Dossiê Temático "Literaturas africanas de língua portuguesa"

O projeto da Mensagem de Luanda e o seu número de estreia

The project of the Magazine Mensagem from Luanda and its premiere issue

El proyecto de la Revista Mensagem de Luanda y su número de estreno

Francisco Topa 1
Universidade do Porto, Brasil

O projeto da Mensagem de Luanda e o seu número de estreia

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 24, núm. 1, 2022

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2022 pelos autores.

Recepción: 22 Septiembre 2021

Aprobación: 18 Febrero 2022

Resumo: Depois de uma introdução sobre revistas literárias do modernismo e sobre as diferenças entre as europeias e americanas e as de África, o artigo aborda o periódico angolano Mensagem, publicado em Luanda em 1951-1952 pela Associação dos Naturais de Angola. Chamando a atenção para alguns dos aspetos da revista que continuam por estudar, o autor acrescenta algumas informações sobre as dificuldades de impressão do segundo número e revê a avaliação histórica não consensual que tem sido feita do periódico. Isto posto, analisa com algum detalhe o primeiro número, detendo-se no projeto da publicação e nos textos aí incluídos. Em conclusão, reconhece o papel decisivo de Mensagem na rutura com a literatura colonial e na afirmação de uma literatura angolana.

Palavras-chave: Mensagem, Angola, Literatura, Modernismo.

Abstract: After an introduction about literary journals of modernism and the differences between European and American ones and those from Africa, the article considers the Angolan periodical Mensagem, published in Luanda in 1951-1952 by the Associaçãodos Naturais de Angola. Drawing attention to some of the aspects of the journal that remain to be studied, the author adds some information about the difficulties of printing the second issue and reviews the non-consensual historical assessment that has been made of the journal. That said, he analyses the first issue in some detail, focusing on the project of the publication and the texts included therein. In conclusion, he recognizes the decisive role of Mensagem in the break with colonial literature and in the affirmation of an Angolan literature.

Keywords: Mensagem, Angola, Literature, Modernism.

Resumen: Tras una introducción sobre las revistas literarias del modernismo y las diferencias entre las europeas y americanas y las africanas, el artículo aborda el periódico angoleño Mensagem, publicado en Luanda en 1951-1952 por la Associaçãodos Naturais de Angola. Llamando la atención sobre algunos de los aspectos de la revista que aún siguen estudiando, el autor agrega algunas informaciones sobre las dificultades de imprimir el segundo número y revisa la valoración histórica no consensuada que se ha hecho de la revista. Dicho esto, analiza con cierto detalle el primer número, centrándose en el proyecto de la publicación y los textos incluidos en ella. En conclusión, reconoce el papel decisivo de Mensagem en la ruptura con la literatura colonial y en la afirmación de una literatura angoleña.

Palabras clave: Mensagem, Angola, Literatura, Modernismo.

1 Introdução

Como é sabido, muitos dos movimentos de rutura estética fizeram o seu aparecimento público através de revistas que a partir de certa altura, por metonímia, passaram a designar o próprio movimento ou a geração por ele marcada. O exemplo mais imediato será o de Orpheu, revista luso-brasileira lançada em Lisboa em 1915, pensada para ter periodicidade trimestral. Circunstâncias várias, a começar pelas de tipo financeiro, ditaram a curta vida da revista, que se limitou a dois números. Apesar disso e da reação (violentamente) negativa da crítica e da opinião pública da época, a revista acabaria por marcar decisivamente o panorama literário e artístico, afirmando assim aquela que ficaria conhecida como geração de Orpheu.

Algo de semelhante aconteceu um pouco por todo o Ocidente, sobretudo no período entre as duas grandes guerras mundiais. Dando continuidade a uma prática que vinha do século anterior, multiplicam-se as revistas literárias que funcionam, de acordo com Clara Rocha, com “um dos mais importantes modos de afirmação dum grupo, geração, movimento ou vanguarda” (ROCHA, 2001, p. 742). Embora marcadas muitas vezes pela efemeridade, constituíam uma alternativa eficaz ao livro, proporcionando a muitos jovens e a escritores ainda não consagrados um contacto com o público que de outro modo seria difícil. Por outro lado, como sublinha ainda Clara Rocha, tais revistas, beneficiando da dinâmica coletiva, funcionam como “Espaço de criação em grupo que obedece a mecanismos próprios de estímulo mútuo, censura e correção, aprendizagem e formação ideológica ou estética” (ROCHA, 2001, p. 742).

