Dossiê Temático "Literaturas africanas de língua portuguesa"

Literaturas africanas de língua portuguesa na sala de aula por uma educação pós-colonial

African literatures in Portuguese language in the classroom for a postcolonial education

Literaturas africanas en lengua portuguesa en el aula para una educación poscolonial

Adriano Carlos Moura 1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense), Brasil

Literaturas africanas de língua portuguesa na sala de aula por uma educação pós-colonial

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 24, núm. 1, 2022

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2022 pelos autores.

Recepción: 22 Septiembre 2021

Aprobación: 28 Enero 2022

Resumo: Embora a Lei 10.639/03 torne obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira por meio dos conteúdos das áreas de História, Educação Artística e Literatura nas instituições de ensino públicas e privadas da Educação Básica, alunos chegam à graduação desconhecendo a arte, a história e literatura da África, o que significa o descumprimento da referida Lei. Uma das hipóteses para o problema é o fato de a educação brasileira ainda ser moldada por valores herdados da mentalidade colonialista, que tende a apagar o papel dos africanos na construção da nação. Este artigo propõe, portanto, uma reflexão sobre o papel das literaturas africanas de língua portuguesa na construção de uma mentalidade pós-colonial, conceito que norteia teórica e metodologicamente a pesquisa da qual o estudo resulta, e o romance como gênero capaz de possibilitar acesso à cultura e história da África. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e de campo ancorada no trabalho de pesquisadores da crítica pós-colonial.

Palavras-chave: Educação, Literaturas Africanas, Pós-colonialismo.

Abstract: Although Law 10.639/03 makes the teaching of African and Afro-Brazilian History and Culture mandatory through the contents of the areas of History, Artistic Education and Literature in public and private institutions of Basic Education, students arrive at undergraduation courses not knowing the art, the history and literature of Africa, which means non-compliance with the aforementioned Law. One of the hypotheses for the problem is the fact that Brazilian education is still shaped by values ​​inherited from the colonialist mentality, which tends to erase the role of Africans in construction of the nation. Therefore, this article proposes a reflection on the role of Portuguese-speaking African literature in the construction of a postcolonial mentality, a concept that theoretically and methodologically guides the research from which the study results, and the novel as a genre capable of providing access to the culture and history of Africa. It is a bibliographical and field research based on the work of postcolonial critics.

Keywords: Education, African Literatures, Postcolonialism.

Resumen: Si bien la Ley 10.639/03 hace obligatoria la enseñanza de la Historia y Cultura Africana y Afrobrasileña a través de los contenidos de las áreas de Historia, Educación Artística y Literatura en instituciones públicas y privadas de Educación Básica, los estudiantes llegan a la graduación sin conocer el arte africano, historia y literatura, lo que significa el incumplimiento de la mencionada Ley. Una de las hipótesis del problema es que la educación brasileña todavía está conformada por valores heredados de la mentalidad colonialista, que tiende a borrar el papel de los africanos en la construcción de la nación. Por lo tanto, este artículo propone una reflexión sobre el papel de las literaturas africanas de idioma portugués en la construcción de una mentalidad poscolonial, concepto que orienta teórica y metodológicamente la investigación de la que resulta el estudio, y la novela como género capaz de dar acceso a la cultura e historia de África. Se trata de una investigación bibliográfica y de campo basada en el trabajo de críticos poscoloniales.

Palabras clave: Educación, Literaturas africanas, Poscolonialismo.

1 Introdução

Este artigo é parte de uma pesquisa de doutorado iniciada em 2018 e concluída em 2021, que investigava romances produzidos em Angola e Portugal depois de 1975, cuja narrativa fosse centrada na configuração da nação pela literatura, estudada sob perspectiva teórica interdisciplinar, reunindo autores da crítica pós-colonial, da filosofia, sociologia, história e da teoria literária. Essa iniciativa se deu pelo fato de que parte dos alunos ingressantes no curso de Letras do Instituto Federal Fluminense desconhecia história, cultura e literatura da África, mesmo com a obrigatoriedade do ensino desses conhecimentos na Educação Básica estipulado pela Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003).

