ARTIGOS ORIGINAIS

A "fantasia" da pandemia de Covid-19 em discursos políticos: as aspas e seus efeitos de sentido no gênero jornalístico artigo de opinião

The "fantasy" of the Covid-19 pandemic in political speeches: the quotation marks and their effects in the journalistic genre opinion article

La "fantasía" de la pandemia Covid-19 en los discursos políticos: las comillas y sus efectos en el género periodístico artículo de opinión

Letícia Cunha Braga 1
Brasil
Thiago Eugênio Lorêdo Bêtta 2
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense), Brasil

A "fantasia" da pandemia de Covid-19 em discursos políticos: as aspas e seus efeitos de sentido no gênero jornalístico artigo de opinião

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 23, núm. 2, 2021

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2021 pelos Autores.

Recepción: 20 Noviembre 2020

Aprobación: 01 Febrero 2021

Resumo: Conforme as concepções de Maingueneau (1997), o qual enfatiza a relevância de considerarmos as condições de produção diante do uso das aspas, este trabalho visa discutir os efeitos de sentido sinalizados pelo sinal gráfico, que, além de marca linguística, é um recurso discursivo-argumentativo presente no gênero jornalístico artigo de opinião, no qual o teor opinativo sobressai. Adotamos a metodologia da pesquisa exploratória com base nas teorias discursivas, abarcando as perspectivas de, sobretudo, Maingueneau (1997), Charaudeau (2013), Orlandi (2008) e Pêcheux (1997). Em uma abordagem qualitativa, analisamos o artigo de opinião “Trump e Bolsonaro: aves de mesma plumagem”, publicado na Folha de São Paulo, para investigarmos os efeitos de sentido que as aspas desempenham em enunciados variados. Os resultados evidenciam que é fundamental considerar os aspectos circunstanciais do processo discursivo para a interpretação dos efeitos de sentido gerados pelas aspas e que o gênero artigo de opinião tem muito a oferecer para uma análise linguístico-discursiva devido às articulações elaboradas com a premissa de persuadir os leitores a aderirem a um ponto de vista, segundo o posicionamento do articulista sobre o tema desenvolvido no texto.

Palavras-chave: Linguística Discursiva, Gêneros do discurso, Artigo de opinião, Aspas.

Abstract: According to Maingueneau’s (1997) conceptions, which emphasizes the relevance of considering the conditions of production when using quotation marks, this work aims to discuss the effects of meaning signaled by the graphic sign, which, besides being a linguistic mark, it is a discursive and argumentative resource present in the journalistic genre opinion article, in which the opinionated content stands out. We adopted the methodology of exploratory research based on discursive theories, covering the perspectives of Maingueneau (1997), Charaudeau (2013), Orlandi (2008) and Pêcheux (1997). In a qualitative approach, we have analyzed the opinion article “Trump e Bolsonaro: aves de mesma plumagem”, published in Folha de São Paulo, to investigate the effects of meaning that quotation marks play in varied statements. The results show that it is essential to consider the circumstantial aspects of the discursive process for the interpretation of the meaning effects produced by the quotation marks and that the genre opinion article has a lot to offer for a linguistic-discursive analysis due to the articulations elaborated with the premise of persuading readers to adhere to a point of view, according to the writers’ political position.

Keywords: Discursive Linguistics, Speech genres, Opinion article, Quotation marks.

Resumen: Según las concepciones de Maingueneau (1997), quien enfatiza la relevancia de considerar las condiciones de producción cuando se utilizan comillas, este trabajo objetiva discutir los efectos de sentido señalados por el signo gráfico, que además de ser una marca lingüística, es un recurso discursivo-argumentativo presente en el género periodístico artículo de opinión, en el que se destaca el contenido polemista. Adoptamos la metodología de investigación exploratoria basada en teorías discursivas, cubriendo la perspectiva de Maingueneau (1997), Charaudeau (2013), Orlandi (2008) y Pêcheux (1997). En un enfoque cualitativo, analizamos el artículo de opinión “Trump e Bolsonaro: aves de mesma plumagem”, publicado en Folha de São Paulo, para investigar los efectos de sentido que las comillas juegan en varios enunciados. Los resultados muestran que es fundamental considerar los aspectos coyunturales del proceso discursivo para la interpretación de los efectos de sentido generados por las comillas y que el género artículo de opinión tiene mucho que ofrecer para un análisis lingüístico-discursivo por los recursos elaborados con la premisa de persuadir a los lectores de que acepten un punto de vista, de acuerdo con la posición política del articulista.

Palabras clave: Lingüística discursiva, Géneros del discurso, Artículo de opinión, Comillas.

1 Introdução

Atrelando-se ao projeto de pesquisa e extensão “A experiência do texto: por uma metodologia para ler, compreender e analisar textos jornalísticos atuais no Ensino Médio”, do Instituto Federal Fluminense Campus Campos Centro, sendo parte do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), o presente trabalho adere à concepção de Antunes (2010) sobre a leitura e a análise linguística de gêneros textuais: é analisando textos que justificativas das escolhas linguísticas feitas pelo autor surgem, orientando leituras a partir de efeitos de sentido criados e engajando perspectivas a respeito do posicionamento discursivo dos autores.

No projeto de pesquisa e extensão, defendemos um aprofundamento da análise de gêneros jornalísticos atuais com o intuito de promover conhecimentos linguísticos, leitura crítica e olhar analítico dos leitores diante de enunciados que repercutem temáticas contemporâneas sob um ponto de vista da realidade. Examinamos, dessa forma, de que maneira os discursos são construídos, com quais recursos lexicais e gramaticais, para analisarmos como e para quem é norteado o discurso, tendo em vista as estratégias discursivas que desencadeiam efeitos de sentido implícita e explicitamente (ANTUNES, 2010).

À vista disso, devemos considerar as circunstâncias da produção, as posições sociais dos autores, entre outros aspectos no cerne da Análise de Discurso (AD). Filiada à Linguística Textual (LT), Antunes (2010) reconhece que fazer recortes de um texto e criar frases sem a complexidade de um contexto de produção contido, por exemplo, nos gêneros jornalísticos é diminuir a potencialidade discursiva dessa interação social, norteando-a para uma artificialidade. Afinal, uma frase ou expressão criadas para uma atividade gramatical podem ganhar novos significados e valores quando ponderadas em um cenário sociodiscursivo, entrelaçado por crenças, preferências ideológicas, intenções e objetivos comunicacionais.

