DOSSIÊ TEMÁTICO: "QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DA EDUCAÇÃO NO BRASIL E EM PORTUGAL"

Como acolher os estudantes Ciganos na escola pública? Do reconhecimento da alteridade a uma pluralidade de arranjos discriminatórios

How to integrate Gypsy students in Public School? From recognition of alterity to plurality of discriminatory arrangements

¿Cómo acoger a los estudiantes gitanos en la escuela pública? Del reconocimiento de la alteridad a una pluralidad de acuerdos discriminatorios

Pedro Jorge Caetano 1
Universidade Nova de Lisboa, Portugal
Maria Manuela Mendes 2
Universidade de Lisboa, Portugal
Olga Magano 3
Instituto Universitário de Lisboa, Portugal

Como acolher os estudantes Ciganos na escola pública? Do reconhecimento da alteridade a uma pluralidade de arranjos discriminatórios

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 23, núm. 3, 2021

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2021 pelos Autores.

Recepción: 13 Marzo 2021

Aprobación: 07 Junio 2021

Resumo: No quadro europeu de uma aposta estratégica em sociedades cada vez mais escolarizadas e inclusivas, o desafio da presença de diferentes culturas nas escolas requer a implementação de políticas que promovam a não discriminação. No entanto, os ciganos Portugueses constituem-se ainda como um grupo cultural e étnico aparentemente imune aos objetivos destas políticas, em virtude do enorme preconceito social e histórico que impende sobre os seus membros. Neste sentido, foi realizada uma investigação visando colocar à prova um conjunto de possibilidades relativas à melhor forma de acolher estudantes ciganos na escola pública. Foram inquiridos 700 alunos não ciganos de 3 escolas do ensino médio da Grande Lisboa. Seguindo a perspetiva de uma sociologia eminentemente compreensiva, foi mobilizado um questionário baseado em cenários com o objetivo de captar junto dos estudantes não ciganos a forma mais conveniente da escola acolher estudantes ciganos discriminados numa outra escola. Os resultados mostram que, para a maioria dos inquiridos, os ciganos devem ser socializados através de procedimentos táticos, ou individualizados por meio de dispositivos morais ou funcionais de modo a serem convenientemente assimilados.

Palavras-chave: Questionário por cenários, Semântica da ação, Ciganos Portugueses, Estudantes do ensino médio, Grande Lisboa.

Abstract: Within the European framework of strategic orientation towards increasingly schooled and inclusive societies, the challenge of the presence of different cultures in schools requires the implementation of policies that promote non-discrimination and provide effective means of coordinating diversity. However, the Portuguese Gypsy are still a cultural and ethnic group apparently immune to the aims of these policies, due to the enormous social and historical prejudices which fall upon their members. In this sense, a survey was conducted to test a set of possibilities on how best to integrate Gypsy students in public schools. In this context, 700 non-Gypsy students from three secondary schools in Greater Lisbon were surveyed. In the perspective of an eminently interpretative sociology, closely linked to a theory of semantic action, a scenario-based questionnaire was used to find out among non-gypsy students the most practical way for schools to accommodate discriminated gypsy students in another school. The results show that, for the respondents, the Gypsy population must be socialized through tactical procedures or individualized through moral or functional devices in order to be assimilated.

Keywords: Scenarios-based questionnaire, Action semantics, Portuguese Gypsies, High school students, Greater Lisbon.

Resumen: En el marco europeo de una apuesta estratégica en sociedades cada vez más escolares e inclusivas, el desafío de la presencia de diferentes culturas en las escuelas requiere la implementación de políticas que promuevan la no discriminación. Sin embargo, los gitanos portugueses siguen siendo un grupo cultural y étnico aparentemente inmune a los objetivos de estas políticas, debido a los enormes prejuicios sociales e históricos que caen sobre sus miembros. En este sentido, se llevó a cabo una investigación para poner un conjunto de posibilidades para la mejor manera de acoger a los estudiantes gitanos en la escuela pública. Se encuestó a 700 estudiantes no gitanos de 3 escuelas secundarias de la Gran Lisboa. En la perspectiva de una sociología interpretativa se utilizó un cuestionario basado en escenarios para descubrir entre los estudiantes no gitanos, la forma más práctica para que la escuela acoja a los estudiantes gitanos discriminados en otra escuela. Los resultados muestran que, para la mayoría de los encuestados, los gitanos deben ser socializados a través de procedimientos tácticos o individualizados por intermedio de dispositivos morales o funcionales con el fin de estar debidamente asimilados.

Palabras clave: Cuestionario de escenarios, Semántica de acción, Gitanos portugueses, Estudiantes de secundaria, Gran Lisboa.

1 Introdução

O modo como os indivíduos se coordenam na constituição de grupos e estes, por sua vez, se organizam na formação de coletivos mais vastos, está no cerne do estudo do social e do político. Tanto a sua estrutura como a maior ou menor valorização das diferenças específicas e singulares existentes no seu seio representam um teste à diversidade e à natureza dos laços que se formam entre os grupos e os indivíduos nestes coletivos. Deste ponto de vista, as retóricas conflituantes, ora da celebração da unidade, ora da diversidade, podem ser vistas como dois polos contrastantes na politização dos laços sociais, tendo como consequência a formação de comunidades mais restritas e fechadas ou, em alternativa, mais flexíveis e abertas.

