DOSSIÊ TEMÁTICO: "QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS DA EDUCAÇÃO NO BRASIL E EM PORTUGAL"

Editorial do Dossiê Temático (v23n3)

José Manoel Vieira Soares Resende
UÉvora, Portugal
Nívea Silva Vieira
UERJ, Brasil
Eduardo da Costa Pinto D’Ávila
IFRJ, Brasil
Marco Vinícius Moreira Lamarão
IFF, Brasil

Editorial do Dossiê Temático (v23n3)

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 23, núm. 3, 2021

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

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Apresentação

A ideia motivadora deste dossiê foi reforçar os laços entre pesquisadoras (res) portugueses (as) e brasileiros (as) do campo educacional de forma a integrar os grupos de pesquisas, além de fortalecer a pesquisa empírica sobres os desafios contemporâneos na educação no Brasil e em Portugal. Entendemos esta aproximação como uma reoxigenação da tarefa de unir a classe trabalhadora mundial no campo educacional. Essas pesquisas reuniram anos de trabalhos coletivos feitos por dezenas de laboratórios em regiões diversas lusitanas e brasileiras e este dossiê traz o acúmulo dessas investigações que podem e devem ter um duplo caráter: um acadêmico e um programático. Neste sentido, o objetivo foi preencher lacunas, abrir flancos de estudo, potencializar as parcerias entre autoras e autores que escrevem não apenas em língua portuguesa, gerar novas necessidades congressuais, valorizar a pluralidade teórico-conceitual e inspirar uma agenda de lutas.

A presente coletânea de artigos se inscreve em uma conjuntura de desafios educacionais tanto no Brasil quanto em Portugal, países que possuem temas que atravessam a escola, como desigualdade educacional, precarização da carreira docente, racismo estrutural, violência sistêmica e ameaça ao caráter público da educação. Para além de uma mera coleção de artigos, a função social deste dossiê é estimular a pesquisa no campo educacional que precisa alinhar universidade e escola com políticas públicas de pesquisa escolar. A dimensão programática da atividade científica se caracteriza pela atuação desses cientistas em processos de disputa na formulação de políticas públicas, como parte de uma relação histórica entre a produção de conhecimento e suas mediações e/ou participações através de grupos e entidades em conselhos, fóruns, parlamentos, sindicatos e órgãos estatais. No âmbito acadêmico, o dossiê reuniu aportes teórico-metodológicos sobre educação da sociologia, da antropologia, da história e da pedagogia. O processo de construção deste trabalho envolveu uma reflexão sobre a relevância de estimular os debates educacionais no Brasil e em Portugal através de pesquisas, em um contexto de lutas em defesa da universalização da escola pública, gratuita, laica e de qualidade.

O presente dossiê está dividido em três partes: diversidade, formação e financiamento e financeirização da educação. As onze publicações deste dossiê configuram um amálgama que conseguimos organizar em torno desses grandes temas nos programas de pós-graduações em educação no Brasil e em Portugal. A possibilidade de iniciar a obra com o debate sobre a diversidade fortaleceu uma das linhas norteadoras dessa organização que é o reforço da educação em uma perspectiva transformadora. As questões étnico-raciais e de gênero assumem uma dimensão maior na atualidade no contexto de lutas contra o epistemicídio e contra o feminicídio (fenômenos crescentes mundialmente). Isto se soma à atuação de setores reacionários que se organizam em torno de uma agenda ultraconservadora que visa à militarização e à neopentecostalização das escolas. Contra esses setores, frações privatistas “republicanas” que atuam no campo da educação vêm tentando ser uma força protagonista na condução da crise orgânica do capital no âmbito educacional. De outro lado, a fração de trabalhadoras e trabalhadores da educação diversificam e renovam suas estratégias e/ou mudam suas táticas na disputa e construção de outra hegemonia.

O conjunto de artigos do eixo diversidade que abrem a coletânea fortalecem o debate, a luta contra a “ditadura do pensamento único” e ampliam os horizontes congressuais em suas interfaces com os movimentos sociais, partidos e sindicatos.

O primeiro artigo “Os filhos de um deus menor: de arisco à chegada à acolhida pela philia” de José Manuel Resende e José Maria Carvalho é emblemático da ampliação teórico-conceitual e da diversificação temática localizada na resistência a uma concepção única de educação. O trabalho é resultado de uma pesquisa em “sociologia pragmática” e tem como tema os fluxos migratórios e a sociabilidade dos alunos estrangeiros nas escolas. Metodologicamente foram usadas observação etnográfica, entrevistas semidiretivas com secundaristas em duas escolas, com objetivo de refletir essa hospitalidade da escola do aluno estrangeiro.