No caso de outro país de língua portuguesa, o Brasil, é bem conhecido o exemplo dos periódicos paulistas Klaxon (que publicou nove números entre 1922 e o ano seguinte) e Revista de Antropofagia (com um total de 25 números, divididos em duas fases, entre 1928 e 1929). Em África, publicações desse tipo são mais tardias, destacando-se algumas das então colónias portuguesas pelo seu pioneirismo. É o caso de Cabo Verde, com a revista Claridade, fundada em 1936 (e só extinta em 1966, embora a repercussão mais forte tenha sido obtida com os três números iniciais, publicados entre 1936 e 1937). É o caso também de Angola, com Mensagem, que iremos ver em particular, lançada bem mais tarde, em 1951, com uma periodicidade trimestral que não pôde ser cumprida e cuja atividade se extinguiria no ano seguinte. É o caso ainda de Moçambique, com a folha de poesia Msaho, que publicou um único número em 1952.

Note-se que importantes revistas em língua inglesa apareceram bastante depois: a Black Orpheus surgiu em 1957, na Nigéria, mantendo a sua atividade até 1975, tendo apoiado a fase inicial da carreira de escritores tão importantes como Chinua Achebe ou Christopher Okigbo e dando a conhecer aos leitores de língua inglesa autores africanos que escreviam em francês ou português; a Transition é ainda mais tardia, tendo surgido em 1961, em Kampala, capital de um Uganda que só obteria a sua independência no ano seguinte, tendo-se também destacado pela publicação de jovens escritores, como o já referido Achebe, Ngugi wa Thiong’o ou Nadine Gordimer.

O domínio colonial sobre o continente será a explicação mais imediata para este relativo desfasamento cronológico, em parte compensado pelo aparecimento de publicações periódicas mais ou menos do mesmo tipo em algumas das então metrópoles. Foi esse o caso da Présence africaine, fundada em 1947, em Paris, por Alioune Diop e com periodicidade semestral, e da Mensagem da Casa dos Estudantes do Império, lançada no ano seguinte, em Lisboa, com uma periodicidade irregular que se estenderia até 1964.

O referido lapso cronológico entre as publicações europeias e americanas e as de África explica ainda uma outra diferença: o facto de estas últimas serem mais modernas que propriamente modernistas, no sentido de estarem mais voltadas para a criação ou consolidação de uma outra forma de literatura, que poderíamos genericamente designar como uma literatura africana, e não tanto para a promoção de uma vanguarda estética. Significa isto que as revistas africanas tendem a ter uma preocupação que não é apenas literária e estética, mas que tem também uma dimensão social e política.

2 Mensagem de Luanda

Essa é também uma das características da Mensagem de Luanda, título que seria tomado para designar uma geração literária associada com um momento de rutura e de afirmação decisiva de uma literatura nacional. Apesar disso, e apesar da atenção que a crítica e a historiografia literárias têm dedicado a muitos dos seus colaboradores, Mensagem continua por estudar em muitos dos seus aspetos. Note-se, em primeiro lugar, que, num tempo em que a tecnologia torna essas tarefas relativamente fáceis e baratas, não dispomos ainda de uma edição fac-similada nem de uma versão digitalizada online, o que ajuda a explicar que muitos se pronunciem sobre uma revista que não consultaram, repetindo e consolidando apreciações imprecisas. Por outro lado, há uma série de questões relacionadas com a materialidade da revista que estão por estudar: o grafismo, a cor e o papel, por exemplo, mas também a tiragem, a distribuição, o financiamento e a receção – em Luanda e no resto de Angola, mas também na metrópole e nas outras então colónias.

Tanto quanto julgo saber, as únicas informações de que dispomos sobre algumas destas questões são devidas a Mário António1, num texto em que se começa justamente por chamar a atenção para a importância da investigação rigorosa e documentada:

A História é preguiçosa, no seu ritmo para alcançar a objectividade dos factos. Mesmo quando ou sobretudo quando do passado recente se trata, vivos todos ou quase todos os intervenientes. Alguém lança, de forma bela, uma palavra, uma frase, e se ela corresponde a uma expectativa social, passa a preencher o facto apetecido – torna-se facto. Os apressados historiadores imediatos aceitarão como dado de facto, sem preocupação de análise, o que não é. A memória, tantas vezes incómoda, pode servir para esclarecer. (OLIVEIRA, 1990, p. 371).