Assim como as unidades linguísticas, a citar sintagmas e conjunções, as pontuações são marcas linguísticas capazes de contribuir para a produção de sentido pretendida pelo locutor. As pontuações são empregadas tendo em vista um propósito comunicativo e as regras gramaticais, norteando a elaboração do discurso para obter as interpretações esperadas. Um dos sinais gráficos que demarca a atribuição de novos sentidos a um termo ou a um enunciado são as aspas, que podem exprimir ironia ou discurso direto, por exemplo.

Dessa forma, análises linguísticas dessa pontuação podem proporcionar considerações relacionadas a possíveis novas formas de implementar as aspas como um recurso discursivo-argumentativo no desencadeamento das ideias em um texto e, consequentemente, distinguir os significados de cada emprego conforme os aspectos da produção textual. Analisar linguística e discursivamente é desvendar os porquês das decisões tomadas em um texto e o modo como as escolhas linguísticas impactam nos efeitos de sentido e podem contribuir para o propósito comunicativo estabelecido. Descobrimos, partindo disso, o percurso da argumentação, “que demanda apresentação e organização de ideias, bem como estruturação do raciocínio que será orientado em defesa da tese ou ponto de vista” (KOCH; ELIAS, 2016, p. 24), com base no princípio de que a argumentação está inscrita tanto no nível linguístico, como no uso de operadores argumentativos, quanto no nível discursivo, como na seleção lexical adotada pelo enunciador e nos efeitos de sentido decorrentes.

No presente estudo, demonstramos a utilização das aspas com variadas funções no gênero jornalístico artigo de opinião. A escolha do gênero como objeto de estudo deu-se em virtude do caráter mais opinativo e argumentativo, que o difere do gênero editorial, o qual, embora construído com argumentos, geralmente não é acompanhado de uma assinatura do sujeito enunciador, sendo marcado pela primeira pessoa do discurso, pois representa o posicionamento do veículo de imprensa sobre a temática em questão. Por outro lado, os especialistas convidados a escrever um artigo de opinião trazem uma diversidade de conhecimentos, tanto intelectuais quanto discursivos, que ocasionam novos usos de recursos linguísticos e demonstram a expressividade da língua e sua flexibilidade conforme as intenções, as circunstâncias da produção e, principalmente, o posicionamento pessoal sobre o tema.

Abre-se, com isso, espaço de discussão sobre como as aspas são empregadas e para quais finalidades são utilizadas como mais um recurso discursivo-argumentativo na construção da opinião divulgada a partir da intencionalidade prevista. Conduzir reflexões quanto às estratégias discursivas inclusas nos gêneros jornalísticos enriquece a compreensão linguística e textual dos leitores (ANTUNES, 2010), norteando-os para uma visão analítica, a fim de que possam perceber a fictícia neutralidade da língua embasada no seu funcionamento discursivo.

Buscamos responder à seguinte pergunta: Se as condições de produção do discurso afetam o efeito de sentido das aspas em um texto, como esse sinal gráfico pode manifestar-se nas diversas situações enunciativas do gênero jornalístico artigo de opinião? A metodologia definida foi a pesquisa exploratória para reunir estudos de linguística discursiva, englobando Análise do Discurso francesa, Linguística Textual e Análise Dialógica de Discurso do Bakhtin. A reunião dessas teorias linguísticas justifica-se pelas suas diferentes contribuições diante da análise do corpus proposto.

As concepções de Bakhtin (2003) sobre os gêneros discursivos e o aspecto dialógico do discurso são a base da fundamentação teórica, introduzindo discussões a respeito da maneira como as condições específicas e os propósitos comunicativos de cada gênero discursivo são refletidos nos enunciados elaborados em interações sociais. Pêcheux (1997), expoente da AD francesa, e Orlandi (1988), precursora desse campo da linguística no Brasil, contribuem para esta pesquisa com suas ponderações acerca da influência direta dos aspectos circunstanciais na construção do discurso, que incluem a motivação e o posicionamento político do sujeito enunciador, o contexto histórico e outras especificidades em relação ao lugar de origem do discurso.

Embora Rodrigues (2001) seja filiada aos estudos bakhtinianos, a autora é convocada como referencial teórico para discutirmos as particularidades do gênero jornalístico artigo de opinião. Koch e Elias (2016), afiliados à Linguística Textual, por sua vez, são referidos quando a fundamentação circunda os elementos linguísticos que servem para contribuir na criação de força argumentativa em discursos com conteúdo opinativo principalmente, como o gênero analisado nesta pesquisa. Maingueneau (1997), vinculado à Análise de Discurso francesa, fornece a esta pesquisa respaldos quanto aos funcionamentos das aspas identificados na análise linguístico-discursiva do artigo de opinião, enquanto que Charaudeau (2013) é trazido para esclarecer estratégias discursivas em gêneros jornalísticos, sobretudo as que evocam vozes de terceiros como recurso discursivo-argumentativo.

Iniciamos com discussões acerca das teorias da linguística discursiva, guiados pelos conceitos de Bakhtin (2003) acerca dos gêneros discursivos e Pêcheux (1997) para conceituar a Análise de Discurso francesa. Após isso, apresentamos o gênero jornalístico em foco, o artigo de opinião, esclarecendo as regularidades constituintes do gênero. Por fim, analisamos como esse sinal gráfico é usado – para qual fim e efeito de sentido – no artigo de opinião “Trump e Bolsonaro: aves de mesma plumagem”, publicado na Folha de São Paulo e escrito pela professora norte-americana de antropologia Maxine Margolis. Investigaremos as possibilidades de sentido suscitadas a partir do emprego das aspas no texto – utilizada treze vezes pela articulista no texto em questão –, entendendo-o não só no âmbito dos aspectos estruturais e linguísticos, mas, primordialmente, em sua inscrição sociodiscursiva, como situação “real” de interação linguística.

2 Fundamentação teórica

Compreendemos que apresentarmos pressupostos dos campos teóricos que fundamentam a pesquisa, Análise do Discurso francesa, Linguística Textual e Análise Dialógica de Discurso do Bakhtin, é primordial para o desenvolvimento e suporte científico do trabalho. Essas concepções teóricas, ratificadas pela comunidade acadêmica, contribuem para as produções científicas que buscam implementá-las em cenários e objetos de análises originais e contemporâneos, tornando os pressupostos dos autores adotados pontos de partida para a elaboração da análise do funcionamento discursivo das aspas em um artigo de opinião.

Nesse sentido, a seguir são apresentadas as fundamentações teóricas a partir da linguística discursiva, com destaque ao conceito de gêneros discursivos, conforme Bakhtin. Posteriormente, abordamos as regularidades linguísticas e discursivas que caracterizam o gênero artigo de opinião, objeto desta investigação.

