DOSSIÊ TEMÁTICO: "RISCOS E DESASTRES SOCIOAMBIENTAIS"

Resultantes ambientais da drenagem de superfícies brejais e lacustres na baixada Campista, Norte do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Environmental results from the drainage of wetlands and lakes surfaces in the Campista lowland, North of the State of Rio de Janeiro, Brazil

Resultantes ambientales del drenaje de superficies pantanosas y lacustres en la Baixada Campista, Norte del Estado de Río de Janeiro, Brasil

Adriana Filgueira Leite 1
Universidade Federal Fluminense, Brasil

Resultantes ambientais da drenagem de superfícies brejais e lacustres na baixada Campista, Norte do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 23, núm. 1, 2021

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2021 pelos Autores.

Recepción: 12 Octubre 2020

Aprobación: 04 Marzo 2021

Resumo: Intervenções em ambientes fluviais são medidas tomadas pelo homem desde que este se tornou sedentário. Na baixada Campista, elas tiveram por objetivo principal criar as condições ideais para o estabelecimento da agroindústria açucareira e a ampliação das áreas de cultivo da cana-de-açúcar. Para tanto, foi feita uma ampla drenagem das superfícies brejais e lacustres da região por meio da implantação de uma rede de canais artificiais. Verifica-se que, no presente, as estruturas em questão atuaram de tal modo a intensificar as consequências dos desastres ambientais deflagrados por inundações e secas. Diante deste contexto, o presente trabalho se propõe a fazer um resgate histórico desse processo de drenagem, assim como avaliar as resultantes ambientais advindas de tais intervenções, especialmente, no que se refere à hidrologia dos ambientes fluviais que caracterizam os baixos cursos dos rios e ao agravamento de eventos hidrológicos extremos deflagradores de desastres ambientais.

Palavras-chave: Drenagem de áreas úmidas, Ambientes fluviais, Desastres ambientais, Agroindústria canavieira, Pesquisa hemerográfica.

Abstract: Interventions in river environments are measures taken by men since they have become sedentary. In the Campista lowland, the main objective of these interventions was to create the ideal conditions for the establishment of the sugar agro-industry and the expansion of sugarcane cultivation areas. To achieve this, a wide drainage of the wetland and lacustrine surfaces of the region was carried out through the deployment of a network of artificial channels. Currently, it is clear that these structures acted so that they intensified the consequences of environmental disasters deflagrated by floods and droughts. Given this context, this work presents a historic review of this drainage process, as well as assessment of the environmental consequences of such interventions, especially those regarding the hydrology of river environments that characterize the low courses of rivers, and the worsening of extreme hydrological events which eventually cause environmental disasters.

Keywords: Wetland drainage, Fluvial Environments, Environmental Disasters, Sugar Agro-industry, Newspaper research.

Resumen: Intervenciones en entornos fluviales son medidas tomadas por el hombre desde que éste se convirtió en sedentario. En la Baixada Campista, ellas tenían como objetivo principal crear las condiciones ideales para el establecimiento de la agroindustria azucarera y la ampliación de las zonas de cultivo de la caña de azúcar. Para ello, se hizo un amplio drenaje de las superficies pantanosas y lacustres de la región mediante la implantación de una red de canales artificiales. Resulta que, en el presente, las estructuras en cuestión actuaron de tal manera que intensificaron las consecuencias de los desastres ambientales desencadenados por inundaciones y sequías. Por el consiguiente, este trabajo se propone hacer un rescate histórico de ese proceso de drenaje, así como evaluar las consecuencias ambientales derivadas de tales intervenciones, especialmente, para la hidrología de los ambientes fluviales que caracterizan los bajos cursos de los ríos y el agravamiento de eventos hidrológicos extremos desencadenantes de desastres ambientales.

Palabras clave: Drenaje de zonas húmedas, Ambientes fluviales, Desastres ambientales, Agroindustria azucarera, Búsqueda de periódicos.

1 Introdução

As inundações e as secas são fenômenos naturais que resultam de extremos hidrológicos, ou seja, do excesso de chuvas no primeiro caso, e da ausência delas no segundo caso. A depender da magnitude do impacto e dos respectivos danos que ambas venham a causar à sociedade, assim como da capacidade que esta tem de se recuperar dos danos, elas são consideradas eventos deflagradores de desastres ambientais. Ainda que as inundações e as secas sejam fenômenos naturais desencadeados por fatores de origem meteorológica, hidrológica e geomorfológica (no caso das inundações), observa-se que ambas vêm sendo intensificadas pelas transformações da paisagem impostas pelo homem. Neste processo, destaca-se a substituição das coberturas vegetais por outros usos menos eficientes em promover a infiltração das águas nos solos, o qual prejudica a manutenção dos reservatórios subterrâneos. Entre estes usos se encontram a urbanização, a mineração, a agricultura cujo manejo é inapropriado ao ambiente, a monocultura em larga escala e a pecuária extensiva.

A manutenção dos aquíferos, nestas circunstâncias, mostra-se fundamental por dois motivos. O primeiro refere-se ao fato de que ao assimilarem parte significativa das chuvas durante os períodos úmidos, promovem a redução do aporte de água que converge para os ambientes fluviais, o qual poderia promover o agravamento das inundações. O segundo motivo é que além de os aquíferos constituírem os mais importantes reservatórios de água doce durante os períodos de estiagem, o seu preenchimento durante os períodos úmidos também atua de tal modo a retardar os efeitos mais evidentes e impactantes das secas quando estas se estabelecem em toda a sua plenitude no ambiente.

Contudo, além dos condicionantes até então apontados como agravadores dos desastres ambientais deflagrados por extremos hidrológicos, observa-se que as próprias intervenções que o homem fez e ainda faz no ambiente com o intuito de proteger-se das inundações e/ou ampliar a extensão das terras emersas destinadas às atividades agropecuárias têm contribuído com o mesmo propósito. Esse é o caso das estruturas hidráulicas implantadas na baixada Campista pelo extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) durante a segunda metade do século XX.

A baixada Campista é uma extensa planície fluviomarinha quaternária localizada na margem direita do baixo rio Paraíba do Sul (Região Norte Fluminense). Em sua origem ela era constituída por uma vasta superfície de brejos e lagoas que passou por um progressivo processo de drenagem a partir do início da colonização portuguesa. Esse processo se intensificou na virada do século XIX para o século XX quando houve a conversão de engenhos em usinas e, consequentemente, o aumento da demanda por terras agricultáveis. Sendo assim, a drenagem em larga escala passou a ser uma política de estado que visava à criação das condições propícias ao amplo desenvolvimento da monocultura canavieira, já que esta atendia às necessidades da agroindústria do açúcar e do álcool.

A realização da drenagem das superfícies alagadas deu-se por meio da implantação de uma extensa rede de canais artificiais, que atualmente apresenta 1.293 km de extensão (MENDONÇA, 2014). Considerando que os transbordamentos fluviais deflagradores de desastres também são eventos recorrentes, os quais além de afetarem as populações locais, afetam as áreas em que as atividades agropecuárias se desenvolvem, outras estruturas hidráulicas foram implantadas nos ambientes fluviais da baixada Campista com o objetivo de controlar o comportamento das águas, a exemplo dos diques que margeiam ambas as margens do rio Paraíba do Sul, cuja implantação, gestão e impactos decorrentes foram analisados por Leite (2019), a canalização e perenização de rios temporários que foram incorporados à rede de canais artificiais, e a canalização de trechos de rios perenes (a exemplo dos rios Macabu e Ururaí, ambos tributários da lagoa Feia, a maior dessa região).

Além da própria remoção da cobertura vegetal original que, de acordo com Soffiati (2006, p. 4), era composta por formações pioneiras de influência fluvial (campos herbáceos e vegetação palustre) e florestas ombrófilas densas fluviais, e da drenagem dos brejos que são ecossistemas posicionados na interface entre ambientes terrestres e aquáticos, continentais ou costeiros, naturais ou artificiais, permanente ou periodicamente inundados ou com solos encharcados, cujas águas podem ser doces, salobras ou salgadas, com comunidades de plantas e animais adaptados à sua dinâmica hídrica (JUNK et al., 2013), verifica-se que no intuito de atender às demandas das atividades agropecuárias, a agroindústria canavieira especialmente, as estruturas hidráulicas foram ali implantadas completamente à revelia da flora e da fauna continental e aquática1, e da própria dinâmica hídrica que caracteriza as superfícies brejais e lacustres, a qual é fortemente condicionada pelas oscilações dos níveis freáticos. Tais intervenções, no entanto, cobram o seu preço no presente, na medida em que as resultantes dos extremos hidrológicos foram intensificadas, aumentando desse modo a magnitude dos desastres por eles deflagrados. A agroindústria canavieira, hoje em plena decadência, que constituiu no passado a grande promessa de desenvolvimento para a região, contribuiu significativamente com o agravamento do desemprego e da pobreza (CRUZ, 2003, p. 191, 239), assim como trouxe sérias consequências para o ambiente.

Diante deste contexto, este trabalho se propõe a fazer um resgate histórico do processo de drenagem de superfícies brejais e lacustres que ocorreu por meio da implantação das estruturas hidráulicas na baixada Campista, o qual se encontra diretamente relacionado com o desenvolvimento da agroindústria canavieira e simultânea ascensão das oligarquias rurais, assim como as resultantes ambientais advindas de tais intervenções, em especial, no que se refere à hidrologia dos ambientes fluviais que caracterizam os baixos cursos dos rios e ao agravamento de eventos hidrológicos extremos deflagradores de desastres ambientais.

2 Metodologia

2.1 Pesquisa no acervo documental do DNOS

O Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) foi uma autarquia federal com atuação em âmbito nacional que existiu entre os anos de 1940 e 1990, e foi responsável pela criação das estruturas hidráulicas atualmente existentes na baixada Campista. A pesquisa em questão fez uso dos documentos remanescentes deste órgão após a sua extinção, em 19902, o qual se encontra disponível atualmente no Arquivo Nacional, localizado no município do Rio de Janeiro, e é constituído essencialmente por projetos, relatórios de projetos, relatórios de atividades, orçamentos e processos de licitações de obras.

2.2 Pesquisa hemerográfica

Foram feitas pesquisas no acervo de jornais impressos que se encontra disponível no Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho (localizado no município de Campos dos Goytacazes, RJ). No que se refere aos jornais locais, foram consultadas as coleções referentes aos periódicos “Monitor Campista” (em circulação entre 1834 e 2008) e “Folha da Manhã” (em circulação desde 1978). Consultou-se também o acervo digital do jornal fluminense “O Globo” (em circulação desde 1925) cuja cobertura é nacional.

3Área de estudo

A baixada Campista é uma grande planície fluviomarinha quaternária com 4.470 km² de área, localizada na margem direita do baixo rio Paraíba do Sul, que integra a região norte do estado do Rio de Janeiro (Figura 1). Em sua origem esse ambiente era constituído por superfícies brejais e lacustres que foram drenadas em sua maior parte para criar as condições necessárias para o desenvolvimento da pecuária (no século XVII) e da agroindústria canavieira (a partir de meados do século XVIII) (LAMEGO, 2007). A baixada Campista também engloba os municípios de Campos dos Goytacazes, São João da Barra e Quissamã.