Objetiva-se, portanto, contribuir para uma reflexão acerca do papel da leitura de obras das literaturas africanas de língua portuguesa como caminho possibilitador de conhecimento da cultura e história dos países africanos ex-colônia de Portugal, utilizando textos em prosa, especialmente romances, como corpus para a proposta. Inicialmente, far-se-á uma exposição do conceito de pós-colonial como teoria crítica para leitura das obras e sua utilização nas aulas em que obras africanas sejam inseridas. Em seguida, apresenta-se uma discussão sobre o caráter neocolonizador da lusofonia, concluindo com o conceito de romance-nação e sua contribuição para o ensino de literaturas africanas de língua portuguesa.

Por motivos de delimitação, devido à diversidade de produção literária dos cinco países que compõem os PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), ou seja, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Moçambique, São Thomé e Príncipe, o corpus do artigo convocará à argumentação somente obras angolanas e moçambicanas.

2 Sobre o conceito de pós-colonial e sua utilização para o ensino das literaturas africanas

O ensino de literatura no Brasil é ainda bastante centrado no estudo dos estilos de época que seguem o modelo ocidental que, no caso brasileiro, se configura a partir do Barroco até o Modernismo, embora como sistema literário, somente a partir do Arcadismo, conforme formulações do crítico Antonio Candido, em Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (2009). Assim como na literatura portuguesa, as características dos movimentos artísticos norteiam um estudo histórico mais ocupado na reprodução de padrões de uma arte considerada canônica do que numa pedagogia que possibilite a leitura, compreensão e interpretação crítica das obras. Quando se trata das literaturas africanas de língua portuguesa, essa metodologia resulta num procedimento didático ainda mais ineficaz, uma vez que essas literaturas têm sua fase escrita mais profícua somente a partir da segunda metade do século XIX quando, em 1849, se publica o livro de poemas Espontaneidades de minha alma de José da Silva da Maia Ferreira, escritor angolano de origem portuguesa, cuja poética apresentava fortes contornos românticos, embora não se possa afirmar que essa escola tenha se desenvolvido em Angola como se desenvolveu no Brasil e em Portugal.

O ensino das literaturas africanas, portanto, não tem os estilos de época para se ancorar em sala de aula. Não houve uma uniformidade estilística, tampouco temática da parte dos autores, conquanto muitos tenham se organizado em torno de revistas e movimentos como ocorreu, por exemplo, com o periódico Luz e Crença onde, segundo o ensaísta Carlos Ervedosa (1985), teriam surgido os primeiros ideais independentistas. Mesmo com esse pioneirismo, o autor constata que até a década de 40, em Angola, as produções literárias possuíam, em sua maioria, um cariz bastante colonial sem uma raiz de fato angolana. Segundo Ervedosa, a década de 60 é marcada por uma efervescência literária e de militância política, sendo a década seguinte, mais especificamente em 1975, que a independência se consuma, elegendo o poeta Agostinho Neto o primeiro presidente da nação livre. Num recorte meramente cronológico, poder-se-ia considerar a literatura produzida até 1975 como colonial e a pós essa data como pós-colonial, o que não será o caminho percorrido por este estudo, menos ainda tem sido o da crítica literária.

O termo pós-colonial não se apresenta como um adjetivo caracterizador de uma literatura de tempo específico, nem somente como uma perspectiva teórico-metodológica de investigação das literaturas africanas, mas também como uma proposta teórico-metodológica para o ensino nas escolas do Ensino Médio, com intuito de contribuir para a construção de uma educação que questione o pensamento colonial que ainda alimenta a imagem que se formou no Brasil acerca dos negros e da África.