Nos Estados modernos das economias avançadas, e no âmbito de uma gestão da segurança das suas populações, as políticas públicas de abertura ou de fechamento concorrem em alternância consoante as conjunturas políticas e económicas nacionais e internacionais. Com efeito, em momentos de prosperidade e de expansão, o acolhimento da diversidade pode tornar-se mais fácil de ser advogado; ao passo que, em momentos de forte contração económica e de elevada tensão internacional, como aquele que vivemos atualmente, os apelos à unidade e coesão nacional parecem multiplicar-se, e pode muito bem acontecer que o estrangeiro seja hostilizado.

Se concebermos o estrangeiro numa significação mais alargada, mediante a conotação da expressão inglesa strange (estranho, singular, insólito), podemos ainda reconhecer a existência de grupos persistentemente discriminados ao longo de séculos de coexistência, pese embora os esforços e evocações veiculadas pelas políticas da diversidade. Na verdade, os ciganos, apesar de estarem radicados em Portugal há mais de 5 séculos, continuam a não serem reconhecidos nem como minoria nacional, nem como minoria étnica (MAGANO; MENDES, 2014; MENDES; MAGANO, 2013). São uns eternos "estranhos internos" ou "estrangeiros internos" no seu país (MISSAOUI, 1997; ROBERT, 2006), subsistindo relações de estranheza, profundamente marcadas pela alteridade.

De fato, nem as figurações do estrangeiro mobilizadas pelo cosmopolitismo ou pelos defensores da promoção da interculturalidade têm contribuído eficazmente para alterar significativamente a marginalização social dos ciganos. As diferenças reconhecidas nos ciganos enquanto signo de etnicidade são fortemente estigmatizadas pelos não ciganos em quase todos os países europeus, como é o caso de Portugal (FRA, 2016, 2017). Estas diferenças, fortemente marcadas por processos de socialização étnica, bem como por mecanismos socializadores de subordinação funcional no âmbito da estrutura social, revelam-se como que anacrónicas aos olhos de sociedades apostadas no prolongamento da escolaridade, na crescente individualização dos seus membros e na legitimação de uma ordem social meritocrática.

Numa perspetiva funcionalista, a socialização, pode ser entendida, no plano do confronto cultural, enquanto processo de integração dos ciganos num coletivo mais alargado por meio da educação compulsória das crianças ciganas, na visão de que estas adotem as normas e atitudes prevalecentes na sociedade mais alargada e partilhadas pela cultura escolar. Segundo esta perspetiva, a transmissão intergeracional de normas, atitudes e comportamentos, faz-se preferencialmente pela moral solidária, à maneira durkheimiana (DURKHEIM, 2012 [1925]), ou por efeitos do enquadramento institucional organizativo que serve de quadro de referência à ação (PARSONS, 1949).

Por seu turno e, contrastando com esta perspetiva, as teorias interacionistas tendem a privilegiar a socialização da vida quotidiana por meio das classificações espontâneas produzidas pelos atores no decurso das interações sociais. Deste ponto de vista, a ordem social é produto dos juízos valorativos dos atores, os quais polarizam os atos comunicacionais e se incorporam nos feixes das atividades humanas, emergindo em função disto significações partilhadas e lugares comuns (JOAS, 2000).

Enquanto a socialização moral e funcional contém um ideal normativo a atingir, consubstanciado no indivíduo perfeitamente socializado por contraponto ao sujeito insuficientemente socializado, a socialização da vida quotidiana tende a fazer emergir uma pluralidade de pontos de vista e, por esta via, de socializações concorrentes em interação. Acresce ainda que, ao passo que o modelo funcionalista faz uso recorrente dos métodos quantitativos com vista a medir, através de uma bateria de variáveis, o grau de socialização dos indivíduos, o modelo interacionista privilegia as modalidades de inquérito que captem o discurso e os juízos qualificativos dos atores.

Tendo em conta os pressupostos contrastivos destes dois modelos interpretativos, bem como as diferentes finalidades que cada um deles se propõe alcançar, recorremos a um terceiro modelo que, até certo ponto, possibilita compatibilizar alguns dos pressupostos e finalidades contidos nos dois modelos referidos para a investigação que efetuámos sobre os modos mais convenientes de acolhimento da alteridade, aqui representada na figura dos estudantes ciganos. Este modelo assenta fundamentalmente na utilização dos cenários como metodologia de inquirição, os quais, a exemplo do que referem Ramirez et al. (2015, p. 70), constituem atualmente uma “metodologia académica para produzir ‘pesquisa interessante’.”

O inquérito por cenários visou combinar a abordagem qualitativa hermenêutica com uma abordagem estatística exploratória, obtendo por este meio juízos situados. O inquérito foi aplicado em 3 escolas secundárias públicas portuguesas, socialmente contrastantes, a 725 estudantes não ciganos. Os resultados, embora revelem que os ciganos devam ser socializados ou individualizados em ordem a serem membros de pleno direito da sociedade alargada, contradizem os pressupostos funcionalistas acerca dos processos de socialização. O propósito deste artigo é precisamente a fundamentação e descrição da metodologia usada, com particular enfoque no conjunto de todas as operações analíticas efetuadas, procurando evidenciar os grandes trunfos associados à mobilização desta metodologia.1