A paisagem local é marcada pela presença do sistema hidrográfico rio Imbé – lagoa de Cima – rio Ururaí – lagoa Feia – canal da Flecha (Figura 1). O rio Imbé e o Ururaí constituem o mesmo rio, mas por questões culturais cada um dos trechos – localizados, respectivamente, a montante e a jusante da lagoa de Cima – acabou recebendo um nome específico. O trecho do rio denominado de Imbé e a lagoa de Cima posicionam-se a montante da baixada Campista, no compartimento montanhoso da Região Norte Fluminense, a Serra do Mar, que é localmente chamada de Serra do Imbé ou do Desengano. O trecho do rio denominado de Ururaí e a lagoa Feia encontram-se posicionados na própria baixada Campista. Apesar de o sistema hidrográfico rio Imbé – lagoa de Cima – rio Ururaí – lagoa Feia – canal da Flecha não ser tributário natural do rio Paraíba do Sul, verifica-se atualmente que ambas as bacias se encontram interligadas por meio de canais artificiais que foram ali estabelecidos em sua maior parte ao longo do século XX e pelo lençol freático.

Mapa de localização da baixada Campista
Figura 1.
Mapa de localização da baixada Campista
Fonte: Nicknig (2016)

No que se refere ao comportamento das chuvas, a Região Norte Fluminense, na qual a baixada Campista encontra-se inserida, caracteriza-se pelos baixos totais pluviométricos anuais. Cerca de 75% dos dias do ano são completamente desprovidos de chuvas. A média anual de chuvas no Centro de Campos dos Goytacazes, a maior cidade da região, é de 1.000 mm. Contudo, verifica-se um decréscimo dos totais anuais de chuvas entre o compartimento montanhoso e o litoral. O segmento litorâneo da Região Norte Fluminense apresenta totais anuais de chuva que variam entorno de 800 mm. As chuvas também são concentradas nos verões e os invernos são secos (LEITE, 2013; PEREIRA, 2016).

Ainda que o verão constitua a estação chuvosa, a ocorrência de inundações deflagradoras de desastres ambientais é episódica. Até por volta da década de 60, tais eventos apresentavam um intervalo de recorrência médio de vinte anos. Contudo, verifica-se que as canalizações e outras intervenções que foram feitas tanto ao longo do rio Paraíba do Sul, quanto nos ambientes fluviais da região do seu baixo curso implicaram a redução desses intervalos para dez anos, e o aumento da magnitude dos desastres (CARTOGRAFIA…, 2016; LEITE, 2019).

4Resultados e discussão

4.1 Breve histórico da implantação da cana-de-açúcar no Norte Fluminense (do período colonial até o início do século XX) que cria as demandas para a realização do processo de drenagem na baixada Campista

O histórico da monocultura da cana-de-açúcar no Norte Fluminense se confunde com a própria história de ocupação dessa região. Quando o primeiro donatário da Capitania de São Tomé, Pero de Góis da Silveira, ali chegou, em 1538, ele se instalou na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, próximo ao rio Itabapoana, no que hoje é o município de São Francisco do Itabapoana, e lá fundou a Vila da Rainha (LAMEGO, 2007, p. 53). O terreno em questão era constituído por tabuleiros da Formação Barreiras, onde foram instalados três engenhos, sendo dois na costa e um onde, de acordo com Pero de Góis, “o rio [Itabapoana] começa a cair em quedas” (LAMEGO, 2007, p. 54). Feito isso, Pero de Góis realizou uma viagem ao reino em busca de financiamento para o seu empreendimento e quando retornou, “encontrou-o abandonado, na medida em que as pessoas que ele havia ali deixado fugiram com o capitão”. Depois desse episódio, ele decidiu recomeçar e reuniu novos colonos. Contudo, um corsário português desembarcou em um ponto da costa, prendeu um cacique Goitacá e o entregou a uma tribo inimiga devido ao fato de não ter recebido o resgate, onde acabou sendo devorado. A partir de então houve um levante dos índios. Apesar de Pero de Góis ter tentado resistir, pouco adiantou. Seus quinze anos de investimentos foram totalmente perdidos, fato este que o levou a abandonar a capitania e retornar à Portugal (LAMEGO, 2007).

Em princípios do século seguinte, Gil de Góis, filho de Pero de Góes, fez uma nova tentativa, mas também sem sucesso. Houve uma nova rebelião dos indígenas, mas, dessa vez provocada pela própria imprevidência do colonizador. Em 1619 Gil de Góis renuncia à Capitania, que passa ao domínio da Coroa (LAMEGO, 2007, p. 55). Por essa razão, os primeiros donatários da Capitania de São Tomé não chegaram a conhecer o seu interior, que era constituído pelas aluviões que dão origem ao solo massapê, os quais eram apropriados ao cultivo da cana. Isso só veio a ser feito a posteriori, por meio de sete fidalgos portugueses, os Sete Capitães. Nesse meio tempo as terras da referida capitania continuaram a ser domínio dos índios Goitacás, mas também contou com a presença de náufragos e degredados europeus (GABRIEL; LUZ, 2012), assim como de missionários jesuítas em fins de 1619 (LAMEGO, 2007, p. 56). O que se diz a respeito dos índios Goitacás é que eles foram a última etnia aborígene do litoral brasileiro a ser dominada pelo colonizador em função de sua grande resistência. Como boa parte das etnias litorâneas, eles eram antropófagos, mas se diferenciavam das demais por serem sedentários (LAMEGO, 2007, p. 90). Praticavam uma agricultura incipiente e viviam dos recursos ambientais que se encontravam amplamente disponíveis no que chamamos atualmente de baixada Campista, como peixes e aves (SOFFIATI, 2018). A obra intitulada “Roteiro dos Sete Capitães”, organizada por Gabriel & Luz (2012), é farta em exemplos demonstrativos a esse respeito.

No ano de 1627, oito anos após o abandono das terras por seus primeiros donatários, as terras da Capitania de São Tomé foram então doadas aos Sete Capitães, que eram fidalgos portugueses que residiam parte no Recôncavo da Guanabara (atual região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro) e parte em Cabo Frio, ou seja, na então Capitania de São Vicente. Boa parte deles possuía engenhos de açúcar em suas propriedades (LAMEGO, 2007, p. 59). Eles receberam essas terras em reconhecimento aos serviços militares que haviam prestado à Coroa no que se refere ao combate e expulsão de invasores franceses que estavam associados aos índios tamoios e tupinambás (LAMEGO, 2007, p. 57). Os fidalgos em questão eram Miguel Aires Maldonado, Miguel da Silva Riscado, Antônio Pinto Pereira, João de Castilho Pinto e os irmãos Gonçalo, Manuel e Duarte Correia de Sá e Benevides (LAMEGO, 2007). O interesse nessas terras se devia ao fato de haver carência de animais para o trabalho de moagem das canas na Capitania de São Vicente, visto que os engenhos de então eram movidos à tração humana ou animal. Assim sendo, eles resolveram criar gado nas novas propriedades adquiridas na Capitania de São Tomé.

Os fidalgos em questão fizeram três viagens à Capitania de São Tomé. A primeira, ocorrida em 1632, tratou de uma campanha de reconhecimento do terreno. Na segunda campanha, ocorrida em 1633, foi feita a divisão das terras entre os fidalgos (GABRIEL; LUZ, 2012, p. 41-42) e o estabelecimento de dois currais para que o gado ali se reproduzisse (GABRIEL; LUZ, 2012, p. 39, 53-54). É importante destacar que os fidalgos em questão tomaram conhecimento previamente a respeito das terras férteis de massapê localizadas no interior do continente por detrás da faixa de restingas por meio dos jesuítas, os quais, conforme mencionado, já haviam estado por lá em 1619. Essa informação foi confirmada durante as duas primeiras expedições, à princípio em conversa com os náufragos (na primeira viagem) e, em seguida, em campo (na segunda viagem) quando foram guiados até elas pelos indígenas e pelos náufragos que ali se encontravam (GABRIEL; LUZ, 2012, p. 35 [primeira viagem] e p. 44 [segunda viagem]). Quanto aos indígenas que os receberam, ainda que também fossem Goitacás, o grupo em questão era dissidente daquele que se localizava na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, ou seja, dos que se opuseram à ocupação iniciada por Pero e Gil de Góis, e eram também menos hostis aos colonizadores (GABRIEL; LUZ, 2012, p. 34-35).

Após a segunda viagem, os Sete Capitães retornaram ainda uma terceira vez à Capitania de São Tomé, em 1634, dessa vez acompanhados pelos capitães Gaspar de Sousa Monteiro e José de Barcelos Velho, que possuíam engenhos no Recôncavo da Guanabara e em Cabo Frio, para que as terras fossem arrendadas. Nesse sentido, pode-se afirmar que o início da colonização da Capitania de São Tomé teve por base a atividade pecuária em pequenas propriedades. Contudo, essa tendência, infelizmente não se manteve por muito tempo. No ano de 1648, o então governador do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá, ao tomar conhecimento da grande fertilidade das terras da planície Goitacá, uniu-se aos clérigos das ordens dos Beneditinos e dos Jesuítas para pleitear terras da Capitania de São Tomé. Feita essa investida, eles firmaram um acordo com os capitães ainda vivos, segundo o qual haveria respeito à herança dos seus descendentes (LAMEGO, 2007, p. 61). De qualquer forma, a família de Salvador Correia de Sá, assim como as ordens monásticas ficaram com a maior parte das terras, fazendo com que passasse a prevalecer ali, a partir de então, a grande propriedade fundiária. Os descendentes do general Salvador Correia de Sá passaram a ser chamados de Viscondes de Asseca. Sua atuação na Capitania de São Tomé foi marcada por um forte autoritarismo que teve diversos desdobramentos políticos e econômicos para a região em questão, durante o intervalo de mais de um século (LAMEGO, 2007, p. 60-75).

De qualquer forma, destaca-se que durante esse período apesar de não haver possibilidade para que a atividade fabril da cana-de-açúcar tivesse expressão no cenário econômico da então Capitania de São Tomé, ela passou a se desenvolver nesta localidade de forma bastante pontual. Nesse sentido, verifica-se que o primeiro engenho de açúcar foi instalado pelo próprio general Salvador Correia de Sá, em 1650 (LAMEGO, 2007, p. 61). De acordo com Lamego, em 1656 “já começam a fumegar as primeiras chaminés de engenhocas de aguardentes” e, em seguida, de açúcar (LAMEGO, 2007, p. 75). O fato de não ter havido ali um desenvolvimento pleno dessa atividade deveu-se principalmente ao regime autoritário estabelecido pelos Assecas. Lamego (2007) afirma que “as pesadas taxas dos donatários abafavam a indústria nascente e vários engenhos de ‘águas ardentes e méis’ tiveram que fechar”. Apesar de as grandes propriedades serem subdivididas em parcelas menores que eram arrendadas para foreiros, devido às divergências políticas existentes entre os latifundiários e a comunidade da Capitania, de onde provinham os pequenos produtores rurais que atuavam na pecuária e se tornavam arrendatários, as relações entre eles eram extremamente instáveis. Nesse sentido, sempre que havia uma divergência política, os foreiros eram expulsos das terras, mesmo que isso contrariasse as cláusulas contratuais do foro. Por esse motivo, os foreiros não se sentiam seguros para desenvolver atividades que os fixassem à terra, a exemplo da agricultura, tendo preferência pela criação de animais, porque estes poderiam ser deslocados nas ocasiões em que havia o rompimento dos contratos (LAMEGO, 2007, p. 101).

