Dossiê Temático "Literaturas africanas de língua portuguesa"

A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina

The weapon PM 44, the microphone, the Angolan nation, and the female voice

La PM 44, el micrófono, la nación angoleña y la voz femenina

Solange E. Luis 1
Instituto Superior de Ciências da Educação da Huíla, Angola

A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 24, núm. 1, 2022

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2022 pelos autores.

Recepción: 06 Septiembre 2021

Aprobación: 18 Febrero 2022

Resumo: Uma vez conquistado o lugar da nação, a mulher procura o seu lugar na nação. Estas posições serão retratadas através da voz de Deolinda Rodrigues, guerrilheira do maquis e de Eva Rap Diva, rapper angolana. Enquanto a guerrilheira, na luta pela conquista do lugar da nação, silencia a sua voz num diário em prol de uma libertação coletiva, a rapper projecta-a com o microfone, marcando o seu lugar na nação. Ao causar interrupções no discurso dominante, a rapper possibilita novas construções identitárias na nação angolana, que se quer continuamente independente de restritivas amarras engendradas.

Palavras-chave: Deolinda Rodrigues, Eva Rap Diva, Literatura angolana, Escrita feminina.

Abstract: After the new nation conquers its place in the world, women seek their place in the nation. These different moments will be discussed by observing how the guerrilla fighter and the rapper use their voices. During the collective struggle for the nation's place, Deolinda Rodrigues, the guerrilla-fighter, silences her voice in her diary. In the post-independence era, the rapper Eva Rap Diva projects her voice with the microphone, inscribing her place in the nation. By causing interruptions in the dominant discourse, the rapper allows for new identity constructions in present Angola – which, both women believe, ought to be continuously independent of restrictive moorings.

Keywords: Deolinda Rodrigues, Eva Rap Diva, Angolan literature, Women writing.

Resumen: Una vez conquistado el lugar de la nación, la mujer busca su lugar en la nación. Estas posturas serán retratadas a través de la voz de Deolinda Rodrigues, maquis guerrillera y Eva Rap Diva, rapera angoleña. Mientras la guerrillera, en la lucha por conquistar el lugar de la nación, silencia su voz en un diario a favor de una liberación colectiva, la rapera la proyecta con el micrófono, marcando su lugar en la nación. Al provocar interrupciones en el discurso dominante, la rapera posibilita nuevas construcciones identitarias en la nación angoleña, que quiere ser continuamente independiente de los lazos restrictivos engendrados.

Palabras clave: Deolinda Rodrigues, Eva Rap Diva, Literatura angoleña, Escritura femenina.



Chauvinistas não, Marxistas-Leninistas
Deolinda Rodrigues
(RODRIGUES, 2003, p. 113)



“A Eva tem um Adão?”
A Eva tem muitas coisas, o Adão é
uma das coisas que a Eva tem.
Eva Rap Diva
(É NÓS NA BANDA, 2017)

Em seu ensaio Mulheres de África no espaço da escrita: a inscrição da mulher na sua diferença, Inocência Mata chama a atenção para “uma viragem interna no tom e na dicção na percepção do mundo” (MATA, 2007, p. 425) na escrita feminina pós-independência, que pretende revelar a “complexidade do indivíduo” (MATA, 2007, p. 425). Esta “viragem” denota um reposicionamento face às premissas colectivas que nortearam a escrita ideológica do pré-independência. Uma vez conquistada a independência da nação, a mulher procura a sua independência na nação, o seu lugar. Para isso ela projecta o seu “itinerário individual” (MATA, 2007, p. 425) através da sua voz. Inocência Mata adverte que, relativamente à literatura1 pós-independência

enquanto as vozes anteriores2 são colectivas e verbalizam questões tranversais à sociedade, a todas as mulheres e homens, dentro de uma filosofia utópica, as vozes femininas da actualidade, não descurando a dimensão comunitária, já prenunciam uma busca individual, mais íntima e sonhadora, mesmo quando a sua preocupação última é colectiva. (2007, p. 425).

Para esta ensaísta, “já não há a concentração (apenas) metafórica na mulher do sonho de libertação, numa enunciação discursiva que não deixa espaço para as contradições e as aspirações do sentir individual” (MATA, 2007, p. 426). É exatamente este “sentir individual” que está registado, de forma contida, no diário de Deolinda Rodrigues, Diário de um Exílio sem Regresso que, segundo Margarida Paredes, apresenta a “subjectividade de uma mulher no meio de um passado colectivo” (2010, p. 8). Numa Angola independente e globalizada, Eva Rap Diva vocaliza as suas aspirações individuais no palco local e na arena global.

Estas posições serão aqui retratadas através do gerenciamento que estas duas mulheres, aparentemente distintas, (Deolinda Rodrigues, guerrilheira e Eva Rap Diva, a rapper), fazem da sua voz ao lidarem com o seu “sentir individual” no espaço angolano, em contextos históricos diferentes. Enquanto a guerrilheira, na luta pela conquista do lugar da nação, contém a sua voz feminina, a sua “subjetividade”, num diário, a rapper projecta-a com o microfone – causando interrupções no discurso dominante que (re)definem e (de)marcam o seu lugar na nação independente – em continuidade à luta iniciada pela guerrilheira.

1 A pré-independência: combater pelo lugar da nação

Segundo o historiador angolano Alberto Oliveira Pinto, a guerra contra a colonização portuguesa em Angola desponta no ano de 1961, com a Revolta da Baixa de Kasanje, onde os cultivadores de algodão se sublevaram contra a COTONANG que os obrigava a cultivar somente algodão – que era então vendido a um preço fixado pelo governo, muito aquém daqueles praticados internacionalmente. A primeira sublevação dos camponeses teve lugar a 4 de janeiro de 1961 e foi seguida por outras ao longo do mês. A resposta portuguesa resultou em um violento massacre realizado com bombardeamentos de napalm que causaram entre “5.000 e 10.000 mortos, homens, mulheres e crianças” (PINTO, 2017, p. 710)3. Outro evento que marcou o início da luta armada pela independência de Angola aconteceu na madrugada de 4 de fevereiro de 1961, quando “algumas dezenas de homens saídos dos musseques e armados com simples facas e catanas (…) efetuaram 6 assaltos malogrados” (PINTO, 2017, p. 711-712)4. No dia seguinte os assaltos foram reivindicados pelo MPLA, sediado em Conakry5 (PINTO, 2017, p. 713).

Em resposta às sublevações, entendidas por Portugal como actos de terrorismo, e a outras situações relacionadas, António de Oliveira Salazar, na condição de líder do Estado Novo português, a 13 de março de 1961, expressa publicamente o que entende ser a necessidade de defender Angola e a integridade da nação portuguesa (apudPINTO, 2017, p. 714). Dá-se assim início ao que Portugal viria a chamar de Guerra do Ultramar, com o consequente envio de tropas para suprimir os reputados terroristas6 (apudPINTO, 2017) dos movimentos de libertação que, na década de 60 eram essencialmente: o MPLA (liderado por Agostinho Neto), a FNLA (comandada por Holden Roberto) e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola, encabeçada por Jonas Savimbi). Segundo Oliveira Pinto (2017, p. 724), em 1964 o MPLA contava com milhares de guerrilheiros (entre 3 e 4.500, segundo estimativas do exército português). Este movimento lutava não só contra a ocupação colonial e contra outros movimentos de libertação, mas também para se manter coeso apesar de cisões ideológicas internas7.

É neste contexto de luta anticolonial e de tensões dentro do MPLA, que Deolinda Rodrigues se fez guerrilheira. Com o nome de guerra Langidila, que em Kimbundu significa “toma cuidado” (RODRIGUES, 2003, p. 21), Deolinda foi a primeira e “única mulher do Comité Director [do MPLA,] na década de 60” (PAREDES, 2015, p. 121), a tornar-se responsável pelo Departamento de Assuntos Sociais (PAREDES, 2015, p. 121). Foi membro fundador da OMA (Organização da Mulher Angolana), a ala feminina do MPLA. Prima de Agostinho Neto, metodista e, desde muito cedo, crítica do regime colonial, Deolinda nasceu em 1939 e ingressou no MPLA em 19568. Em outubro de 1966 foi selecionada para fazer parte do esquadrão Camy (ou Kamy) (PAREDES, 2015, p. 121; PINTO, 2017, p. 723; RODRIGUEZ, 2010, p. 57). Juntamente com mais quatro guerrilheiras, Deolinda foi capturada a 2 de março de 1967 (PINTO, 2017, p. 723; RODRIGUEZ, 2010, p. 77-85). A sua captura tem sido atribuída à FNLA, assim como o seu consequente assassínio9. O último registo no seu diário é do dia 1 de março de 1967.

Segundo Roberto de Almeida, irmão de Deolinda responsável por publicar o seu diário postumamente10, “no Movimento [MPLA] deram-lhe tarefas mais de administração: secretarias, escrever cartas, traduzir cartas etc. Mas esses trabalhos não lhe agradavam, ela queria ação” (ANTÓNIO, 2020, p. 159) e, por isso, desafiava a “ordem” do Movimento que a pretendia conter, “limitar” e pôr-lhe “algum travão” (ANTÓNIO, 2020, p. 159). O seu irmão nota como, em algumas instâncias, Deolinda não aguardava por “permissões” para que pudesse “conhecer tudo e andar em todo lado” (ANTÓNIO, 2020, p. 159). Este posicionamento ilustra o seu carácter inconformado, insubmisso e contestador, revelando uma mulher muito à frente do seu tempo, capaz de rejeitar e extrapolar as limitações que lhe eram impostas, não só pelo Movimento, mas também pelas expectativas sociais da época.

Limbânia J. Rodriguez, que conheceu Deolinda, descreve-a como “uma lutadora apaixonada, desinteressada por tudo o que não dissesse respeito à luta do seu povo e [que] fazia passar os interesses colectivos acima de qualquer interesse individual” (RODRIGUEZ, 2010, p. 43). Para o seu irmão, Roberto de Almeida, “[a] vida de Deolinda é a dedicação a um ideal em que ela se empenhou desde que nasceu até que morreu. Entregou-se a um ideal: o ideal supremo da vida dela era a libertação dos angolanos.” (ANTÓNIO, 2020, p. 162).