Fazendo uma apreciação bastante desfavorável da revista, como veremos mais adiante, informa o autor, a certa altura, que o segundo número da revista tivera uma tiragem de 2.000 exemplares, boa parte dos quais teria sido destruída pela “direcção amedrontada da Associação dos Naturais de Angola”, “para evitar a difusão” (OLIVEIRA, 1990, p. 377). Sugere depois o autor, comentando os obstáculos que o periódico teve de enfrentar, que os condicionalismos se traduziram sobretudo em mecanismos de autorrepressão e de autocensura: “No entanto, não chegou a haver agressão colonial contra a «Mensagem» ou contra a campanha de alfabetização2. Tudo se passou pelos corredores onde se encontravam, com assiduidade, o medo e a repressão.” (OLIVEIRA, 1990, p. 378).

Outra achega fornecida pelo autor de Luanda, ilha crioula diz respeito à receção da revista. Segundo ele,

Sobre «Mensagem» poucas críticas se publicaram. Lembro-me apenas de que o semanário monárquico Debate, de Lisboa, inseriu uma curta nota frisando o pequeno lugar que Portugal tinha na criatividade literária dos jovens angolanos. Sobre a campanha de alfabetização, apenas no diário O Primeiro de Janeiro, do Porto, o General Norton de Matos, na sua habitual colaboração, vigilante sobre a unidade do Império, se manifestou contra o livro escolhido para a campanha, da autoria dum missionário não-português, o P.e Laubach, e utilizando uma língua africana. Em Angola, essas manifestações não tiveram eco, suponho que não alcançando mais leitores do que os que andavam ligados a essas manifestações protonacionalistas. (OLIVEIRA, 1990, p. 378).

Não dispondo de imediato de elementos que me permitam discutir estas informações, chamo contudo a atenção, a título meramente exemplificativo, para uma adenda datiloscrita que acompanha o n.º 2-4 do exemplar de Mensagem pertencente à Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra3. Dirigida “Ao Leitor” e subscrita pelo Departamento Cultural da ANANGOLA, completa a nota intitulada “Justificação” que figura na p. 47 da revista, na qual se explicava a dificuldade de impressão do periódico e a necessidade de recorrer à metrópole dada a incapacidade de resposta da indústria local. A própria nota abre espaço para uma primeira pergunta: estes problemas seriam reais ou resultariam de uma espécie de boicote organizado contra a publicação, antecipando assim o seu encerramento prematuro? A adenda não responde a essa pergunta, mas ilustra, no mínimo, a pequena odisseia que representou a impressão à distância da revista:

Infelizmente da consulta que fizemos a todas as tipografias de Portugal Continental, a tipografia que nos ofereceu mais vantagens económicas foi a Editorial Natura. Confiados na sua honestidade e boa fé entregamos [sic] com a maior confiança todos os nossos trabalhos convencidos de que seriamos [sic] atendidos com a prontidão e perfeição que nos prometeu.

Não queremos a público fazer insinuações, mas nos nossos arquivos poderá ser consultada toda a correspondência trocada entre a Anangola e Natura e por ela cada um poderá fazer o juizo [sic] do que foi para nós a Editorial Natura.

O nosso original foi enviado àquela tipografia em princípios do ano de 1952 e só agora em Janeiro de 1953 foi recebida a Revista, impressa, que mesmo assim vem coalhada de imperfeições como o leitor poderá constatar.

Além de questões como esta – que só em aparência são menores –, há uma série de outras que representa uma lacuna mais difícil de reverter, dado o tempo entretanto decorrido. Importaria tentar reconstituir e avaliar, por exemplo, a rede que sustentou a revista e determinou a escolha de colaboradores e de textos. Interessaria também perceber o modo como essa rede intercetou e foi intercetada por outras redes, ligadas a outras publicações e a outros espaços, a começar pela do periódico homónimo da Casa dos Estudantes do Império. Valeria ainda a pena tentar compreender o modo como o fim da Mensagem de Luanda repercutiu nos seus membros – explicando ou não o diverso alinhamento futuro de alguns deles – e noutros grupos que eles integravam.