Independentemente das dificuldades impostas pelo regime autoritário, a pecuária foi uma atividade que prosperou bastante enquanto os Assecas exerceram domínio sobre a Capitania de São Tomé. A carne era exportada tanto para o Recôncavo da Guanabara (LAMEGO, 2007, p. 76), quanto para a região da mineração que começava a emergir no cenário econômico brasileiro (ANDRADE, 1994, p. 70; LAMEGO, 2007, p. 77). No entanto, apesar de a pecuária prevalecer, pequenas engenhocas já existiam, conforme mencionado, e atividades de subsistência também eram praticadas em pequena escala. No que se refere ao ambiente da planície, verifica-se que já havia um movimento inicial no sentido de se promover a drenagem das superfícies brejais e lacustres, ainda que incipiente (LAMEGO, 2007, p. 96-97). Contudo, verifica-se que a limpeza de rios e sangradouros de lagoas era regular durante esse período, favorecendo, desse modo, o escoamento eficiente das águas durante os períodos chuvosos. Essa limpeza era feita pelos produtores rurais em sentido amplo, mas em sua maior parte pelas ordens religiosas (LAMEGO, 2007, p. 97). Essa informação vai ao encontro do que afirma Couto Reis (2011, p. 66), o qual dá ênfase ao trabalho realizado pelos jesuítas. De acordo com o testemunho do autor, “consta-me por testemunhos certos, que os jesuítas com gênio e economia inimitável tinham a cautela de darem de tempos em tempos uma limpeza total nos córregos e rios desta qualidade, e por isso então ofereciam desembaraçada navegação e passagem fáceis de vadear-se”.

Com a queda dos Assecas, em 1750 (LAMEGO, 2007, p. 70), o cenário econômico passa por uma reviravolta. Ainda que as terras se mantivessem fortemente concentradas em latifúndios, a instabilidade política foi finalmente superada. Nesse sentido, os pequenos produtores que eram arrendatários viram na monocultura canavieira uma possibilidade de auferir lucros maiores que os obtidos com a pecuária, e começaram a investir nessa atividade (LAMEGO, 2007, p. 104). Andrade (1994, p. 70) afirma também que “a descoberta de minas nas Gerais acarretou uma grande transformação na Capitania do Rio de Janeiro3, não só porque a cidade era o porto de escoamento do ouro e da importação de mercadorias e de escravos utilizados na região das minas, mas também porque aumentou a demanda de alimentos. O Recôncavo da Guanabara não tinha condições de atender à demanda de açúcar das Gerais e, como a planície tinha condições para essa cultura, ela se expandiu, ocupando a área”.

Durante um bom tempo a pecuária ainda prevaleceu, mas a partir de meados do século XVIII, mais precisamente, em 1752, o seu declínio e a ascensão da cana-de-açúcar passaram a ser uma realidade. No entanto, as unidades fabris não constituíam grandes engenhos como os que existiam no Nordeste do Brasil (LAMEGO, 2007, p. 76). Eram engenhocas4 movidas à tração humana ou animal estabelecidas em pequenas propriedades (LAMEGO, 2007, p. 79, 82-83, 101-102) e empreendidas por produtores rurais rústicos e sem instrução (LAMEGO, 2007, p. 83, 95). Lamego (2007, p. 95, 103) alega que a produção em pequenas propriedades se manteve na planície Goitacá devido ao seu isolamento promovido pela presença de superfícies brejais e das lagoas. Nesse particular, e considerando que se tratavam de pequenos produtores rurais, o proprietário da engenhoca era individualista e fazia uso da própria força de trabalho e a de sua família. Em alguns casos, contavam com o auxílio de dois a três escravizados que eram adquiridos após começarem a prosperar com a atividade canavieira (BERNARDES, 1957, p. 194-195; LAMEGO, 2007, p. 102). Por esse motivo, pelo menos nesse momento, não se pode falar ainda de uma aristocracia rural, ou de uma civilização do açúcar, na planície Goitacá (LAMEGO, 2007, p. 109). Apenas alguns poucos senhores de engenho poderiam ser incluídos nesse estereótipo de proprietários rurais, a exemplo de Joaquim Vicente dos Reis e José Carneiro da Silva, que foi o primeiro Visconde de Araruama (LAMEGO, 2007, p. 109). Esse contexto modifica-se apenas quando os engenhos a vapor são introduzidos na planície Goitacá, no início do século XIX (LAMEGO, 2007, p. 106, 109).

O crescimento do número de engenhocas ao longo dos séculos XVIII e XIX foi enorme. Entre 1769 e 1783, ou seja, em um intervalo de apenas 14 anos, foram levantados na planície 223 novos engenhos e engenhocas (LAMEGO, 2007, p. 102). Esse desenvolvimento deu-se principalmente no segmento posicionado entre a lagoa Feia e o rio Paraíba do Sul, onde se concentram os solos massapês. O gado não desapareceu por completo, mas ficou relegado à periferia da Capitania, ou seja, às áreas arenosas e menos férteis das restingas (LAMEGO, 2007, p. 76-77). Durante esse período, todo pedaço de terra passou a ser cultivado com cana, algo que fez com que as culturas de subsistência deixassem de existir por completo (LAMEGO, 2007, p. 104). Os bois necessários ao trabalho nas engenhocas e a carne para o consumo humano passaram a ser importados de outras áreas do território brasileiro, inclusive de Minas Gerais, para onde Campos costumava exportar ambos os artigos durante o período áureo da pecuária (LAMEGO, 2007, p. 77).

Outra questão importante, é o fato de que os canais e sangradouros das lagoas deixaram de ser desobstruídos pelos produtores rurais a partir do momento em que se tornaram produtores de cana (LAMEGO, 2007, p. 110). Nesse sentido, cabe aqui retomar mais uma vez o trabalho de Couto Reis, segundo o qual houve dificuldades para que se mantivesse a limpeza dos córregos após a extinção da Ordem Jesuíta no Brasil. De acordo com o autor, “depois daquela extinção tentaram algumas fazendas grandes fazer os mesmos benefícios; esmoreceram por descuriosos e pouco zelosos do bem público, dizendo que com todo o povo juntamente não concorre para aquele necessário e importantíssimo serviço, e não veem para o seu interesse pessoal a menor precisão, não estão para sujeitar-se a um trabalho inútil (…)” (COUTO REIS, 2011, p. 66). No entendimento de Lamego, essa atitude causava o agravamento das inundações do rio Paraíba do Sul, pelo fato de suas águas alcançarem as lagoas e estas não possuírem escoadouros, devido à sua constante obstrução.

Trata-se de um dado fundamental por constituir a evidência decisiva de que a obstrução da rede hídrica corresponde a um comportamento natural concernente aos ambientes fluviais que caracterizam os baixos cursos dos rios e que, consequentemente, sempre ocorreu5. Nesse sentido, constata-se que ao invés de aumentar a eficiência do escoamento das águas durante os períodos mais úmidos, a implantação da atual rede de canais artificiais atua de tal modo a ampliar a magnitude espacial desse mecanismo de escoamento que se caracteriza por ser mais lento. Assim sendo, verifica-se que ao drenar as superfícies brejais, que eram eficientes em dissipar as águas, ampliou a rede de cursos d’água por vias artificiais, ampliando também o potencial de obstrução da rede de canais. Para fins de atividades econômicas, o escoamento dos canais só ocorreria livremente se houvesse manutenção constante para eles, ou seja, o mesmo trabalho que era feito pelos jesuítas.

Lamego (2007, p. 110-111) também menciona os desdobramentos dos desastres deflagrados por inundações ao citar epidemias de malária e paludismo, responsabilizando, por isso, a existência dos pântanos. Nesse ponto, o autor em questão também concorda com Couto Reis, na medida em que este ao criticar a negligência dos praticantes de atividades agropecuárias no que se refere à limpeza de córregos e rios afirma que “(…) menos lembrados de que com estes descuidos ou negligência, virão a experimentar nos seus campos e gados gravíssimos danos; e a razão é porque as águas não tendo livre expedição ficam paradas; e quem duvidará que daqui se sigam as podridões e consequentemente as epidemias?” (COUTO REIS, 2011, p. 66).

Contudo, Ab’ Saber (1987) ao fazer uma análise a respeito das origens das doenças tropicais no Brasil, conclui que elas são, na realidade, doenças trazidas pelos povos que vieram de outras regiões do mundo (Europa, Ásia e África), em especial, das regiões tropicais da África, em virtude do tráfico negreiro e ingresso compulsório de populações escravizadas doentes. Apesar de o autor afirmar que a documentação produzida a respeito desse assunto ser mais concentrada na região amazônica, havendo carência no que se refere às demais regiões do país, as litorâneas (nordeste, sudeste e sul), que foram as pioneiras da colonização, é possível supor que o mesmo ocorreu nas regiões menos estudadas, já que as doenças nelas evidenciadas eram as mesmas notificadas na região amazônica. Nesse sentido, pode-se afirmar que a insalubridade atribuída a estes ambientes, pelo menos na América do Sul, não era uma característica original sua, e sim trazida pelos colonizadores. Para Soffiati:

Houve muita confusão entre epidemias transmitidas por insetos que desovavam em água estagnada e a presença de muita água com pouca movimentação. Atualmente existe muita água parada nos centros urbanos. Ela se constitui em ambientes ideais para a proliferação de mosquitos vetores porque não existem predadores dos insetos (SOFFIATI, 2018, p. 106).

O autor ainda argumenta que duas situações podem ter ocorrido: 1- os órgãos de drenagem não sabiam plenamente que a relação lagoa – epidemias não se sustentava; e 2- a expressão saneamento foi usada de maneira ideológica para atender à economia agropecuária (SOFFIATI, 2018, p. 106).

Isso nos permite fazer um paralelo com a situação atual, já em um contexto em que a drenagem se encontra plenamente efetivada, na qual as grandes inundações costumam ser sucedidas por surtos de doenças de veiculação hídrica. Verifica-se que, em ambos os casos, do passado e do presente, além da falta de predadores para os vetores de doenças, trata-se de conjunturas que nos remetem mais à problemas relacionados à precariedade da infraestrutura urbana e rural do que à simples presença de superfícies brejais e sua suposta insalubridade, algo que é demonstrativo de que pouco mudou ao longo do tempo. Nesse sentido, apesar do intenso processo de drenagem dos pântanos ocorrido entre o final do século XIX e todo o século XX, as doenças permaneceram, mas agora com outros nomes. Se antes eram malária e paludismo, hoje são gastroenterites, leptospirose e dengue relacionada ao desenvolvimento do mosquito Aedes Aegypti em águas paradas.