Segundo o crítico angolano Luís Kandjimbo (2016):

Ao funcionarem como veículos de ideologia colonial, em absoluta autarcia, os aparelhos institucionais do ensino são confrontados com as dinâmicas da produção de cânones literários alternativos que emergem das literaturas orais quer das literaturas escritas em línguas africanas e em línguas europeias. O que está em causa é a necessidade de proceder à descanonização literária, transformando os contra-cânones em cânones literários oficiais. (KANDJIMBO, 2016, p. 14).

Embora esteja se referindo à realidade angolana, a afirmação de Kandjimbo sobre as escolas serem instrumentos da ideologia colonial se aplica à realidade brasileira, cuja educação literária surge de um modelo preconizado pelo europeu. As obras literárias indicadas como leitura obrigatória são majoritariamente as mesmas que compõem os cânones nacionais e internacionais. Leituras de autores africanos ocupam ainda um lugar subalterno, segregadas a eventos temáticos em datas como 13 de maio e 20 de novembro, Abolição da Escravatura e Dia da Consciência Negra respectivamente. Seriam o que Kandjimbo considera “contra-cânones”. Entretanto a abordagem aqui presente não propõe a transformação dos “contra-cânones em cânones oficiais” como sugere o pesquisador, mas a extinção da hierarquia que privilegia autores de uma tradição eurocêntrica, ou mesmo nacional, que não reflete a diversidade étnica e cultural de países como o Brasil.

As instâncias legitimadoras dos cânones literários podem e devem ser questionadas pelas epistemologias pós-coloniais como aponta Inocência Mata (2016), inclusive as que apontam como “bom” somente os autores africanos lidos em Portugal. Essas instâncias que definem o “bom” ou “ruim” são as mesmas que indicam o que deve ou não ser lido nas salas de aula. A pesquisadora moçambicana Ana Mafalda Leite (2013) escreve que a crítica pós-colonial se propõe a combater as visões de mundo dos temas imperiais. Essa função é assumida pelos autores africanos que, mesmo antes da independência das colônias, já produziam uma literatura de contornos pós-coloniais, demonstrando o quanto tal perspectiva não se limita a um marco cronológico designando a literatura dos países independentes, mas se assume como uma área de estudo a fim de discutir, como afirma Leite “os efeitos culturais da colonização” (LEITE, 2013, p. 10). Estudar as literaturas das ex-colônias e, por meio delas, convocar os estudantes do Ensino Médio e Superior para a reflexão sobre os efeitos da colonização e da descolonização não deve se limitar, portanto, à leitura de textos produzidos somente no período do pós-independência.

Um exemplo é o conto Nós matamos o cão tinhoso (2017), do moçambicano Luis Bernardo Honwana, publicado originalmente em 1964. O Cão-Tinhoso era um animal em estado de decrepitude, doente, e um grupo de meninos é incumbido de matá-lo. Segundo ‘pesquisa de Leonardo Mendes Gonçalves (2018), o cão poderia ser interpretado como uma metáfora para a sociedade colonial decadente ou o povo colonizado oprimido. Ambas são interpretações pertinentes ao conto, o que confirma a pós-colonialidade de Honwana num texto publicado onze anos antes da independência de Moçambique. O mesmo conto serve de mote para que o angolano Ondjaki escreva Nós choramos pelo cão tinhoso (2015) em que se narram os sentimentos que assolam um grupo de alunos durante a leitura do conto de Honwana durante uma aula. Uma sequência didática desenvolvida no primeiro semestre de 2021 com os alunos do sétimo período da graduação em Letras do Instituto Federal Fluminense, permitiu que eles lessem o conto do Honwana e levantassem hipóteses para as possíveis metáforas que o cão representava, prevalecendo a do animal como símbolo da opressão do povo moçambicano pelo português, confirmando uma das teses defendida por Gonçalves.