2.1 A linguística discursiva e suas vertentes

Parte constitutiva da realidade social, a linguagem é transformada em paralelo a épocas, dimensões sócio-históricas e culturas múltiplas, elementos constituintes do contexto de produção e circulação de enunciados verbais. Em virtude dessa dinamicidade da língua, discussões teóricas têm abarcado a heterogeneidade das situações de produção e como são construídos os discursos socialmente. Os pressupostos de Bakhtin (2003) contribuíram para a mudança de paradigma na área da Linguística, de estruturalista para um paradigma discursivista, a partir da segunda metade do século XX, norteando os estudos para as práticas discursivas emergidas pela interação verbal entre sujeitos.

Na perspectiva do teórico russo, a linguagem é concebida por meio da relação dialógica entre discursos na interação humana, sendo todo enunciado uma recuperação de vozes anteriormente manifestadas (BAKHTIN, 2003). A inter-relação que se estabelece entre o discurso do outro quando inserido no discurso atual apresenta alguma convergência, seja no tema, no ponto de vista ou nas formas dos enunciados. A concepção dialógica, portanto, abrange as situações e ideias do meio social dos enunciadores devido ao seu impacto na receptividade e compreensão do enunciado.

Novas circunstâncias determinantes para a compreensão e análise dos efeitos de sentido são produzidas nas interações humanas, visto que os indivíduos são permeados por necessidades sociais que são adequadas a partir da linguagem e de acordo com o contexto. Novas formas de enunciação são construídas para suprir propósitos comunicativos singulares. Bakhtin reconhece que nessa diversidade há “tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros de discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 262), em voga nas interações sociais. A teoria define os gêneros discursivos como elementos organizadores do processo discursivo, estruturação com regularidades socialmente convencionadas de nossos enunciados.

Os gêneros discursivos são constituídos por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Acrescentando especificidade para cada gênero do discurso inserido em determinada esfera de comunicação, o conteúdo temático refere-se ao sentido e assunto que o texto traz; o estilo diz respeito às preferências individuais (induzidas também pelo gênero discursivo em pauta) por meio das escolhas gramaticais e do nível da linguagem, por exemplo; e a construção composicional relaciona-se à estruturação textual em partes, incluindo a extensão do texto e a organização em parágrafos (BAKHTIN, 2003).

A partir dos postulados bakhtinianos, análises englobando as várias esferas comunicacionais na sociedade são propostas e efetuadas, ressaltando as mudanças de critérios de organização, contextos da produção e outros elementos dos gêneros discursivos. A situação interacional dita, da mesma maneira que a perspectiva do locutor e sua intenção como produtor de sentido, como que a linguagem é manifestada e as escolhas na construção discursiva, tendo em vista as possibilidades de entendimento e posicionamento dos interlocutores.

Considerando as variantes enunciativas nas interações sociais, os estudos de Análise de Discurso (AD) fundamentam investigações a respeito das condições de produção e circulação de um texto, que materializa um discurso, para demarcar relações ideológicas, propósitos comunicacionais e posicionamentos discursivos, contribuindo para a elucidação do “pano de fundo específico dos discursos, que torna possível sua formulação e sua compreensão” (PÊCHEUX, 1997, p. 75).

Os processos que dão origem ao fenômeno linguístico são o cerne inicial para a AD, diferenciando-se da linguística estrutural, que tem seu foco no produto (o sistema linguístico) desse processo. Os aspectos histórico-sociais influenciam fortemente na produção da linguagem nos gêneros discursivos e interações verbais, resultando em discursos. Por conta disso, a preocupação da Análise de Discurso é abordá-los considerando as relações de poder, as posições sociais do locutor, para quem ele está se dirigindo, entre outros fatores capazes de demonstrar que “o estudo da linguagem não pode estar apartado da sociedade que a produz” (ORLANDI, 2008, p. 17).

O substrato dessa disciplina, estabelecida na França por Michel Pêcheux no final da década de 60, abre questões no campo da linguística que incidem no conceito de língua, historicidade e sujeito do discurso. Conforme Pêcheux enfatiza em sua obra “Análise Automática do Discurso” (1997), cabe à AD francesa considerar que a construção do discurso é sempre influenciada pelos lugares sociais de origem, que são atravessados, ou seja, respaldam-se em uma perspectiva da realidade, posicionamento ideológico e valores subjetivos.

De acordo com Pêcheux (1997), é por meio desses posicionamentos de ideias que descobrimos a formação ideológica do enunciador, a qual é constituída por “um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem 'individuais' nem 'universais', mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras" (PÊCHEUX, 1997, p. 166). Servem também para determinar o que pode e deve ser dito de acordo com uma posição social numa conjuntura. Dessa forma, os discursos apresentam uma motivação do sujeito enunciador, seja implícita ou explicitamente. É pela linguagem que as circunstâncias do contexto ganham materialidade.

Na esfera jornalística, mesmo os gêneros classificados como informativos – a notícia e a reportagem, por exemplo – e idealizados como imparciais são redigidos com objetivos traçados, como impactar os leitores a partir da manchete exagerada, sob o viés sensacionalista, e alcançar um público-alvo para propagar uma ideia naquele grupo social. Estratégias discursivas que expõem convicções e juízos de valor são mais evidentes nos gêneros jornalísticos opinativos, como é o caso do artigo de opinião, objeto desta pesquisa. Apresentaremos mais sobre o gênero mencionado e reflexões sobre as produções jornalísticas a seguir.

2.2 Artigo de opinião e suas regularidades

Uma das finalidades elementares dos veículos de comunicação em nossa cultura é propagar informações de acontecimentos inseridos no contexto histórico-social do momento, ou recapitular eventos do passado para reflexões que estejam em voga nas pautas da atualidade. Para a consecução desse objetivo, no entanto, é inevitável que a apuração e o relato dos fatos sejam desempenhados por um sujeito com visão de mundo, perspectiva particular da realidade e crenças, aspectos esses que são moduladores do discurso – talvez sutis, talvez chamativos.

Em vista disso, tenhamos em mente que a mídia é constituída por sujeitos que materializam a língua por meio de articulações as quais favoreçam seu discurso e ideais manifestados, tornando a análise dessa discursividade um recurso para “tentar compreender a maneira como as verdades são produzidas e enunciadas (GREGOLIN, 2008, p. 15). Se, nas notícias e reportagens, cujo compromisso permanece sendo a imparcialidade (RODRIGUES, 2001), estratégias discursivas são acionadas quanto à maneira de reportar as eventualidades e como elaborar uma manchete que resuma e atraia leitores; nos gêneros jornalísticos incumbidos de comentá-las e debatê-las, os recursos discursivo-argumentativos serão notórios, como pontua Charaudeau (2013).