Imersa na luta pela libertação de Angola do domínio colonial, Deolinda suprimiu a sua voz individual feminina para poder dar voz à luta de libertação coletiva. Embora declare que há de “sempre falar das condições na terra” (RODRIGUES, 2003, p. 37), denunciando o colonialismo enquanto procura consciencializar o coletivo para a luta comum, e de seu irmão declarar que ela “não levava desaforo para casa” (ANTÓNIO, 2020, p. 160), a guerrilheira que desafiava os limites impostos às mulheres de sua época, contém os seus desabafos femininos na privacidade do seu diário. Ao priorizar a libertação dos angolanos, Margarida Paredes nota que Deolinda “trocou o sonho pessoal pelo envolvimento no sonho coletivo do nacionalismo angolano” (2010, p. 3).

Deolinda revela a realidade colonial ao expressar em seu diário “Tat’ódio!” (RODRIGUES, 2003, p. 36) que sente face à “Luanda da chicotada do branco nas costas nuas do preto que cava a terra sob um sol de Março. Esta é a Angola do contratado” (RODRIGUES, 2003, p. 35). Este é o contexto que Deolinda luta para mudar quando afirma: “temos de transformá-la: não sei como nem com que forças[,] mas este mal não pode durar sempre” (RODRIGUES, 2003, p. 35). Entende que faz parte dessa mudança quando diz “temos de transformá-la”, concebendo-se como parte de um coletivo que trará a mudança: “Quanta humilhação, caramba! Desde a infância passamos de humilhação em humilhação, nem temos a dignidade de viver à nossa própria custa, livres desta merda de favores. TENHO DE VIVER PRA MUDAR TAL SITUAÇÃO. Temos de ser SERES HUMANOS de verdade.” (RODRIGUES, 2003, p. 55).

Para Deolinda, trata-se de recuperar a dignidade, a liberdade e a condição humana que lhes foi negada pelo colonialismo. Outros aspectos ficam para segundo plano, uma vez que compreende que “[s]ó depois de recuperar a nossa dignidade é que podemos decidir se viramos ou não cristãos” (RODRIGUES, 2003, p. 32), numa clara reivindicação colectiva de humanização, relegando para segundo plano aspectos individuais: o SER religioso e, na mesma lógica, o SER feminino. Não há alternativa possível no colonialismo: para Deolinda é “VITÓRIA OU MORTE” (RODRIGUES, 2003, p. 56). A morte é a única saída e o suicídio lhe passa pelo pensamento quando pergunta a si mesma “[n]ão será melhor suicidar-me?” (RODRIGUES, 2003, p. 44). Entre o suicídio e a luta pela vida, escolhe a derradeira. Num posicionamento humanitário e fraterno, entrega a sua vida à missão de trazer dignidade e condições de vida para os seus compatriotas (RODRIGUES, 2003, p. 55). Portanto, a luta, para Deolinda, é uma questão de sobrevivência: a saída de “uma merda de vida (…) de humilhações constantes” (RODRIGUES, 2003, p. 32)11. A luta é a única alternativa à impossibilidade de SER que é o colonialismo: “Como existir com estes cachorros enquanto não estivermos livres?” (RODRIGUES, 2003, p. 116), desabafa em seu diário.

Face à necessidade de dignificação do coletivo colonizado, Deolinda abraça a luta unificadora que pretende forjar uma nova nação. Oliveira Pinto aponta para a premência percebida por Agostinho Neto em pensar a “unidade” como prioridade, uma vez que os contingentes do MPLA abarcavam guerrilheiros oriundos de variados grupos “étnicos”, incluindo também ‘assimilados’12, mestiços e brancos (PINTO, 2017, p. 723) onde as mulheres, embora em reduzido número, também se faziam presentes. Assim sendo, na tentativa de forjar uma identidade nacional e partidária coesa, “Neto incentivou prematuramente, no MPLA, o slogan – aliás de inspiração salazarista – ‘um só povo, uma só nação’13 [sic]” (PINTO, 2017, p. 724)14. Na luta armada, o individual torna-se trivial no que tange à construção da nação. Só a força colectiva de “um só povo, uma só nação” é compreendida como capaz de mudar o rumo da história de Angola: “[e]m nome da unidade Neto esbatia as diferenças regionais, étnicas, raciais, de género e classe. Em nome da unidade impunha o chapéu da ideologia socialista, a hegemonia não religiosa e um nova moral revolucionária.” (PAREDES, 2010, p. 13).

Seguindo essa “moral revolucionária”, Lúcio Lara (que na época de Deolinda era o Secretário do Comité Central do MPLA), durante o 1º Congresso da OMA, “defendia que devia ser o partido a liderar e conduzir toda a transformação social, subordinando assim a luta das mulheres às prioridades do partido” (PAREDES, 2015, p. 60). Institui-se assim, “uma unidade colectiva (…) que exclui outros conceitos de identidade” (PAREDES, 2010, p. 13), tornando-se “o princípio da unidade (…) uma norma a seguir” (PAREDES, 2010, p. 13).

Marissa J. Moorman chama a atenção para o documento “Porque Luta a Mulher Angolana?”, produzido em 1965, pelo Centro de Estudos Angolanos na Argélia (CEA), que revela as expectativas em relação à participação da mulher neste processo revolucionário: “Só o triunfo de uma Revolução que destrua as estruturas econômicas e sociais que impedem o progresso, poderá permitir e garantir a emancipação das classes oprimidas e, por consequência, da mulher.” (CEA apudMOORMAN, 2016, p. 199).

Esta ideia, que reflete a posição de Agostinho Neto e Lúcio Lara, e do partido em geral, está alinhada àquela apontada por Barbara Evans Clements na sua exposição sobre o feminismo e a Revolução Bolshevista, onde esclarece que, neste contexto, “a libertação da mulher está subordinada à libertação do todo, os objectivos feministas aos comunistas” (CLEMENTS, 1985, p. 229)15. Esta necessidade de priorizar a união partidária, em conformidade com os objectivos partidários, é interiorizada e aceite por Deolinda: “Marx e Engels lutaram incansavelmente por essa unidade durante toda a sua vida. E foi isso que nós decidimos fazer, a nossa direcção política, o nosso partido e o nosso povo.” (RODRIGUES, 2003, p. 113).

Consequentemente, em nome do “nosso partido” e do “nosso povo”, Deolinda entende ser necessário conter o seu individualismo e o seu “falatório”. Ou seja, reprime a voz que expressa o seu “sentir individual”:

Eu daria tudo para controlar-me e falar o mínimo possível e só quando necessário mesmo. Os meus males são individualismo e falatório. E quando se fala demais é impossível acertar ou ficar imune. A partir d’hoje prometo esforçar-me por não falar demais: cantarolar quando a tentação for muito forte. (…) E enquanto precisar de desabafar, fazer exactamente isto: assentar tudo num papel. (RODRIGUES, 2003, p. 61).

Para Deolinda, falar é um mal que precisa de ser ‘controlado’, sente que é preciso prender a sua voz no papel, confiná-la ao diário, onde o seu EU emerge contido, privado. Pretende “evitar a todo preço falar sem que seja estritamente necessário” (RODRIGUES, 2003, p. 65)16 e “desabafar só no Diário” (RODRIGUES, 2003, p. 80), “para evitar embrulhadas” (RODRIGUES, 2003, p. 132)17. O diário de Deolinda Rodrigues torna-se assim, no receptáculo íntimo de todos os seus anseios e frustrações relacionados, não só com a luta revolucionária, mas também com a luta que travava como mulher para ser “aceite nos seus próprios termos” (PAREDES, 2010, p. 32), num espaço de domínio masculino: “Disseram-me que não vou já para Ghana porque sou mulher e o Barden não respeita senhoras. Esta discriminação só por causa do meu sexo, revolta-me. Se me apanho fora deste MPLA erudito e masculino, não volto em breve.” (RODRIGUES, 2003, p. 57) .

O primeiro registo de Deolinda no seu diário, a 9 de setembro de 1956, é um “desabafo” relativamente à aceitação da sua condição feminina: “Parece aceitarem-me no movimento nacionalista, embora o Sr. Benje e outros velhos estejam com receio por eu ser mulher” (RODRIGUES, 2003, p. 25). Fica assim assinalada a sua entrada no MPLA, ao qual seguem outros “desabafos”. Muitos são os registos de um “MPLA erudito e masculino” (RODRIGUES, 2003, p. 57), onde Deolinda tenta movimentar-se: “Ontem o Lúcio [Lara] encontrou-me a falar com os companheiros e ele disse ao Samuel: “o que é que esta menina está a fazer aqui?” (…) tratei logo de sumir” (RODRIGUES, 2003, p. 110).

Sumir, calar-se e assentar as suas dúvidas e frustrações no diário, são algumas das estratégias que Deolinda assume para lidar com um espaço andrógeno e musculado, onde a violência contra a mulher se faz notar, quando, por exemplo, entra em conflito com um camarada guerrilheiro: “[disse] que eu não sabia nada… que sou mulher e não valho nada fisicamente (…) que me partia a cara” (RODRIGUES, 2003, p. 65). Ou quando se sente revoltada e impotente (apesar de ser membro do Comité Director do MPLA) face ao comportamento machista dos guerrilheiros: “[o] que desgosta e revolta é a atitude deles sexual demais para com as mocinhas do povo: começam logo a apalpá-las. Parece que assim estão a mobilizar o povo ao contrário” (RODRIGUES, 2003, p. 85). Na intimidade do seu diário, Deolinda lamenta-se: “Esta Revolução custa-nos tão caro! O pior é sujeitar-me a isto tudo (…) devo trabalhar dia e noite para ajudar os desajustados sociais (…) para quem a mulher é só sexo, é parlapateira, é criança que não amadurece nunca, uma criança com eterna sede de carinhos, de apalpadelas, de beijos e abraços.” (RODRIGUES, 2003, p. 65).