2 A praxis como locus da investigação

As limitações da abordagem funcionalista ou sistémica são de amplo conhecimento na teoria social (MALEŠEVIC, 2004). As normas são encaradas como conteúdos a transmitir e a organização como neutra e justa, uma vez atingida a estabilidade do sistema (JOAS; KNÖBL, 1999). A justiça do sistema assimila-se à justeza do fair play, o qual é animado pelo estímulo (mérito) da competição. O entendimento que os atores têm do jogo é pouco relevante, apesar de jogar o ‘jogo’ do fair play requerer um envolvimento dos atores no mesmo (CORCUFF, 2001). O que conta como relevante advém quase exclusivamente dos efeitos da socialização (HOLMWOOD, 2005). Por conseguinte, é pela medição do envolvimento dos atores, que estes são diferenciados e qualificados em muito ou pouco socializados (GARNIER, 2000). Deste ponto de vista, os ciganos serão previsivelmente considerados pouco socializados pela sociedade alargada. Mas os próprios respondentes não ciganos, quando inquiridos acerca da relação dos ciganos com as normas prevalecentes, são eles próprios testados quanto ao seu conhecimento do ‘jogo’ inerente à manutenção da ordem social. Também eles podem ser qualificados de pouco ou muito socializados.

Na verdade, o paradigma da integração é atualmente colocado em causa, em favor do paradigma da inclusão. Neste, “o objectivo da inclusão não é apagar as diferenças, mas sim permitir que todos os alunos pertençam a uma comunidade educacional que valida e valoriza a sua individualidade” (FREIRE, 2008, p. 10 apud STAINBACK et al., 1994, p. 489).

A perspetiva interacionista, por seu turno, não obstante levar a sério os juízos e as justificações dos atores, por contraponto à abordagem anterior, apresenta igualmente limitações no que se refere à pouca relevância dada aos constrangimentos estruturais e organizacionais – os quadros de reconhecimento – que impendem sobre os juízos dos atores. Ou seja, ao dar todo o crédito às perspetivas dos atores, corre-se o sério risco de ignorar as obrigações e os recursos disponíveis que podem contribuir para esclarecer estas mesmas perspetivas. Ao rejeitar de uma assentada o sobredeterminismo implícito no funcionalismo, o interacionismo arrisca cair no subjetivismo dos atores.

Na articulação teórica que adoptámos, não poderíamos deixar de estabelecer “uma solidariedade conceitual entre as competências dos atores e os quadros de reconhecimento que as qualificam e as valoram, centrando-nos intimamente nos juízos mobilizados pelos atores e nas especificidades das interações” (CAETANO, 2014) consideradas mais convenientes entre ciganos e não ciganos – arranjos convenientes. Neste sentido, foi nosso propósito não negligenciar a abertura e potencialidades de todas as formas de coexistência com os não ciganos, não nos subsumindo a uma direção normativa previamente fixada. Ao mesmo tempo que partilhámos da proposição wittgensteiniana (WITTGENSTEIN, 1995), segundo a qual, a partilha em comum das significações (“senso comum”) veiculadas pelos atores é julgada suficiente, não exigindo dos mesmos, competências específicas de ajuizamento.

Por outro lado, e com o objetivo de evitar cair no subjetivismo, considerámos os juízos morais dos atores como expressões de ações e de envolvimentos. Subsequentemente, na análise destes juízos, seguimos as orientações teórico-metodológicas de Ogien e Quéré (2005, p. 77), para os quais “a tarefa da análise é então de situar os tipos particulares de ação nos quadros típicos de ação normativa e nos encadeamentos socialmente situados de motivos, em vez de interpretar as ações como manifestações externas de elementos subjetivos que residem no indivíduo”.

Tomando em linha de conta tanto os motivos dos atores, de acordo com a perspetiva interacionista, bem como o contexto de ação, de acordo com a perspetiva sistémica, a perspetiva que aqui perfilhamos, visando superar as principais limitações das duas perspetivas referidas e que se relacionam com os seus próprios modelos de conceptualização «ator-sistema», tem a finalidade de dar conta do modo como os atores procuram significar o contexto das ações em que estão envolvidos.

Desta forma, o que nos propusemos solicitar aos nossos inquiridos foi o seu juízo prático. Um juízo que nos dê acesso à sua forma de pensar e aos seus envolvimentos e que pode ser visto como um sucedâneo do conceito aristotélico de phronesis. Como referem Carr & Kemmis (1986, p. 93), o juízo prático “é necessário quando se consideram possíveis cursos de ação alternativos numa dada situação, e se deseja conhecer qual desses cursos de ação expressa melhor as intenções e os comprometimentos do ator, dadas as circunstâncias e os constrangimentos”. E é neste sentido que este juízo prático - um juízo comprometido com uma dada forma de relação com o mundo e informado pelos constrangimentos percecionados - é expressão de uma práxis (MACINTYRE, 1984), de uma experiência vivida.

3 A semântica da ação

No plano de uma semântica da ação, o carácter normativo dos seus contextos pode ser aferido pelas regras e normas que governam as atividades que os estruturam. De resto, a regulação destes mesmos contextos pode ser concebida à semelhança da regulação da língua pela gramática. A introdução nesta gramática não exige competências especiais dos indivíduos, pois, e na esteira de Wittgenstein (1995), para o uso correto da língua basta praticá-la e viver numa comunidade de praticantes da mesma. É a partilha das significações linguísticas, de onde emerge o que é considerado aceitável e o que o não é, que nos dá a gramaticalidade da língua.