Das setecentas e quarenta e cinco páginas dos três volumes do livro didático Português: contexto, interlocução e sentido, de Maria Luiza M. Abaurre, Maria Bernadete M. Abaurre e Marcela Pontara (2008), apenas dezoito são dedicadas às literaturas africanas. Nessa obra, destaca Adriano Carlos Moura:

depois da tradicional exposição histórico-cronológica baseada nos estilos de época das literaturas portuguesa e brasileira, dezoito páginas comentam a narrativa africana com base em fragmentos de textos de Pepetela, Mia Couto, José Luandino Vieira, Agualusa e Ondjaki. A utilização de fragmentos como corpus é comum aos livros didáticos, mas são insuficientes quando não acompanhados da leitura integral de algum título. Ainda assim, a lista de autores sinaliza sua inclusão como representantes da ficção africana para pelo menos um grupo de leitores. (MOURA, 2021, p. 145).

A constatação acima aponta para o fato de que, embora a Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) obrigue o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, a iniciativa ainda é bastante tímida em termos de acesso a conteúdos e publicações somada à formação ainda deficiente de docentes nessa área, visto que o aprofundamento nas questões relativas às literaturas africanas é mais ofertado nas pós-graduações, sem falar no número grande de professores formados antes da promulgação da Lei e que não tiveram Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no currículo de sua formação na graduação, conforme atesta Laura Cavalcanti Padilha (2010):

Com respeito aos cursos de Graduação, as cinco Literaturas Africanas em Língua Portuguesa (mesmo se considerarmos uma habilitação como Português/Literaturas, na qual se oferecem mais detidamente as expressas na língua materna) não se elencavam como obrigatórias, conforme se dava com a Portuguesa e a Brasileira. Estas, só com a última proposta de reformulação curricular, deixaram de ser assim catalogadas. Quando, salvo em um ou outro programa, as Africanas eram colocadas entre as optativas, elas apareciam com uma carga horária mínima, quando não se listavam entre as disciplinas de Literatura Portuguesa, recebendo, com variantes, a denominação genérica e abrangente de “Manifestações Literárias Ultramarinas”, mesmo depois das independências dos países africanos, em 1975. (PADILHA, 2010, p. 3).

Se tal problema se verifica na formação de professores que viriam a atuar na Educação Básica, entende-se o motivo pelo qual uma geração de estudantes saía e infelizmente ainda sai do Ensino Médio com pouco ou nenhum contato com as literaturas dos PALOP.

Conforme Ana Mafalda Leite (2016), o pós-colonialismo não é limitado a uma descrição de uma época ou sociedade específica, “Ele relê a colonização, como parte de um processo global, essencialmente transnacional e transcultural – e produz uma reescrita descentrada, diaspórica, das grandes narrativas imperiais do passado, centradas na nação” (LEITE, 2016, p. 66). Sob esse aspecto, é importante destacar o papel do conto e romance africano e sua contribuição como um dos veículos de acesso à história e cultura dos povos da África narradas sob perspectivas de autores europeus ou brasileiros de formação moldada ainda nesse viés.

É vasta a produção romanesca publicada depois da independência que relê o passado colonial africano e se atenta aos problemas contemporâneos de um continente frequentemente homogeneizado ou imageticamente projetado como exótico, além de ser retratado amiúde, pelos meios de comunicação, como local de guerras, doenças e conflitos étnicos apenas.

Desse modo, é importante pensar a crítica pós-colonial não somente como um caminho teórico para a leitura das obras, mas também como uma atitude política na sala de aula, que começa desde a escolha dos títulos a serem lidos e se estende às abordagens dos conteúdos dos textos nos planos estéticos, éticos, ideológicos, linguísticos. A respeito deste último é importante ressaltar o papel da língua como instrumento de dominação e como os usuários não portugueses do idioma aprenderam a utilizá-la cotidiana e literariamente subvertendo códigos sintáticos, semânticos, gramaticais, por meio de hibridismos, apropriações que lhe conferem um caráter múltiplo, de acordo com cada nação que dela se utiliza e que compõe o chamado “Espaço Lusófono”.