Retomando a questão do desenvolvimento da agroindústria canavieira na baixada Campista, verifica-se que no ano de 1827 já existiam 700 engenhocas na planície. Contudo, esse ano constituiu também o marco da mudança de paradigma na produção canavieira, na medida em que foi ali instalado o primeiro engenho a vapor6. Em 1834, mais três já fumegam (LAMEGO, 2007, p. 113). Considerando que a capacidade produtiva deste tipo de unidade fabril era muito superior à das engenhocas, verificou-se então um aumento da demanda por canas para moagem. Por esse motivo, observa-se que ao longo do século XIX diversas engenhocas deixaram de existir e suas terras, que eram pequenas propriedades, passaram a ser incorporadas aos engenhos. Foi o início do processo de concentração das terras na planície Goitacá (LAMEGO, 2007, p. 113-14). Sendo assim, de pequenas propriedades, as unidades produtoras de açúcar passaram a constituir médias propriedades naquela região (LAMEGO, 2007, p. 117). Nesse momento, forma-se ali uma aristocracia rural, patriarcal, instruída e possuidora de títulos nobiliárquicos, que forma seus descendentes em universidades prestigiadas da Europa, ou seja, uma verdadeira sociedade do açúcar, a qual passa a ocupar os principais cargos políticos da região (LAMEGO, 2007, p. 117). Em outras palavras, este acontecimento também constituiu o marco do início da hegemonia da aristocracia rural que até hoje prevalece na região.

Lamego (2007, p. 116) afirma que o processo de conversão das engenhocas em engenhos a vapor só foi possível na região da baixada Campista devido à existência do regime escravocrata. De acordo com o autor, para o funcionamento dos engenhos a vapor era imprescindível a existência de trabalhadores servis e disciplinados, coisa que os produtores rurais independentes brancos e pobres da baixada Campista seriam incapazes de fazer, devido ao seu histórico de rebeldia (herdado do tempo dos Assecas) e individualismo. Esse individualismo seria uma consequência direta do isolamento espacial, já aqui mencionado. Lamego afirma, inclusive, que esse teria sido o motivo para a formação tardia de uma aristocracia rural na planície Goitacá (a partir do século XIX).

Esse período de auge dos engenhos e da aristocracia rural, no entanto, teve uma curta duração, na medida em que no final do século XIX houve uma nova mudança de paradigma técnico relacionado ao processo de produção açucareira. Nesse momento são introduzidos os engenhos centrais e, posteriormente, as usinas7. O grande marco desse acontecimento foi a inauguração do Engenho Central de Quissamã, em 12 de setembro de 1877. Em seguida, entre 1879 e 1880, o do Limão. Em 1880 e 1881, os de Figueira, Conceição, Queimado e Cupim. Pouco depois, em 1885, já se encontram fumegando os de São José, Mineiros, Santa Cruz, Colégio, Coqueiros, Fazenda Velha, Santo Antônio, São João e Pedra Lisa. Ao todo são 17 usinas e mais 6 grandes engenhos (LAMEGO, 2007, p. 115). Com as usinas, a aristocracia rural entra em declínio e o título de senhor de engenho é desprestigiado (LAMEGO, 2007, p. 117-118).

Em termos de estrutura de funcionamento, engenhos centrais e usinas eram idênticos. A diferença consistia apenas no fato de que os engenhos centrais não podiam utilizar mão de obra escravizada e nem produzir a própria matéria-prima, algo que era franqueado às usinas (ANDRADE, 1994, p. 20). Havia, desse modo, um esforço em separar a atividade agrícola da industrial, no caso dos engenhos centrais (ANDRADE, 1994, p. 71). A partir de então duas possibilidades se apresentaram aos antigos senhores de engenho. A primeira seria converter os engenhos em usinas, já que os engenhos centrais só poderiam pertencer a pessoas jurídicas (ANDRADE, 1994). A segunda seria abrir mão dos engenhos e passarem a ser fornecedores de cana para engenhos centrais e usinas. As duas situações ocorreram, sendo que na região da baixada Campista a segunda opção prevaleceu (ANDRADE, 1994, p. 72; LAMEGO, 2007, p. 117).

Apesar de as usinas poderem produzir a própria matéria-prima, a demanda era muito grande, e por esse motivo, elas sempre tinham que apelar para fornecedores de cana independentes. Devido a este fato, os antigos senhores de engenho que não conseguiam produzir açúcar em proporções semelhantes, passaram a produzir cana para as usinas. Os banguês foram gradativamente desmontados e anexados às usinas. Posteriormente, parte dessas terras passou a ser propriedade das usinas, fazendo com que a produção do açúcar se baseasse, a partir de então, na grande propriedade. Nesse processo de anexação de terras, as usinas se tornaram grandes latifúndios. Contudo, apesar da expansão do latifúndio, verifica-se que houve uma resistência da pequena propriedade, na medida em que as engenhocas resistiram à expansão do domínio das usinas. Muitos desses pequenos proprietários foram também transformados em fornecedores de cana (ANDRADE, 1994, p. 72; BERNARDES, 1957, p. 200).

Com o passar do tempo, os engenhos centrais não conseguiram prosperar. Ou faliram, ou se transformaram em usinas. Pelo fato de não poderem produzir a própria matéria-prima, os engenhos centrais eram totalmente dependentes dos fornecedores de cana, e estes nem sempre cumpriam seus contratos ou supriam a necessidades dessas empresas no sentido de poderem processar a cana de acordo com a sua capacidade máxima (ANDRADE, 1994, p. 20). No final da Primeira República, os engenhos centrais foram substituídos por numerosas usinas (ANDRADE, 1994, p. 36). Os fornecedores de cana, por sua vez, se sentiam injustiçados; alegavam erros na pesagem da cana (ANDRADE, 1994, p. 37). Esses, aliás, foram problemas que também se estenderam às usinas e tiveram continuidade ao longo do século XX.

O processo de conversão de engenhos em usinas e da criação de novas usinas que havia se iniciado no último quartel do século XIX, teve continuidade até as décadas de 30 e 40 (CRUZ, 2003). Em um primeiro momento, as usinas se multiplicaram na paisagem da baixada Campista. A posteriori muitas delas se endividaram, e/ou passaram a apresentar deficit de matéria-prima. Nesse processo, algumas entraram em falência e outras se fundiram. Esse, aliás, também foi um processo que teve continuidade ao longo do século XX (ANDRADE, 1994). Verifica-se assim que o número de usinas decresce, mas a produção aumenta, porque com latifúndios cada vez maiores elas podem ter acesso a uma quantidade maior de matérias-primas e funcionar de acordo com a sua capacidade máxima (LAMEGO, 2007, p. 119). Contudo, a demanda por canas é sempre crescente. A planície Goitacá, também conhecida como baixada Campista, se torna uma das maiores produtoras de açúcar do Brasil, perdendo apenas para o Nordeste, e a partir da Segunda Guerra Mundial passa a sofrer a forte concorrência de São Paulo.

É nesse momento, ou seja, no final do século XIX e início do século XX, que a demanda por terras surge como uma necessidade essencial para a produção de cana-de-açúcar e que entram em cena as diversas comissões de saneamento da baixada Fluminense8, as quais se sucederam no trabalho de transformação dos ambientes fluviais, por meio da drenagem de superfícies brejais e lacustres e da canalização de rios, para atender a esse propósito. A atuação dessas comissões culminou na criação do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) em 1940, cuja atividade se estendeu até 1990, quando foi extinto. O trabalho dessas comissões e principalmente do DNOS, assim como o processo de criação e expansão da rede de canais da baixada Campista, encontram-se amplamente analisados na obra do Professor Arthur Soffiati, em especial, Soffiati (2018) que trata, entre outros temas relacionados, de uma síntese dos trabalhos até então publicados pelo autor a respeito desse assunto.

Verifica-se, a partir desse momento, a intervenção do Estado brasileiro no sentido de subsidiar as atividades econômicas destinadas ao mercado externo, e o fortalecimento das oligarquias rurais. No caso da baixada Campista, verifica-se que desde então esse grupo hegemônico de poder passou a interferir nas decisões relacionadas à gestão dos recursos hídricos.

4.2 Intervenções realizadas na baixada Campista e o agravamento dos desastres deflagrados por inundações e da escassez hídrica

Conforme mencionado na introdução deste trabalho, as intervenções realizadas nos ambientes fluviais da baixada Campista, ou seja, a implantação das estruturas hidráulicas, foram responsáveis pela intensificação das resultantes de eventos hidrológicos extremos – as inundações e as secas. Cabe, porém, aqui a observação de que tais intervenções ocorreram na região do baixo rio Paraíba do Sul como um todo, a qual abrange ambas as margens deste rio, ainda que a ênfase deste trabalho se concentre na área contemplada pela baixada Campista, que está localizada na margem direita.

Sendo assim, verifica-se que as estruturas hidráulicas que foram ali implantadas se referem: (1) aos diques que margeiam o rio Paraíba do Sul, localizados entre os municípios de Campos dos Goytacazes, São João da Barra e São Francisco de Itabapoana; (2) à rede de 1.293 km de canais artificiais que corta a região do baixo rio Paraíba do Sul, ali inserida com o intuito principal de drenar as superfícies brejais e lacustres para atender aos propósitos das atividades agropecuárias. É importante destacar que destes canais, quatro foram ali implantados com a finalidade de promover a navegação. Estes foram os casos dos canais Campos–Macaé, situado na margem direita do rio Paraíba do Sul, o qual adquiriu importância nacional, e os de Cacimbas, do Nogueira e da Onça, todos localizados na margem esquerda do mesmo rio. Ainda que pareça contraditório o fato de que os canais de navegação, que necessitam de água para viabilizar a sua finalidade, tenham causado a drenagem das terras, isso é perfeitamente factível quando se leva em conta o fato de que o procedimento utilizado para a implantação dos canais de navegação é exatamente o mesmo utilizado para a implantação dos canais destinados à drenagem de terras. E de fato foi o que acabou ocorrendo, visto que os canais de navegação ora mencionados provocaram a drenagem total ou parcial de lagoas (Arthur Soffiati, comunicação pessoal). Contudo, a presença de água nesses e em todos os demais canais deve-se ao fato de haver adução do rio Paraíba do Sul, algo que ao longo do tempo mostrou-se uma questão bastante problemática, em especial em um contexto onde se verifica a ocorrência de declínio das vazões (LEITE, 2019), conforme será discutido a seguir, neste trabalho; (3) à perenização de parte dos cursos fluviais temporários da margem direita do rio Paraíba do Sul, incorporados, por sua vez, a já referida rede de canais artificiais; e (4) à canalização de parte dos segmentos meandrantes dos rios Macabu e Ururaí, que são tributários da lagoa Feia. O rio Macabu drena a região serrana localizada a montante da baixada Campista e converge para a lagoa Feia. Já o rio Ururaí faz a ligação entre as duas principais lagoas da região, a lagoa de Cima, localizada no segmento serrano, e a lagoa Feia, constituindo a continuidade do rio Imbé, mas com o nome modificado (DNOS, 1949; SOFFIATI, 2009).

A partir de agora, será feita uma apreciação a respeito da performance destas estruturas hidráulicas ao longo do tempo. No que se refere aos diques que margeiam o rio Paraíba do Sul, verifica-se que houve manutenção para eles enquanto o DNOS existiu. Contudo, após a extinção deste órgão, eles entraram em franco processo de deterioração, culminando no seu rompimento em diversos trechos e em diversas ocasiões, sendo a mais emblemática evidenciada até o presente, a ocorrida no ano de 2007, em que ambas as margens do rio Paraíba do Sul foram atingidas. A discussão a esse respeito, no entanto, encontra-se no trabalho de Leite (2019) e não será aqui abordada.