Seja como for, enquanto esse trabalho não é feito, podemos pelo menos reler a revista, no sentido de tentarmos encontrar elementos para o esclarecimento de uma questão que não é consensual na historiografia da literatura angolana: a relação de Mensagem com a geração homónima.

Salvato Trigo, um dos primeiros ensaístas a abordar o tema com demora, destaca em A poética da “geração da Mensagem” o papel decisivo da revista na afirmação de uma nova literatura e o facto de as ações repressivas que sofreu não terem conseguido calar os seus ecos, concluindo assim: “E a «missão» que esta tinha a cumprir foi, na verdade, cumprida.” (TRIGO, 1979, p. 73). Não obstante, minoriza mais adiante o papel da revista, reconhecendo no fundo a distância que a separa da geração homónima:

Mas de Mensagem não é o órgão de divulgação cultural que interessa mais. O que foi importante foi o espírito por ela criado. Foi a ruptura que ela assumiu num contexto em que as forças coloniais se desenvolviam com arrogância e em que a literatura colonial proliferava, querendo-se tradutora de uma cultura angolana que de Angola só tinha o facto de ser nela produzida. (TRIGO, 1979, p. 75).

Atitude idêntica é a de Mário António, um dos colaboradores de Mensagem, como é bem sabido. No trabalho atrás referido, cuja primeira versão escrita data de 1981, começa por reconhecer que:

A charneira da metade do século é o tempo em que se passam os acontecimentos relevantes: entre 1948 e 1952, surgiu e logrou sua primeira expressão o movimento literário que representou o primeiro assomo de uma consciência nacional em Angola, em relação ao qual como até agora, o lugar primeiro foi entregue a Viriato da Cruz (…) (OLIVEIRA, 1990, p. 373).

Mas a avaliação que faz de Mensagem é claramente negativa: “Esse primeiro número de «Mensagem» foi quase uma insignificância: pouco nele foi mais significativo do que o título.” (OLIVEIRA, 1990, p. 376). Considerando o periódico como um exemplo do “caldo de ambiguidades que alimentou esta fase de protonacionalismo angolano”, acrescenta que “uma leitura do segundo número da revista não oferece a detecção de uma ideologia coerente” (OLIVEIRA, 1990, p. 377).

Na mesma linha se posicionou Russel Hamilton, que, reconhecendo embora que “a promessa representada por Mensagem era encorajadora” (HAMILTON, 1981, p. 83), escreve: “Certa hesitação, misturada com uma atitude defensiva, acompanhava uma literatura que cautelosa e mesmo subversivamente procurava estabelecer-se em termos de autonomia e autenticidade” (HAMILTON, 1981, p. 81). Os equívocos desta apreciação já foram apontados e comentados por Pires Laranjeira (1995, p. 74), pelo que não se justifica insistir na questão.

Há, no entanto, outros investigadores que têm seguido a mesma linha de leitura. Tal é o caso de Maria Rosa Sil Monteiro, na sua tese de doutoramento, publicada em livro em 2001. Contrariando a ideia que diz estar “praticamente canonizada (…) de que foi a partir da Mensagem de Luanda que se afirmou a denúncia das situações de alienação, de aculturação do colonialismo que encerraram o africano no corpo do preto e da condição de ser Preto” (MONTEIRO, 2001, p. 111), a autora retoma a posição de Mário António e procede a uma análise detalhada do n.º 2-4 da revista, concluindo pela “não consciencialização da «condição de ser Negro» dos Mensageiros da Mensagem de Luanda, e [pel]as confusões que a revista ingenuamente assume” (MONTEIRO, 2001, p. 115). Apesar do acerto da análise, haverá talvez alguma precipitação nas conclusões, parcialmente explicável pelo objeto em análise: diferentemente da sua congénere lisboeta, a Mensagem de Luanda teve o percurso interrompido quase à partida, ficando assim impedida de consolidar o seu projeto; por outro lado, atuando num meio mais pequeno, com recursos mais limitados e impelida a algumas cedências e compromissos, não pôde aspirar aos mesmos voos da sua homónima. Essa é, aliás, a questão que condiciona a avaliação da investigadora: preocupada em provar a prioridade da Mensagem da Casa dos Estudantes do Império – de resto, indesmentível –, aplica as mesmas lentes à revista de Luanda, esperando dela aquilo que ela (ainda) não podia dar. Apesar disso, perante textos de Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz, Alda Lara, Craveirinha ou Noémia de Sousa, vê-se obrigada a reconhecer, de modo um tanto contraditório: “Nem valerá a pena tecer considerações aos textos e às figuras acabadas de referir que cabem, é claro, no espírito desta Mensagem, mas que há muito a tinham ultrapassado ideológica e esteticamente.” (MONTEIRO, 2001, p. 117).