Segundo Rodrigues (2001), o artigo de opinião é um gênero do campo jornalístico que disponibiliza aos leitores a possibilidade de conferirem observações e detalhes das questões abordadas pelos gêneros informativos por um olhar subjetivo. Os autores, chamados também de articulistas, são especialistas de áreas de conhecimento diversas, convidados pelo jornal, os quais, apesar de elaborarem um texto sobretudo argumentativo, não precisam necessariamente comprovar o seu ponto de vista objetivamente, a não ser por meio de argumentos. Por isso, a tipologia predominante é a argumentativa, e os verbos são conjugados na primeira e terceira pessoa, respectivamente, em relação ao enunciador e ao objeto/assunto do texto.

O articulista condiciona o assunto a partir de suas experiências profissionais e pessoais, sendo comum manifestar suas opiniões utilizando exemplos de sua área de atuação, depositando credibilidade nas argumentações. Os dois principais critérios seguidos nesse gênero discursivo são a atualidade e a opinião. O primeiro, por ser preciso que se crie convergência com as conjunturas contemporâneas do meio social, e o segundo, em razão de ser o espaço do jornal – digital e impresso – fornecido para que haja disseminação de argumentos e posicionamentos categóricos de prestígio.

Há, como pontua a autora, uma “valoração explícita quanto aos acontecimentos” (RODRIGUES, 2001, p. 117), ou seja, um juízo de valor perante os fatos discutidos. Por conta disso, apresenta um discurso persuasivo, projetado para fazer com que os efeitos de sentido construídos pela situação de interação locutor-interlocutor tenham êxito e o ponto de vista do articulista seja propagado. As coerções desse gênero jornalístico demandam a exposição ideológica e subjetiva do articulista.

A construção do discurso é conduzida, além das regularidades provenientes da estrutura, do tema e da circulação, pelas marcas linguísticas, termos e expressões incutidos no discurso que guiam o leitor a interpretar o texto de uma maneira, que pode ou não coincidir com a esperada pelo locutor. As marcas geram, pois, uma orientação argumentativa e podem revelar as relações entre o texto e o contexto em que foi produzido (ORLANDI, 2008). A opinião do articulista materializa-se, portanto, nas escolhas linguísticas efetuadas no processo de elaboração do texto.

É por meio de recursos discursivo-argumentativos, os quais delineiam uma lógica na discursividade para fins de credibilidade e adesão de sua visão de mundo, que o caráter opinativo é concedido ao gênero discursivo. Conforme Koch e Elias (2016), há elementos linguísticos que são intensificadores da argumentação produzida nos discursos e que sinalizam juízos de valor, posicionamentos e intencionalidades.

Esses recursos constituem-se em marcas linguísticas importantes para gêneros opinativos, como o artigo de opinião, na criação da força argumentativa do discurso jornalístico. Contendo citações de terceiros para fins de credibilidade e orientação argumentativa, subjetividades em tons irônicos e contrajunções entre o posicionamento do articulista e termos ou expressões usadas, as aspas têm presença recorrente nos artigos de opinião. A utilização do sinal gráfico pode, no entanto, produzir efeitos de sentido que escapam à intencionalidade do enunciador.

Maingueneau (1997) discorre sobre a relevância de considerarmos as condições de produção diante do uso das aspas, pois, “fora de contexto, não é possível interpretar a colocação entre aspas; para tanto, deve-se reconstruir, apoiando-se em índices variados, a significação da operação da qual as aspas são o vestígio” (MAINGUENEAU, 1997, p. 90). A falta de investigação sobre seu efeito de sentido em um dado contexto, considerando suas circunstâncias de produção e a mutabilidade da língua, ocasiona um esvaziamento do processo discursivo. Afinal, os sentidos decorrem na interação.

3 Metodologia

Este trabalho, conforme anunciado, é composto metodologicamente por uma pesquisa exploratória, a fim de selecionar um artigo de opinião publicado no jornal Folha de São Paulo que reúne diversos empregos do sinal gráfico aspas como um recurso discursivo-argumentativo. Autores do campo da linguística e suas vertentes foram convocados para nortear discussões sobre os efeitos de sentido gerados pelas aspas no contexto da produção do gênero jornalístico artigo de opinião. A abordagem qualitativa da pesquisa é justificada devido à análise de um fenômeno linguístico-discursivo, as aspas, em apenas um corpus, distanciando-se de uma amostragem extensa, característica da abordagem quantitativa.

No início da pesquisa, procedemos à localização de um artigo de opinião publicado no mês de agosto de 2020 no qual as aspas fossem empregadas em variados momentos na construção textual, sendo, dessa forma, um objeto de análise capaz de desencadear uma rentabilidade satisfatória de debates teóricos por meio de variados enunciados, a partir dos quais buscássemos depreender os possíveis efeitos de sentido. Optamos em pesquisar em edições digitais do jornal Folha de São Paulo, o qual dispõe de um reconhecimento nacional e credibilidade jornalística, perfazendo 100 anos de circulação em 2021. Outro critério para a escolha do texto foi a abordagem dos principais fatos do contexto situacional do Brasil à época.

O panorama brasileiro incluía a pandemia da Covid-19, que ocorreu aceleradamente no país, com aglomerações descontroladas e numerosos novos casos a cada semana desde março de 2020; a crise econômica, com queda do PIB, paralisação das atividades econômicas e desemprego em massa; e a impopularidade governamental, principalmente em razão do descaso no aumento de óbitos por conta do novo coronavírus e dos escândalos políticos relacionados ao posicionamento ideológico e crenças do governante, envolvendo também seu núcleo familiar.

O jornal Folha de São Paulo possui um sistema de cobrança por seu conteúdo digital. Assinantes têm acesso ilimitado a todas as reportagens, colunas, editoriais e outros materiais do jornal. O artigo de opinião selecionado para análise é exclusivo para assinantes, levando-nos a presumir que o público leitor pertence a uma classe social favorecida, sendo urbanizada e escolarizada, com hábitos de leitura e cujo interesse paira nos acontecimentos relacionados às questões políticas, econômicas e sociais do país e do mundo.

4 Resultados e discussão

Tendo em vista a abordagem qualitativa deste trabalho do campo da linguística, esta seção compila a explanação dos aspectos gerais do texto em análise, apresentando as ocasiões nas quais as aspas são incorporadas dentro da discursividade da articulista, e as perspectivas e conceitos dos teóricos do referencial bibliográfico, expondo conformidades entre os efeitos de sentido percebidos e as discussões teóricas, validando a análise conduzida. Assim, analisamos os enunciados que são inseridos entre as aspas no artigo de opinião selecionado, com o foco nos efeitos de sentido produzidos considerando os aspectos circunstanciais do texto, enquanto convocamos os autores do levantamento bibliográfico para fundamentar as análises concebidas a partir de concepções dadas ao uso das aspas na literatura a respeito da linguística discursiva.