3 Literatura angolana e moçambicana, não lusófona

Uma outra discussão que deve ser levantada ao se estudar as literaturas africanas de língua portuguesa é o conceito de lusofonia. Segundo Alfredo Margarido (2000), é uma criação do período pós-independência e expressa uma imagem mítica, pois não bastaria falar o português ou ser oriundo de uma ex-colônia portuguesa para acessar livremente e sem discriminação a pátria de Camões. Para o autor, a violência linguística sempre fez parte do projeto colonial com termos e expressões em português que inferiorizavam os sujeitos e a cultura dos africanos.

A dominação portuguesa nunca pretendeu a democratização do uso da língua e da educação formal. Ensinava-se aos africanos somente o necessário para o cumprimento das atividades burocráticas ou de promoção das ideologias coloniais. Há autores africanos negros cuja formação intelectual se deu em Portugal, sendo muitos deles acolhidos na Casa dos Estudantes do Império, cuja função inicial era de formar uma elite intelectual africana que reproduzisse a mentalidade imperialista da “nação ultramarina”. Entretanto se deu o contrário, pois foi nesse espaço que grandes lideranças da luta independentista se formaram, como foi o caso de Agostinho Neto.

As literaturas produzidas nos países ex-colônias são angolana, moçambicana, caboverdiana, etc., pois cada uma faz um uso bastante peculiar da língua portuguesa, o que torna a expressão “literatura lusófona” ideologicamente colonizadora, porque transcende as fronteiras linguísticas e comporta sentidos que remetem à cultura portuguesa de um modo geral. Não se pode ignorar o peso civilizatório que uma língua carrega, obviamente, porém, como atesta Laura Cavalcanti Padilha (2005):

Os projetos literários nacionais africanos usam, por outro lado, da própria língua portuguesa como uma forma de enfrentamento do dominador, buscando romper a rigidez normativa e apresentando distintas soluções verbais para com elas estruturar as bases de uma produção artística em diferença. (PADILHA, 2005, p. 21).

Era comum a indagação dos alunos por que os africanos não optaram por uma de suas línguas nativas. Isso denota o desconhecimento histórico de mais de quinhentos anos sob o jugo político, econômico, cultural e linguístico de Portugal sobre os cinco países da África e da própria multiplicidade cultural desses territórios antes da colonização como as muitas línguas originárias que dividem com o português o uso cotidiano. Entretanto a opção pela língua do colonizador foi uma arma na luta independentista e, como oficial, instrumento importante para construção de uma unidade nacional e da configuração de um sistema literário. A circulação dos textos em um dos idiomas nativos comprometeria sua recepção não apenas em regiões cuja língua não fosse a do autor, como dificultaria a leitura nos demais países de língua portuguesa e a tradução para outras línguas.

Em Angola, algumas das línguas nativas são ensinadas nas escolas, segundo o Observatório da Língua Portuguesa. Entretanto há o problema da falta de professores e o crescente desinteresse de angolanos que preferem que seus filhos aprendam apenas o português. Isso se deve à opressão colonial que promoveu a desvalorização das culturas locais como a língua, mas também a própria dinâmica da vida contemporânea. No romance Os transparentes (2013), de Ondjaki, percebe-se a capital Luanda é afetada pelo comércio internacional, exploração de petróleo por multinacionais com presença de estrangeiros interessados nessas atividades levando a população a ter de se adequar a novos padrões linguísticos para além do português, como se pode verificar no fragmento a seguir:

- Angola está prestes a apresentar ao mundo um eclipse de qualidades inéditas, nunca visto, entendem? Nunca visto

- eu pensar eclipse era internacional na mundo – comentou uma das suecas

- sim, mas nós é que estamos a coordenar o evento, a NASA aqui pia baixinho, tá a entender? vamos lá conhecer o espaço...vocês já dormiram numa igreja?

- “igreza”? Like church?