Uma primeira exploração de uma semântica ou de uma racionalidade da ação pode ser encontrada em Aristóteles, na sua Ética a Nicómaco, quando o mesmo, observando que as diversas atividades são orientadas para uma finalidade ou um bem específico, aplica um critério teleológico para as descrever e classificar. No âmbito desta perspetiva teleológica da ação, baseamo-nos no modelo explicativo de ação proposto por Paul Ricœur (1990), na sua obra Soi-même comme un autre. A conceção subjacente a este modelo pode ser simplificada na lógica «quê-porquê?». Segundo o modelo, «o quê da ação?» refere-se à pragmática ou à teleologia da ação: a finalidade orientada para um bem - bem gramatical -; enquanto “o porquê da ação? introduz-nos na explicação da ação para a descrever melhor” (RICŒUR, 1990, p. 81), desvelando-nos o motivo da ação (razão da ação). A distinção entre finalidade da ação e motivo da ação recupera deste modo a lógica da teoria ator-sistema, correspondendo a finalidade da ação à componente objetiva da ação social e os motivos da ação aos seus elementos subjetivos. Com efeito, ao selecionar a mesma opção na resposta a uma pergunta envolvendo um cenário, os estudantes poderão justificar esta mesma opção utilizando argumentos ou razões muito diferentes.

Deste modo, numa análise semântica, o vocabulário dos motivos permite complementar a observação dos dados objetivos da situação («o quê da ação?»), permitindo-nos aceder à ‘imagem’ que os atores possuem da mesma, bem como aos seus estilos de argumentação. Os motivos dos juízos informam-nos sobre o porquê das ações, na esteira de uma sociologia compreensiva weberiana (WEBER; LEVINE, 1972).

4 Estratégia metodológica

O método adoptado visou a análise normativa da ação, combinando várias técnicas usualmente aplicadas com finalidades diferentes. No cerne da metodologia implementada encontra-se o questionário por cenários. Para a análise dos resultados fizemos apelo tanto a técnicas hermenêuticas como a técnicas estatísticas por meio do programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences).

A operacionalização do método pode ser resumida em 5 etapas. Na primeira, foi realizada uma investigação exploratória em 3 escolas socialmente contrastantes da Grande Lisboa, tendo sido feitas a observação dos contextos educativos e o acompanhamento das atividades envolvendo os atores. Foram feitas entrevistas exploratórias, desenvolvidos contatos com informantes privilegiados e especialistas, bem como uma análise documental. Esta primeira etapa visou fundamentalmente identificar diversos cenários de ação (situações) para a construção de cenários.

Após a mesma, numa segunda fase, procedemos à elaboração de uma narrativa destinada a colocar os envolvimentos dos atores à prova, com a introdução de tensões entre os bens gramaticais em presença. Para a construção da narrativa, especial atenção foi concedida à estrutura lógica (sintática) da situação, bem como à gestão da informação pertinente na narrativa, de modo a não sugerir ou a conduzir os estudantes nas respostas. Houve igualmente o cuidado de colocar hipóteses realistas, próximas da experiência quotidiana dos estudantes.

A terceira etapa consistiu na elaboração do questionário, escolhendo as variáveis de contextualização, e no pré-teste. Procedeu-se ao processo de amostragem, que consistiu na seleção de todas as turmas do 10º ano (à entrada do ensino secundário) e do 12º ano (à saída do ensino secundário). Posteriormente, e já depois de os encarregados de educação dos alunos estudantes menores de idade terem preenchido uma declaração de consentimento informado, foi feita a implementação dos questionários em sede de sala de aula. A amostra foi de 726 inquiridos nas três escolas, no ano de 2011. A taxa de resposta foi variável consoante as escolas: 60,6% na escola B, de 55,1% na C e de 26,9% na escola A.

A quarta etapa, pós implementação do instrumento, recobriu a categorização e codificação das justificações das opções escolhidas. Realizou-se uma categorização por "milha” - "o sistema de categorias não é formado, antes resultando de classificação analógica e progressiva dos elementos" (BARDIN, 2003, p. 119). Esta etapa consistiu na análise gramatical, da qual resultou uma matriz de significados e de motivos das ações.

Na quinta e última etapa, através de uma técnica estatística exploratória, foi realizada uma análise múltipla de correspondências com o propósito de mapear as relações semânticas (de proximidade e de distanciação) entre as modalidades de ação (hipóteses do cenário), os bens gramaticais e os motivos.

4.1 O instrumento: questionário por cenários

O questionário por cenários constituiu o instrumento-chave para a recriação de uma espécie de «laboratório político-moral» dos juízos práticos dos estudantes. As vantagens do recurso a este questionário são consideráveis. Nomeadamente, as de procurar envolver os inquiridos em contextos-problema, próximos da sua experiência concreta e situada, convidando-os a participar no dinamismo de uma situação e a mostrar como mobilizam as regras da sua experiência (abordagem realista e situacionista). O questionário por cenários permite assim “captar aspetos mais situacionais e comportamentais que os itens do tipo Likert, que consistem em afirmações gerais e abstratas padronizadas em escalas de resposta" (KÖNIG et al., 2007, p. 213).