Na falta de outros elementos, chamarei rapidamente a atenção para alguns aspetos do número inicial da revista luandense, que Rosa Sil Monteiro não considerou pelo facto de não ter conseguido aceder-lhe. O meu objetivo é o de mostrar que, apesar de uma linguagem por vezes equívoca e ingénua e de compromissos que nos podem hoje parecer cedências excessivas, há nele um inequívoco espírito de modernidade e de angolanidade.

A primeira nota tem que ver com o facto de o projeto da revista ser apresentado, de modo muito claro, sob quatro formas: o poema da capa, “Mensagem”, de Ermelinda Xavier; o texto “Primeiros passos…” (p. 1), que é uma espécie de editorial; a coluna “O nosso programa” (p. 2); e, por fim, o “Regulamento dos Concursos Literários da Associação dos Naturais de Angola” (p. 5). Vejamos alguns pontos de cada um deles.

Ermelinda Xavier pode não parecer uma escolha natural para a capa de uma revista com os propósitos de Mensagem. Nascida em 1931 e a estudar, na altura, direito em Coimbra, conhecera António Jacinto na então Nova Lisboa, depois de este a ter ouvido ler um poema na rádio4. A posterior opção de vida em Portugal e o seu percurso poético – condensado num volume de 2016, publicado pouco antes da sua morte – mostram o aparente desacerto da escolha, provavelmente feita pelo autor de “Monangamba”. Destaca-se no poema o apelo à união (“Avante, irmão, demos as mãos/ e comecemos a nossa jornada:”); um esboço de programa (“do amor à nossa terra”); e também uma antevisão das reações negativas (“Haverá judeus,/ coroas de espinhos e escarros;/ não faltarão beijos de judas;/ Virá o Calvário…” – MENSAGEM… 1, 1951, capa). Na versão recolhida em livro – que apresenta algumas diferenças significativas, como acontece aliás com outros textos incluídos na revista –, o poema vem datado de 17 de maio de 1950, o que pode indicar uma de duas coisas: ou que não foi escrito para Mensagem ou que, a tê-lo sido, a revista teria sido planeada para sair mais cedo, antes, portanto, de julho de 1951. Seja como for, importa sublinhar a imagética religiosa do poema que edulcora o que poderia haver de revolucionário no “canto moço e ousado” que se proclama. Por outro lado, o recurso frequente a formas verbais com mesóclise (“altear-se-lhes-á”, “dar-lhes-emos”, “Arrastá-los-emos”) é um dos muitos sinais da fragilidade técnica da versejadora.

“Primeiros passos…” utiliza um registo idêntico. Por um lado, há um compromisso claro com Angola: “«MENSAGEM» será, – nós o queremos! – o marco iniciador de uma Cultura Nova, de Angola e por Angola, fundamentalmente angolana, que os jóvens [sic] da nossa Terra estão construindo.” (MENSAGEM…, 1, 1951, p. 1). Por outro, o apelo fraternal continua a ser expresso numa linguagem um tanto equívoca, com um certo tom religioso:

«MENSAGEM» será a síntese de todas as mensagens de amor, de fraternidade e de esperança, que nós, os jóvens [sic] de Angola, dirigimos a todos os nossos irmãos e a todos os jóvens do Mundo, – por que [sic] é na generosidade da Juventude que fundamentamos os nossos anseios. E a Mocidade, a despontar para a Vida, qual botão de rosa a desabrochar em mil promessas de carinho, saberá ouvir-nos; ouvir-nos e compreender-nos; compreender-nos e ajudar-nos. (MENSAGEM…, 1, 1951, p. 1).

Em “O nosso programa”, o tom é claramente mais assertivo:

Urge criar e levar a Cultura de Angola além fronteiras, na voz altissonante dos nossos poetas e escritores; na paleta e no cinzel seguro dos nossos artistas plásticos; ao som dos acordes triunfais da nossa música que os nossos músicos e compositores irão buscar aos férteis motivos que a nossa Terra, grande e maravilhosa, lhes oferece.” (MENSAGEM…, 1, 1951, p. 2).

