Dossiê Temático: “A pesquisa em Educação Profissional e Tecnológica: temas, abordagens e fontes”

Relatório de Estágio Técnico na perspectiva dos gêneros discursivos: produção, reprodução e subversão

Technical Internship Report from the perspective of discourse genres: production, reproduction and subversion

Informe de Prácticas Técnicas desde la perspectiva de los géneros del discurso: producción, reproducción y subversión

Gilson Allefy Chaves da Silva 1
Faculdade Metropolitana de Manaus (Fametro), Brasil
Deuzilene Marques Salazar 2
nstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM), Brasil

Relatório de Estágio Técnico na perspectiva dos gêneros discursivos: produção, reprodução e subversão

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 24, núm. 2, 2022

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2022 pelos autores.

Recepción: 13 Febrero 2022

Aprobación: 11 Julio 2022

Resumo: No campo da Educação Profissional e Tecnológica (EPT), uma das manifestações da linguagem comumente vistas são os relatórios de estágio técnico, tido muitas vezes apenas como um documento de registro narrativo-descritivo. Em uma visão mais ampla, este estudo objetiva discutir a potencialidade do Relatório de Estágio Técnico como um gênero discursivo, problematizando as perspectivas formativas direcionadas a ele e a relevância delas para o desenvolvimento politécnico dos discentes. Trata-se de uma pesquisa documental cuja fonte principal foi o roteiro de elaboração do relatório de estágio adotado pelo IFAM Campus Manaus Centro. Mediante a análise interpretativa, delineou-se um diálogo com teóricos, a partir do qual verificamos que a perspectiva formativa, presente no roteiro de elaboração analisado, pouco se aproximou dos princípios formativos da politecnia. Em contrapartida, discutimos a potencialidade do referido gênero sob as dimensões Composição, Conteúdo temático e Estilo, evidenciando um instrumento capaz de subverter o espaço social no qual está inserido. Apresentamos ainda uma proposta de produto educacional alicerçado na articulação Politecnia e Gêneros Textuais.

Palavras-chave: Politecnia, Linguagem, Educação Profissional e Tecnológica, IFAM.

Abstract: In the field of Professional and Technological Education (EPT), one of the manifestations of language commonly seen are technical internship reports, often seen as a narrative-descriptive record document. In a wider view, this study aims to discuss the potential of the Technical Internship Report as a discursive genre, questioning the formative perspectives aimed at it and their relevance for the polytechnic development of students. This is a documentary research whose main source was the script for the preparation of the internship report adopted by IFAM, Campus Manaus Centro. By using the interpretive analysis, a dialogue with theorists was outlined, from which we verified that the formative perspective present in the analyzed elaboration guide hardly approached the formative principles of polytechnics. On the other hand, we discuss the potential of this genre under the dimensions Composition, Thematic Content, and Style, showing an instrument capable of subverting the social space in which it is inserted. We also present a proposal for an educational product based on the articulation between Polytechnics and Textual Genres.

Keywords: Polytechnics, Language, Technical and Vocational Education and Training (TVET), IFAM.

Resumen: En el campo de la Educación Profesional y Tecnológica (EPT), una de las manifestaciones del lenguaje comúnmente vista son los informes de pasantías técnicas, a menudo vistos como un documento de registro narrativo-descriptivo. En una visión más amplia, este estudio tiene como objetivo discutir el potencial del Informe de Prácticas Técnicas como género discursivo, cuestionando las perspectivas formativas que le apuntan y su relevancia para el desarrollo politécnico de los estudiantes. Se trata de una investigación documental cuya fuente principal fue la guía para la elaboración del informe de prácticas adoptado por el IFAM, Campus Manaus Centro. A través del análisis interpretativo se esbozó un diálogo con teóricos, a partir del cual comprobamos que la perspectiva formativa, presente en la guía de elaboración analizada, apenas se acerca a los principios formativos de los politécnicos. En contrapartida, discutimos el potencial de este género bajo las dimensiones Composición, Contenido temático y Estilo, mostrando un instrumento capaz de subvertir el espacio social en el que se inserta. También presentamos una propuesta de producto educativo basado en la articulación entre Politecnia y Géneros textuales.