Esse nós, a quem a revolução custa caro, pode ser entendido como o colectivo feminino, ou a “‘individualidade colectiva’ das mulheres” (MATA, 2007, p. 428), que se ‘sujeita’ às demandas do processo de libertação na nação. Esta é uma das poucas vezes em que Deolinda se posiciona fora do colectivo revolucionário do MPLA, que se queria utopicamente homogéneo. A solução encontrada por Deolinda, para que a unificação partidária e nacional se tornasse uma possibilidade, passava pelo ajuste social (RODRIGUES, 2003, p. 65 e 75), ou seja, a consciencialização de um colectivo masculino que, embora percebesse a sua subalternização como colonizado, não conseguia transpor essa lógica para depreender a subalternização da mulher18, através da violência à qual é sujeita: “O vizinho está a bater na mulher. Há exactamente um mês e um dia que ele fez isto. A pobre só grita, não se defende. Os outros vizinhos riem-se do medo dela. É tão revoltante isto tudo!” (RODRIGUES, 2003, p. 77) .

A impotência que sente é incontestável. Neste momento, o que resta à mulher espancada é o grito de medo. O que resta a Deolinda é a revolta silenciada, contida no diário. Numa outra instância escreve: “Vou fazer esforços para não explodir estas dúvidas perante ninguém. Preciso ruminá-las bem em mim mesma e assentar tudo aqui [,] mas não discutí-las mais com ninguém para evitar confusões (…) Só espero que não vá parar num manicómio!” (RODRIGUES, 2003, p. 133).

O aqui é o diário, onde Deolinda contém a sua voz, uma vez que “a emancipação da mulher era ancorada à revolução, à luta colonial, à luta anti-imperialista e à criação de uma sociedade igualitária” (PAREDES, 2015, p. 250). Contudo, conforme constata Paredes, Deolinda, “apesar de não falar em feminismo, as suas reflexões revelam uma consciência feminista e apontam para um feminismo africano avant la lettre” (PAREDES, 2015, p. 123)19. O seu diário expõe “a cultura machista do movimento, e [Deolinda posiciona-se], em 1964, através da escrita, no centro dos discursos sobre modernidade” (PAREDES, 2015, p. 123). A preocupação de Deolinda em confinar a sua voz ao seu diário, em prol do colectivo, mostra uma tomada de posição consciente20, que priorizava claramente a condição humana sob a condição feminina: “a nossa luta é de sobrevivência e restauração da dignidade, direitos e responsabilidades que nos cabem” (RODRIGUES, 2004, p. 112). Opta primeiro por lutar pelo lugar da nação, pela liberdade colectiva, mesmo que lhe custe a sanidade mental, “para que Angola ocupe o seu lugar no mundo” (RODRIGUES, 2004, p. 224).

Numa carta datada de 1961, Deolinda afirma que, face às relações de poder desequilibradas (no contexto das nações), “quando nos libertarmos, a conversa vai ser outra” (RODRIGUES, 2004, p. 111). Esta afirmação leva a crer que, talvez, após a independência, Deolinda tivesse o mesmo posicionamento face à ordem patriarcal. Ou seja, uma vez conquistado o lugar da nação, talvez passasse à ‘outra conversa’: a reivindicação do seu lugar na nação, procurando estabelecer relações de poder mais equilibradas, desta vez não no contexto político internacional, mas nas entranhas da nação que ajudou a libertar. Numa carta ao seu amigo Kanhamena, em 1961, Deolinda é explícita: “É preferível a morte em legítima defesa e para a conquista da liberdade e dignidade do que a morte passiva no silêncio imposto pelo colonialismo português e seus compadres imperialistas.” (RODRIGUES, 2004, p. 96).

Prefere a morte no maquis ao silêncio imposto pelo colonialismo. Deolinda entrega a sua vida à causa anti-colonial. Em prol da criação de uma nação, resguarda a sua voz num diário e posterga o seu “sentir individual” (MATA, 2007, p. 426). Mas, num contexto de pós-independência, continuaria a confinar a sua voz feminina ao mudo diário? A morte prematura de Deolinda permite somente a possibilidade de conjunturas sobre o que viria a ser o seu papel numa Angola independente. Dada a sua personalidade insubmissa e inconformista, provavelmente seguiria a sua luta, desta vez em prol da sua “individualidade colectiva” (MATA, 2007, p. 428), usando a sua voz como arma de combate e de afirmação do seu lugar na nação.

2 A pós-independência: combater pelo lugar na nação

A luta pela libertação de Angola se desenrola num cenário tumultuoso, onde os diferentes movimentos lutavam não só contra a ocupação colonial, mas também entre si e, em algumas instâncias, com agravantes conflitos internos (PINTO, 2017 e MABEKO-TALI, 2018). As negociações entre os três partidos políticos angolanos para regular a descolonização, acontecem num cenário de Guerra Fria que transforma Angola “num campo de experimentação” deste contexto belicoso internacional (PINTO, 2017, p. 738)21. Ao atingir o seu lugar de nação, a 11 de novembro de 1975, Angola é arrastada para uma guerra civil devastadora. Ficam assim adiados, por mais 27 anos de destruição, os sonhos de toda uma nação.

A morte de Jonas Savimbi, a 22 de fevereiro de 2002, vítima de uma emboscada na província do Moxico, leva ao cessar-fogo. Inicia-se um período de paz que permite o retomar à esperança dos sonhos suspensos pelo conflito armado. Propulsionado pela paz, Angola experiencia um curto período de prosperidade: as exportações de petróleo e diamantes permitem uma súbita ascensão económica e, consequentemente, o início da reconstrução de um país dilacerado social, económica e estruturalmente. Mas conforme aponta Ricardo Soares de Oliveira, a ascensão do capitalismo em Angola dá-se com contornos próprios, onde a estabilização da economia engendrou a “apropriação da mesma por um conjunto de oligarcas próximos da Presidência, que monopolizaram as oportunidades de enriquecimento existentes” (OLIVEIRA, 2015, p. 49). O povo, incluindo elementos da classe média, cansados de guerra, sequiosos por ordem e preocupados em reconstruir a suas vidas, “não contestaram o status quo” (OLIVEIRA, 2015, p. 45). O MPLA, segundo Oliveira, seguiu definindo parâmetros sociais, culturais e políticos, centralizando o poder e controlando a riqueza, apresentando “uma forma suavizada de autoritarismo” (OLIVEIRA, 2015, p. 42).

Mas à medida que as condições de vida se deterioravam, o discurso de modernização do país, agora percebido com “cinismo crescente por parte da maioria dos angolanos” (OLIVEIRA, 2015, p. 50), deixou de ser “um poderoso factor de mobilização” (OLIVEIRA, 2015, p. 50). Oliveira nota como, a partir de 2012, à medida que a impassibilidade popular começa a chegar ao fim, especialmente entre os jovens: “para quem a guerra é apenas uma memória longínqua [e que] têm-se feito ouvir cada vez mais” (OLIVEIRA, 2015, p. 50). É neste contexto que a voz de Eva Rap Diva, assim como a de outros jovens rappers22, conquista espaço em Angola (LUIS, 2015), entre uma juventude cada vez mais globalizada, contestatária e inconformada23.

No que diz respeito ao espaço da mulher na nova nação, Paredes chama a atenção para o argumento de Henda Ducados24, manifesto no artigo An All Man’s Show? Angolan Women’s Survival in the 30-year War (2000, p. 12), no qual “defende que no pós-independência as mulheres são percebidas como sujeitos marginais, relegadas para o lugar passivo de vítimas, sem poder de decisão política ou militar, e [que] o exercício de cidadania não lhes é reconhecido” (PAREDES, 2015, pp. 64-65). Paredes diz ainda que “Ducados considera que o machismo enraizado nos valores tradicionais africanos e nas práticas masculinistas latinas, herdadas dos portugueses, tornaram muito difícil às mulheres desafiarem o funcionamento da sociedade angolana.” (PAREDES, 2015, p. 65).

A estrutura social patriarcal herdada do colonialismo manteve-se no pós-independência, e o padrão masculino continuou como paradigma de poder (PAREDES, 2015, p. 385).

A “nova mulher” angolana (PAREDES, 2015, p. 253), liberta das amarras do colonialismo e não mais ‘sujeita’ (cf. Deolinda) nem ‘subordinada’ (cf.Clements) às exigências da revolução anti-colonial, precisa dar continuidade à luta, agora pelo seu lugar na nação. Para Inocência Mata, no contexto da pós-independência, a mulher retrata a sua condição feminina, expressa a sua “subjetividade feminina”:

enquanto ser humano em primeiro lugar e como tal com os seus desejos (espirituais, afetivos, culturais, sexuais), e frustrações, as suas aspirações e sonhos, as suas alegrias, admirações, dores e sensações – de que a alma da mulher, com seus juízos subjetivos, toma consciência, consciência de si enquanto mulher, enquanto ser humano. (MATA, 2007, p. 432).

Na era da globalização, a arma de libertação e expressão escolhida por uma nova geração de jovens angolanas é o microfone (LUIS, 2015, p. 267). Enquanto na pré-independência Deolinda Rodrigues tentava talhar para si um lugar na guerrilha, “um projecto nacional masculino, patriarcal e androcêntrico” (PAREDES, 2015, p. 307), na pós-independência, a rapper Eva Rap Diva25 trava o seu combate no palco – ambos espaços de domínio masculino resistentes à participação feminina – onde expressa a sua condição feminina e afirma o seu protagonismo.