- igreja … de deus, que é “god” também, ngana zambi

- ámen! – brincou a prostituta, fazendo o sinal da cruz sobre os volumosos seios (ONDJAKI, 2013, p. 327)

No diálogo acima, o personagem João Devagar conversa com duas prostituas suecas sobre o evento de um eclipse que só poderia ser visto em Luanda, acontecimento que divide com a exploração do petróleo por multinacionais a atenção dos moradores da capital e dos turistas internacionais. A nação do romance é a pós-guerra civil, mas que rememora acontecimentos da luta pela independência e aspectos de tradições locais, representadas pela Avó Kunjikise, personagem símbolo do conflito entre as culturas ancestrais e as mudanças da modernidade.

Nas escolas brasileiras depara-se com problemas similares também resultantes da mentalidade colonial. Não há o bilinguismo caracterizado pelo ensino de línguas nativas (no caso do Brasil, as dos povos indígenas) concomitantemente ao do português oficial. Porém, mesmo depois de avanços no campo dos estudos da sociolinguística e de estudos como os de Marcos Bagno, em Preconceito linguístico (2013), sobre preconceitos linguísticos, é grande a discriminação por que passam alunos cujo uso cotidiano da língua escapa aos modelos paradigmáticos ensinados nas gramáticas escolares. O aprendizado da norma culta é importante para o desenvolvimento intelectual, profissional, estético de todos os cidadãos o que não deveria representar a desqualificação de outros usos que podem variar de acordo com a região, classe social, dentre outros fatores.

Segundo José Carlos de Almeida (2015), no jornal angolano Sapo, o kimbundu estaria morrendo, pois é cada vez menor o número de falantes da língua, assim como se reduz o número de cantores e compositores que utilizam essa língua nativa em suas obras. Essa constatação aponta para o desaparecimento gradual de algumas culturas que talvez não consigam se manter somente pela oralidade, o que era comum em países da África pré-colonial.

O kimbundu não se mantém como língua literária em Angola, ocorrendo o mesmo com o ronga em Moçambique. Isso não significa que essas literaturas possam ser consideradas de matriz colonial, visto que o uso temático, político, estético, semântico que se faz da língua é construído a partir da localidade de seus autores e das intervenções que estes realizam no português.

Sendo assim, é de grande importância que, ao se ensinar literaturas africanas de língua portuguesa, o professor chame atenção para o fato de que o uso da língua portuguesa pelos africanos não representa uma manutenção da dominação colonial; e que considerar essa literatura como lusófona, representaria manter a imagem de Portugal como tuteladora da cultura e da literatura africana, o que seria um grande erro.

A ideia de uma literatura lusófona não deixa de estar presa ao modelo literário ocidental e suas categorias de universalidade e canonicidade. Fala-se dos países do Ocidente europeu como se suas realidades linguísticas e culturais fossem homogêneas. Moisés de Lemos Martins (2014) chama atenção ao fato de que o Ocidente se construiu sobre a imagem de uma unicidade, preconizada por ideais greco-romanos e judaico-cristãos, e Adriano Carlos Moura (2021) argumenta que a colonização representou, portanto, a expansão não apenas territorial, religiosa, linguística e econômica, mas também literária e cultural, por isso o adjetivo “lusófono” não pode ser utilizado ignorando toda essa abrangência significativa. O Ocidente, assim como espaço lusófono, não é um conceito meramente geográfico e se impôs aos demais povos do planeta como único, não como unificação ou união.

Equívoco semelhante se dá quando o adjetivo “africano” designa de forma homogênea o vasto continente composto por cinquenta e quatro países com línguas, religiões, economias, políticas e culturas completamente distintas, mesmos os colonizados por uma mesma nação europeia.

Advém daí a necessidade de disciplinas como “literaturas africanas” e designações como “literatura lusófona” passarem a especificar a qual país de África ex-colônia de Portugal se referem, para que não se crie a ilusão de que, por exemplo, a literatura que se pratica em Angola é a mesma que se faz em Moçambique, São Thomé e Príncipe, Guiné-Bissau ou Cabo Verde.