4.2.1 Os canais da baixada Campista (produtos da perenização de rios temporários e da implementação de estruturas artificiais)

No que se refere aos canais, verifica-se que receberam manutenção relativamente frequente durante a gestão feita pelo DNOS. Após a extinção desse órgão, eles ficaram cerca de sete anos em estado de completo abandono, sendo assumidos em 1997 pela Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes, por intermédio da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Defesa Civil (BACIA…, 2006). Posteriormente, eles passaram a ser geridos ora pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, inicialmente pela antiga Fundação Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (SERLA), e depois pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA). Atualmente, o INEA realiza esse trabalho em parceria com o Comitê da bacia do baixo rio Paraíba do Sul e Itabapoana (CBH BPSI). No entanto, mesmo durante a gestão do DNOS, o problema relacionado com a obstrução dos canais era frequente. De acordo com pesquisas realizadas na documentação do DNOS e em jornais da época, verifica-se que as dificuldades de então eram exatamente as mesmas que as contemporâneas, ou seja, assoreamento das calhas, presença de esgoto e vegetação sobrenadante na água [nem sempre] corrente, além de comportas em péssimo estado de funcionamento.

Mesmo assim, ao invés de se investir na desobstrução da rede de canais (naturais e artificiais) já existente, optou-se pela ampliação da rede de canais artificiais. Um registro que exemplifica essa prática é a reportagem publicada no jornal “O Globo” de 12/01/1943 (SERÃO…, 1943, p. 8 da edição matutina), na qual se afirma que “o interventor Amaral Peixoto acaba de determinar o apressamento das obras de abertura de canais, notadamente na lagoa Feia, para evitar novas inundações”. Como se poderia esperar, essa medida mostrou-se inútil, já que o escoamento lento e a frequente obstrução dos canais têm relação com a baixa declividade. Um dos indícios de que a ampliação da rede de canais não trouxe o esperado aumento da eficiência do escoamento das águas durante as inundações encontra-se no discurso do senador campista Vasconcelos Torres proferido no dia 03/05/1965. Nesta ocasião, ele afirma que “trinta e sete localidades da baixada Campista, onde se localizam as plantações de cana-de-açúcar do Estado do Rio, ficaram isoladas do resto do Estado, em consequência das inundações provocadas pelo entupimento de canais que margeiam a lagoa Feia” (VASCONCELOS TORRES, 1976, p. 43).

O senador sinaliza também que, tal como ainda acontece hoje em dia, as medidas de desobstrução foram tomadas apenas após os estragos já terem sido feitos:

Sou sabedor, Senhor Presidente, de que o Departamento Nacional de Obras de Saneamento iniciou há poucos dias, em ritmo forçado de trabalho, com o emprego de 8 dragas e de cento e cinquenta homens, a dragagem do canal das Flechas – que assegura a comunicação da lagoa Feia com o mar, bem como de outros, que, hoje obstruídos, vêm provocando as inundações (VASCONCELOS TORRES, 1976, p. 46).

Ainda no mesmo discurso, o senador Vasconcelos Torres apresenta a justificativa do então Diretor Geral do DNOS, Celso Bierrenbach de Castro, para o atraso das obras de manutenção:

A situação atual é provocada por excesso de pluviosidade na região que encontrou alguns canais com atraso de limpeza e conservação devido à rescisão de contrato com o empreiteiro no início deste ano, apesar das providências imediatas para a adjudicação dos serviços por coleta de preços, esse atraso não foi totalmente recuperado (VASCONCELOS TORRES, 1976, p. 47).

Verifica-se que, tal como acontece atualmente, nunca houve a destinação de uma verba fixa nem para se manter a frequência da desobstrução da rede de canais e nem muito menos para fazê-la durante o momento do ano mais apropriado para esse tipo de trabalho, ou seja, o inverno, que é o período de estiagem, e antecede o período chuvoso. Curioso também é o fato de o diretor geral do DNOS, que se pressupõe ser um técnico e, portanto, conhecedor das variações do comportamento pluviométrico anual, culpar as chuvas pelo transbordamento dos canais, ainda que seja de amplo conhecimento, mesmo por não técnicos, que os períodos úmidos são chuvosos e que estes tendem a se repetir todos os anos. Uma interpretação possível para este posicionamento refere-se ao fato de o mesmo não querer assumir a responsabilidade pela negligência que trouxe enormes prejuízos às atividades econômicas para as quais os canais estavam à serviço.

Pouco mais de vinte anos após esse episódio, no final da década de 80, os registros que tratam sobre a mesma problemática persistem. No dia 18/11/1987, o Jornal Monitor Campista informa que “a União Democrática Ruralista Regional faria uma cobrança ao DNOS e a CPRJ [Capitania dos Portos do Rio de Janeiro] referente a aplicação criteriosa de verbas para limpeza de canais de drenagem (…)” (UDR…, 1987).

Somando-se mais vinte anos a este acontecimento, em 2007, apesar de o problema relacionado ao agravamento das inundações provocado pelos rompimentos dos diques de ambas as margens do rio Paraíba do Sul ter tido um destaque maior na mídia, a questão da obstrução dos canais foi também amplamente documentada por ela. Em meados do mês de novembro de 2006, o então presidente da Associação Fluminense dos Plantadores de Cana (ASFLUCAN), Luiz Eduardo Crespo, afirmou que:

“É urgente a limpeza dos canais de Coqueiros e São Bento. A prefeitura começou a trabalhar, mas o mato cresce muito mais rápido do que a liberação de verbas, o maquinário também deficitário. Outro ponto é a abertura e fechamento das comportas dos canais de Coqueiros, Cambayba e São Bento, mas estamos conseguindo equacionar, provisoriamente, através de ações conjuntas com a Prefeitura e a Serla. Só com esses problemas resolvidos os produtores estão livres do caos que as chuvas podem acarretar” (CHUVAS…, 2006, grifo do autor).

Verifica-se que, nessa circunstância, tal como nas anteriores, o período úmido iniciou-se com os canais ainda obstruídos (Figura 2). O diretor da ASFLUCAN destaca que “o mato cresce mais rápido do que a liberação de verbas”, mas não se posiciona a respeito do problema da ineficiência dos serviços de coleta e tratamento de esgotos na região. A presença de grandes concentrações de esgoto nas águas que percorrem os canais, associada à sua baixa vazão, é o fator que desencadeia o processo de eutrofização que, por sua vez, determina o crescimento da vegetação no interior dessas estruturas.

Canais da baixada Campista obstruídos em 2007
Figura 2.
Canais da baixada Campista obstruídos em 2007
Fonte: BAIXADA… (2006)

O trabalho de desobstrução iniciou-se apenas no dia 27/11/2006 (BAIXADA…, 2006), em plena estação úmida, quando as chuvas já haviam começado a incidir. Contudo, nessa circunstância, houve a agravante de os totais pluviométricos terem sido bastante superiores ao da média registrada para o período, quando a desobstrução ainda estava longe de ser concluída (PRODUTORES…, 2006).

No dia 04/01/2007, o presidente da ASFLUCAN volta a se pronunciar afirmando que “mais de 20 mil hectares de área produtiva já estão enfrentando problemas de alagamento devido às fortes chuvas que castigam a região desde segunda-feira [01/01/2007]” (MAIS…, 2007). Em uma das notas publicadas em sua coluna de opinião, o jornalista Aluysio Barbosa afirma que “(…) as chuvas de dezembro de 2006 e as que desabaram agora no início de janeiro transformaram as lavouras de cana-de-açúcar em um brejo (…)” (REPETINDO…, 2007, grifo do autor). Alguns dias depois, o mesmo jornalista retoma a questão em uma nota intitulada “A cana foi para o brejo” (A CANA…, 2007, grifo do autor). Não surpreende o fato de que em circunstâncias como esta, na qual as chuvas que incidem são muito concentradas, os ambientes fluviais que caracterizam os baixos cursos dos rios retomem seus processos originais e mais eficientes de dissipação das águas, os quais são adaptados às condições de baixa declividade do terreno. Assim sendo, é provável que, mesmo com a total desobstrução da rede de canais, o ambiente teria respondido exatamente da mesma forma.

A situação dos canais ainda permanece idêntica no presente. Verifica-se que, apesar de terem causado o rompimento do equilíbrio que havia no comportamento hídrico da região, uma vez que foram implantados, os canais necessitam de desobstrução permanente. Apesar de o seu transbordamento não constituir o fator principal de deflagração de desastres ambientais, constata-se que tais eventos são significativamente agravados quando os canais extravasam. Isso ocorre tanto pelo transbordamento em si, que afeta moradias, quanto pela carga de esgoto diluído que transporta e culmina na ocorrência de epidemias.

Outra constatação fundamental é o fato de que em eventos extremos de inundações nem mesmo a desobstrução dos canais é capaz de conter a tendência natural ao espraiamento lateral das águas típico das superfícies brejais, por serem ambientes que se caracterizam por apresentar lençóis freáticos aflorantes. Mesmo as superfícies brejais que passaram por processos de drenagem ressurgem durante os períodos úmidos, pelo fato de as chuvas, ao infiltrarem, causarem a ascensão dos lençóis freáticos durante essas ocasiões. Nesses casos, a desobstrução pode minimizar os efeitos dos transbordamentos, mas não os evitar por completo, como foi o caso do evento de 2007 aqui comentado.

4.2.2 Canalização de rios e outras estruturas hidráulicas associadas

Conforme mencionado, o processo de canalização de rios na baixada Campista afetou os rios Macabu e Ururaí. Apesar de convergir para a lagoa Feia e influenciá-la significativamente, o rio Macabu possui a maior parte do seu leito fora da área compreendida pela baixada Campista e, por esse motivo, o seu comportamento não se encontra suficientemente documentado nos jornais que foram selecionados para a realização desse estudo. Por essa razão, ele não será abordado nesta análise.

Em relação à canalização do rio Ururaí (que neste caso envolve a retilinização do leito), tal como o estabelecimento dos canais, visou ela a atender ao propósito de aumentar a eficiência do escoamento das águas durante os períodos úmidos e, nesse caso, especificamente, porque após a conversão dos antigos cursos fluviais temporários da rede distributária do rio Paraíba do Sul em canais permanentes, o Ururaí que já recebia parte das águas dos transbordamentos deste rio durante os períodos úmidos, passou a recebê-las de forma permanente.

No que se refere a rede hidrográfica distributária, verifica-se que o padrão de drenagem mais comum encontrado na natureza é o de rios tributários ou afluentes, no qual os canais que se encontram em posição altimétrica mais elevada convergem para os de posição altimétrica mais baixa e de maior ordem hierárquica. Contudo, grandes bacias hidrográficas, como é o caso da bacia do rio Paraíba do Sul, podem apresentar um padrão invertido nos trechos próximos à foz, ou seja, nos seus baixos cursos. Neste caso, observa-se a presença de cursos fluviais que têm sua origem no rio principal, localizado em uma posição altimétrica mais alta em relação ao entorno, e a partir dali se deslocam em direção aos pontos de menor altitude do terreno. O mecanismo em questão expressa a eficiência da rede hidrográfica em dissipar o excesso de água transportado pelo canal principal. Pelo fato de constituir o segmento da rede hidrográfica que recebe contribuições provenientes de todas as áreas posicionadas a montante, trata-se também do ponto para o qual converge a maior quantidade de água da bacia.