É de comum acordo entre os estudiosos de hip-hop que este é um espaço permeado de “hipermasculinidade e falagocentrismo”26 (NEAL, 2004, p. 247), onde o privilégio patriarcal foi adotado pela generalidade dos rappers masculinos, relegando as rappers femininas à margem deste movimento (NEAL, 2004, p. 247). Tricia Rose, que se dedicou a compreender o movimento hip-hop americano, que tem o rap como sua expressão poética, explica como este movimento acaba por replicar, de forma exacerbada, a lógica masculina vigente na maneira como retrata a mulher:

As representações mais visíveis das mulheres negras no hip hop refletem as marcas da masculinidade convencional que usam regularmente as mulheres como adereços para impulsionar egos masculinos, tratam o corpo das mulheres como objetos sexuais e dividem-nas em grupos: uns dignos de proteção e respeito e outros não. (ROSE, 2008, p. 119)27

Apesar de terem sido relegadas para a margem do movimento hip-hop, Keyes reclama que as mulheres negras estadunidenses fazem parte da cena rap desde o seu surgimento na arena comercial (KEYES, 2004, p. 265). Keyes explica ainda que “As mulheres estão alcançando grandes avanços na música rap ao mudarem estereótipos que percebem as mulheres como artistas em uma tradição dominada por homens, e por (re)definirem a cultura e identidade das mulheres a partir de uma perspectiva feminista negra.” (2004, p. 273)28

A rapper angolana Eva Rap Diva vai ao encontro desta (re)definição da cultura e da identidade feminina apontada por Keyes. Os seus raps, suas rimas, reflectem o que pensa sobre o que é “ser mulher nos dias de hoje”29. Ao tentar (re)definir a cultura feminina, a partir de uma perspectiva feminista30, Eva procura também definir o seu lugar na nação angolana. Consequentemente, ao expressar a sua “individualidade colectiva” (MATA, 2007, p. 428) defende também um espaço para a mulher angolana. Desta forma, o seu projecto não se limita ao espaço individual, pois adota uma “dimensão comunitária” que é, em última análise, “colectiva”, conforme defende Inocência Mata para a escrita feminina na pós-independência (MATA, 2007, p. 425). Este é, portanto, o momento para proferir as “contradições e as aspirações do sentir individual” (MATA, 2007, p. 426), que acabam por reflectir o colectivo feminino. Tricia Rose expressa essa dimensão colectiva quando afirma que a presença física da rapper no palco ou a sua visibilidade nos meios de comunicação, assim como o conteúdo das suas construções poéticas, propiciam um espaço público e colectivo de reflexão feminino (1994, p. 182). O palco é a antítese do diário de Deolinda. O microfone propicia à rapper a projecção da sua voz feminina, da sua subjectividade. A experiência feminina não está confinada ao mudo diário, ela torna-se fulcral e central no discurso que expõe a luta da mulher para se definir num ambiente que lhe é hostil. Keyes explica de que maneira as rappers “usam suas performances como plataformas para refutar, desconstruir e reconstruir visões identitárias alternativas (…) a música rap se torna num veículo pelo qual rappers negras buscam empoderamento, fazem escolhas e criam espaços para si e para outras sistas31.” (KEYES, 2004, p. 274)32

Portanto, ao transportar esta ideia para o contexto pós-independência angolano, ao defender para si um lugar na nação, Eva Rap Diva acaba por criar também espaços para as suas “sistas” (manas), possibilitando, nesse processo, novas articulações e lugares de enunciação. A enunciação, o empoderamento através da palavra é descrito pela rapper estadunidense Salt, do trio Salt N’ Pepa, que, em entrevista a Tricia Rose, expressa o potencial poder modificador da rapper: “As mulheres nos admiram. Elas nos levam a sério. Não é coisa de fã, é mais como um movimento. (…) Faz você perceber que tem uma voz” (ROSE, 2004, p. 305)33. De igual forma, Eva Rap Diva percebeu a força de transformação das suas “palavras com poder” (DIVA, 2014, faixa 2).

Em seu ensaio Empowering Self, Making Choices, Creating Spaces: Black Female Identity via Rap Music Performance, Keyes apresenta quatro categorias de mulheres rappers conhecidas na tradição Rap estadunidense: a “Queen Mother”, a “Fly Girl”, a “Sista with Attitude” e a “Lesbian” – alertando que as rappers podem alternar entre categorias ou pertencer a mais que uma categoria em simultâneo (KEYES, 2004, p. 266). Eva Rap Diva pode ser entendida como uma “Queen Mother” (Rainha Mãe):

A categoria “Rainha Mãe” é composta por rappers mulheres que se veem como ícones afro-cêntricas (…) Em suas letras, eles se referem a si mesmos como (…) “Núbias Rainhas”, “mulheres negras inteligentes” ou “manas a consciencializar o povo”, sugestiva de sua identidade auto-construída e astúcia intelectual. (KEYES, 2004, p. 266)34

Como forma de se auto-construir (e definir), Eva adotou a designação de “Rainha Nzinga do Rap”, que foi também o nome do seu primeiro trabalho a solo, indo assim ao encontro do que Keyes categoriza como “Queen Mother”: “Suas rimas abraçam o empoderamento e a espiritualidade feminina negra, deixando clara sua auto-identificação como africana, mulher, guerreira, sacerdotisa e rainha. As Rainhas Mãe exigem respeito não só pelo seu povo, mas pelas mulheres negras… (KEYES, 2004, p. 266)35

Eva Rap Diva, no seu rap “Rainha Nzinga do Rap” (RAINHA…, 2015), reivindica o respeito digno de uma rainha, num processo que visa o seu empoderamento:

Isto não é um flow é a minha ginga

Olhem quem chegou é a rainha Nzinga

(…)

Postura e sorriso são da realeza

Não perco o juízo em mania de grandeza

(…)

É só um aviso, rainha com certeza

(…)

Já nasci com a coroa na cabeça

(…)

Força de vontade tá em mim, eu não cunango36

Rainha desse rap quando o microfone cango37

Batem pala de Cabinda até o Lubango

(…)

Rainha Nzinga do Rap, Rainha Nzinga do Rap!38

Keyes que evoca o conceito de “othermothers” (outrasmães), da socióloga negra estadunidense Patricia Hill Collins, para melhor ilustrar a postura comunitária particular a uma “Queen Mother”, conhecedora do seu poder modificador nesse trabalho de desconstrução de estereótipos e de (re)definição da cultura feminina:

Outras mães trabalham em prol da comunidade negra, expressando ética de cuidado e responsabilidade pessoal que abarcam concepções de transformação e mutualidade... outrasmães da comunidade são identificadas como figuras de poder através da promoção do bem-estar da comunidade. (COLLINS apudKEYES, 2004, p. 267)39

A “Queen Mother” assume também uma postura de “othermothers”, apresentando um discurso de teor político-económico sobre os desafios enfrentados pela sua comunidade, de uma forma geral. “Um assobio meu” apresenta, à maneira de uma “Queen Mother”, a perspectiva de Eva sobre os males que afligem Angola:

Enquanto o barrigudo manda vir um conhaque

Lutamos como leões na cidade safari

Enquanto alguém que gere o povo manda vir um Ferrari

Pra ser sincera o meu problema é só um

Eles deitam picanha, raspamos latas de atum

E de Cabinda ao Cunene nós só queremos vacinas

Nós só queremos saúde onde nem sequer há seringas

"Mama Muxima" só nós resta rezar

Por isso invento sorrisos para não ter que chorar

Um assobio meu é pra esquecer as malambas

Um assobio meu é pra esquecer nossas mágoas

Um assobio meu é pra rir e não chorar

Um assobio meu…40

O objetivo da denúncia social é, na perspectiva de Collins, o melhoramento do “bem-estar da comunidade”. O rap, na qualidade de poema urbano (LUIS, 2015), tem como objetivo primordial consciencializar a comunidade41. Para Tricia Rose, as rappers femininas, tal como os rappers masculinos, são vozes de resistência em que a temática é elemento de diferenciação, sendo o foco central de contestação no rap feminino, a política sexual (ROSE, 1994, pp. 146-7). Eva Rap Diva está consciente do seu papel de “Queen Mother” enquanto expõe, sobretudo, a condição social feminina numa Angola patriarcal e neo-liberalizada, onde a mulher – o elo mais fraco na cadeia de produção capitalista – sucumbe a quem detém o poder financeiro. Ducados revela que, em Angola, “as adolescentes frequentemente se prostituem para escapar da pobreza” (DUCADOS, 2000, p. 15)42. A prostituição, que já era um problema retratado na poesia pré-independência43, é também uma preocupação de Deolinda que desabafava no seu diário: “As moças entregam-se quase todas à prostituição aqui. (…) É preciso salvá-las” (RODRIGUES, 2003, p. 45-46). Eva Rap Diva demonstra igualmente essa preocupação com o bem-estar coletivo feminino quando, no seu rap “A Amiga” (DIVA, 2014, faixa 3), estabelece dois diálogos, um com a sua “amiga” e outro com o coletivo feminino que ouve o seu rap:

“Então Eva, tás boa?”

Ya, tô fixe amiga... e tu?

“Eu nunca mais te vi!”

A minha amiga não trabalha e tem um Q7X6

Não tem marido rico, donde vem tantos bens?

Não quero ser fofoqueira, mas é intrigante

Ela viaja mais que um caixeiro viajante

E não faz negócios, é apenas turista

Hotel de cinco estrelas, carro com motorista

Dama rabuda, parece uma estrela porno

A vida que ela vive é a vida que eu sonho

“Na minha profissão tu sabes o que queremos”

O quê?

“Velhos, porque pagam mais e nos gastam menos

Eu sou boa e o que é bom não é de graça”

Ah é?

“Só durmo com quem me abençoa com a sua massa”

Sério?

“Tu és bonita, perde só a cintura”

Eu?!

“Ponha uma tissa44 na cabeça, esquece essa postura”

Não!

“Uns tamancos, decotes, unhas de gel

Que eu te arranjo um cota45 pra te encher de papel”

Prefiro zungar46 do que juntar-me a ti

Antes trabalhar que cair aí

Prefiro zungar do que juntar-me a ti

Prefiro zungar, prefiro zungar

E ela continua a tentar aliciar-me:

"O cota que deu-me o X6 nem chegou a tocar-me"

Ah é?