Palabras clave: Politecnia, Lenguaje, Educación Profesional y Tecnológica, IFAM.

1 Introdução

Os estudos relacionados ao campo da linguagem são um terreno fértil para inúmeras abordagens, haja vista carregarem percepções globais que se articulam a diversos objetos de estudo, promovendo importantes reflexões capazes de impulsionar novos olhares. Nesse sentido, caminhamos em direção ao que se denominam gêneros discursivos, vertente de análise característica da seara linguística, inclinando-nos sobre o espaço construtivo do Relatório de Estágio Técnico de nível médio – instrumento de expressiva relevância para a modalidade da Educação Profissional e Tecnológica (EPT).

Dentro dessa esfera de pensamento, destacamos o caráter sociodiscursivo dos gêneros, movendo-nos tanto para os aspectos que dialogam com as manifestações diretas da linguagem, quanto para aqueles que, por influência dos primeiros, nos permitem pensar e evidenciar também a natureza emancipatória da formação politécnica. Essa, por sua vez, é tratada neste texto sob a perspectiva marxiana, pedagogizada por estudiosos que se debruçaram sobre a obra do autor e que, no decorrer do tempo, reuniram bases conceituais cujo viés crítico-social se interrelaciona à definição de gêneros do discurso sobre a qual versaremos.

A partir disso, este estudo objetiva discutir a potencialidade do Relatório de Estágio Profissional como um gênero discursivo, problematizando as perspectivas formativas direcionadas a esse instrumento e a relevância delas para o desenvolvimento politécnico dos discentes. Tal olhar será dirigido para o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM), lançando mão de uma análise cujo ponto de partida será a estrutura e o Roteiro de elaboração do Relatório de Estágio adotados no Campus Manaus Centro do referido instituto.

Trata-se de uma pesquisa documental (MARCONI; LAKATOS, 2003), considerando que a fonte de coleta de dados restringiu-se a dois documentos de natureza primária: a estrutura e o roteiro de elaboração do Relatório de Estágio (2021). Por sua vez, nossa análise e interpretação das informações coletadas caminhou para o que Severino (2013) denomina de Análise interpretativa, na qual estabelecemos um diálogo com o pensamento de estudiosos da linguagem e da EPT brasileira: Bakhtin (1997), Marcuschi (2008) e Wachowicz (2012), bem como a Saviani (2003), Frigotto (2009) e Moura (2013), respectivamente.

A necessidade de relacionar duas bases de estudo – os gêneros textuais e a politecnia – se justifica pelas contribuições que elas carregam em suas gêneses e que, de forma coerente, demonstram transgressões (no sentido stricto sensu) relevantes para a área educativa. Dessa forma, salientamos o gênero relatório como um instrumento proveniente da ação humana capaz de produzir, reproduzir ou subverter o espaço social no qual está inserido, estando essa última característica problematizada no horizonte da politecnia.

Para tanto, o texto está dividido em 4 seções principais. A primeira visa a uma compreensão formativa acerca do estágio técnico, buscando evidenciá-lo como espaço de construção da formação omnilateral. A segunda se dedica a uma análise dos instrumentos orientadores adotados pelo IFAM no que tange à produção do relatório. Nessa, articulamos de modo crítico as orientações preconizadas pelo IFAM e os fundamentos da politecnia, problematizando o relatório com base na necessidade de uma formação politécnica.

A terceira seção deste texto se constrói mediante o diálogo com autores que argumentam sobre o estudo dos gêneros discursivos, frisando-os como estruturas histórica e socialmente situadas. Dessa maneira, procuramos demonstrar a relação entre a formação politécnica e os gêneros do discurso, a fim de pensar (e por que não repensar?) o relatório de estágio como um texto capaz de superar o modus operandi e subverter a reprodução de meros elementos descritivos e unilaterais que ainda persiste nos cursos técnicos de nível médio do IFAM.