O segundo artigo “Como acolher os estudantes Ciganos na escola pública? Do reconhecimento da alteridade a uma pluralidade de arranjos discriminatórios” de Pedro Jorge Caetano, Maria Manuela Mendes e Olga Magano, reforçou e especificou esta problemática do acolhimento pela escola no papel de conter a discriminação. Através de entrevistas com setecentos alunos não ciganos e três ciganos, o trabalho teve como objetivo entender a melhor forma da escola pública da Grande Lisboa acolher estudantes ciganos discriminados em outra escola. O trabalho está amparado pela “sociologia compreensiva” e no aporte teórico-conceitual da “semântica da ação” e a metodologia foi marcada por um questionário “baseado em cenários”.

O terceiro artigo “O arco-da-velha na escola: no reconhecimento público das diversidades culturais em escola inclusa”, de José Manuel Resende, Guilherme Paiva de Carvalho e Aline Raiany Fernandes Soares, encerra seção da diversidade. O trabalho teve como objetivo apresentar “como os conceitos de multiculturalismo, interculturalidade e diversidade cultural são ressignificados nas linhas mestres das políticas e ações públicas no Brasil e em Portugal”. Destaca-se a dimensão programática do trabalho no tema da inclusão escolar, pois há uma interface com os processos de formulação de políticas públicas educacionais desses países.

Destacamos nestes três primeiros artigos o aprofundamento progressivo em torno desses temas e também o predomínio teórico-conceitual da antropologia e da sociologia da educação. A ordem e a organização desses artigos na primeira parte têm o intuito de abordar a totalidade da problemática suscitada pelo tema da diversidade, pois foram relevantes as perspectivas macrossociológicas (política e educação) e as abordagens microssociológicas (entrevistas semidiretivas, observação etnográfica, entrevista baseada em cenários) nesta parte I do dossiê.

O artigo “É pra falar de gênero sim: considerações teóricas e práticas sobre a importância de uma educação antissexista nos institutos federais”, de Alice de Araújo Nascimento Pereira, Camila França Barros e Olivia de Melo Fonseca, inaugura a segunda seção com o tema da formação docente e discente.

Trata-se de um artigo que possui um duplo caráter: primeiro o de investigar possiblidades de combate à homofobia e à transfobia na sociedade; e segundo de problematizar como educadores e estudantes estão lidando com a educação antissexista. O trabalho tem como objetivo refletir sobre o que de fato foi feito (“ações concretas”) nos Institutos Federais no que se refere a uma “educação feminista, libertária e afirmativa”. No âmbito teórico-metodológico o artigo está ancorado na pedagogia histórico-crítica, entendendo que a escola é um espaço em disputa e os conceitos de classe, gênero e questões étnico-raciais se sobrepõem. Na metodologia recorrem a uma análise bibliográfica e aos relatos de experiências, o que reforça a diversificação de técnicas e métodos de pesquisa como uma das contribuições deste dossiê. Entendemos que esse artigo sobre gênero na escola traz reflexões curriculares exigidas na produção e reprodução de outra hegemonia.

O artigo “Técnico ou graduado? A formação do jovem no ensino médio técnico profissionalizante” de Emerson Allevato Furtado, Izabella de Aquino Leandro, Marcelo Cardoso da Costa é um aprofundamento sobre a formação discente. O trabalho reforçou o aspecto plural no que se refere ao campo da sociologia da educação destacando a relação entre identidade profissional e mobilidade social na Baixada Fluminense, uma das regiões mais pobres do estado do Rio de Janeiro. O trabalho é resultado da constituição de um grupo de pesquisa no âmbito do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, na unidade Duque de Caxias. O trabalho sublinhou a relação entre a educação profissional e as trajetórias da juventude periférica, com o objetivo de refletir sobre a relação entre educação e trabalho e as possiblidades de mobilidade social. Destaca-se no aspecto teórico-metodológico o uso de conceitos da sociologia educacional de Max Weber (“racionalização”) e, dentro da corrente weberiana, das contribuições de Karl Mannheim. A pesquisa usou análise bibliográfica e entrevistas com estudantes do último período do curso técnico de Química, sobre suas percepções acerca da sua identidade profissional.

O terceiro artigo da parte II “As Competências Socioemocionais na Formação da Juventude: Mecanismos de Coerção e Consenso frente às Transformações no Mundo do Trabalho e os Conflitos Sociais no Brasil”, de Inny Accioly e Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa, tem como tema o estudo de documentos internacionais voltados para a educação. Referenciado no materialismo histórico-dialético, o estudo parte da implementação nos Estados Unidos das orientações para formação da juventude e analisa a sua influência no processo de formulação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Brasil e a tendência do projeto de escola “cívico-militar”. O tema preenche lacunas no campo educacional sobre processo de militarização e neopentecostalização da escola pública. O artigo conclui que “o fomento das competências socioemocionais apresenta tendência de caráter repressivo/coercitivo”.