"Eu só fui tomar um copo algures no Talatona"

Eu também queria ter essa vida, latona47

Tu és jovem, experimenta arranjar um emprego

Esquece os teus argumentos, eu não me vergo

Com trabalho honesto tudo se alcança

"Hum, deixa disso, isso é conversa de criança

Ele comprou a casa, eu já não tô no Catambor

Ele até paga a escola da minha irmã menor"

Não era capaz disso, tenho a certeza

Prefiro o meu salo48 pra pôr comida na mesa

Prefiro andar rota, de sapatilha velha

Que dormir com um cota com uma pila velha

"Querida, boi velho quer capim novo"

Ok capim, continua no teu jogo

(…)

Passados seis anos, ouvi falar da minha amiga

Dizem que tá velha e que tem bexiga

Agora vive com a mãe, tem duas crias

Rabo já não tem, só restam as estrias

Dama virou ngaxi49, dizem que tem SIDA

E o boss dela já tem outra bandida

É a irmã dela que anda na boca do povo

Ela bem dizia, "boi velho quer capim novo"

Todos nós temos uma amiga assim, não é?

Elas passam a vida a dizer-nos

que estão certas e nós estamos erradas

Não sejas como a minha amiga

Se fores, cada um sabe de si

Este rap, para além de ter uma mensagem de consciencialização feminina, vai também ao encontro do que Inocência Mata entendeu ser uma tendência da escritora no pós-independência50: desvelar “a responsabilidade da mulher no estado da sua condição” (MATA, 2007, p. 437). O discurso de Eva estabelece uma diferença entre a escolha da “amiga” (de prostituir-se) e a sua, na qualidade de sujeito poético, de “zungar” (trabalhar): ressaltando a responsabilidade da mulher no seu próprio destino, uma vez que “cada um sabe de si”. O sujeito poético apela ainda à amiga que mude de atitude: “Tu és jovem, experimenta arranjar um emprego”, em concordância com o que Mata entende ser o discurso feminino na pós-independência, ou seja, “um discurso que inclui o questionamento e a denúncia, dando voz e criando espaços de reflexão ao sujeito que é “silenciado”, tendo como intuito apelar à mulher (…) para uma mudança consciencializada.” (MATA, 2007, p. 437).

Diferente da autora que dá voz a uma personagem, a rapper oferece a sua própria voz para estabelecer um diálogo que visa promover uma “mudança consciencializada”. Eva posiciona-se no colectivo “todos nós” (falando para um colectivo que transcende o feminino), mas apela especificamente a um “tu” (claramente feminino) a quem diz “não sejas como a minha amiga”, numa abordagem reflexiva, senão didática, que reflecte uma atitude de “Queen Mother”: “droppin’ science” | consciencializando (KEYES, 2004, p. 266), apelando a uma mudança de atitude. Sobre este rap, Eva diz tê-lo feito com o intuito de ser “uma chamada de atenção para uma coisa que é real (…) estou a dar o meu conselho”51. Esta vontade de ser um veículo de mudança, está patente em “Um assobio meu” (DIVA, 2017, faixa 2):

Eu quero dar à juventude uma luz que não há cá

Porque resolve seus problemas com balas de AK

Valores já não há cá

Vivemos nessa maka52

Braços fortes não aguentam uma mente fraca

E tu, mo'dred53? vê se acordas pra vida

Solução dos teus problemas não tá nessa tua birra54

Eva estabelece diálogo com o coletivo nacional, a “juventude” e também com o “dred”, representante do coletivo masculino. Tricia Rose chama a atenção para a comunicação55 que a rapper institui com os seus interlocutores: “mulheres rappers (…) estão engajadas na comunicação constante com membros masculinos e negros da platéia, com rappers e, simultaneamente, apoiam e oferecem conselhos ao público feminino negro.” (ROSE, 1994, p. 181)56

A conexão pretendida por Eva serve para encorajar e suster um diálogo mais amplo com a “juventude”, mas também, de forma mais específica, com e entre coletivos femininos e masculinos e, nesse processo, contesta comportamentos e construções sexistas, conforme defendido por Rose (2004, p. 304). Em “Beleza não é tudo” (DIVA, 2017, faixa 4) Eva constitui, em simultâneo, dois diálogos com coletivos diferentes: um é encetado através da construção poética, para um coletivo masculino sexista e o outro, estabelecido através das imagens do vídeo produzido (BELEZA…, 2017), tem como alvo o coletivo feminino. Ao estabelecer um espaço de diálogo com o coletivo masculino, Eva empreende uma tentativa de mudar comportamentos sexistas, através da consciencialização deste coletivo. Portanto, a consciencialização que levará à mudança de atitudes não fica circunscrita e limitada somente ao colectivo feminino. Já Deolinda Rodrigues entendia que a mudança social passava pelo trabalho de “ajudar os desajustados sociais” (2003, p. 65)57. Esse trabalho de reajuste das relações de poder está patente nas palavras de Eva (DIVA, 2017, faixa 4):

Meu trabalho é que paga o meu Martini

Não me satisfaço com essas tuas dicas mini

Não tens mãos pra tocar no meu biquíni

Não tens mãos pra pegar meu Lamborghini

Guarda a chave, eu tenho carro

Guarda a chave, eu tenho casa

Meu salário não atrasa

Se vacilares, ainda mobilo a tua casa

Ao posicionar-se como financeiramente independente, Eva rejeita o estereótipo de mulher objeto enquanto (re)define outros papéis para a mulher na nação. No vídeo, Eva, na qualidade de “Queen Mother”, “droppin’ science” consciencializando (cf. Keyes), aparece como professora de seis mulheres-boneca (todas têm perucas coloridas, maquiagem excessivamente colorida como se de bonecas se tratasse, sem expressões faciais emotivas e com movimentos robóticos sincronizados, enfatizando comportamentos homogéneos, quase que involuntários). Todas as mulheres-boneca estão sentadas e têm um livro chamado “Beleza não é tudo”, título do rap do vídeo (BELEZA…, 2017). Durante a aula de química, a professora Eva mistura seis componentes que se encontram em balões de fundo chato. Os balões estão rotulados de forma a explicitar seus ingredientes: inteligência, independência, autoestima, orgulho, atitude e iniciativa. O discurso de Eva é direcionado para o colectivo masculino representado pelo “tu”, o “player” (DIVA, 2017, faixa 4)58: “Beleza não é tudo, batalho pra ter o que é meu/ Olha tamo a gerir”, esse “tamo” estamos refere-se ao coletivo feminino, a gerir a sua vida sem depender do player. A mensagem de Eva é final:

Ma'fucka, não confunde só

Amor pra mim não é negócio

Não devo nada a ninguém

Sou feliz sem me vender a ninguém (DIVA, 2017, faixa 4)

Enquanto isso, no vídeo, a professora Eva acorda as mulheres-boneca e, uma-a-uma, dá-lhes a beber a sua mistura. Ao bebê-la, as mulheres-boneca transformam-se, como que num passe de mágica, em mulheres profissionais (mecânica, polícia, médica, piloto), deixando para trás comportamentos robóticos homogêneos, passando a exibir uma linguagem corporal que transmite autoestima, individualidade e empoderamento: comunicando, mais uma vez, que cabe à mulher a responsabilidade de mudança da sua condição social.

Nesta tentativa de reconstruir a imagem da mulher, de a desobjectificar, de quebrar com estereótipos masculinos sexistas, Eva adota uma linguagem de baixo calão (“Ma'fucka”), tradicionalmente masculina, ao articular “as contradições e aspirações do [seu] sentir individual” (MATA, 2007, p. 426) de mulher numa sociedade patriarcal. A utilização dessa linguagem mais agressiva e típica do discurso masculino do rap, visa responder e refutar, de forma (de)terminante a relegação da mulher às construções sexistas que estabelecem relações de poder desequilibradas. Ao ostentar uma postura agressiva, Eva subverte códigos patriarcas de comportamento, desafiando o status quo enquanto equipara o seu discurso feminino (e feminista, cf. Rose) à linguagem masculina do rap.

Inocência Mata argumenta que as mulheres, durante o projeto comum de libertação da nação, se “cumpliciaram com o contexto, rasurando um itinerário individual e relegando para um segundo plano o grito libertário da mulher” (MATA, 2007, p. 434). Deolinda é exemplo desta cumplicidade mutiladora, quando reprime, no seu silente diário, todas as suas frustrações, todos os seus “merdas”59, “filhos da puta” (RODRIGUES, 2003, p. 116), “bestas” (RODRIGUES, 2003, p. 28), “filhos da mãe” (RODRIGUES, 2003, p. 31), “cachorros” (RODRIGUES, 2003, pp. 31, 116), “merdalhada” (RODRIGUES, 2003, p. 144), entre outros desabafos, numa linguagem considerada claramente imprópria para uma mulher metodista do seu tempo. Não só esta linguagem é utilizada publicamente por Eva, mas também amplificada pelo microfone e disseminada pelos média. Os desagrados, as contradições e as posições da rapper não são silenciadas, rasuradas e nem relegadas a um “segundo plano” (MATA, 2007, p. 434), as rimas são feitas “na cara do brada60 (brother). O microfone intensifica o grito, conferindo volume à voz, enquanto remete a rapper para o centro do discurso.

“Rimas da cara do brada61 (DIVA, 2014, faixa 2) conta com a participação de quatro rappers femininas: Eva, Níria, Khris e G’Pamella. No vídeo produzido para este rap (DIVAS…, 2012), as rappers estão posicionadas no meio de um círculo masculino, simbolizando uma tomada de lugar no centro do discurso do rap. As “rimas” são direcionadas ao coletivo masculino sexista do rap:

Como é mo62 brada, rimas na tua cara!

(…)

Deviam me queixar na OMA

Vou espancando rappers até lhes deixar em coma

Rimas na cara do brada, niggas não param a dotada

Linhas são raras não travas, dicas que encaras são raras

(…)

Brincas, tua cara é lesada

Níria é carga pesada! (DIVA, 2014, faixa 2)

Níria reverte posições, mas o espancamento do “brada” não é físico, é simbólico. Aqui a rapper extravasa publicamente a raiva que Deolinda contêm nas páginas do seu diário. As “rimas” simbolizam os arremessos que deixarão o oponente “em coma”, suficientemente espancado para ser considerado vítima de violência, ao ponto de se ir queixar à OMA (órgão que Deolinda Rodrigues ajudou a fundar e que vela pelos direitos das mulheres). Com a sua “rima” Níria inverte posições e recusa o papel de vítima, é ele, desta vez, a ter a “cara lesada”. Eva dá continuidade:

Rimas da cara do brada, rimas no focinho

(…)

Sou incansável, inigualável, intocável, flow invejável

Impecável, implacável, bifar-me63 é impensável!