Por outro lado, a possibilidade de os inquiridos poderem justificar a sua opção permite aceder aos significados da ação que foi considerada como a mais conveniente. Acedendo conjuntamente à opção e à sua justificação podemos focar-nos simultaneamente nos encadeamentos e nos significados da ação, no propósito de descortinar possíveis arranjos contextualizados. As descrições contidas nas justificações informam-nos sobre os procedimentos de objetivação e de conceptualização que os estudantes mobilizam a partir da sua experiência. E ainda que a formulação descritiva de uma ação ou de uma situação seja de uma ordem diferente da do raciocínio prático de uma ação em realização, captada, por exemplo, pela observação direta, aquela mostra-nos a antecipação das expetativas normativas que os atores percecionam. Temos acesso deste modo a uma partilha de significações, mas também de constrangimentos. Em suma, não se trata aqui de ser fiel à ação, mas, na esteira de Ogien e Quéré (2005), de uma sociologia inerente à ação.

4.2 O cenário

O cenário escolhido reporta-se a uma situação, cujos resultados preliminares foram já objeto de um artigo (CAETANO; MENDES, 2014) e replica situações de segregação reais que aconteceram em Portugal. Estas relacionam-se, sobretudo, com a prática de concentração de alunos ciganos em turmas específicas nas escolas. A sua justificação pelas estruturas regionais do Ministério da Educação prendia-se, ainda há bem pouco tempo, como uma medida de discriminação positiva2, no sentido de tratar de forma diferente o que se entendia como pessoas diferentes. Já as autoridades municipais justificavam a existência destas turmas especiais, a posteriori, com a aparente eficácia obtida na sua implementação.3 E, embora esta prática discriminativa tenha deixado de ser considerada legítima pelas autoridades educativas, permanecem, de outro modo, outras formas de segregação, como, por exemplo, o white flight, caracterizado pela evasão dos não ciganos de certos territórios educativos com uma elevada concentração de pessoas ciganas (ABRANTES et al., 2016). O caso recente de uma escola em Famalicão é um claro exemplo deste fenómeno.4

Com o objetivo de inquirir os alunos não ciganos sobre as possíveis significações decorrentes desta prática, foi construída uma pequena narrativa, cujo conteúdo reportava uma hipotética escola ter sido obrigada a aceitar alunos de etnia cigana, alvo de discriminação numa outra escola. No texto, a direção da escola e a maioria dos pais dos alunos não concordavam com esta medida. Os estudantes são assim convidados a posicionar-se face às seguintes questões: como deve a direção da escola proceder?

  1. - Hipótese A. Criar uma turma especial para receber estes alunos num pavilhão à parte?

  2. - Hipótese B. Espalhar os alunos por diversas turmas da escola?

  3. - Hipótese C. Concentrar os alunos numa turma já existente?

  4. - Hipótese D. Não desistir do protesto e, entretanto, criar uma turma especial para estes alunos, restringindo-lhes o acesso à maioria dos espaços da escola?

  5. - Hipótese E. Concentrar os alunos numa turma já existente e promover iniciativas de sensibilização para a integração destes alunos?

Posteriormente foi pedida a justificação da escolha efetuada.

5 Procedimentos analíticos

Os procedimentos analíticos compreendem uma análise semântica e uma análise estatística multivariada. Contudo, ainda antes de estes procedimentos terem sido realizados, efetuou-se uma análise estatística univariada.

Considerando os resultados relativamente às opções escolhidas, verifica-se que duas opções mobilizam as expectativas de conduta dos estudantes: a opção B - espalhar os alunos ciganos (31,7%) -, e a opção E - concentrar os alunos ciganos numa turma já existente e promover ações de sensibilização (29,9%). Se se somar as percentagens efetivas das atitudes potencialmente discriminatórias - opções A, C e D, constata-se que 10,9% dos estudantes mobilizam expectativas claramente hostis para com os alunos ciganos. Cruzando com os dados sociodemográficos, a atitude discriminatória é revelada pelo dobro dos estudantes do sexo masculino relativamente aos estudantes do sexo feminino. Ela também está significativamente presente nos estudantes mais jovens relativamente aos seus congéneres mais velhos.

Em geral, os estudantes cujo encarregado de educação tem uma habilitação literária equivalente à licenciatura consideram que a gestão mais conveniente dos alunos ciganos corresponde a espalhá-los pelas turmas da escola, sem necessariamente realizar ações suplementares para a integração destes alunos. Os alunos ciganos são tratados como os outros; na prática, são normalizados. Já os estudantes com pais empregados executantes, com 15 anos e do sexo feminino consideram que o arranjo mais conveniente passa por integrar os alunos numa turma já existente ao mesmo tempo que se promovem ações de sensibilização junto dos outros alunos da turma.

5.1 Análise semântica

Seguindo o modelo teórico-metodológico da semântica da ação explicitado anteriormente, procuraremos responder às duas questões que orientam a nossa análise: o quê? e o porquê? Assim, para responder à primeira pergunta, identificámos, a partir da categorização das justificações dos estudantes em classes, segundo um critério de significação política relativo às diferentes formas de conceptualizar a gestão da diversidade, quatro bens gramaticais, isto é, quatro orientações de possível coexistência entre ciganos e não ciganos: a «separação», a «socialização», o «universalismo» e a «cooperação». O peso percentual de cada bem gramatical no total das justificações foi o seguinte: «socialização» (40,7%), «universalização» (31,6%), «separação» (11,6%) e «cooperação» (6,1%).