Junta-se a isso um ambicioso propósito educativo, formulado em linguagem de extração marxista:

É necessário revelar valores ignorados, impondo-os; corrigir hábitos mentais defeituosos; definirmos posições e conceituar a verdadeira Cultura Angolana, livre de todos os agentes decadentes e dirigir a opinião pública para uma corrente sã e estruturalmente valorosa, que quer, pode e há-de impor-se. (MENSAGEM…, 1, 1951, p. 2).

Esse propósito transformador ultrapassa em muito os horizontes da revista, como se percebe mais à frente com a referência a outras iniciativas, como “uma larga campanha para a alfabetização das massas indígenas, no intuito de elevar o seu nível intelectual” ou a “Fundação de escolas primárias, médias e técnicas; e, [sic] profissionais, para a valorização e aperfeiçoamento dos processos de trabalhos [sic] do nosso operário”; ou ainda a “Criação de bibliotecas, salas de leitura e bibliotecas móveis” (MENSAGEM…, 1, 1951, p. 2). Embora muitas destas iniciativas tenham ficado por concretizar, é a própria revista quem dá conta do sucesso de uma delas: o dispensário-creche construído pela ANANGOLA, a que são dedicadas três páginas e as únicas fotos deste número inaugural.

O último dos textos em que se dá conta do projeto da revista é o Regulamento dos concursos literários. Determina o seu ponto 8 que “As composições poéticas, de todos os géneros e escolas, deverão ser de tema ou inspiração angolana.” (MENSAGEM…, 1, 1951, p. 5). Todos sabemos – e os promotores do concurso também o sabiam – que uma literatura nacional não se define por um conjunto de temas e que é possível fazer literatura angolana sem que o tema ou a inspiração sejam angolanos. De qualquer modo, em conjunto com os outros quatro textos programáticos, também este regulamento mostra um propósito claro de afirmação de Angola, da sua cultura e da sua literatura.

Quanto ao resto da revista, creio que há apenas um texto que se afasta dessa orientação: “A colonização e o «Exército da Resistência»”, de Agnello Paiva, vice-presidente da ANANGOLA. Publicado certamente por razões de equilíbrio de correntes internas dentro do grupo, exalta a colonização portuguesa da Huíla e destaca o papel dos primeiros colonizadores, que teriam sabido enfrentar as dificuldades, apesar da falta de apoio do estado. O apelo final revela com clareza a orientação política do autor: “Na esperança dos grandes dias, relanceemos o olhar para o passado e firmemos afincadamente os pés na terra, que é nossa, a fim de podermos continuar a luta, nimbada de lusitanidade, e fazermos ouvir a nossa voz, quando ela tiver de gritar: Aqui é Portugal!” (MENSAGEM…, 1, 1951, p. 3).

Há também alguns poemas com escasso interesse para o projeto de Mensagem exposto nos textos programáticos (como um soneto de Manuel José Jeremias, na p. 10, ou uma composição de Lília da Fonseca, na p. 12), mas eles são minoria num conjunto que inclui, por exemplo, dois poemas de Viriato da Cruz que viriam a tornar-se emblemáticos: “Mamã Negra” (p. 4) e “Namoro” (p. 7). Publicados em página inteira – o que é sintomático, até pelo facto de evitar ‘partir’ os versos muito longos, tornando mais visível a radicalidade da proposta rítmica –, tais poemas ilustram bem dois dos caminhos do projeto da revista: por um lado, um impulso universalista, que em “Mamã Negra” assume uma dimensão negritudinista; por outro, uma dimensão local, intimista, dando conta de um processo de crescimento de um sujeito – como homem capaz de seduzir, sem intermediários nem ‘truques’, uma mulher, mas também como membro de uma sociedade de classes.

Temos ainda “Desfile de sombras” (p. 12), de Agostinho Neto, que, na sua linguagem metafórica, anuncia um tempo de luta que devolva a forma humana às sombras: “Às que hão-de vir/ mostrarei essas cadeias quebradas/ e com elas repartirei/ o meu desejo de ser onda/ neste desfile dos tristes/ que se perdem.” Mais claro ainda é o anúncio de Antero Abreu em “Uma canção de Primavera” (p. 10): “E ainda vejo que ninguém mais vê:/ Vejo a flor a desenhar-se em fruto./ E quer ela o dê, quer não dê,/ É esse o fim por que luto.”