Rimas violentas contra wannabes64

Tô no palco e o povo grita "Mana, bis!"

E eu repito, público eu excito

MCs levito, bifes não evito

Sou filha desta cultura clandestina

Minha rima é como tortura palestina (DIVA, 2014, faixa 2)

Eva posiciona-se como filha do rap, a “cultura clandestina” e entende-se merecedora do palco que ocupa, onde “o povo grita ‘Mana, bis!’”. Em continuidade, G’Pamella adverte, “tô com as mãos em sangue” (DIVA, 2014, faixa 2), da luta simbólica que trava pelo seu lugar no palco – que pode ser entendido como reflexivo da nação. Diz “mando nessa cena” pois entende que ganha a luta na rima: “só com o meu flow eu lhes shito” (do verbo to shit) (DIVA, 2014, faixa 2). Ao rapper masculino, derrotado nesta luta de rimas, só resta o insulto vazio: “me chama de hoe” (whore | prostituta) (DIVA, 2014, faixa 2). Khris MC continua, na mesma senda, a afirmar o lugar feminino no rap, recriando-se como “poetisa do guero” (ghetto), com uma poesia que “edifica” (DIVA, 2014, faixa 2), subentendendo-se aqui a sua própria edificação e consequentemente a do coletivo feminino, em resposta e em oposição a uma poesia que “danifica” (DIVA, 2014, faixa 2). Estas rappers tomam para si a responsabilidade de mudança usando “palavras com poder” (DIVA, 2014, faixa 2), não mais confinadas à intimidade de um diário, mas desveladas e projetadas, que funcionam como equalizadoras das relações de poder. A luta pelo lugar na nação acontece no palco: é representativa e simbólica.

Em “Beleza não é tudo” (DIVA, 2017, faixa 4), Eva diz ao player:

Eu sei que tu vidraste no tamanho da minha bunda

Não ligues tanto ao rabo,

a minha mente é mais profunda.

Ao enfatizar a sua “mente” como objeto de desejo em detrimento do seu “rabo”, Eva procura o que Rose sugere ser o objetivo do rap feminino: “redefinir suas próprias imagens sexuais”65 (ROSE, 1994, p. 170). Esta procura pela redefinição torna-se numa forma de resistência aos padrões e discursos de objetificação sexual que intentam, segundo Rose, desvalorizar e dominar a sexualidade e o comportamento sexual feminino (1994, p. 171) e assim tornar a mulher invisível e impotente. Eva não só se apropria da sua identidade sexual, mas apresenta-se financeiramente independente e em controle das suas escolhas sexuais. Em “Beleza não é tudo” Eva adverte o player: “Não sou tua empregada pra me dares o vencimento/Queres comprar amor, mas eu não vendo sentimentos” (DIVA, 2017, faixa 4).

Esse posicionamento relativamente à construção da sua própria identidade sexual nunca chega a ser uma questão diretamente abordada por Deolinda. As ideias desta guerrilheira sobre este assunto vão sendo desveladas ao longo do seu Diário e nem sempre de forma coerente. Por exemplo, embora Deolinda acreditasse que “a vida para uma mulher não depend[esse] do casamento” (RODRIGUES, 2003, p. 65) e não cedesse a pressões afirmando que “[n]inguém pode obrigar-me a casar” (RODRIGUES, 2003, p. 52), o que demonstra um posicionamento pensado sob um ponto de vista feminista, Deolinda replica estereótipos relacionados com a sexualidade feminina quando diz que está “com um caráter irado cem por cento de solteirona” (RODRIGUES, 2003, p. 74), remetendo para o estereótipo da solteira histérica, quando equaciona o seu mau humor à sua condição de mulher solteira (subentendendo-se frustrada pelo celibato) e não, como seria de esperar, à sua condição de colonizada.

Outro exemplo de como Deolinda pensa a sua sexualidade está no apontamento feito no dia 18 de setembro de 1964 (RODRIGUES, 2003, p. 66) que pode ajudar a compreender as apreensões que tinha relativamente ao controle sobre as suas escolhas, o seu corpo e a sua sexualidade. Deolinda refere-se à chegada de “11 camaradas que acabaram os estudos na Europa” (RODRIGUES, 2003, p. 66). As frases que seguem são curtas e aparentemente desconectadas, diz em seguida que “[é] preciso avançar. A luta tem que marchar. O resto é secundário” (RODRIGUES, 2003, p. 66). O que é aqui secundarizado por Deolinda? Ao priorizar a luta, que “tem que marchar”, é possível que esteja a relegar ao segundo plano os seus sentimentos, o que considera ser o “resto”? Estarão estes sentimentos relacionados aos 11 camaradas que chegaram e que parecem ser o motivo do registo no Diário?

Paredes, ao tentar entender os “não-ditos, os silêncios sobre a vida sentimental” de Deolinda Rodrigues (PAREDES, 2010, p. 3) levanta a possibilidade de este silêncio ser fruto de uma educação metodista que é transferida “para a cultura política do movimento independentista onde lutou” (PAREDES, 2010, p. 3) o MPLA que, segundo o historiador Mabeko-Tali, teve predominância de dirigentes prostestantes (MABEKO-TALI apudPAREDES, 2010, p. 4).

Conforme já discutido, Deolinda “defendeu a retórica da Unidade” partidária (PAREDES, 2010, p. 14) em detrimento da sua individualidade, pela luta de libertação de Angola. Deolinda reflecte assim “a nova mulher” (cf. Paredes): a sua atitude de dedicação ecoa o comportamento esperado da “Nova Mulher Soviética” (CLEMENTS, 1985, p. 220). Para Deolinda, a sexualidade parece ser uma indesejável distração. O sexo é visto como o “cumprimento do (…) dever de macho e fémea (…) coisa chata de dois viciados” (RODRIGUES, 2003, p. 143), como “atitudes maritais” (RODRIGUES, 2003, p. 145), ou como razão para desavenças (RODRIGUES, 2003, p. 155).

Barbara Evans Clements, no seu ensaio The Birth of the New Soviet Woman, revela como a sexualidade feminina foi construída, manipulada e determinada ao longo da revolução bolchevista, durante a tentativa de criação da “nova mulher”. Clements afirma que “a nova mulher soviética serviu sempre ao regime” (CLEMENTS, 1985, p. 233)66. Nessa senda, Deolinda era uma dedicada servidora da Revolução: pretendia “levantar a cabeça e continuar a marchar (…) fazer o melhor pela Revolução” (RODRIGUES, 2003, p. 92). Esta dedicação não deixava espaço para pensar a sua sexualidade. Fruto de uma construção bolchevista, Clements explica como surge e o que se pretende da “nova mulher”:

Nascida na Revolução e na guerra civil, a heroína soviética apareceu pela primeira vez, nos periódicos, como enfermeira, como líder política no exército e como soldado combatente. Ela era modesta, firme, dedicada, simpática, corajosa, ousada, trabalhadora, enérgica e muitas vezes jovem. Ela não pensava no seu bem-estar pessoal […] e suportava a morte, acreditando que seu sacrifício contribuía para a construção de um mundo melhor. (CLEMENTS, 1985, p. 220)67

Logo após ter dado a conhecer a chegada dos 11 camaradas que se encontravam na Europa, Deolinda escreve no seu diário uma quase repreensão a si própria: “O que preciso é de firmeza, diminuir o falatório e cortar a paciência e a confiança aos camaradas. Compreendo a camaradagem sim, mas em certos limites” (RODRIGUES, 2003, p. 66). Aquilo que não é dito por Deolinda levanta questões: “firmeza” porquê? A que “confiança” estaria Deolinda a referir-se? “Diminuir” que “falatório”? E que “limites” pretende traçar? Estará Deolinda a referir-se aos avanços sexuais dos camaradas? Para com quem ela precisa de “cortar a paciência” que tem tido? A preocupação de Deolinda com o “tabú social” (RODRIGUES, 2003, p. 129) e com a sua reputação, é manifestada quando, em outra instância, não vai à estação de comboio esperar seu primo por se preocupar com o que a “chata da sociedade pensa” (RODRIGUES, 2003, p. 129). Esta abordagem explicaria a frase: “[s]erá que esta vida da Revolução vai obrigar-me a procurar marido qualquer dia? É necessário isto?” (RODRIGUES, 2003, p. 66). A preocupação de Deolinda deixa transparecer que a sua postura revolucionária, a construção que fez de si, dentro do que entendeu ser o papel da “nova mulher”, dedicada unicamente à Revolução, à libertação de Angola, pode não ser suficiente para lhe conferir controle total sobre o seu corpo, sobre a sua sexualidade e as suas escolhas. Paira sobre ela a possibilidade de que a “vida da Revolução” a obrigue a casar, ou seja, que venha a necessitar de um marido para poder deter os avanços sexuais dos seus camaradas68. Mais uma vez, Deolinda não é aceite nos seus termos por uma Revolução que, embora a leve a secundarizar a sua sexualidade, insiste em percebê-la, antes de tudo, como um ser sexual.

Deolinda, incorpora características da “nova mulher”: dando pouca importância ao seu bem-estar pessoal, ao preterir a sua vida sexual (tornando-se como que assexuada), entendendo-se primeiro como revolucionária, como instrumento de mudança e depois como mulher (CLEMENTS, 1985). Contudo, ou o coletivo masculino da Revolução entende-a como mulher, e até mesmo como “menina” (RODRIGUES, 2003, p. 110), ou dilui a sua participação no discurso coletivo, na “universalidade abstrata na linguagem, do «falso neutro»” (PAREDES, 2015, p. 253). Deolinda torna-se “invisível na dimensão discursiva e ficou na sombra de uma revolução enunciada no masculino” (PAREDES, 2015, p. 253). Assim como outras “mulheres novas” do seu tempo, “apesar de secundarizada e invisibilizada ela estava lá, […] só que não era percebida, não era vista, nem era ouvida” (PAREDES, 2015, p. 253). No decorrer da luta de libertação, Deolinda precisou combater duas vezes .cf. Paredes): primeiro para conquistar o lugar da nação angolana e em segundo contra as expectativas e os valores sociais atribuídos às mulheres do seu tempo. Ela construiu uma imagem de resistência aos limites impostos às mulheres, enquanto a sua presença, no centro da ação militar, desafiava o status quo, criando rupturas na estrutura social.