Finalmente, a última seção apresenta uma proposta de material educativo que carrega em seu cerne a construção do relatório de estágio técnico para os cursos de nível médio. Trata-se do produto educacional denominado “Travessia”, estruturado a partir de seções alinhadas à perspectiva dos gêneros discursivos e às bases que sustentam a politecnia. Desse modo, ao fim do texto, expomos uma ferramenta com potencial para contribuir com o processo de construção do relatório de estágio técnico, dando voz aos discentes, com o intuito de contribuir com as limitações formativas impostas a eles.

2 Estágio Técnico Profissional: um espaço para a politecnia?

Os cursos técnicos nos Institutos Federais brasileiros apresentam em suas matrizes curriculares o componente “Estágio Profissional Supervisionado”, ou denominações similares a esta. Esse componente curricular, que possui elevado grau de importância na formação discente, é muitas vezes encarado como mera etapa de cumprimento para a finalização do curso, ou como um período de experiência prática que visa, quase exclusivamente, à profissionalização do educando.

De outro modo, a EPT carrega em seu bojo conceitual uma base teórica e política que caminha num sentido diferente do pensamento unilateral. Nesse caso, cabe destacarmos a distinção entre a formação unilateral e a formação omnilateral: a primeira é centralizada na manutenção das forças produtivas, inclinando-se para a subsunção ao capital (MOURA, 2013); a segunda, por sua vez, visa ao desenvolvimento amplo do sujeito, evidenciando as potencialidades do conhecimento teórico-prático, crítico-reflexivo e sócio-histórico de cada cidadão (RAMOS, 2008). Dessa forma, considerando a importância e a necessidade de um olhar voltado às bases da EPT, compreendemos o Estágio Técnico como um espaço formativo capaz de integrar diferentes dimensões do conhecimento articuladas ao mundo do trabalho.

Visto assim, o Estágio acaba se revelando um caminho possível para o que se denomina de formação politécnica, mas não aquela cuja etimologia sugere a multiplicidade de técnicas para o desenvolvimento de um profissional com um leque de habilidades diversificadas, e sim, a que carrega na essência os princípios de uma educação destinada a despertar o cidadão atuante e crítico (SAVIANI, 2003). Contudo, a complexidade do conceito politécnico vai além desse horizonte e, por essa razão, nosso texto passa a diluir os aspectos característicos e necessários para o entendimento da politecnia e da sua relação com o estágio no contexto da EPT.

Tomando como ponto de partida o pensamento marxiano sobre a omnilateralidade, observamos que a educação profissional brasileira se sustenta em constantes lutas em prol de uma educação cuja diretriz evidencie a integralidade formativa (MOURA, 2013). Nessa trajetória, é possível analisar os caminhos conceituais análogos à concepção omnilateral nas correntes da Escola Unitária e da Formação Humana Integral (GRAMSCI, 2001) e da Politecnia (PISTRAK, 2011). Elas, apesar de não serem sinônimas, “pertencem ao mesmo universo de ações educativas quando se fala em ensino médio e em educação profissional” (CIAVATTA, 2014, p. 188). Para este texto, situaremos nosso debate no conceito de formação politécnica, e, a partir dele, discutiremos determinadas questões centrais acerca do estágio e, posteriormente, aprofundaremos o processo construtivo do gênero textual Relatório.

De início, passaremos a problematizar a perspectiva da profissionalizaçãoque recai sobre a finalidade do estágio técnico, tendo em vista que ela se destaca como uma das principais visões que se têm sobre ele, sobretudo dentro do IFAM Campus Manaus Centro. Nesse caso, a crítica que fazemos se refere à associação entre o estágio e a concepção exclusivamente profissionalizante, na qual se desconsidera, ou pelo menos coloca em segundo plano, a relevância dos demais tipos de conhecimentos possíveis de serem desenvolvidos pelo estudante em sua experiência.

Tal ótica carrega em si a divisão social do trabalho, tendo de um lado a técnica manual e, do outro, o pensamento intelectual. Sobre essa dicotomia, Saviani (1989, p. 14) nos diz que: “nesta concepção, que se baseia na divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, na divisão entre proprietários e não proprietários de meios de produção, o trabalhador detém apenas a sua força de trabalho”. Desse modo, ao restringir o estágio técnico a um único ramo de aprendizagem, sobretudo o da aprendizagem técnica, manual, braçal, estamos reproduzindo e perpetuando uma conjuntura social segregadora, desigual.