Noutro registo, há textos em prosa que acompanham essa orientação, como é o caso da primeira parte de um artigo de Mário Pinto de Andrade sobre o kimbundu (p. 6) e um excerto de “Uanga”, de Óscar Ribas. Parecendo uma simples revisão bibliográfica, o primeiro é importante pelo facto de evidenciar o muito que já se tinha escrito, e quase sempre por linguistas estrangeiros, sobre uma das línguas nacionais de Angola, ao mesmo tempo que se apontam as lacunas no seu estudo. Quanto ao segundo, o interesse está sobretudo no sinal que dá quanto à necessidade de valorizar a cultura tradicional, recolhendo e estudando as suas manifestações.

3 Considerações finais

Terminado este breve percurso pelo número inaugural de Mensagem, creio que ficou bem demonstrado o equívoco de Mário António ao considerá-lo pouco mais que uma insignificância. É que, além daquilo que é imediatamente legível, 70 anos depois, porque está escrito num código grafemático que nos é comum – e isso é muito, como espero ter deixado claro –, há uma série de outros sinais que o tempo passado nos impede de ver. Talvez precisemos de passar pela bonita experiência de que nos fala a classicista, romancista e cronista espanhola Irene Vallejo num texto recente:



He aprendido a leer por segunda vez. A través de los ojos de mi hijo, he revivido aquel asombro ante el misterio intacto de las letras, el esfuerzo del desciframiento, la tarea lenta y balbuciente de ordeñarles su sentido a las palabras. Mis labios han vuelto a silabear mientras su lengua iba desenmarañando los sonidos ocultos en los signos. No es tarea fácil arrebatar las páginas al silencio. De niña no fui consciente, pero ahora me ha fascinado la operación tan extraña, sinestésica y mestiza que implica enseñar a los ojos a escuchar.

Referências

HAMILTON, R. G. Os descobridores de Angola. In: Literatura africana literatura necessária. Lisboa: Edições 70, 1981. v. 1: Angola.

LARANJEIRA, P. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Com a colaboração de Inocência Mata e Elsa Rodrigues dos Santos. Lisboa: Universidade Aberta, 1995.

MENSAGEM: a voz dos naturais de Angola. Luanda: Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola, 1 jul. 1951.

MONTEIRO, M. R. R. V. S. C. E. I. Celeiro do sonho: geração da “Mensagem”. Braga: Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2001.

OLIVEIRA, M. A. F. Memória de Luanda (1949-1953): «Vamos descobrir Angola!». In:Reler África. Apresentação, rev. e nota biobliográfica por Heitor Gomes Teixeira. Coimbra: Instituto de Antropologia da Universidade, 1990.

ROCHA, C. Revista (em Portugal) In: Biblos. Lisboa: Editorial Verbo, 2001. v. 4. cols. 740-746.

TRIGO, S. A poética da “geração da Mensagem”. Porto: Brasília Editora, 1979.

VALLEJO, I. Te leo como un libro. El País, 28 ago. 2021. Disponível em: https://elpais.com/eps/2021-08-28/te-leo-como-un-libro.html?event_log=oklogin. Acesso em: 7 set. 2021.

XAVIER, E. Barro e luz [Poesia completa]. Porto: UNICEPE, 2016.

Notas

1 Oliveira, 1990, p. 371-383, texto que retoma uma palestra feita em 1977 e uma publicação em revista datada de 1981 (Luso-Brazilian Review, XVIII).
2 Um dos propósitos do Departamento Cultural da Anangola, de que se falará mais à frente.
3 Cota: 10-11-14-50.
4 Parte da informação é avançada por Mário António (Oliveira, 1990, p. 376), tendo sido depois ampliada por Rui Vaz Pinto (XAVIER, 2016, p. [8]).

Notas de autor

1 Doutor em Literatura pela Universidade do Porto (UP), Portugal. Professor Associado do Departamento de Estudos Românicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto – Porto – Portugal. E-mail: franctopa@gmail.com.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): TOPA, F. O projeto da Mensagem de Luanda e o seu número de estreia. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 1, p. 34-43, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p34-43. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16312.

COMO CITAR (APA): Topa, F. (2022). O projeto da Mensagem de Luanda e o seu número de estreia. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(1), 34-43. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p34-43.

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