Voltando ao rio Ururaí, verifica-se que antes das canalizações promovidas pelas Comissões de Saneamento que atuaram na baixada Campista, a rede distributária do rio Paraíba do Sul, concentrada basicamente na sua margem direita, era constituída pelos córregos de Cacumanga, Cula, Cambaíba, São Bento e Água Preta. Alguns deles eram periódicos e outros permanentes. Neste contexto, o rio Ururaí recebia água do Paraíba em tempos de cheia pelo córrego de Cacumanga, que foi retilinizado pelo DNOS, drenando totalmente a lagoa de Cacumanga. Importante destacar que havia também a comunicação de mão única entre o sistema Paraíba (ligeiramente mais alto, conforme mencionado anteriormente) e o sistema Ururaí pelo lençol freático, como demostraram tecnicamente Francisco Saturnino Rodrigues de Brito (1944) e a Engenharia Gallioli (1969). O único ponto em que o sistema Ururaí fluía para o sistema Paraíba do Sul era o rio Preto, que tinha uma foz de estiagem no grande rio e uma foz de cheia no Ururaí (Arthur Soffiati, comunicação pessoal).

Após a grande inundação de 1966 a pretensão real do DNOS foi a de promover a canalização completa do Ururaí, incluindo o trecho posicionado entre a lagoa de Cima e a BR–101, já que apenas o trecho situado entre a BR–101 e a lagoa Feia o era (Figura 1). No entanto, o projeto em questão felizmente não chegou a ser implementado devido a restrições orçamentárias (ENGENHARIA GALLIOLI, 1972).

Conforme já mencionado, o rio Ururaí faz a ligação entre as lagoas de Cima e Feia. A ligadura da lagoa Feia com o mar até o final da década de 80 do século XVII era feita por meio de uma rede natural de rios e córregos interligados entre si, os quais convergiam para o rio Iguaçu e este desaguava no oceano. Contudo, a barra do rio Iguaçu era sazonal e só permanecia aberta durante os períodos chuvosos, posto que nos períodos de estiagem a vazão fluvial não era suficiente para rompê-la. Para resolver essa questão, em 1688, o Capitão José Barcellos Machado selecionou o ponto em que o rio Iguaçu mais se aproximava do oceano e ali implantou a vala do Furado (CARNEIRO DA SILVA, 2010, p. 13-14; LAMEGO, 2007, p. 162-163; SOFFIATI, comunicação pessoal). Contudo, de acordo com Soffiati (2018), esta também se constituiu uma solução temporária, pois quando a barra da vala era aberta, a água escoava e o mar a fechava tão logo a força da água doce diminuísse. A partir de meados da década de 40 do século XX a ligação entre a lagoa Feia e o oceano passou a ser feita pelo canal da Flecha, que foi ali implantado pelo DNOS, aproveitando a vala do Furado em seu trecho final (Figura 3a).

O canal da Flecha, por sua vez, apresenta um sistema de comportas (Figura 3b) criado com o objetivo de regular o nível altimétrico da lagoa Feia e de atuar no controle da salinidade de suas águas nos momentos de maré alta. Contudo, a falta de consenso entre proprietários rurais e pescadores a respeito da decisão de se permitir ou não a abertura dessas comportas levou a escolhas equivocadas em diversas circunstâncias, sendo a mais simbólica a que agravou o desastre com inundação ocorrido no ano de 2008 (CARTOGRAFIA…, 2016). Atualmente essas questões são debatidas no âmbito do CBH BPSI, a princípio pela extinta Câmara Técnica de Recursos Hídricos e Estruturas Hidráulicas (CTRHEH) e atualmente pelo Grupo de Trabalho de Manejo de Comportas (GTMC). Ainda que os conflitos em aparência tenham sido minimizados, eles ainda existem, principalmente envolvendo pescadores e proprietários rurais.

Canal da Flecha que faz a ligação entre a lagoa Feia e o mar: (a) desembocadura do referido canal no oceano; (b) comportas do referido canal
Figura 3.
Canal da Flecha que faz a ligação entre a lagoa Feia e o mar: (a) desembocadura do referido canal no oceano; (b) comportas do referido canal
Fonte: (a) DNOS (jun. 1984) - Acervo do Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho/Campos dos Goytacazes, RJ; (b) Acervo pessoal (set. 2016)

Na ocasião do evento de 2008, cujos acontecimentos se concentraram entre o final do mês de novembro e início de dezembro, diques irregulares, que haviam sido construídos no interior da lagoa Feia por ruralistas com o intuito de reduzir o diâmetro do seu espelho d’água9 e aumentar a superfície de terras emersas destinadas ao desenvolvimento de atividades agropecuárias, represaram as águas provenientes do rio Ururaí durante um evento extremo de chuvas, fazendo com que o bairro que é atravessado por ele e leva o seu nome fosse totalmente inundado (Figura 4). Até a BR-101, que corta o rio transversalmente, precisou ser interditada durante um determinado período de tempo (CAMPOS…, 2008). Apesar de serem irregulares, os diques existiam ali já há bastante tempo e com a conivência tácita dos órgãos de gestão. É importante destacar também que o próprio DNOS estimulava esse tipo de ação, tal como consta no relatório da Engenharia Gallioli (1969), que foi a empresa contratada pelo órgão em questão para fazer novas intervenções na baixada Campista após o desastre deflagrado pela inundação de 1966.

Bairro Ururaí submerso
Figura 4.
Bairro Ururaí submerso
Fonte: Acervo do promotor estadual Marcelo Lessa Bastos (2 dez. 2008)

A situação crítica que ali se instalou, visto que o bairro de Ururaí praticamente submergiu nas águas da inundação, e até a localidade de lagoa de Cima foi afetada, situação normalmente rara, segundo depoimentos de moradores (CARTOGRAFIA…, 2016), demandou a intervenção da justiça para que os referidos diques fossem implodidos (DIQUES…, 2008; MPs…, 2008; PRIMEIRA…, 2008; PRODUTORES…, 2008; PRÓXIMO…, 2008), e as águas pudessem então escoar livremente, atravessando a lagoa Feia e o canal da Flecha, em sequência, para finalmente alcançarem o oceano (Figura 5).

Dique do Loro localizado no interior da lagoa Feia após a implosão
Figura 5.
Dique do Loro localizado no interior da lagoa Feia após a implosão
Fonte: Acervo do promotor estadual Marcelo Lessa Bastos (4 dez. 2008)

Porém, contrariando todas as expectativas, verifica-se que, além do efeito de represamento das águas causado pela presença dos diques ilegais, as comportas do canal da Flecha se encontravam fechadas naquele momento, agravando ainda mais o problema do escoamento. As comportas em questão foram abertas posteriormente, mas, quando o fizeram, o bairro já se encontrava submerso (CAMPOS…, 2008; CAOS…, 2008; CHUVA…, 2008). No dia 02/12/2008, o jornal Folha da Manhã informou que apenas 3 das 14 comportas haviam sido abertas. Em nota publicada no dia 08/12/2008, o mesmo jornal anunciou que a situação ainda permanecia inalterada. Alegou-se que as demais 11 comportas estavam inoperantes (abertas pela metade e duas delas entupidas pela vegetação). No dia seguinte, técnicos da SERLA informaram que 13 comportas já estavam funcionando (MAIS…, 2008).

É importante destacar que, apesar da situação calamitosa dos residentes do bairro Ururaí, os ruralistas se posicionaram terminantemente contra a implosão dos diques, alegando que suas propriedades, diga-se de passagem, tomadas do leito original da lagoa Feia, seriam alagadas e as atividades econômicas ali desenvolvidas (monocultura canavieira e pecuária) prejudicadas (SERLA…, 2008). Encomendaram, inclusive, um laudo técnico para tentar fundamentar seus argumentos. Neste documento alega-se que:

(…) a solução para o escoamento das águas na bacia de contribuição do rio Ururaí e a recuperação das comunidades atingidas, passa necessariamente pela desobstrução imediata da vazante da lagoa Feia e sua ligação com o oceano e não pela destruição de diques. (…) Ressaltamos que todas áreas adjacentes aos diques já estão saturadas e o volume de água que essa área ainda tem capacidade de receber são significativamente inferiores ao volume de água excedente na bacia da lagoa de Cima e na área de influência do rio Ururaí. Em outras palavras, seria como transferirmos uma ‘caixa de mil litros para um copo d’água’ (FATO…, 2008).

Tais argumentos, no entanto, não encontram nenhuma sustentação quando se levam em conta conhecimentos fundamentais de hidrologia e geomorfologia. Conforme discutido na situação que envolveu o desastre deflagrado por inundações ocorrido em 2007, vimos que as superfícies brejais são ambientes que apresentam lençóis freáticos aflorantes. Mesmo aqueles que foram drenados, voltam a funcionar como tal nas ocasiões de ocorrência de eventos extremos de precipitação, pelo simples fato de as chuvas abastecerem os aquíferos via infiltração, e estes sofrerem ascensão. No caso da lagoa Feia, além de a mesma ser circundada por antigos brejos, ela teve mais de um terço de sua área subtraída, algo que reduziu significativamente a superfície lateral necessária para o seu espraiamento durante os períodos úmidos. Nesse sentido, o transbordamento da lagoa Feia não resulta unicamente do fato de a mesma receber as águas provenientes dos sistemas hidrográficos que para ela convergem, ainda que suas contribuições sejam decisivas, mas da ascensão vertical do aquífero.

Por outro lado, não se trata apenas de uma questão de desobstrução da vazante da lagoa Feia e de sua ligação com o oceano, que aliás, em situações de eventos extremos como esta, mostra-se ínfima para dar conta de todo o volume de água que para ela converge. Basta lembrar que antes da implantação da vala do Furado e do canal da Flecha, o mecanismo natural de dissipação das águas era complexo, na medida em que apresentava um padrão distributário, e evidenciava comportamentos diferenciados em função da sazonalidade. Assim sendo, em tempos de estiagem, as águas da baixada escoavam para o mar pelo rio Paraíba do Sul e eventualmente pelo rio Iguaçu. Em tempos de cheias, a água doce, descendo pelo rio Água Preta, abria as barras das lagoas de Gruçaí e Iquipari. O Paraíba do Sul, ampliava assim o seu delta com cinco braços. Havia ainda a possibilidade de a água excedente forçar a barra do Lagamar, a chamada Barra Velha (Arthur Soffiati, comunicação pessoal).

Essa análise também se aplica ao discurso da desobstrução da rede de canais da baixada Campista. Apesar de ela não ter sido mencionada no trecho do laudo técnico publicado no jornal, trata-se de uma reivindicação de décadas feita pelos ruralistas da região, conforme já discutido nesse trabalho. Ainda que esta seja realmente necessária, porque não se pode simplesmente ignorar a sua presença ali, trata-se de mais uma situação na qual ela não teria sido eficiente em promover o escoamento das águas, mesmo que estivesse completamente desobstruída. É importante destacar que as redes fluviais, mesmo as artificiais, transportam não somente água, mas também sedimentos. Considerando que boa parte das paisagens se encontra completamente desprovida de cobertura vegetal, a carga de sedimentos que converge para as calhas dos canais tende a ser extremamente elevada.

Diante do exposto, a questão ética que não quer calar é: se a caixa de mil litros para um copo d’água não poderia se concentrar na área de entorno da lagoa Feia, que é a superfície natural de dissipação das águas daquele sistema hidrográfico, por afetar as atividades agropecuárias desenvolvidas pelos ruralistas, ela poderia se concentrar então no bairro Ururaí onde centenas de pessoas residem?