Diferente do que ocorria no período colonial, a literatura, seja no âmbito da produção, ficção ou da leitura, deixou de ser privilégio das elites econômicas e culturais. Autores, personagens e leitores são representados por sujeitos oriundos de diferentes grupos sociais, fazendo com que as obras literárias reflitam em termos de língua e linguagem esses universos plurais.

4 O romance como acesso à história das nações africanas

Em trabalho realizado com alunos do sétimo período do Instituto Federal Fluminense, momento em que eles têm contato pela primeira vez com as literaturas africanas no curso da graduação em Letras, notou-se uma concepção bastante estereotipada acerca de África, conforme afirmado anteriormente, com total desconhecimento de sua história, comumente vinculada à relação com o Brasil como “fornecedora” de mão de obra escrava.

Assim como se deu com a literatura romântica brasileira que, mesmo idealizando a nação, contribuiu para construção de uma autoimagem, a literatura angolana e moçambicana escrita depois da independência representa as nações que surgem repensando o passado colonial, projetando o futuro ou interpelando o presente. O moçambicano Mia Couto, por meio de obras como As areias do imperador: mulheres de cinzas (2015) e Terra sonâmbula (2007) expõe ao leitor os conflitos étnicos e políticos de Moçambique no final do século XIX, quando Gugunhana, último imperador do Reino de Gaza, resistia às imposições colonialistas; e os problemas decorrentes da guerra civil que se abatem sobre o povo nos anos seguintes à independência, respectivamente.Mayombe (2013), de Pepetela (2013), é um exemplo angolano de romance escrito concomitantemente à luta que conduziu Angola à independência e retrata o conflito entre um grupo de guerrilheiros que combateram os portugueses na floresta que dá título ao livro. São livros que contribuem para desfazer a ideia de que a dominação portuguesa não teve resistência.

Essas obras são expressão de romance-nação que, segundo Moura (2021), são uma “forma de investigação sobre as nações por meio das literaturas que produzem (…) Não seria nem mesmo um método, mas um ‘modo de ler’ romances cujos problemas da nação são o centro do enredo” (MOURA, 2021, p. 174). Segundo o autor, devido à maior circulação do que a de livros de história angolanos ou moçambicanos, os romances que se incumbiram de narrar as histórias das nações assumem fora do continente a tarefa de permitir o acesso a momentos vividos pelos povos desses territórios sob diferentes perspectivas, visto que, conforme a tese publicada em 2021, o romance-nação é uma obra rizomática, entendendo rizoma na acepção defendida pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), pois composto por diferentes linhas de fuga, bifurcações, conexões de cadeias de múltiplas origens (semiótica, econômica, política etc.). O território da nação é rizomático, pensado sob essa perspectiva não apenas no plano geográfico, pois, segundo formulação de Rogério Haesbaert (2016), se define também natural, política e culturalmente e pela maneira como os grupos de seres humanos se apropriam dele, sendo “múltiplo e relacional, mergulhado na diversidade e na dinâmica temporal do mundo” (HAESBAERT, 2016, p. 16). O romance-nação é, portanto, rizomático, porque também assim é o território da nação.

Os textos oficiais tendem a apresentar pontos de vista limitados e hegemônicos. Considerando a situação colonial e a ditadura salazarista, que impunham censura aos órgãos de imprensa, instituições de ensino, tanto portugueses quanto africanos; foram os escritores que se incumbiram de narrar a nação partindo da realidade ignorada até 1974 por grande parte dos portugueses que estavam alheios ao que se passava no chamado Ultramar. O romance Os cus de Judas (2003), do escritor português António Lobo Antunes, livro de contornos autobiográficos, é um dos relatos mais contundentes do que imaginavam os portugueses que partiam para Angola ou Moçambique pensando que estavam defendendo uma extensão de Portugal. No romance, por meio de um narrador que se encontra na condição de retornado1 vê-se o desmascaramento da mentira contada pelo Estado Novo de que havia um Portugal Ultramarino.