4.1 O funcionamento discursivo das aspas no artigo “Trump e Bolsonaro: aves de mesma plumagem”

Publicado na Folha de São Paulo dia 19 de agosto de 2020, o artigo de opinião “Trump e Bolsonaro: aves de mesma plumagem” traz à tona, como conteúdo temático, as semelhanças comportamentais e ideológicas entre o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Conforme afirma Bakhtin (2003), o enunciado construído reflete “as condições específicas e as finalidades de cada referido campo da atividade humana” (BAKHTIN, 2003, p. 261) e, por isso, o estilo manifestado, relacionado aos recursos linguísticos utilizados na organização da argumentação no texto, segue as regularidades previstas para o gênero artigo de opinião.

Nesse sentido, a construção composicional, ou seja, a estruturação textual, a qual inclui título, assinatura da autora, parágrafos de introdução, argumentação do ponto de vista defendido e conclusão, também apresenta consonância com o gênero jornalístico em questão. A articulista americana Maxine Margolis, professora emérita de antropologia na Universidade da Flórida e pesquisadora-adjunta sênior no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Columbia, expõe, na progressão textual do gênero, as paridades nas governanças brasileira e estadunidense, incluindo ações tomadas perante o aumento dos contágios de Covid-19 – dois países que registraram mais de um milhão de casos confirmados.

É possível verificar que as características socioculturais do sujeito produtor da linguagem materializada no texto, a autora, são evidenciadas pelas particularidades da discursividade, tendo em vista experiências e conhecimentos prévios relacionados ao enunciado construído (ORLANDI, 2008) e, deste modo, compreendemos melhor a direção argumentativa criada. Autora de livros que abordam as condições socioeconômicas de imigrantes brasileiros nos Estados Unidos e premiada com o Lifetime Contribution Award em 2013 pelos seus estudos sobre a relação Brasil-EUA nesse processo de imigração, Maxine Margolis é reconhecida por suas contribuições significativas no campo acadêmico para a promoção dos estudos brasileiros em solo norte-americano.

Iniciando a argumentação para guiar os leitores a compreenderem as afinidades dos governantes, Maxine designa Jair Bolsonaro como “Trump tropical”, afirmando em seguida que essa é “uma descrição bem adequada ao líder autoritário à frente da sexta nação mais populosa do mundo”. A alcunha, empregada entre aspas, é disseminada principalmente nas redes sociais. Aderindo ao apelido popularmente utilizado para referir-se ao presidente brasileiro, a articulista indica pelas aspas que a expressão acumula menção e grande adesão, uma das funções previstas do sinal gráfico por Maingueneau (1997).

É comum a atribuição desse efeito de sentido para as aspas estarem acompanhadas de indicativos de quem usa o termo em questão, “como X diz” ou “onde X remete” (MAINGUENEAU, 1997, p. 89), para sinalizar a procedência do dizer, como a opinião pública. No artigo de opinião analisado, Maxine adiciona “é chamado de”, não especificando qual grupo social adere à alcunha, mas ajudando a reforçar que a reprodução da expressão é de quantidade significativa o bastante para os leitores do texto reconhecerem como opinião pública.

A recorrência da denominação “Trump tropical”, ou seja, sua popularidade nos discursos sobre o líder da nação brasileira não estaria salientada caso as aspas fossem identificadas apenas como recurso para dar um sentido particular ou valor significativo a uma expressão, dando-lhe destaque, ou como uma citação direta, designações inclusas na prescrição gramatical. Citações, afinal, carregam apenas a ideia de que aquelas palavras já foram proferidas por enunciadores geralmente relevantes para o contexto discursivo.

No segundo parágrafo do texto, a articulista primeiramente aponta uma discrepância no histórico familiar dos governantes, sendo Bolsonaro filho de um dentista itinerante e Trump oriundo de uma família afortunada. Maxine alega que o perfil de Trump encaixa-se no estereótipo brasileiro de “filhinho de papai”, utilizando o termo entre aspas. Trata-se de uma gíria, termo do vocabulário da cultura brasileira utilizado em contextos informais para referir-se a homens com pais de renda financeira acima da média, que ostentam luxos e benefícios e agem de forma esnobe por acharem-se superiores aos outros.

Quando o contexto de produção é examinado, no entanto, podemos apreender um efeito de sentido que evidencia a nacionalidade da articulista, sendo essa norte-americana. Segundo Maingueneau (1997), as aspas podem significar um afastamento entre o discurso e o enunciador quando o que está isolado pelo sinal gráfico não pertence ao espaço familiar do enunciador, ou seja, “quando se trata de empregar palavras pertencentes a uma língua estrangeira, a outro nível de língua ou a vocabulários especializados” (MAINGUENEAU, 1997, p. 90).

Em vista disso, é possível que analisemos a aplicação de aspas a fim de grifar um estrangeirismo na perspectiva da norte-americana Maxine Margolis durante a escrita do texto. Na prescrição gramatical, tanto a marcação feita pelas aspas de gíria quanto a de estrangeirismo são ressaltadas conjuntamente em um tópico, o qual esclarece o efeito de sentido das aspas de destacar termos ou expressões incomuns à linguagem do enunciador, abrangendo estrangeirismos, arcaísmos, neologismos e vulgarismos.

Observamos, nessas primeiras duas ocorrências de aspas, que o trabalho discursivo desempenhado pela mídia em relação à disseminação de modelos de identidades e de generalizações socialmente aceitas está contemplado no artigo de opinião. Tem-se na mídia hegemônica, dessa forma, a circulação de “paradigmas, estereótipos, maneiras de agir e pensar que simbolicamente inserem o sujeito na ‘comunidade imaginada’” (GREGOLIN, 2008, p. 17), como “Trump tropical” e “filhinho de papai”, agindo como um dispositivo de rotulações.

Após pontuar a diferença de origens familiares, a finalidade de persuadir os leitores a assentirem e a notarem a similaridade dos líderes nacionais é evidenciada, como é prevista no gênero opinativo por adotar uma valoração explícita quanto a acontecimentos em voga (RODRIGUES, 2001). A articulista compara as ações tomadas pelos presidentes citados na pauta de legislações do meio ambiente, desvalorizando agências de fiscalização ambiental e incentivando minerações e outras atividades para extração de recursos naturais em regiões de patrimônios naturais, além da negligência de ambos com as minorias da coletividade.