O artigo “O interesse individual como justificação: a gramática liberal na construção da colegialidade entre professores do ensino Básico e Secundário” de Luís Gouveia encerra a parte I. O trabalho tem como objetivo estudar como a “gramática liberal” está sujeita a uma organização escolar que impacta (usando o conceito de “regimes de envolvimento”) o trabalho docente. Na metodologia, a pesquisa foi marcada pela aplicação de questionário de cenário em uma escola em Portugal, a partir de conceitos da sociologia pragmática e das organizações escolares. O autor enfatiza a relação entre as políticas e as reformas educacionais contemporâneas aos impactos na formação docente no contexto de fomento à “eficácia” na educação pelos documentos internacionais.

Ao tratar de forma tangencial de documentos internacionais, consideramos que o artigo que fecha a parte II também cumpre a função de preparar para a terceira e última parte do dossiê. Ao relacionar o conceito de “eficácia” amplamente propalado pelo Banco Mundial, é uma oportuna transição para a agenda do capital para a educação, tema do artigo inaugural da terceira parte sobre financiamento e financeirização da educação.

O artigo “A agenda do capital financeiro para a educação da América Latina em tempos de pandemia” de Renata Spadetti Tuão e Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa, trata da atuação de fundos de investimentos estrangeiros na educação pública. O trabalho tem como objetivo apresentar os “elementos constitutivos dessa agenda no período pandêmico em sua correlação com as estratégias do capital financeiro em curso, desde a década de 1990”. Foram analisados documentos de dois organismos internacionais, um deles o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e outro ligado ao capital financeiro. O referencial teórico-metodológico foi o materialismo histórico e dialético e o resultado é uma estreita relação entre as formulações sobre “responsabilização” dessa agenda e a precarização da profissão docente.

O artigo “A Parceiros da Educação e o processo de colonização da educação pública” de Regis Eduardo Coelho Argüelles da Costa investigou uma Organização Social de Interesse Público (OSCIP), a “Parceiros da Educação” (PdE), através da análise da composição de seu Conselho Executivo entre 2009 e 2013. Ancorado no materialismo histórico dialético, usou conceitos de Antônio Gramsci e Nicos Poulantzas para investigar a Parceiros da Educação (PdE) como uma “associação dirigida por representantes bastante significativos da burguesia que atua no Brasil, especialmente do capital financeiro” (…) “cujos tentáculos envolvem instituições como o Todos pela Educação, partidos políticos e postos chave no aparato de Estado”.

O artigo “Os novos e velhos problemas do “Novo Fundeb”: análise da Emenda Constitucional 108/2020” de Fábio Araújo de Souza, analisa a proposta do Novo Fundeb, promulgada no Congresso Nacional brasileiro (Emenda Constitucional N.º 108/20). Com base no materialismo histórico dialético, investiga o que chama de “novo mecanismo permanente de financiamento” que amplia a capitalização da educação básica. A metodologia envolveu análise documental e revisão bibliográfica, questionando “a centralidade na elevação dos índices de aprendizagem – que pode gerar disputa injusta entre as redes com maior disponibilidade de recursos e as com menor; a consolidação da meritocracia e de possíveis fraudes nos indicadores; a inviabilização do Custo Aluno-Qualidade (CAQ) diante da nada generosa complementação do ente que mais arrecada tributos no país”.

E, por fim, encerrando o dossiê, o artigo “Aspectos históricos do financiamento da educação básica pública brasileira: a democratização autocrática” de Marco Vinícius Moreira Lamarão, tem como objetivo analisar historicamente o financiamento da educação básica, do Brasil- Colônia até a Constituição de 1988. Através de análise documental da legislação, o trabalho é resultado de um esforço para articular conceitos da sociologia, da história e da educação, de Florestan Fernandes (“capitalismo dependente”), Jacob Gorender (“escravismo colonial) e Eveline Algebaile (“ampliação para menos”). O autor analisou a legislação sobre financiamento da educação desde o período colonial brasileiro para construir sua hipótese: a de que a categoria de “democratização autocrática” é uma “chave analítica da educação pública brasileira”.

A tentativa de organizar em torno de três eixos não deixou de lado a existência de um sólido fio condutor, que foi o rigor do método e da pesquisa sobre os desafios contemporâneos da educação no Brasil e em Portugal, em uma perspectiva crítico-transformadora. O esforço foi no sentido de sublinhar a espinha dorsal que perpassa os temas diversidade, formação e financiamento, que é a necessidade de pesquisa empírica no campo educacional. Destacamos a relevância dos objetos que tornou tão oportuna e tão necessária a coletânea, pois existem nexos entre financiamento, formação e como estes mecanismos influenciam no debate sobre diversidade.

Apresentamos também uma variedade de conceitos, teorias, métodos, técnicas de pesquisa que valoriza a já sólida base de trabalhos de pesquisadores portugueses e brasileiros. Entendemos ser um indicativo da relevância da (re) construção do campo da educação e destacamos aqui as interfaces com a antropologia, filosofia, sociologia, história para superar os desafios contemporâneos escolares e forjar no agora um projeto mais justo e igualitário de futuro.

Boa leitura!

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