Tais obras se enquadram na condição de narrativa performativa que, segundo Homi Bhabha (2013), narra a nação a partir de vozes até então marginalizadas, contrariando o que ele postula como pedagógico, adjetivo que, em relação a Portugal, teria Os lusíadas como principal exemplo, que “funda sua autoridade narrativa em uma tradição do povo” (BHABHA, 2013, p. 209) pois constrói a imagem ideal de povo heroico, retrato desfeito pela obra de Antunes e dos autores africanos do pós-independência.

As nações supostamente estáveis construídas sobre os pilares do Iluminismo, retratadas em romances históricos, semelhantes ao modelo scottiano2, veem suas estruturas abaladas pelas duas grandes guerras mundiais do século XX. Portugal não se envolveu diretamente nos conflitos da Segunda Guerra Mundial, porém precisou travar suas próprias batalhas quando eclodem os movimentos pró-independência em solo colonial.

Mayombe e Os transparentes são romances que orientam o leitor para duas configurações diferentes de Angola. O primeiro remonta à nação que nasce com a independência; o segundo, à que precisa se reconstruir com o fim da guerra civil e se adaptar às mudanças trazidas pela modernidade da qual ficou apartada durante os anos de dominação portuguesa. São obras que podem ser lidas como romance-nação, pois o país africano visto sob múltiplos ângulos é o protagonista, dando ao leitor, com a performatividade da narrativa, um panorama das mudanças por que passa a nação da independência aos tempos atuais.

5 Considerações finais

Não se pode pensar numa educação que se paute pelo respeito à diversidade enquanto se ignora a história e a cultura dos povos que tiveram papel fundamental na construção da nação brasileira. A África não pode continuar sendo lembrada apenas quando se trata da escravidão dos africanos traficados do continente e seus descendentes. É preciso conhecer as realidades não apenas do período colonial, mas também as dos que o sucedeu, evitando assim uma intepretação anacrônica dessas realidades.

Nesse sentido, este estudo pretendeu apontar a prosa, em especial o romance, como corpus capaz de contribuir para uma educação mais diversificada sobre os países africanos de língua portuguesa devido à abrangência de temas e perspectivas que a ficção permite abordar sem, contudo, prescindir dos estudos dos textos históricos enquanto área de conhecimento.

Em Arte Poética (2004), Aristóteles defende que o historiador escreve sobre o que aconteceu, e o poeta sobre o que poderia ter acontecido. O termo “poeta” se estende metonimicamente aos autores de ficção de um modo geral, já que no tempo do filósofo grego os textos eram escritos em versos. Portanto, o ficcionista narra os acontecimentos por prismas diferentes do historiador, sem que isso se signifique distorção ou mentira, prática mais comum a documentos forjados nos períodos de governos ditatoriais como foi o de Salazar. Acessar a história e a cultura de países africanos através de suas literaturas e estabelecer contato com as verdades que a ficção é capaz de contar, por meio de seus autores e dos personagens que poderiam ter de fato existido, pode permitir ao aluno construir uma imagem menos colonizada sobre África e sua história, o que se pode verificar com os alunos do Instituto Federal Fluminense no final dos períodos em que tiveram contatos com romances de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e textos da crítica pós-colonial.

Referências

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Notas

1 Retornados era a definição dos cidadãos portugueses que precisaram retornar da África para Portugal com o fim da descolonização e independência das colônias.
2 Adjetivo referente a Walter Scott (1771-1832), escritor escocês considerado o criador do romance histórico.

Notas de autor

1 Doutor em Estudos Literários (UFJF). Professor de Língua Portuguesa e Literatura no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: adriano.moura@iff.edu.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): MOURA, A. C. Literaturas africanas de língua portuguesa na sala de aula por uma educação pós-colonial. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 1, p. 104-116, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p104-116. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16311.

COMO CITAR (APA): Moura, A. C. (2022). Literaturas africanas de língua portuguesa na sala de aula por uma educação pós-colonial. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(1), 104-116. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p104-116.

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