De uma forma muito sintética, no bem gramatical da «separação», as pessoas ciganas são vistas como parasitas da sociedade, não dignas e como selvagens que só trazem e arranjam problemas (SILVA, 2014). Por conseguinte, os ciganos deverão estar profilaticamente isolados dos restantes alunos. Na «socialização», os ciganos são tidos como pessoas diferentes, sendo-lhes atribuída uma condição de “estranheza”, focalizada nas diferenças étnicas e culturais (etnicização), tendo as mesmas de passar por um processo preparatório de integração, no sentido de uma aculturação, modificando os seus comportamentos e alterando os seus hábitos.

No «universalismo», os ciganos são vistos como iguais aos outros: ou porque são pessoas pertencentes a uma humanidade comum, sendo moralmente dignas do respeito devido a qualquer pessoa, ou porque formalmente são portadores dos mesmos direitos e deveres que os outros. Por fim, na «cooperação», as pessoas ciganas são qualificadas simultaneamente como iguais e como diferentes, sendo a diferença positivamente discriminada, pois a mesma não é reportada somente à singularidade da pessoa, mas também ao fato de pertencer a um coletivo cultural diferente. Neste sentido, a mobilização desta gramática é a que mais se aproxima de uma educação intercultural.

Para poder responder à segunda questão procedemos do mesmo modo, agrupando e classificando os motivos por analogia semântica. Foram identificados os seguintes motivos: a «coação», o motivo «moral», o «pragmático-conciliatório», o «económico» e o «funcional». O motivo «pragmático-conciliatório» foi o mais frequente nas justificações (47,7%), seguido pelo motivo «moral» (20,7%), o motivo «funcional» (16,5%), o motivo «económico» (3,4%) e, por fim, o motivo da «coação» (1,7%). Não responderam 8,4% dos inquiridos.

O motivo da «coação» agrupa todos os casos que apontam para e fazem referência a ações de controlo, sancionamento, repressão e cerceamento da circulação nos espaços escolares dos alunos ciganos; o motivo «moral» repercute o comportamento incorreto dos ciganos através de provérbios e sentenças morais ou detém-se na singularização da pessoa, enquanto substrato da humanidade; o motivo «pragmático-conciliatório» coloca a tónica na resolução do problema e na importância de se influenciarem hábitos por meio da convivência; o motivo «económico» ou utilitário relaciona-se com os argumentos baseados no prejuízo, no estímulo ou na otimização de soluções; e, finalmente, o motivo «funcional» direciona-nos para os aspetos institucionais ou funcionais das ações ou da situação.

O entrecruzamento dos motivos com as gramáticas, resultante da categorização efetuada, é, na verdade, uma sinopse que nos mostra um jogo variegado de possibilidades de coexistência na diversidade. Pelo que estas diferentes possibilidades estão sujeitas a diferentes regras gramaticais. Na realidade, esta abordagem incide sobre o modo de composição das situações. Em lugar da explicação causal visa-se a obtenção de modalidades (possibilidades de estados de coisas), a partir da análise comparativa das relações de similaridade entre diversos casos, assemelhando-se a um jogo variado de possibilidades de emprego sob o eixo horizontal de comparação de casos entre eles (SOULEZ, 2004, p. 62).

Da sinopse, observou-se que a modalidade classificada como mais frequente no cenário foi aquela que se prende com "influenciar hábitos" dos alunos ciganos, no bem da socialização, com cerca de 28,8% do total das respostas válidas. Seguiu-se a "igual dignidade" das pessoas (19,9%) e a responsabilidade social da escola (14,6%), as duas últimas alinhadas pelo bem do universalismo.

5.2 Análise multivariada

Posteriormente à operação de categorização processou-se a codificação, pela qual a informação resultante das categorias é transformada (normalizada) em variáveis. No seguimento desta sequência será finalmente possível avançar com as operações estatísticas de verificação da existência de correlações entre categorias, motivos, cursos de ação (hipóteses) e dados de caracterização dos estudantes. Estas últimas operações colocam em interação, quase exclusivamente, variáveis qualitativas. Ao realizar-se uma análise de correspondências múltiplas, obteve-se para o efeito um valor de consistência interna de 0,702. A visualização gráfica da associação está presente na Figura 1.

Representação gráfica dos arranjos da diversidade
Figura 1.
Representação gráfica dos arranjos da diversidade
Fonte: Caetano (2014)

Na Figura 1, para além dos motivos, dos bens gramaticais e das hipóteses, surgem também as modalidades de pertença de associação (variável âmbito da associação). Trata-se de uma classificação relativa ao campo de atuação associativo no qual os estudantes se encontram ou já se encontraram envolvidos: científico, cultural, estudantil, humanitário, político e religioso.

As hipóteses surgem no gráfico sob a forma de acrónimo: TE (criação de uma turma especial para os alunos ciganos); EA (espalhar os alunos); CAT (concentrar alunos numa turma já existente); ND (não desistir do protesto e coartar os espaços de circulação dos alunos ciganos); CS (concentrar os alunos numa turma já existente e promover ações de sensibilização junto dos outros alunos.

Como se pode observar existem três perfis claramente distintos. Em primeiro lugar, claramente destacado no gráfico, o perfil da separação (Sep), próximo da não desistência do protesto e da criação da turma especial, e, em certa medida associado também à concentração dos alunos numa turma já existente e do motivo económico (bem como dos inquiridos pertencentes a uma associação político-partidária). No fundo, estamos perante uma situação de marginalização, na medida em que se denota uma evidente exclusão e discriminação dos alunos ciganos.

