EDITORIAL DO DOSSIÊ TEMÁTICO

Editorial do Dossiê Temático

Ana Paula Mauriel
UFF, Brasil
Fabio Simas
UFF, Brasil
Fernanda Kilduff
UFRJ, Brasil
Mossicleia Mendes da Silva
UFRJ, Brasil

Editorial do Dossiê Temático

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 22, 2020

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

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Recepción: 31 Diciembre 2020

Editorial do Dossiê Temático

É com imensa alegria que compartilhamos o Dossiê: Violência de Estado e política social: entre o aparato assistencial e a criminalização da questão social no Brasil.

A presente publicação resulta de um esforço coletivo de organizadores e autores que, em conjuntura de crise econômica acirrada pela crise sanitária da pandemia de Covid-19, apresentam ao público um conjunto de reflexões sobre a crise estrutural do capital e suas particularidades no Brasil, problematizando as principais respostas do Estado frente à radicalização da questão social.

Consideramos que as transformações do capitalismo contemporâneo e a correspondente refuncionalização do Estado, visando garantir a reprodução ampliada do capital, provocam profundas alterações no conjunto das políticas sociais e criminais. Neste sentido, nas últimas décadas, e como parte de um mesmo movimento, a crescente expansão da política de assistência social articulada à ampliação do sistema penal, ocupa no Brasil, um destacado lugar nas formas estatais de gestão e controle da pobreza, do desemprego e da desigualdade social.

Diante dessas assertivas, cabe salientar que o modo de ser da política social no capitalismo maduro vem acompanhado de uma severa ofensiva sobre o trabalho na perspectiva de ampliar as taxas de lucro, o que consequentemente implica pressão para ampliação das condições de exploração do trabalho, por meio de flexibilizações, terceirização, informalização, dentre outras formas de precarização estrutural do trabalho e dos meios de vida das/os trabalhadoras/es.

Como resultado desses processos, registra-se no Brasil, o aumento da superpopulação relativa e do pauperismo, impactando na forma das políticas sociais que tendem a orquestrar ações de gerenciamento da pobreza, contribuindo para mistificar material e ideologicamente o solapamento dos direitos sociais e a perda da proteção social.

As respostas do Estado para gestão da crise no capitalismo dependente têm sofrido inflexões importantes com a corrosão e derrocada do pacto político-governamental petista de conciliação de classes, a escalada exponencial do conservadorismo e a intensificação do ajuste fiscal, merecendo atenção e empenho de pesquisadores no sentido de analisar as implicações de tais processos sobre a vida da classe trabalhadora. Isto por que tal contexto sedimenta e entroniza um novo ciclo regressivo no campo dos direitos sociais e concentra tendências ultraconservadoras e, por isso, ainda mais punitivistas e assistencialistas, para enfrentamento da questão social.

Conectado ao violento processo de destruição de direitos e empobrecimento da classe trabalhadora, intensifica-se o processo de criminalização da questão social. Os sujeitos criminalizados são em sua maioria homens/mulheres jovens negros/as e pardos/as, pertencentes à classe trabalhadora mais empobrecida, e em geral os casos de detenção ocorrem por delitos não violentos vinculados ao mercado do varejo de tráfico de drogas, dada a política bélica proibicionista aqui adotada.

A taxa de mulheres presas no país é superior ao crescimento geral da população carcerária, dado que corrobora a tendência histórica racista e patriarcal da formação social brasileira, cimentada na desigualdade e na opressão étnico-racial e de gênero.

Em contexto de pandemia, as contradições do capitalismo se acentuam e fazem eclodir as implicações de sua lógica destrutiva sobre as políticas sociais, cuja expressão mais cabal é a condição alarmante do Sistema Único de Saúde (SUS), já quase colapsado em função das demandas da Covid-19, mas principalmente dos processos de destruição e desmonte de que vem sendo objeto há anos e impulsionada pela lógica privatista, que se acelerou desde o golpe parlamentar de 2016, e se mantém no governo atual.

Mais do que nunca e na incerteza da crise do capital, agudizada em tempos de pandemia da Covid-19, o Estado ocupa papel fundamental salvando os lucros e socializando o custo da crise com a classe trabalhadora, situação que se manifesta no campo de todas as políticas sociais e em todos os âmbitos da vida social.

Os artigos que compõem o presente dossiê visam fazer um diálogo sobre diferentes dimensões do Estado capitalista no trato e enfrentamento à questão social, demarcando o avanço da dimensão violenta, punitivista e coercitiva em vários âmbitos da ação estatal que são acentuados no contexto de aprofundamento da crise estrutural do capital.