Maxine prossegue o texto expondo o caráter misógino dos chefes de estado, mencionando a ocasião na qual Bolsonaro atacou verbalmente uma deputada federal dizendo que ela ‘“não merecia ser estuprada” por ser muito feia e a situação na qual Trump referiu-se a Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Deputados, como “uma pessoa inerentemente imbecil”. A utilização das aspas nesses casos incorpora o efeito de sentido de, sobretudo, diferenciar os enunciados dos governantes do discurso da articulista, causando, de acordo com Bakhtin (2003), a transposição da “alternância dos sujeitos do discurso transferida para o interior do enunciado” (BAKHTIN, 2003, p. 299), acentuando o aspecto dialógico do discurso.

O enunciado de Trump demarcado por aspas é um trecho de uma postagem feita em sua conta na rede social Twitter, em 2020, reprodução exata, porém traduzida, do que foi escrito. Já a fala de Bolsonaro ganhou uma adaptação da maneira como ele dirigiu-se à deputada federal em questão, Maria do Rosário, devido à mudança de tempo verbal, originalmente proferida no presente do indicativo e transcrita no pretérito imperfeito do indicativo.

O uso das aspas para isolar citações de terceiros com o propósito de distingui-las do resto do contexto é costumeiro em gêneros jornalísticos para gerar credibilidade na informação ou ponto de vista exposto. Por causa disso, as citações diretas e indiretas são chamadas de recursos de autoridade, ou argumentos de autoridade, por Koch e Elias (2016), os quais demonstram a característica intertextual dos gêneros jornalísticos opinativos com explicitação da fonte do dizer para construir uma relação de confiança com os leitores.

Embora o sentido do enunciado marcado por aspas não tenha sido prejudicado de maneira alguma, a adaptação contida na fala do líder brasileiro e iniciada com “Bolsonaro disse que” segue as particularidades de uma citação indireta, descrita por Charaudeau (2013) como uma integração parcial do dizer original de forma a demonstrar aquele que relata por meio da terceira pessoa do singular. Em razão disso, há modificações do dizer como os pronomes e o tempo verbal utilizados, agora acompanhando o “momento de enunciação do locutor que relata. Assim: ‘Minha vida corre perigo’ será relatado como: ‘Ele disse que sua vida corria perigo’ […] (CHARAUDEAU, 2013, p. 165).

A integração do discurso do outro assemelha-se, entretanto, a uma citação direta, que proporciona à articulista a benesse de eximir-se das possíveis responsabilidades sucedidas pela exposição de um discurso controverso e polêmico – e tal responsabilidade aumenta na implementação de discursos indiretos (KOCH; ELIAS, 2016). Podemos compreender, com base na fundamentação apresentada e analisando o teor polêmico do contexto de produção do enunciado incluído com aspas, que a articulista optou por inserir a fala controversa como citação direta em razão da preservação do sentido original e do distanciamento do enunciador, afastando-se das consequências de uma interpretação errônea por leitores desavisados do discurso feito em 2014 pelo atual presidente do Brasil.

Maingueneau (1997) faz uma associação parecida com o uso das aspas para citações diretas, no qual o intuito de quem emprega o discurso do outro é “proteger-se antecipadamente de uma crítica do leitor, que, supostamente, esperará um distanciamento frente a determinada palavra” (p. 91). É esse mesmo efeito de sentido produzido pelas aspas que podemos perceber quando Maxine, no sétimo parágrafo, reproduz os dizeres de Jair Bolsonaro em relação à pandemia de Covid-19, classificando-a como “fantasia” e “exagero”. Distancia-se, mais uma vez, de um discurso pejorativo, que destaca o descaso e displicência no comportamento e ações do chefe de estado do Brasil perante aumento de casos e mortes pelo vírus.

Em seguida, a articulista compara o posicionamento negligente do presidente brasileiro quanto ao avanço de contágios do novo coronavírus e à maneira que critica como os veículos midiáticos estão transmitindo tais acontecimentos com a postura do republicano Trump, o qual acusa a mídia de sabotar a economia estadunidense e sua reeleição por espalhar medo e deixar o país fechado. Maxine pontua a expressão usada por ele, “lamestream media”, e sua tradução subjetiva, “a grande pequena mídia”.

“Lamestream media” é uma versão depreciativa do termo “mainstream media”, que significa “mídia convencional” em português, algo como o que caracterizamos de “mídia hegemônica” no Brasil, veículos de comunicação relevantes que se solidificaram como redes discursivas de grande alcance e influência. O jornal Folha de São Paulo, por exemplo, encaixa-se nesse perfil, detentor de um público leitor assíduo e credibilidade na esfera jornalística. Inclusive, registrou crescimento significativo nas assinaturas em meio à pandemia.

A troca de “main” por “lame”, uma palavra informal para referir-se a algo desinteressante ou de pouco valor, visa a desvirtuar os veículos midiáticos de maior prestígio, julgados por relatar fatos distorcidamente e manipular a opinião pública para resultados pertinentes aos envolvidos. Por ser uma expressão estrangeira informal, os efeitos de sentido causados pelas aspas são variados. Caso considerássemos apenas o texto e sua construção sintática, o efeito de sentido preponderante seria de demarcação do estrangeirismo, seguido de sinalização de uma citação direta.

Todavia a acepção das aspas, tendo em vista o contexto ligado ao termo pejorativo, pode nortear os leitores a perceberem a utilização informal do termo, tratando-se de uma gíria que deve ser destacada, e sua ampla repercussão, desde jovens ao presidente dos EUA em redes sociais. Dessa forma, as aspas ressaltam um termo ou expressão costumeira àquele enunciador de origem e, neste caso, também a outros cidadãos americanos, “introduzindo uma expressão que está na moda” e “significando ‘como se diz neste momento’” (CHARAUDEAU, 2013, p. 166).

No segundo caso, inserem-se as aspas na tradução realizada pela articulista para assinalar o significado da frase anterior em língua estrangeira. As prescrições gramaticais mencionam que, em trabalhos científicos sobre línguas, aspas simples podem enfatizar significados ou sentidos das línguas pesquisadas. Ainda no mesmo período, temos a frase nominal “a força dominante”, designação de Donaldo Trump sobre a mídia citada. Em razão da ausência de alterações no enunciado entre aspas e de não ser uma frase compartilhada por muitos outros sujeitos enunciadores, o efeito de sentido compreendido é de especificação de citação direta.

Quando uma expressão linguística é costumeira a outras vozes identificadas no texto, as aspas, conforme Charaudeau (2013), são inseridas para evocar um dizer que não pertence ao enunciador com um sentido de “como ele mesmo diz”. Isso ocorre no fragmento do artigo de opinião que comenta a eventual infecção do governante brasileiro: “Em julho de 2020, o próprio Bolsonaro foi diagnosticado com sua ‘gripezinha’”. Além da “gripezinha” ter sido um rótulo recorrente para a doença Covid-19 por Bolsonaro nos primeiros meses da aparição do vírus em solo brasileiro, há nessa menção da articulista um tom irônico.