Uma outra questão que o laudo em questão também não levou em conta, foi o fato de que o sistema hidrográfico rio Imbé–lagoa de Cima–rio Ururaí–lagoa Feia–canal da Flecha teve modificados os seus mecanismos naturais de dissipação da água que eram eficientes, e tornou-se por isso extremamente complexo e quase impossível de ser gerido. Nesse sentido, há problemas também envolvendo o próprio escoamento do rio Ururaí em seu trecho canalizado.

Os meandros são estruturas características dos segmentos fluviais de baixa declividade (a exemplo da baixada Campista), que determinam o equilíbrio na dissipação da energia que flui pelo rio, a qual se realiza por meio do deslocamento da água ao longo do leito e dos sedimentos que ela transporta. A eficiência deste mecanismo natural está justamente no fato de que a sinuosidade do canal faz com que a matéria que por ali passa (água e sedimentos) seja disponibilizada gradualmente através do curso fluvial, tanto no tempo, quanto no espaço. Neste processo, ainda que a drenagem da água seja lenta após a ocorrência de chuvas muito concentradas, a produção de enchentes que podem progredir para inundações também é. Esse comportamento, além de muito eficiente na dissipação das águas constitui uma vantagem para os assentamentos humanos que margeiam os rios, por permitir que os alertas sejam emitidos em tempo hábil o bastante para que os moradores possam tomar a decisão que melhor lhes couber na iminência de um transbordamento fluvial.

A canalização determina o aumento da velocidade do escoamento da água, mas só é eficaz enquanto não há assoreamento da calha fluvial, pois, do contrário, os transbordamentos tendem a ocorrer rapidamente. Contudo, ao se remover os meandros, a tendência natural é que haja sedimentação do leito, algo que exige constante manutenção desta nova estrutura criada. No caso do desastre que envolveu o rio Ururaí em 2008, além do assoreamento do leito e dos canais que para ele convergiam, havia também, conforme mencionado, outras estruturas hidráulicas artificiais ao longo do sistema fluvial que o rio em questão integrava, as quais funcionavam de forma associada e sincronizada com o seu segmento canalizado, ou seja, as comportas do canal da Flecha e os diques da lagoa Feia, os quais, conforme mencionado, nessa circunstância atuaram de modo a prejudicar o escoamento das águas. Isso se explica pelo fato de que a tendência natural do ambiente é a de retomar a sua forma e mecanismo de funcionamento originais, que são os seus padrões de equilíbrio, impedindo, deste modo, que as estruturas artificiais sejam autossustentáveis. Em outras palavras, toda estrutura artificial é uma intervenção que rompe com o equilíbrio dos processos naturais atuantes no meio. No caso da baixada Campista, em particular, está muito claro que elas acentuaram a magnitude dos eventos de inundação deflagradores de desastres, ao invés do contrário, conforme apontado por Leite (2019).

Verifica-se, contudo, que a extensão do impacto causado pela presença das estruturas hidráulicas vai além, na medida em que elas modificam a forma como a água se movimenta no ambiente. Nesse sentido, a drenagem das superfícies brejais e lacustres causa o rebaixamento dos lençóis freáticos e, consequentemente, o aumento da magnitude das estiagens e dos episódios de secas. Porém, mesmo que esta seja uma consequência hidrológica clara para o ambiente, no caso da baixada Campista ela ainda carece de uma investigação mais profunda a qual lhe dê suporte a partir de evidências de campo.

Dentro dessa mesma perspectiva, um outro aspecto a ser destacado é o fato de que o aumento da magnitude dos desastres ambientais deflagrados por eventos hidrológicos extremos, agravados pelo mau funcionamento das estruturas hidráulicas, é a faceta visível do que se pode considerar atualmente como a crise hídrica da baixada Campista, conforme apontado por Leite (2015, 2017). Apesar de a escassez hídrica ser constantemente atribuída à transposição de águas do rio Paraíba do Sul ocorrida a montante da região, em 1952, algo que se justifica pelo grande volume de água que é desviado para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, não se pode negar o fato de que a drenagem em larga escala ali estabelecida também contribuiu com esse fenômeno, especialmente durante o último quartel do século XX.

Nesse sentido, conforme atesta o DNOS (1974), até o ano de 1965, a baixada Campista contava com uma rede de 600 km de canais e valas, algo que corresponde à metade da que foi ali implantada até o final da gestão desse órgão, em 1990. No discurso proferido no dia 17/04/1968, ao falar sobre o convênio firmado pelo então Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) e o DNOS, o senador Vasconcelos Torres cita, entre outras intervenções a “complementação da rede de drenagem” (VASCONCELOS TORRES, 1976, p. 86). Cruz (2003, p. 111, 172-173) afirma que intervenções dessa natureza ocorreram em larga escala durante a segunda metade da década de 70 do século XX, em função da realização do Programa Nacional do Álcool (Proálcool)10. Assim sendo, verifica-se que, apesar dos impactos causados pela instalação das estruturas hidráulicas já se fazerem sentir naquela época, os investimentos na agroindústria canavieira continuaram a ter prioridade em detrimento da segurança hídrica da população, seja no que se refere aos efeitos resultantes das inundações, seja no das secas.

5 Considerações finais

As estruturas hidráulicas implantadas na região da baixada Campista (diques de proteção do rio Paraíba do Sul, canais artificiais e respectivas comportas e canalização de rios) subsidiaram o processo de drenagem e, consequentemente, o ganho de terras destinadas à ocupação do território e principalmente à expansão da monocultura da canavieira. Nesse sentido, verifica-se que o histórico da implantação das estruturas hidráulicas na região em pauta encontra-se intimamente relacionado com o próprio histórico de ocupação desse território que, por sua vez, teve a implementação da agroindústria canavieira como prioridade.

A região em pauta apresenta particularidades que a diferencia de outras regiões canavieiras do país no que se refere ao processo de concentração fundiária e de formação da aristocracia rural. Até o início do século XIX prevaleceram as pequenas propriedades. Quando houve a transição de engenhocas para engenhos a vapor, iniciou-se o processo de concentração fundiária por meio de médias propriedades, evoluindo, em seguida, para grandes propriedades no último quartel do século XIX, quando se deu a transição de engenhos a vapor para engenhos centrais e usinas (LAMEGO, 2007). Nesse sentido, verifica-se que, ao mesmo tempo em que a aristocracia rural se constituiu tardiamente na região da baixada Campista, esse também é o momento em que os discursos dos ruralistas se tornam hegemônicos, perpetuando-se até a atualidade.

Os canais da baixada Campista nunca foram os responsáveis diretos pela detonação de inundações deflagradoras de desastres, mas sempre contribuíram decisivamente para que elas se agravassem. Isso ocorre por três motivos: (1) pela drenagem dos brejos, considerando que o espraiamento lateral das águas que caracteriza esses ambientes é a forma mais eficiente de sua dissipação durante os períodos úmidos; (2) pela ampliação da rede de canais, considerando que a própria rede natural de córregos e rios já apresentava a obstrução de suas respectivas calhas como característica natural, justificada pela baixa declividade do terreno (COUTO REIS, 2011; LAMEGO, 2007); e (3) pela falta de manutenção (desobstrução) da rede de canais, tanto natural, quanto artificial, que se estabeleceu na região desde a expulsão dos jesuítas (ainda no período colonial), da qual o bom andamento das atividades econômicas ali desenvolvidas sempre foi completamente dependente.

Apesar de a rede de canais artificiais ter sempre se mostrado ineficiente em escoar as águas durante os períodos úmidos desde o início de sua implantação na década de 40, pelos motivos analisados neste trabalho, a alternativa proposta para a resolução desse problema foi sempre a de dar continuidade a sua ampliação (SERÃO…, 1943; VASCONCELOS TORRES, 1976, p. 86). No entanto, verifica-se que tal medida não teve nenhuma relação com a erradicação das inundações deflagradoras de desastres, e sim com a continuidade do processo de drenagem das superfícies brejais e lacustres da baixada Campista, cuja rede de canais teve sua extensão praticamente dobrada após o ano de 1975.

Os ruralistas costumam fazer cobranças contundentes no que se refere à desobstrução da rede de canais da baixada Campista e têm seus representantes nas instâncias da gestão dos recursos hídricos da região. No entanto, verifica-se que a falta de visão sistêmica os impede de perceber que essa gestão deve ir além do sistema de canais e da lagoa Feia, que são sempre priorizados. Mesmo quando há uma preocupação com as demais partes componentes do todo, estas são sempre analisadas de forma isolada e quase nunca se leva em consideração as relações de causa e efeito que existem entre estas partes. Com toda a experiência acumulada ao longo de quase um século de intervenções feitas nos ambientes fluviais da região, seja por meio de observações empíricas, seja por meio de estudos acadêmicos, ainda falta a percepção de que é necessário recuperar pelo menos parte das superfícies brejais e do espelho d’água da lagoa Feia, algo que reduziria significativamente os efeitos das inundações e das secas que ali ocorrem, beneficiando a toda a população, inclusive a eles próprios e suas respectivas atividades.

Agradecimentos

Este artigo constitui um dos produtos derivados do trabalho de pesquisa contemplado pelo projeto “Mobilização e enfrentamento de desastres ambientais em Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense/RJ”, que recebeu apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio do Edital CNPq Universal (processo nº 435245/2018-0) e de parte da pesquisa de pós-doutorado, cujo projeto intitula-se “Do DNOS ao Comitê da bacia do baixo rio Paraíba do Sul: a Hidropolítica da cana-de-açúcar no Norte Fluminense”, no qual fui foi beneficiada com a bolsa de Pós-Doutorado Sênior do CNPq (processo 103351/2019-1) no período entre 15/09/2019 e 14/09/2020. Sinto-me profundamente grata por ter sido contemplada por ambos os benefícios. Por fim, também sou muitíssimo grata aos pareceristas deste trabalho, cujas contribuições foram fundamentais para aprimorá-lo e assim torná-lo mais completo e mais adequadamente informativo aos seus possíveis leitores.

Referências

AB’SABER, A. N. Ambiente e culturas: equilíbrio e ruptura no espaço geográfico ora chamado Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 22, p. 236-254, 1987.

ANDRADE, M. C. Modernização e Pobreza: a expansão da agroindústria canavieira e seu impacto ecológico e social. 1 ed. São Paulo: Editora UNESP, 1994. 250p.

BACIA para conter enchentes. Monitor Campista, Campos dos Goytacazes, ano 173, n. 332, p. A4, 17 dez. 2006.

BAIXADA: situação é desesperadora. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 28, n. 275, p. 9, 1 dez. 2006.

BERNARDES, L. M. C. Planície litorânea e zona canavieira do Estado do Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: CNG, IBGE, 1957. 248p.

BIODIESELBR. PróAlcool - Programa Brasileiro de Álcool. Curitiba, 2012. Disponível em: https://www.biodieselbr.com/proalcool/pro-alcool/programa-etanol#:~:text=O%20Programa%20Nacional%20do%20%C3%81lcool,da%20pol%C3%ADtica%20de%20combust%C3%ADveis%20automotivos. Acesso em: 7 out. 2020.

BRITO, F. S. R. Defesa contra inundações. 1. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. 445p.