Ao mesmo tempo que empunhava a sua PM 4469 e se preparava para o combate físico que pretendia assegurar o lugar da nação com a qual sonhava, Deolinda suspendia a sua voz e identidade feminina, o seu “sentir individual” (MATA, 2007, p. 434), confinando-os ao seu íntimo diário – onde tantas vezes reiterou a necessidade de manter-se em silêncio. O seu empoderamento feminino advém, não da sua palavra, mas da utilização que faz da metralhadora, quando escreve satisfeita: “[o]ntem à noite começamos a aprender a manejar PM 44, uma delícia!” (RODRIGUES, 2003, p. 161). A PM 44 é a arma que possibilitará à Deolinda participar, de forma ativa, na conquista do lugar da nação.

3 O continuum: liberdade da nação e liberdade na nação

Embora silenciada, invisível e secundarizada, Deolinda conseguiu granjear para si um lugar no exército de libertação do MPLA, um espaço indiscutivelmente masculino, que a obrigou à “reinvenção de si própria, exigindo-lhe que rompesse com valores ligados à feminilidade e exigindo-lhe atributos considerados masculinos, como autoridade, decisão, força, coragem, bravura e violência” (PAREDES, 2015, p. 120). Embora secundarizasse a sua voz feminina em prol da ideologia partidária, da unidade social e do processo revolucionário, Deolinda entendeu a luta anticolonial como uma oportunidade para a mulher do seu tempo, e urge: “Hoje nós as angolanas sabemos que há muito trabalho que nós podemos fazer para avançar a nossa luta, […] até o fazer parte das milícias nas sanzalas e pegar em armas para lutar contra os portugueses no maquis.” (Arquivo Lúcio Lara, Associação Tchiweka apud PAREDES, 2017, p. 405).

A luta pela independência era também “a nossa luta”: o início da luta de emancipação da mulher angolana. Era uma oportunidade de resistir e de reagir aos padrões socialmente construídos de feminilidade. Era preciso questioná-los e subvertê-los como forma de dar início à construção de novas possibilidades de SER.

No pós-independência, Eva dá continuidade a esse processo de ruptura e (re)definição de género iniciado por Deolinda no maquis. Não mais se cumpliciando com o contexto (MATA, 2007, p. 434), a rapper combate, no palco, pelo seu lugar na nação. Assim Eva Rap Diva procura afirmar a sua independência individual. Ou seja, “o seu objecto passa a ser o próprio «eu» -- e não o «nós», a entidade coletiva construtora da nação” (MATA, 2007, p. 429) como o era para Deolinda. Diferente do diário íntimo e velado de Deolinda, é neste espaço público e de visibilidade que, de microfone em punho, a arma desta combatente globalizada, a rapper dissemina a sua palavra, o grito libertário da mulher (MATA, 2007, p. 434) e estabelece o protagonismo da sua voz. As temáticas das suas rimas propiciam e privilegiam a subjectividade e a vivência feminina e, dessa forma, a rapper vai (de)marcando o seu lugar na nação. Conforme afirma Rose, “as rappers que tomam o palco e conquistam a admiração da multidão, sob condições altamente competitivas, representam uma intervenção substancial na performance das mulheres contemporâneas e nas identidades culturais populares.” (ROSE, 1994, p. 163)70

O microfone e o palco conferem visibilidade e projeção. A palavra difundida conduz ao empoderamento da rapper e à consciencialização da comunidade. A independência individual quer-se como catalisadora para a independência do coletivo feminino e masculino. Eva, ciente do seu papel consciencializador de “Queen Mother”, procura livrar os seus interlocutores das amarras restritivas de construções estereotipadas de género – (a)firmando a liberdade de se (re)definirem, numa clara continuidade à luta travada por Deolinda Rodrigues. É o diálogo com outras e outros rappers, com os coletivos de interlocutores (femininos e masculinos) e com a cultura dominante, que permite à rapper questionar comportamentos machistas e, sobretudo, (re)definir-se enquanto suscita novas construções identitárias. bell hooks, feminista afro-estadunidense, afirma com clarividência que “a nossa luta pela libertação só tem significado se ocorrer dentro de um movimento feminista que tem como objetivo fundamental a libertação de todas as pessoas”. (HOOKS, 1982, p. 13)71

Assim como bell hooks, tanto Deolinda como Eva compreenderam que a liberdade individual assenta na consciencialização para a liberdade coletiva, estabelecendo assim um continuum entre a liberdade da nação e a liberdade na nação.