Pandemia e Violência de Mauro Luís Iasi, analisa as dimensões da violência e da pandemia e demonstra como ambas se encontram num terreno histórico de pleno desenvolvimento de relações reificadoras, alterando nossa atitude perante a morte, produzindo um estranhamento e um anestesiamento das consciências diante de diferentes formas de manifestação da violência: subjetiva, simbólica e sistémica. O artigo do autor, apresenta também, uma problematização sobre a particularidade da formação social e histórica brasileira, com o esgotamento da Estratégia Democrática e popular e sua linha de conciliação de classes que se manifesta em uma inflexão conservadora marcada pelo irracionalismo e da agudização da polarização social que leva a um país fraturado. O ensaio finaliza afirmando que, as bases históricas do capitalismo dependente e da forma política autocrática, são os fundamentos para compreender nossa atitude diante da pandemia e a violência que nela se expressa.

O artigo de Marcela Soares, intitulado Precariedade e mistificação da precarização: superexploração da força de trabalho, analisa a precariedade do trabalho, a superexploração da força de trabalho e a mistificação da precarização com a expropriação de direitos, destacando as particularidades do capitalismo dependente brasileiro e as marcas da escravidão colonial com a apreensão do sentido da expropriação do trabalho e da exportação de excedente econômico.

O texto de Elídio Marques: Crise das democracias liberais: um futuro sem direitos? Elementos para uma perspectiva internacional acerca do projeto da extrema direita, traz à tona o complexo debate atual acerca da chamada crise da democracia liberal e ascensão da extrema direita no plano internacional. O intelectual faz uma instigante problematização acerca do significado e dos limites dos direitos no capitalismo ao tempo em que confere centralidade aos ataques aos direitos na cena hodierna.

O artigo de Ana Paula Mauriel, Assistência e repressão: pilares no enfrentamento da “questão social” no capitalismo dependente brasileiro, traz como foco a relação entre a repressão à classe trabalhadora e as formas assistenciais conservadoras. Tomando alguns dos principais fundamentos da formação econômico-social brasileira, a autora busca analisar como assistência e repressão interagem sob o neoliberalismo, particularmente a partir do agravamento da crise do capital após 2008. Conclui-se que estamos diante de um novo padrão de enfrentamento da “questão social” no Brasil, onde se acentua o avanço do conservadorismo no campo assistencial e ações mais punitivas e coercitivas via política penal.

Em Pandemia, crise e expropriações: auxílio emergencial e contradições da focalização, Mossicleia Mendes da Silva traz elementos para pensar a crise sanitária a partir da crítica da crise capitalista, das expropriações como processo permanente no modo de produção capitalista e sua íntima relação com as contradições deflagradas com a pandemia da Covid-19. Nesta direção, intenta também trazer uma síntese do auxílio emergencial, problematizando os limites colocados pela focalização das políticas sociais, como tendência à desproteção social.

Rodrigo Silva Lima, no artigo Infância, mito da feliz(cidade) e a dimensão coercitiva da assistência social, problematiza a concepção de infância e a dimensão coercitiva da assistência social diante da violência promovida pelo Estado à infância pauperizada a partir da gestão da cidade do Rio de Janeiro. O autor mostra uma agudização das contradições da política de assistência social a partir do período dos grandes eventos internacionais, quando a criminalização dos pobres por parte do Estado e as contradições inerentes às políticas sociais culminaram em violações dos direitos de crianças e adolescentes. O autor finaliza o texto mostrando como o Conselho Regional de Serviço Social, conselho profissional que orienta e fiscaliza o exercício profissional de assistentes sociais, tem contribuído para a mobilização da sociedade civil na garantia de direitos do público infantojuvenil e no enfrentamento à coerção estatal.

Com A tortura no superencarceramento no Brasil contemporâneo, Fábio Simas aborda o aprofundamento punitivo do Estado capitalista como uma das respostas à atual crise estrutural, conferindo centralidade ao tema na conjuntura brasileira. Ademais, o autor aponta a relação simbiótica entre o fenômeno do superencarceramento e o agravamento da tortura nas prisões brasileiras tendo como plano de fundo a desigualdade social e o racismo estrutural.

Fernanda Kilduff, com seu artigo Seletividade punitiva, racismo e superencarceramento no Brasil, analisa o racismo e a desigualdade social como fundamentos do superencarceramento no Brasil, debatendo a relação entre seletividade punitiva e racismo estrutural, em perspectiva histórica; a relação entre rebaixamento das condições de vida da população pelo processo de contrarreformas neoliberais; e o aumento do encarceramento e a naturalização de práticas desumanizadoras no âmbito prisional. Nesta direção, a autora realiza apontamentos sobre o aumento do encarceramento feminino no Brasil pelo delito de tráfico de drogas.

Ionara Santos Fernandes, no artigo O recrudescimento penal em meio a pandemia do coronavírus no Rio de Janeiro, analisa a política penal no Estado do Rio de Janeiro, problematizando os novos contornos que ela assume no contexto da pandemia do novo coronavírus. Neste sentido, reflete sobre o direcionamento ultraconservador e punitivista do Estado para gerir a crise de saúde pública no precário sistema prisional, reduzindo direitos e expandindo a economia carcerária.

A partir de uma análise histórica e crítica das contrarreformas subsidiadas por interesses privatizantes na política de saúde brasileira, Mariana Setúbal, no seu artigo Impactos da contrarreforma na política de saúde em tempos de pandemia no Brasil, analisa os impactos dessa ofensiva na produção de um cenário dramático na maior crise sanitária de nossa geração.