Mais próximo do topo do gráfico, reconhece-se o perfil da universalização (Univ), próximo do motivo funcional e, em certa medida, também da coação e do motivo moral, bem como da hipótese de concentrar os alunos e sensibilizá-los. E, finalmente, o perfil que aproxima a socialização (Soc) da cooperação (Coop), bem como a opção de espalhar os alunos e o motivo pragmático-conciliatório.

Em resumo, enquanto a dimensão 1 nos mostra a distância relacional do perfil da separação para os outros dois, numa lógica exclusão-inclusão; a dimensão 2 mostra-nos a distância entre o perfil do universalismo e o perfil composto pela socialização e a cooperação, numa lógica de proximidade-distância.

6 Aspetos táticos e coercivos na integração dos alunos ciganos

Contrariamente ao esquema da socialização proposto pelo funcionalismo, que nos poderia conduzir a associar o universalismo com o individualismo ou a socialização com os motivos moral ou funcional, observamos, a partir da Figura 1, que o universalismo está associado com estes últimos, bem como com os esforços de sensibilização da escola no sentido de integrar os alunos ciganos. Não obstante, o respeito pela integralidade da pessoa (motivo moral) ou a responsabilidade social da escola (motivo funcional) implicam, porém, o despojamento de todos os resíduos de pertença cultural destes alunos: o aluno é uma pessoa; o aluno é um aluno.

A proximidade do motivo moral e da pertença a uma associação religiosa ao universalismo, a par da opção de sensibilização dos alunos não ciganos, atesta este perfil de um universalismo moral personalista. O motivo da coação, próximo do universalismo e funcionalismo, evidencia o aspeto institucional dos direitos e deveres individuais, característico de um certo universalismo republicano, o qual enfatiza as obrigações e a necessidade de cumprir escrupulosamente com as responsabilidades.

Já na socialização, verifica-se uma estreita associação com o motivo pragmático-conciliatório e com a hipótese de espalhar os alunos. Na verdade, há aqui um aspeto tático. Tático no sentido prático, e não estratégico (DE CERTEAU, 1988), em ordem a influenciar os hábitos dos alunos ciganos pela convivência, tarefa facilitada pela individualização dos mesmos. Estes estarão assim melhor preparados para se adaptar aos costumes da maioria e poderão também ter oportunidade de fazer novos amigos. Note-se ainda que, nesta configuração, há uma distanciação significativa relativamente ao uso da coação nesta intervenção tática de influência dos hábitos dos alunos ciganos.

Adjacente à socialização e da opção de espalhar os alunos ciganos, mas também das associações de cariz estudantil, encontra-se o bem da cooperação. Na verdade, a cooperação é o bem mais afastado do bem da separação, o que nos induz a inferir que a dimensão 1 representa um eixo de acolhimento versus rejeição dos alunos ciganos. De modo similar, se nos reportarmos à dimensão 2, onde as categorias dos motivos registam uma maior contribuição, podemos inferir que esta dimensão representa um eixo de familiaridade-distância, no qual o polo da familiaridade coincide com o motivo pragmático-conciliatório e o motivo da coação coincide com o polo da distância.

Neste sentido, podemos inferir que aqui o bem da cooperação, associado ao polo da familiaridade, está muito longe do ideal de um cosmopolitismo universalista de direitos e deveres. O bem da cooperação, ao invés, mostra-se conectado a uma partilha de experiências em comum, a um enriquecimento significativo da práxis. Na realidade, a cooperação enraíza-se num desejo espontâneo de interação, assim como na promessa da criatividade da ação. Neste ponto, e contrariamente ao bem da socialização, não existe na cooperação um resultado normativo a atingir – a integração-assimilação dos estudantes ciganos –, mas sim o pressuposto da participação e da valorização das diferentes culturas em interação. A racionalidade substantiva quantitativa presente no bem da socialização contrasta com a lógica substantivamente qualitativa do bem da cooperação.

Por fim, o bem da separação é, no segundo quadrante, contíguo das opções claramente discriminatórias e xenofóbicas, especialmente as opções de não desistir do protesto e de criação de uma turma especial, mas também de concentrar todos os alunos ciganos numa turma. O motivo económico do prejuízo dos não ciganos, bem como a pertença a uma associação político-partidária estão igualmente adjacentes à perspetiva xenofóbica. Sendo este último aspeto importante fonte de inquietação, talvez pelo fato das motivações de pertencer a uma juventude partidária estarem ligadas a uma expressão convicta de um chauvinismo embuçado.

7 Considerações finais

A estratégia metodológica adoptada possui a virtude de dar conta de uma pluralidade de perspetivas de conduta mobilizadas pelos atores, a partir de um contexto específico. De resto, uma virtude pouco habitual nas investigações de cunho mais quantitativo. Com efeito, o desenho metodológico aqui seguido privilegiou o acesso aos quadros de conduta dos atores, procurando superar as principais limitações quer das teorias funcionalistas, isto é, o seu determinismo, quer das teorias interacionistas, a saber, o seu subjetivismo.

Tendo em vista o sentido das interações e as possibilidades de arranjos sociais situados, resultado das expetativas recíprocas dos atores, foi possível conhecer os juízos práticos mobilizados pelos estudantes não ciganos e identificar, mapear e caracterizar uma pluralidade de arranjos de coexistência entre alunos ciganos e não ciganos. Neste sentido, foi necessário fundamentar uma articulação teórico-metodológica que pudesse fazer emergir a práxis como objeto de pesquisa. Esta articulação compreendeu duas fases de procedimentos analíticos: a análise semântica e a análise multivariada.