Referências

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Notas

NOTA DE TÍTULO: Texto desenvolvido a partir da preleção “O lugar da nação e o lugar na nação: Deolinda Rodrigues e Eva Rap Diva – o diário, o microfone e a voz feminina”, apresentado no Colóquio Internacional “Homenagem a Alda Lara: Mulheres Africanas em Trânsito”, Universidade de Lisboa, 2018-11-15.
1 Embora Inocência Mata escreva sobre a escrita feminina moçambicana, a similaridade dos processos de colonização e descolonização torna oportuna a aplicação deste ensaio ao contexto literário angolano.
2 Mata refere-se ao período pré-independência.
3 Oliveira Pinto aponta para a possibilidade desta revolta ter sido influenciada pela União das Populações de Angola (UPA) (PINTO, 2017, p. 711), que mais tarde viria a tornar-se na Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA).
4 Nomeadamente ao Aeroporto, à Companhia Indígena, à Estação dos Correios, Telégrafos e Telefones, à Companhia Móvel da Polícia de Segurança Pública (4.ª esquadra), à Cadeia da Administração de São Paulo e à Casa da Reclusão de Luanda (PINTO, 2017, p. 712). Oliveira Pinto discorre ainda sobre outros eventos de 1961 que estiveram no surgimento da guerra pela independência de Angola. Entre estes eventos está, por exemplo, o assalto ao paquete português Santa Maria pelos portugueses Henrique Galvão e Camilo Mortágua que, com outros dissidentes, apoderaram-se deste navio pertencente à Companhia Colonial de Navegação. Outro acontecimento marcante foi uma série de assaltos violentos, com início a 15 de março, organizada pela UPA, às fazendas de café dos colonos no norte de Angola (PINTO, 2017, p. 714), onde homens foram desventrados e mutilados e mulheres violadas e mortas pelos revoltosos. Segundo Oliveira Pinto, nem as crianças foram poupadas à violência que aterrorizou Mbanza Kongo (então São Salvador) por mais de quatro semanas (2017, p. 714), causando terror entre os colonos.
5 Em Angola o 4 de fevereiro é um celebrado feriado que marca a importância desta data: o “Dia do Início da Luta Armada e de Libertação Nacional”.
6 Oliveira Pinto nota que a palavra “terrorista” tornar-se-ia, a partir deste momento, em sinónimo de “independentista” no contexto português da época (PINTO, 2017, p. 715), o que desvela a percepção colonial sobre o desejo de independência de Angola.
7 O historiador Mabeko-Tali (2018) expõe a fragilidade política do MPLA num contexto de guerrilha, onde a diversidade étnica e cultural, as lutas sociais e a heterogeneidade ideológica dificultam a afirmação política. Ver também Oliveira Pinto (2017, p. 685-727) e o próprio diário de Deolinda, onde esta faz alusão a alguns destes conflitos.
8 Para mais informações sobre Deolinda Rodrigues ressaltam-se os trabalhos de Paredes e Limbânia J. Rodriguez, assim como os textos de Roberto de Almeida nas obras de Deolinda Rodrigues e o documentário Langidila: Diário de um exílio sem regresso, realização de José Rodrigues e de Nguxi dos Santos, 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wZt2OwQJE1U Acesso em: ago. 2021.
9 Ver também a entrevista ao irmão de Deolinda, Roberto de Almeida (ANTÓNIO, 2020, p. 161).
10 Em entrevista, Roberto de Almeida (também ele militante do MPLA e autor) expõe como encontrou e publicou o diário de Deolinda (ANTÓNIO, 2020) e o entregou, recentemente, ao Memorial Agostinho Neto, em Luanda.
11 São algumas as vezes em que Deolinda, no seu diário, se refere à vida sob o colonialismo como uma “merda” (RODRIGUES, 2003, p. 34 e 43).
12 Aquele que assimilou a cultura do colonizador. O governo colonial pretendia um processo de aculturação da população, com a finalidade de criar uma elite nativa que colaborasse na governação da colónia, tendo em vista os interesses portugueses.
13 Lema esse que está patente no hino nacional e continua a nortear as campanhas políticas do MPLA.
14 Para este historiador, “Agostinho Neto foi o político angolano que mais tomou a sério (…) o artefacto a que os discursos coloniais chamaram ‘tribalismo’” (PINTO, 2017, p. 724), usado para validar o colonialismo uma vez que, argumentavam, “se Angola se tornasse independente, depressa ficaria ‘esboroada’ (sic) pelo ‘tribalismo’ (PINTO, 2017, p. 724).
15 “woman’s liberation is subordinated to the liberation of the whole, feminist goals to communist ones” (CLEMENTS, 1985, p. 229).
16 São muitas as instâncias onde Deolinda se autocensura por “falar demais” (RODRIGUES, 2003, p. 65; 71-74; 93; 107; 115; 133).
17 São muitas as vezes em que, no seu diário, Deolinda se autocensura por falar e expressar as suas inquietações: ver, por exemplo, as páginas 71, 72, 73, 74, 81, 93, 95, 96, 115 e 133 (RODRIGUES, 2003).
18 Paredes nota que “[n]o MPLA os homens eram dominantes (…) [e] não se apercebiam das contradições em que viviam: por um lado, usavam uma retórica de igualdade no discurso revolucionário e, por outro, exerciam uma prática que inferiorizava e subordinava as mulheres” (2015, p. 258).
19 Paredes argumenta que “No Diário as palavras feminismo e feminista estão ausentes, mas ao subverter [pela prática] hierarquias de género e ao questionar essas hierarquias, [Deolinda] expressa uma visão do mundo feminista” (PAREDES, 2010, p. 43). Ver também PAREDES, 2017.
20 Em carta escrita a partir dos Estados Unidos da América, em 1961, Deolinda pede a duas camaradas para “fazer dois pactos: a) descobrir revistas e jornais de MULHERES AFRICANAS, publicadas onde quer que fôr e, aos poucos, assiná-los. Isto não quer dizer que desprezaremos publicações femininas não africanas. b) enviarmos umas às outras artigos ou cópias deles sobre organizações e actividades femininas, etc. Que tal?” (RODRIGUES, 2004, p. 122). Este excerto aponta para o facto de Deolinda estar consciente das movimentações para emancipação feminina em África e no resto do mundo, de preocupar-se com temas femininos e de ambicionar conhecer tais publicações. Questões mais profundas relacionadas com o posicionamento de Deolinda face ao feminismo de sua época são demasiado complexas para serem abordadas neste artigo. A história do feminismo nos países africanos de língua portuguesa, as formações sociais e as estratégias de empoderamento das mulheres africanas devem continuar a ser pensadas e discutidas para melhor podermos compreender e contextualizar posicionamentos.
21 Portugal encontrava-se ainda no rescaldo do Golpe de Estado que derrubou o Estado Novo (a 25 de abril de 1974), realizado em Lisboa por oficiais subalternos do Movimento das Forças Armadas, os chamados “Capitães de Abril”, que confiaram a autonomia do Estado português a uma Junta de Salvação Nacional, mais tarde substituída por um Conselho da Revolução. A luta pelo poder em Portugal criou grande instabilidade política interna (PINTO, 2017, p. 739), fragilizando o exército português que, segundo Oliveira Pinto, se viu incapaz de opor os confrontos armados entre os movimentos de libertação e de fazer valer o Acordo do Alvor (assinado a 15 de janeiro de 1975, que definiu a estratégia de transferência de poder para os atores angolanos) (PINTO, 2017, p. 735-736).
22 Rapper, aquele que produz RAP (do inglês Rhythm and Poetry | Ritmo e Poesia).
23 Eva Rap Diva é igualmente reconhecida no espaço Português e dos PALOP de uma forma geral. Contudo e sem pretender reduzir o seu escopo de atuação, será aqui considerada somente a sua intervenção no que concerne o espaço angolano.
24 Henda Ducados é membro fundador da Rede Mulher (Rede de Género) e do Instituto Angolano de Pesquisa (http://www.c-r.org/who-we-are/people/author/henda-ducados). É filha de Mário Pinto de Andrade e de Sarah Maldoror, realizadora do filme Sambizanga (PAREDES, 2015, p. 64)
25 Eva Rap Diva é o nome artístico de Eva Marise Cruzeiro Alexandre, nascida em 1988.
26 “hypermasculinity and phallogocentrism” (NEAL, 2004, p. 247).
27 The most visible representations of black women in hip hop reflect the hallmarks of mainstream masculinity: They regularly use women as props that boost male egos, treat women’s bodies as sexual objects, and divide women into groups that are worthy of protection and respect and those who are not. (ROSE, 2008, p. 119)
28 “Women are achieving major strides in rap music by continuing to chisel away at stereotypes about females as artists in a male-dominated tradition and by (re)defining women’s culture and identity from a Black feminist perspective”. (KEYES, 2004, p. 273)
29 Entrevista RTP África, programa Conversas ao Sul, 2017. (CONVERSAS…, 2017)
30 Dentro daquilo que Tricia Rose (2004, p. 303) oferece como definição de feminista: “Eu diria que uma feminista acreditava que havia sexismo na sociedade, queria mudar e trabalhava para a mudança. [Ela] ou escreveu, ou falou ou se comportou de uma forma pró-mulher, na maneira em que apoiava situações [organizações] que estavam tentando melhorar a vida das mulheres. Uma feminista sente que as mulheres são mais desfavorecidas do que os homens em muitas situações e deseja que esse tipo de desigualdade cesse” | “I would say that a feminist believed that there was sexism in society, wanted to change and worked towards change. [She] either wrote, spoke or behaved in a way that was pro-woman, in that she supported situations [organizations] that were trying to better the lives of women. A feminist feels that women are more disadvantaged than men in many situations and would want to stop that kind of inequality”.
31 Do inglês sisters, irmãs.
32 “use their performances as platforms to refute, deconstruct, and reconstruct alternative visions of their identity (…) rap music becomes a vehicle by which black female rappers seek empowerment, make choices, and create spaces for themselves and other sistas.” (KEYES, 2004, p. 274)
33 “The women look up to us. They take us dead seriously. It’s not a fan type of thing, it’s more like a movement. (…) It makes you realize that you have a voice” (ROSE, 2004, p. 305).
34 The “Queen Mother” category comprises female rappers who view themselves as African-centered icons (…) In their lyrics, they refer to themselves as (…) “Nubian Queens”, “intelligent Black women” or “sistas droppin’ science to the people”, suggestive of their self-constructed identity and intellectual prowess. (KEYES, 2004, p. 266).
35 Their rhymes embrace Black female empowerment and spirituality, making clear their self-identification as African, woman, warrior, priestess, and queen. Queen Mothers demand respect not only for their people but for Black women… (KEYES, 2004, p. 266).
36 Cunanga, preguiçoso.
37 Cangar, agarrar.
38 LYRICSTRANSLATE, 2017a; ver também Rainha…, 2015.
39 “Community othermothers work on behalf of the Black community by expressing ethics of caring and personal accountability which embrace conceptions of transformative and mutuality… community othermothers become identified as power figures through furthering the community’s well-being” (COLLINS apudKEYES, 2004, p. 267).
41 Tricia Rose em Black Noise explica que “A música rap e a cultura hip hop são formas culturais, políticas e comerciais e, para muitos jovens, são as suas principais janelas culturais, sônicas e linguísticas para o mundo” | “Rap music and hip hop culture are cultural, political, and commercial forms, and for many young people they are the primary cultural, sonic, and linguistic windows on the world” (ROSE, 1994, p. 19).
42 “[f]emale teenagers frequently engage in prostitution to escape poverty”.
43 A título de exemplo, vide o poema de Luandino Vieira, Canção para Luanda, com a “Zefa mulata/o corpo vendido/baton nos lábios/os brincos de lata/sorri/abrindo seu corpo” (InFERREIRA, 1997, pp. 239-240).
44 Cabelo postiço.
45 Homem mais velho.
46 Zungar: vender bens de produção na rua.
47 Mulata.
48 Trabalho.
49 Com má aparência.
50 Mata refere-se a Paulina Chiziane.
51 Entrevista pessoal, 7 de agosto de 2013.
52 Problema.
53 Do inglês dread que, em Angola ganha o sentido de amigo.
54 Do italiano, cerveja.
55 Tricia Rose apoia-se no argumento de George Lipsitz (embasado no conceito de dialógica de Bakhtin) que entende a música popular como um processo dialógico social e histórico (ROSE, 2004, p. 293).
56 women rappers (…) are engaged in constant communication with black male audience members and rappers and simultaneously support and offer advice to their young black female audiences. (ROSE, 1994, p. 181)
57 Em similar instância, Deolinda refere-se aos machistas como “desequilibrados sociais” (RODRIGUES, 2003, p. 75).
58 A expressão player , utilizada por Eva, é reveladora das relações de poder estabelecidas no rap sexista: to play, brincar ou jogar, subentende-se a utilização de um brinquedo, um objeto, que, neste caso, é a mulher.
59 (RODRIGUES, 2003, p. 30, 32, 33, 34, 43, 50, 54, 55, 115, 159 e 205)
60 (DIVA, 2014, faixa 2). Brada, corruptela do inglês brother, irmão.
62 Meu.
63 Expressão do hip-hop estadunidense: to have a beef with someone, ter rancor, ter um problema, um desentendimento.
64 Corruptela do inglês want to be: aqueles que querem ser, mas não são.
65 “to redefine their own sexual imagery” (ROSE, 1994, p. 170).
66 “the new Soviet woman was always a servant of the regime” (CLEMENTS, 1985, p. 233).
67 “Born in the Revolution and the civil war, the Soviet heroine first appeared in periodicals as a nurse, as a political leader in the army, even as a combat soldier. She was modest, firm, dedicated, sympathetic, courageous, bold, hard-working, energetic, and often young. She gave no thought to her personal welfare (…) and even endured death, believing that her sacrifice had contributed to the building of a better world” (CLEMENTS, 1985, p. 220).
68 O medo da violação é evidente quando ao ouvir um casal a fazer sexo, Deolinda resolve se proteger, num outro quarto, com uma pistola “PA”, de possíveis avanços de algum “chanfrado” excitado com a situação (RODRIGUES, 2003, p. 143).
69 Deolinda faz parte de um restrito grupo de cinco mulheres que foram as primeiras a manusear armas no MPLA e incentivou outras mulheres a fazerem treinamento militar, em outubro de 1966 (PAREDES, 2015, p. 122).
70 “[w]omen rappers who seize the public stage and win the crowd’s admiration under these highly competitive conditions, represent a substantial intervention in contemporary women’s performance and popular cultural identities” (ROSE, 1994, p. 163).
71 “[a]lthough the focus is on the black female, our struggle for liberation has significance only if takes place within a feminist movement that has as its fundamental goal the liberation of all people” (HOOKS, 1982, p. 13).

Notas de autor

1 Doutora em Literatura dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa pela Universidade de Coimbra, Portugal. Professora Auxiliar no Instituto Superior de Ciências da Educação da Huíla – Lubango – Angola. E-mail: luissolange@hotmail.com.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): LUIS, S. E. A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 1, p. 44-68, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p44-68. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16295.

COMO CITAR (APA): Luis, S. E. (2022). A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(1), 44-68. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p44-68.

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