Examinarmos o contexto de produção é primordial para indicarmos a ironia existente na sequência discursiva, pois é no embate de posicionamentos ideológicos contrastantes que a crítica pode ser manifestada como “zombaria”. De acordo com Maingueneau (1997), o enunciador de um discurso irônico pode estar numa posição defensiva ou ofensiva, sendo a ironia um recurso para desqualificar e ridicularizar o outro. As marcas linguísticas aspas servem, por isso, como índices da entonação irônica, a qual não pode ser reproduzida sonoramente dada a inexistência dessa funcionalidade na construção textual.

No mesmo parágrafo, a articulista insere o fato de que o presidente do Brasil subestima o uso de máscaras em meio à pandemia e ridiculariza aqueles que a utilizam, rotulando a ação como “uma coisa de viado”. Novamente buscando o distanciamento discursivo com o enunciado do outro, devido ao preconceito desmedido, Margolis emoldura o dito com as aspas, “colocando na boca de outro a responsabilidade dessa avaliação negativa” (RODRIGUES, 2001, p. 192), tornando-o, assim, uma estratégia para desqualificar o ponto de vista por via indireta.

No caminho da conclusão dos argumentos criados para construir um paralelo entre os dois governantes, Maxine afirma que ambos externaram, por meio de falas e posturas, em meio à imprensa hegemônica, insensibilidade no tocante à gravidade da pandemia e ao aumento disparado nos óbitos por Covid-19, como bem relembra a articulista ao incorporar um dos discursos proferidos por Jair Bolsonaro quando questionado sobre as numerosas mortes: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. Posteriormente também apresenta declaração contestável do líder norte-americano: “nosso número total de óbitos, os números por milhão de habitantes, são muito, muito bons”.)

A articulista optou, dessa forma, por encerrar a discussão e seu ponto de vista no gênero jornalístico agregando citações diretas dos dois chefes de estado, fiéis aos dizeres originais. Reforça-se, por consequência, a veracidade das informações e a coerência na argumentação produzida no artigo de opinião (CHARAUDEAU, 2013), sendo o efeito de sentido das aspas elemento discursivo importante para causar um impacto no desfecho do artigo de opinião e na tese levantada por Maxine, sobressaindo o propósito comunicativo do texto.

5 Considerações finais

Neste artigo, averiguamos como as aspas podem conceber efeitos de sentido na discursividade construída no artigo de opinião, revelando que as circunstâncias de produção, como a nacionalidade e o posicionamento ideológico da articulista, são indissociáveis ao emprego do sinal gráfico e, consequentemente, do sentido produzido. A articulista Maxine Margolis, pesquisadora de estudos brasileiros em solo norte-americano, mobilizou sua experiência acadêmica para posicionar-se e construir a argumentatividade do texto.

Retomando os empregos do sinal gráfico e os efeitos de sentido incitados, as aspas foram utilizadas para inserir uma alcunha popularmente usada para referir-se ao presidente Jair Bolsonaro e o termo “lamestream media”, extrapolando o sentido atribuído às aspas de acrescentar o dizer do outro, apenas como uma gíria ou citação direta, uma vez que indica a proliferação demasiada da expressão pelos falantes do português brasileiro e inglês, respectivamente. Aparentemente não comum ao seu vocabulário devido à sua nacionalidade, a articulista emoldurou a gíria “filhinho de papai” com o sinal gráfico, manifestando o afastamento linguístico entre o termo e a sua linguagem. Tais leituras são possíveis diante da percepção dos aspectos circunstanciais do processo discursivo formulado, elementos norteadores da concatenação de ideias mobilizadas.

Outros empregos da marca linguística em questão serviram para diferenciar enunciados de terceiros no discurso da articulista, com ou sem modificações do dizer pelos pronomes e tempo verbal utilizados, o que acentua o aspecto dialógico da interação social; distanciar a articulista de discursos proferidos por outros enunciadores com teor controverso e pejorativo, eximindo-a das responsabilidades pertencentes a tal posicionamento; traduções de gírias de sua cultura para o português; e desqualificar o ponto de vista de um discurso alheio.

Dessa forma, a análise linguística e discursiva das aspas viabiliza a compreensão e produção de textos argumentativos, pois revela seus efeitos de sentido, os quais podem suscitar os propósitos comunicativos de persuasão, ironia, desejo de distanciamento do discurso alheio, entre outros construídos no texto e construídos pelo leitor. A partir da análise discursivo-linguística realizada, reconhecemos que, embora a maioria dos efeitos de sentido gerados pelas aspas sejam apresentados em gramáticas prescritivas, as complexidades enunciativas presentes nas interações humanas, como os gêneros discursivos, excedem a previsibilidade normativa a partir da intencionalidade e lugar sócio-histórico do enunciador, não sendo passíveis de serem catalogadas em sua totalidade.

Recordamos assim a dinamicidade da língua, um organismo vivo realizado no processo de interação e com potencialidade de produzir infinitas formas de expressão, comunicação e sentidos constitutivo das necessidades interacionais dos falantes. Constatamos, por meio desta pesquisa, a amplitude do campo de estudos linguísticos associado aos gêneros jornalísticos contemporâneos, propício para análises mais aprofundadas de marcas linguísticas, como as aspas, investigando em contextos de produção variados como essas são articuladas para benefício do enunciador, e, por meio disso, enfatizando a falsa neutralidade dos discursos na interação social.

Estudar os gêneros jornalísticos como unidades reais da comunicação discursiva significa fomentar a compreensão da funcionalidade da linguagem no ato de interação social e conduz os leitores a refletirem sobre as construções linguísticas feitas a partir de onde o discurso é divulgado, com suas regularidades e propósitos discursivos debatidos, bem como o perfil do autor, sem desvirtuar a complexidade dos textos para meras rotulações gramaticais, congruente com os temas pesquisados e a proposta de ensino de língua portuguesa debatida no projeto de pesquisa e extensão do IFFluminense “A experiência do texto: por uma metodologia para ler, compreender e analisar textos jornalísticos atuais no ensino Médio”, ao qual este trabalho se integra.

Agradecimentos

Ao Instituto Federal Fluminense, pelo apoio educacional e fomento da iniciação científica dos licenciandos. Ao professor Thiago Eugênio, orientador, pela dedicação, estímulo, auxílio e atenção durante o desenvolvimento deste trabalho. A meu companheiro de vida, Rafael Freitas, pelo incentivo e entusiasmo dados para encorajar-me. Aos amigos e familiares queridos que sempre torcem pelo meu crescimento pessoal e profissional. Enfim, a todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a produção deste trabalho.