Para além das implicações ao nível metodológico, esta pesquisa poderá igualmente contribuir para um maior esclarecimento acerca dos processos de socialização. Na verdade, ela pode constituir-se como um desafio aos principais pressupostos funcionalistas sobre os mesmos, colocando a nu os aspetos táticos mobilizados pelos estudantes nas suas justificações. Este aspeto tático, presente nas justificações que mobilizam o bem da socialização, opõe-se claramente à dimensão coercitiva dos arranjos da diversidade, os quais, em nosso entender, poderão estar associados a uma radicalização da trajetória de um universalismo de cariz republicano.

As gramáticas tornadas visíveis através da análise semântica fazem parte de um repertório político comum existente no espaço público. Elas informam-nos sobre as várias formas de perspetivar a coexistência de diferentes culturas. Com efeito, elas constituem o produto histórico de diferentes tradições sociopolíticas que chegaram até nós: o preconceito xenofóbico próprio de uma comunidade fechada e excludente, que classifica o não familiar como «estrangeiro», hostilizando-o; o universalismo personalista, indutor da ideia de uma Humanidade comum e precursor do cosmopolitismo (KANT, 1996); o universalismo cívico republicano, defensor do primado da lei e da ordem (SAVIDAN, 2007); o pragmatismo solidário visando uma harmonia orgânica através do trabalho socializador do Estado (DURKHEIM, 1908); e ainda o interculturalismo pós-moderno, que se destaca pela sua abertura e pela exigência de uma permanente negociação relacional entre culturas (RODAT, 2020).

A referência a estas gramáticas presentes nas justificações dos estudantes mostra a pluralidade e a riqueza de ferramentas conceptuais disponíveis que os mesmos mobilizaram para a resolução da situação. Porém, a análise estatística univariada permite sublinhar que as gramáticas mais mobilizadas são as da socialização e do universalismo. Na verdade, estas gramáticas revelam justamente que, resistindo ao crivo da espessura do tempo, as mesmas são as que se encontram mais estabilizadas na tradição do espaço sociopolítico português.

Não obstante, nem a conceção orientada para a assimilação dos ciganos, nem a conceção direcionada para o respeito dos estudantes ciganos enquanto pessoas, verdadeiros sustentáculos da socialização e do universalismo, respetivamente, parecem dar resposta ao problema da discriminação sofrido pelos ciganos, particularmente no que se refere ao respeito pela sua identidade cultural. A não valorização da cultura cigana nestas duas gramáticas contribui, com efeito, para a sua continuada subordinação e marginalização. Com efeito, o bem gramatical da cooperação, ou seja, o interculturalismo, é, de entre todos os disponíveis, o mais propício à valorização da cultura cigana. Neste sentido, e dada ter sido reduzida a mobilização desta gramática pelos estudantes, torna-se crucial apostar mais firmemente na implementação de uma educação intercultural nas escolas. Sabendo que o interculturalismo, se bem que receptivo à criatividade de ação (JOAS, 2008) e à inovação social, não deve ser subsumido apenas ao bem da cooperação, pois encontra-se igualmente aberto ao conflito e à negociação entre culturas, na medida em que estes se processem sob uma ótica produtiva e inclusiva.

Referências

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Notas

1 O presente artigo baseia-se na metodologia aplicada na pesquisa realizada por Pedro Jorge da Costa Caetano, na sua Tese de Doutorado em Sociologia, em 2014, intitulada Individuação e Reconhecimento: Processos de Socialização Política na Incerteza dos Itinerários Escolares. A metodologia seguida, o tratamento dos dados, bem como os resultados, têm origem na referida pesquisa. A mesma teve financiamento público por parte da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), com a referência SFRH/BD/44303/2008. Disponível em: https://run.unl.pt/handle/10362/11827.
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4 VALENTE, C. Uma escola que só tem alunos de etnia cigana. "É assim que se cria uma revolta". Diário de Notícias, Lisboa, 17 fev. 2018.

Notas de autor

1 Doutor em Sociologia da Cultura, do Conhecimento e da Educação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH/NOVA). Investigador na Universidade Nova de Lisboa, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais – Lisboa – Portugal. E-mail: caepedro@gmail.com.
2 Doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa - ICS-UL (2007). Professora Associada na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa (FAUL) e investigadora no Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia - Lisboa - Portugal. E-mail: mamendesster@gmail.com.
3 Doutorada em Sociologia pela Universidade Aberta (2011). Investigadora integrada no Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (Cies_Iscte) - Lisboa - Portugal. E-mail: olga.magano@uab.pt.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): CAETANO, P. J.; MENDES, M. M.; MAGANO, O. Como acolher os estudantes Ciganos na escola pública? Do reconhecimento da alteridade a uma pluralidade de arranjos discriminatórios. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, n. 3, p. 635-651, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p635-651. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15971.

COMO CITAR (APA): Caetano, P. J., Mendes, M. M. & Magano, O. (2021). Como acolher os estudantes Ciganos na escola pública? Do reconhecimento da alteridade a uma pluralidade de arranjos discriminatórios. Vértices (Campos dos Goitacazes), 23(3), 635-651. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p635-651.

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