Em O lugar da negritude nas políticas do Estado brasileiro: faces persistentes de uma presente ausência, Maria Helena Elpídio retoma apontamentos sobre a formação social brasileira no que se refere à relação entre o Estado e a população negra, considerando os traços da heteronomia, autoritarismo e violência sistemática conferidos a esse segmento no Brasil. Com isso, a autora evidencia a funcionalidade do mito da democracia racial que falseia a condição de cidadania dessa parcela da sociedade por meio do (não) acesso aos direitos e políticas públicas e considera as permanências e a busca de rupturas que possibilitem o tensionamento do Estado na direção da superação do racismo, seus desafios e limites na superação da sociedade de classes.

O artigo de Áurea Cristina dos Santos Dias, Migração Internacional no Brasil: persistências históricas e tendências contemporâneas, contextualiza a migração internacional contemporânea no Brasil como um dos múltiplos fenômenos articulados ao fôlego de expansão capitalista, particularmente a partir dos anos 2000, quando se intensificaram a imigração fronteiriça de nacionalidades haitiana, congolesa, bengali e senegalesa. A autora infere que, a despeito de termos conquistado uma legislação reconhecidamente avançada em relação ao refúgio e uma recente lei de migração, no Brasil, a questão migratória se dá muito mais com controle e seletividade, conduzindo um processo de inclusão e exclusão de imigrantes, com crescente perspectiva securitária que delimita a imigração como questão de segurança nacional e criminalizante, especialmente a partir de 2016, com o afastamento dos governos brasileiros dos compromissos internacionais de proteção aos direitos humanos dos migrantes.

A condição das mulheres inseridas nas atividades informais e ilícitas de tráfico de drogas na condição de mulas é o tema central abordado por Joana das Flores Duarte no seu artigo Mulas e mulheres no Brasil: uma questão de gênero, justiça e interseccionalidade. Ademais da centralidade do debate sobre gênero, a autora mostra que, além da condição da desigualdade de raça e classe expressas na seletividade do sistema penal; o mercado de drogas alimenta uma rede internacional de vultosos lucros econômicos.

No artigo Pistas para análise da violência contra as mulheres em tempos de crise: aproximações e desafios no contexto de pandemia no Brasil, Milena Fernandes Barroso busca analisar a violência contra a mulher no contexto de pandemia do novo coronavírus. Entendendo a violência contra a mulher como produto e produtora desse sistema, que necessita de forma particular e exponencial do trabalho e do corpo-território das mulheres para a sua manutenção, a autora aponta conexões entre diversas expressões dessa violência e a sua centralidade para as novas formas de acumulação de capital em tempos de crise, que, no contexto da pandemia, se agudizam na exploração e opressão cada vez maiores das mulheres, em particular das mulheres racializadas.

William Berger, no artigo Violência do Estado e expropriação das populações indígenas no Brasil contemporâneo: terra, território, trabalho e criminalização da Questão Social, apresenta a problemática indígena como expressão da questão social na formação econômica, social e espacial brasileira e suas expressões na contemporaneidade tomando as categorias terra e território, a partir da centralidade do trabalho como fundamento histórico do desenvolvimento desigual e combinado. Para isso, o autor aborda a formação do capitalismo dependente na América Latina, sob a exploração e opressão das raízes indígenas e negras e o sentido da colonização escravista, e chega ao contexto contemporâneo urbano, mostrando o contínuo processo de expulsão desses povos de suas terras, criminalização e furto de direitos, revelando a tônica da expropriação e da superexploração.

O artigo de Renata Freitas, População em situação de rua e as respostas do Estado nas tramas da cidade capitalista, discute o tema da pessoa em situação de rua no Brasil como aspecto revelador da contradição do sistema capitalista como produtor de pobreza e desigualdade. O texto também traz recortes analíticos históricos e conceituais acerca de sua problemática no capitalismo contemporâneo brasileiro, ao que aponta, entre outros aspectos, a dimensão da gestão urbana voltada para o lucro em detrimento das necessidades humanas que se agrava no contexto de regressão de direitos.

Ana Paula Cardoso da Silva, no artigo Em tempos de Covid-19: fique em casa! Mas, onde ficam os que “moram” nas ruas? reflete acerca da atuação do Poder Público no âmbito da política de Assistência Social no município do Rio de Janeiro com a população em situação de rua, em tempos de Covid-19, explicitando, em termos práticos, as ações que estão sendo desenvolvidas com essas pessoas e os seus impactos em suas vidas, dando ênfase no como se operacionaliza o “fique em casa”, para quem tem a rua como seu lugar de moradia e sustento.

Desejamos uma leitura que adense as críticas e traga novas inspirações para as lutas!

Niterói/Rio de Janeiro, dezembro de 2020.

Ana Paula Mauriel (UFF)

Fabio Simas (UFF)

Fernanda Kilduff (UFRJ)

Mossicleia Mendes da Silva (UFRJ)

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