio, imediato e inalienável de viver! Aos vivos, a vida!

Referências

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FASSIN, D.; RECHTMAN, R. L’empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime. Paris: Flammarion, 2007.

HOFFMANN, M. et al. Chloroquine does not inhibit infection of human lung cells with SARS-CoV-2. In: Nature, n. 550, p. 588–590, 2020.

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PORTELLA, S; OLIVEIRA, S. A naturalização da Pandemia no Brasil. In: COVID-19–Perspectivas. Coimbra, Portugal: Observatório Osiris. CES. Universidade de Coimbra, 2020b. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/ficheiros2/sites/osiris/files/OSIRIS_Portella-Santos%20Oliveira.pdf. Acesso em: 2020.

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Notas de autor

1 Doutor em Território, riscos e Políticas Públicas/Universidade de Coimbra. Estratégia Fiocruz para Agenda 2030. Fundação Oswaldo Cruz – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: spportella@gmail.com.
2 Doutora em Saúde Pública/Fiocruz. Escola Nacional de Saúde Pública. Fundação Oswaldo Cruz – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: simone@ensp.fiocruz.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): PORTELLA, S.; OLIVEIRA, S. Processos de vulnerabilização e desigualdades abissais: seria a terra plana e o coronavírus redondo? Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 1, p. 315-324, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p315-324. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15898.

COMO CITAR (APA): Portella, S. & Oliveira, S. (2021). Processos de vulnerabilização e desigualdades abissais: seria a terra plana e o coronavírus redondo? Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(1), 315-324. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p315-324.

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