CAMPOS revive cenas da enchente de 2007. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 31, n. 300, p. 6, 2 dez. 2008.

A CANA foi para o brejo. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 29, n. 01, p. 2, 9 jan. 2007.

CAOS em Lagoa de Cima e Ururaí. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 31, n. 326, p. 5, 29 nov. 2008.

CARNEIRO DA SILVA, J. Memória topográphica e histórica sobre os Campos dos Goytacazes com uma notícia breve de suas produções e commercio oferecida ao muito alto e muito poderoso rei d. João VI por um natural do paíz. 3. ed. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2010. 76p.

CARTOGRAFIA socioambiental e mapeamento das áreas de risco de inundações no Norte Fluminense: subsídios a elaboração de sistemas de alerta. Rio de Janeiro: NESA. NÚCLEO DE PESQUISAS E ESTUDOS SOCIOAMBIENTAIS, jul. 2016. Relatório (Projeto de Pesquisa) – FAPERJ, 2016. Relatório de Projeto de Pesquisa – FAPERJ, jul. 2016.

CHUVA faz novos desabrigados. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 31, n. 324, p. 5, 27 nov. 2008.

CHUVAS ainda preocupam. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 28, n. 264, p. 10, 17 nov. 2006.

COUTO REIS, M. M. Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes. 2. ed. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011. 238p.

CRUZ, J. L.V. Projetos nacionais, elites locais e regionalismo: desenvolvimento e dinâmica territorial no Norte Fluminense. 2003. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

DIQUES: demolição na Baixada. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 31, n. 302, p. 6, 4 dez. 2008.

OS DISPARATES sobre a cheia. Entrevista concedida pela Prof. Arthur Soffiati. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 29, 11 fev. 2007.

DNOS. DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS E SANEAMENTO. Enxaguamento e drenagem para recuperação de terras e defesa contra inundações em regiões e cidades brasileiras. Rio de Janeiro: DNOS, 1949.

DNOS. DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS E SANEAMENTO. Plano de saneamento geral e aproveitamento hidroagrícola de projetos prioritários no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: DNOS, 1974.

ENGENHARIA GALLIOLI LTDA. Baixada Campista: Saneamento das várzeas nas margens do Rio Paraíba do Sul a jusante de São Fidélis, estudos e planejamento das obras complementares de saneamento. 1. ed. Rio de Janeiro: ENGENHARIA GALLIOLI LTDA: DNOS, 1969. 213 p.

ENGENHARIA GALLIOLI LTDA. Baixada Campista rio Ururaí: regularização do trecho desde a origem do rio na lagoa de Cima, até a localidade de Ururaí. 1 ed. Rio de Janeiro: ENGENHARIA GALLIOLI LTDA: DNOS, 1972. 32p.

FATO relevante. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 31, n. 305, p. 3, 7 dez. 2008.

GABRIEL, A. H. D.; LUZ, M. (org.). Roteiro dos Sete Capitães: documentos e ensaios. 1 ed. Macaé: Funemac Livros, 2012. 150p.

JUNK, W. et al. Brazilian wetlands: their definition, delineation, and classification for research, sustainable management, and protection. Aquatic Conservation: Marine and Freshwater Ecosystems, v. 24, p. 5-22, 2013. DOI: https://doi.org/10.1002/aqc.2386

LAMEGO, A. R. O Homem e o Brejo. 1. ed. (fac-similar). Rio de Janeiro: IBGE, 2007. 204p.

LEITE, A. F. Comportamento espaço-temporal das chuvas do Norte Fluminense (RJ). In: LEITE, A. F.; GOMES, M. S. (org.). Dinâmica ambiental e produção do espaço urbano e regional no Norte Fluminense. 1. ed. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2013. p. 11-34.

LEITE, A. F. Discharge decline, hydric availability, risks and vulnerability in the low Paraíba do Sul River, Rio de Janeiro, Brazil. In: INTERNATIONAL GEOGRAPHICAL UNION REGIONAL CONFERENCE: Geography, culture and society for our future Earth, 15., 2015, Moscou. Anais eletrônicos […].

LEITE, A. F. Estruturas hidráulicas, gestão dos recursos hídricos e desastres relacionados à água na região do baixo curso do rio Paraíba do Sul (estado do Rio de Janeiro): uma análise fundamentada no desastre deflagrado pela inundação de 2007. Ambientes, Revista de Geografia e Ecologia Política, v. 1, n. 1, p. 146 – 190, 2019.

LEITE, A. F. Gestão dos recursos hídricos e desastres relacionados à água na baixada Campista. In: ENCONTRO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA, ENANPEGE: Geografia, ciência e política: do pensamento à ação, da ação ao pensamento, 12., 2017, Porto Alegre. Anais eletrônicos […]. Porto Alegre, 2017.

MAIS de 20 mil hectares sofrem com alagamento. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 28, n. 303, p. 10, 4 jan. 2007.

MAIS desalojados na Baixada. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 31, n. 307, p. 5, 9 dez. 2008.

MENDONÇA, J. C. Inundações na baixada Campista. In: TOTTI, M. E. F.; SOFFIATI, A. (org.). Gestão de águas no baixo rio Paraíba do Sul: região hidrográfica IX do estado do Rio de Janeiro. 1. ed. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2014. p. 91-127.

MOORE, P. D. Wetlands. 1. ed. New York: Chelsea House, 2006. 220p.

MPs seguem explosão de diques. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 31, n. 319, p. 7, 21 dez. 2008.

NICKNIG, W. A. Evolução da rede de monitoramentos hidrométricos da Região Norte Fluminense. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Geografia) – Universidade Federal Fluminense, 2006.

PEREIRA, J. O. R. Comportamento espaço-temporal das chuvas no Norte Fluminense, RJ. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Geografia) – Universidade Federal Fluminense, 2016.

PRIMEIRA etapa de explosões finalizada. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 31, n. 321, p. 10, 23 dez. 2008.

PRODUTORES apelam a Christino por diques. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 31, n. 303, p. 9, 5 dez. 2008.

PRODUTORES na limpeza. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 28, n. 283, p. 9, 9 dez. 2006.

PRÓXIMO dique demolido terça. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 31, n. 304, p. 6, 6 dez. 2008.

REPETINDO o erro. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 28, n. 305, p. 2, 6 jan. 2007.

SERÃO evitadas novas inundações em Campos. O Globo, Rio de Janeiro, ano 19, n. 5.120, p. 8, 12 jan. 1943.

SERLA explode dique na Baixada. Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, ano 31, n. 303, p. 6, 5 dez. 2008.

SOFFIATI, A. A História de um campo nativo de planície. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM AMBIENTE E SOCIEDADE, ANPPAS, 3., 2006, Brasília. Anais eletrônicos […]. Brasília: ANPPAS, 2006.

SOFFIATI, A. A planície do norte do Rio de Janeiro antes e durante a ocidentalização do mundo: três estudos de eco-história. 1 ed. Rio de Janeiro: Autografia, 2018. 163p.

SOFFIATI, A. Redução do impacto das cheias pelo manejo das águas na planície flúvio-marinha do norte fluminense. Agenda Social, Revista do PPGPS UENF, v. 3, n. 2, p. 1-33, 2009.

UDR reivindica Universidade Rural no NF. Monitor Campista, Campos dos Goytacazes, ano 153, n. 264, p. 1 (capa), 18 nov. 1987.

VASCONCELOS TORRES, J. B. Cana-de-açúcar: sabor amargo de uma cultura perseguida. 1. ed. Brasília: Senado Federal, 1976. 352p.

Notas

1 Afetando a pesca, que também é uma atividade econômica tradicional da região.
2 Conforme consta no Decreto nº 99.240, de 7 de maio de 1990.
3 A Capitania do Rio de Janeiro foi produto da fusão da Capitania de São Tomé, cujo limite superior era o rio Itapemirim e o limite inferior era indefinido (podendo-se supor que poderia estar próximo ao rio Macaé), com parte da Capitania de São Vicente (Arthur Soffiati, comunicação pessoal).
4 De acordo com Andrade (1994, p. 35), engenhocas produziam cachaça e rapadura. Contudo, Lamego (2007, p. 75) afirma que na planície Goytacá produziam açúcar também.
5 A literatura de áreas úmidas faz menção a existência de espécies de plantas flutuantes em determinados tipos de ambientes brejais e lacustres. Neste sentido, Moore (2006, p. 13-14) afirma que “embora os pântanos (do tipo marsh em inglês) sejam geralmente criados quando plantas emergentes enraizadas na lama basal invadem águas rasas, eles também podem se desenvolver quando esteiras flutuantes de caules e raízes os invadem. Estas muitas vezes se estendem sobre águas relativamente profundas, produzindo um tapete flexível e instável que sobe e desce com qualquer mudança na profundidade da água. As esteiras flutuantes deste tipo são particularmente frequentes nos pântanos tropicais dominados pelo papiro.”
6 Engenhos a vapor ou banguês produziam açúcar mascavo (ANDRADE, 1994, p. 37).
7 Engenhos centrais e usinas produziam o açúcar cristal ou demerara (ANDRADE, 1994, p. 37). Posteriormente, as usinas passaram a produzir o açúcar refinado nos locais onde havia refinarias (o que não foi o caso da planície Goytacá que nunca produziu açúcar refinado) e álcool.
8 Nessa época a baixada Fluminense compreendia todas as baixadas litorâneas, ou seja, a baixada de Sepetiba, a baixada da Guanabara, a baixada de Araruama e a baixada dos Goitacases. A atual baixada Fluminense corresponde à antiga baixada da Guanabara.
9 Na matéria intitulada “Os disparates sobre a cheia” (OS DISPARATES…, 2007), o Professor Arthur Soffiati informa que em 1900 o espelho d’água da lagoa Feia apresentava 370 km² de área e no presente apenas 170 km². Ressalta-se que esta informação foi obtida a partir do mapa produzido por Marcelino Ramos da Silva da Comissão de Estudos e Saneamento da Baixada do Estado do Rio, que funcionou entre 1894 e 1902 (SOFFIATI, 2018, p. 126), o primeiro a usar o sistema métrico decimal na baixada Campista.
10 De acordo com a Biodieselbr (2012), “o Programa Nacional do Álcool ou Proálcool foi criado em 14 de novembro de 1975 pelo decreto nº 76.593, com o objetivo de estimular a produção do álcool, visando o atendimento das necessidades do mercado interno e externo e da política de combustíveis automotivos. De acordo com o decreto, a produção da cana-de-açúcar, da mandioca ou de qualquer outro insumo deveria ser incentivada por meio da oferta de matérias-primas, com especial ênfase no aumento das destilarias existentes e da instalação de novas unidades produtoras, anexas a usinas ou autônomas, e de unidades armazenadoras.”

Notas de autor

1 Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006). Professora Associada do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense em Campos dos Goytacazes/RJ (UFF Campos) e do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPG) da UFF Campos – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: adrianafilgueiraleite@id.uff.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): LEITE, A. F. Resultantes ambientais da drenagem de superfícies brejais e lacustres na baixada Campista, Norte do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 1, p. 98-128, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p98-128. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15902.

COMO CITAR (APA): Leite, A. F. (2021). Resultantes ambientais da drenagem de superfícies brejais e lacustres na baixada Campista, Norte do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(1), 98-128. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n12021p98-128.

HTML generado a partir de XML-JATS4R por