Referências

ANTUNES, I. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola, 2010.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. 2. ed. 2. reimpr. São Paulo, SP: Contexto, 2013.

GREGOLIN, M. R. V. Análise do discurso e mídia: a (re) produção de identidades. Comunicação mídia e consumo, v. 4, n. 11, p. 11-25, 2008.

KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. Escrever e argumentar. São Paulo: Contexto, 2016.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Campinas, SP: Pontes, 1997.

MARGOLIS, M. Trump e Bolsonaro: aves de mesma plumagem. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 ago. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/08/trump-e-bolsonaro-aves-de-mesma-plumagem.shtml. Acesso em: 7 set. 2020.

ORLANDI, E. P. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez Editora, 2008.

PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso. In: GADET, F. HAK, T. (org.). Por uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.

RODRIGUES, R. H. A constituição e o funcionamento do gênero jornalístico artigo: cronotopo e dialogismo. 2001. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.

Anexo A – Artigo de opinião em análise

Trump e Bolsonaro: aves de mesma plumagem

Presidentes são espetacularmente ineptos e incapazes de liderar seus países

Maxine L. Margolis (Professora emérita de antropologia na Universidade da Flórida e pesquisadora-adjunta sênior no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Columbia)

Jair Bolsonaro é chamado de “Trump tropical”, uma descrição bem adequada ao líder autoritário à frente da sexta nação mais populosa do mundo. Como brasilianista e americana politicamente engajada, admiram-me as semelhanças notáveis entre Jair Bolsonaro e Donald Trump no âmbito de suas políticas, personalidade e ideologia.

Seu histórico, evidentemente, difere marcadamente. Bolsonaro é filho de um dentista itinerante de áreas rurais do Brasil, capitão reformado do Exército brasileiro e deputado federal por vários mandatos. Trump? Trump seria o que os brasileiros chamariam de “filhinho de papai”, um garoto rico e mimado.

Ainda assim, mostram-se paralelas as políticas para o meio ambiente promovidas por Bolsonaro e por Trump. Aqui, Trump está para a mineração de carvão e exploração de petróleo em bacias marítimas como Bolsonaro está para a mineração de ouro, pecuária e plantação de soja na região amazônica. Bolsonaro apoia as mineradoras, independentemente do estrago ambiental que suas atividades causem, assim como Trump apoia suas aguerridas mineradoras de carvão, apesar dos custos para o mundo natural. Ambos também esvaziaram parcialmente as agências responsáveis por fiscalização ambiental, causando um enfraquecimento dramático na aplicação das respectivas legislações.

Assemelha-se também o modo como tratam populações marginalizadas. Trump e Bolsonaro agem de forma a favorecer os ricos e poderosos, piorando as condições das minorias, que, no Brasil, incluem os povos indígenas.

Ambos são misóginos famigerados. Certa vez, durante uma altercação com outra deputada federal, Bolsonaro disse que ela “não merecia ser estuprada” por ser muito feia. O desprezo pelas mulheres constitui também uma marca característica do governo de Trump, que chamou Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Deputados e mulher mais poderosa do governo americano, de “uma pessoa inerentemente imbecil”.

A verdade é que a patente incompetência que ambos têm demonstrado na atual crise de saúde mostra-se quase imbatível e, não por acaso, EUA e Brasil destacam-se como os únicos países do mundo com um número muito superior a um milhão de casos confirmados de Covid-19. Nas duas nações, governadores estaduais basicamente não contaram com respaldo algum para a adoção de regras de confinamento.

Tanto um como o outro veem interesses políticos espreitando por detrás da pandemia, assim como da resposta contra ela. Bolsonaro caracterizou o surto de “fantasia” e “exagero” propagado pela imprensa e ignorou a orientação médica de não apertar mãos ou participar de aglomerações.

Trump assumiu postura semelhante, acusando o que chama de “lamestream media”, algo como “a grande pequena mídia”, de ser “a força dominante” dentre as que procuram forçá-lo a manter o país fechado pelo maior tempo possível. Ele insinuou também que governadores e prefeitos do Partido Democrático davam continuidade a restrições relacionadas ao coronavírus unicamente para prejudicar a recuperação econômica e, assim, suas perspectivas eleitorais.

Em julho de 2020, o próprio Bolsonaro foi diagnosticado com sua “gripezinha”. E ele não é fã de máscaras. Caçoou de seus próprios funcionários, alegando ser o uso de máscara “uma coisa de viado”. Por sua vez, Trump se recusa a envergar máscara e transformou seu uso em manifestação de inclinação política: quem o segue na recusa é visto como apoiador. Trump aparenta também ser impermeável à sugestão de que ele, como cidadão idoso e obeso, poderia desenvolver uma forma grave da doença caso contraísse o vírus.

Ambos exibem assombrosa falta de empatia, enxergando a crise só no que lhes afeta pessoalmente. Questionado a respeito dos muitos milhares de mortes causadas pelo coronavírus, Bolsonaro respondeu “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. Ao passo que Trump, claro, queixa-se de ter sido a maior vítima da Covid-19, blindando-se contra o sofrimento de toda uma nação e declarando que “nosso número total de óbitos, os números por milhão de habitantes, são muito, muito bons”. Ou seja, sugeriu que seu governo mereça crédito por prevenir uma situação muito pior.

E é isso. Dois indivíduos espetacularmente ineptos, ambos moral e intelectualmente incapazes de liderar seus respectivos países. No momento, prova-se impossível estimar a magnitude do dano causado aos Estados Unidos e ao Brasil, assim como o tempo que será necessário para que essas nações se recuperem destes dois seres humanos tão abomináveis.

Notas de autor

1 Licencianda em Letras - Português e Literaturas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) Campus Campos Centro – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: leticiacunhabraga@gmail.com.
2 Doutor em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e professor de Português e Literaturas no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) Campus Campos Centro – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: thiago.eugenio@gmail.com.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): BRAGA, L. C., BÊTTA, T. E. L. A "fantasia" da pandemia de Covid-19 em discursos políticos: as aspas e seus efeitos de sentido no gênero jornalístico artigo de opinião. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 2, p. 484-500, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n22021p484-500. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15917.

COMO CITAR (APA): Braga, L. C. & Bêtta, T. E. L. (2021). A "fantasia" da pandemia de Covid-19 em discursos políticos: as aspas e seus efeitos de sentido no gênero jornalístico artigo de opinião. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(2), 484-500. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n22021p484-500

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