Na mesma direção da crítica observada, outro aspecto que deve ser problematizado é a preparação do estudante para o mercado de trabalho. Essa se destaca por ter se incorporado ao senso comum relativo ao estágio, especialmente pela venda do discurso que exalta a experiência do estudante em um espaço laboral como forma de prepará-lo diferenciadamente para os interesses do mercado. Nessa linha, o estagiário se destacaria por estar “mais qualificado” ao trabalho, enquanto aqueles cuja experiência prática não se efetivou estariam fadados ao “simplório” conhecimento teórico.

Todavia, nesse discurso está implícito um fator que precisa ser revisto: o de que o estudante deveria se profissionalizar da melhor forma possível para suprir a mão de obra existente no mercado, o que de fato é uma realidade evidente no Brasil. Ocorre, no entanto, uma falsa ideia de oportunidade para o jovem, capaz de sujeitá-lo a um terreno de exploração da sua capacidade produtiva, haja vista a necessidade de ele precisar buscar sua mínima condição financeira. Tal cenário é cada vez mais recorrente em nosso país, sobretudo pelo alto índice de desempregados, que no 3.º trimestre do ano de 2021 atingiu 13,7 milhões, segundo o levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2021).

Diante dessa problemática, é oportuno refletir a respeito do desenvolvimento do estágio técnico sob o ponto de vista da politecnia, conceito que, segundo Ciavatta (2014, p. 189), detém “[…] um sentido político, emancipatório, no sentido de superar, na educação, a divisão social do trabalho […] e formar trabalhadores que possam ser, também, dirigentes, no sentido gramsciano”. Logo, não se trata de capacitar o estudante exclusivamente como um multiprofissional que reúne inúmeros conhecimentos técnicos para se destacar no mercado. Trata-se de promover um processo educativo que proporcione ao educando a integração entre a ciência, a tecnologia, a cultura e o trabalho (RAMOS, 2008).

Dentro dessa visão, destacamos ainda o sentido crítico que precisa estar presente durante o processo formativo do discente, pois é essencial que ele compreenda o contexto do qual é ativo participante. Afinal, deslocado da realidade em que está inserido, não será possível uma transformação significativa; a mudança deve ocorrer tanto fora quanto dentro do sujeito, observando-se as articulações entre os conhecimentos adquiridos. Nesse caso, é relevante esclarecer que tais conhecimentos não se referem a um conjunto de conteúdos relacionados a um leque de disciplinas, mas sim da práxis que deve fundamentar o homem para que este não se torne um indivíduo fragmentado (FRIGOTTO, 2009).

A politecnia, nessa dinâmica, desperta um propósito político-pedagógico imprescindível para a EPT, sobretudo se considerarmos os desafios atuais decorrentes das crises causadas por acontecimentos recentes (como a pandemia da covid-19), ou de determinados projetos unilaterais que já vinham sendo engendrados há tempos em nosso país (como as Medidas Provisórias destinadas ao Novo Ensino Médio). Logo, não é exagero dizer que a formação politécnica – integral/omnilateral – precisa continuar lutando por um espaço expressivo no campo educacional, mirando as barreiras impostas por um sistema que fincou raízes no ensino e que é capaz tanto de propagar ideologias excludentes quanto de efetivá-las nas mais variadas esferas da sociedade.

Desse modo, amparados nas reflexões e discussões aqui realizadas, observamos que o estágio profissional dos cursos técnicos, mesmo com potencial para suster princípios da politecnia, acaba se revelando um terreno que reproduz muito da visão limitadora, isto é, que repercute as intenções de uma educação não integrada, não emancipatória, em detrimento da formação ampla, multidimensional, crítica e ontocriativa. Sob essa percepção, buscaremos direcionar nossas questões de maneira associada ao nosso objeto de análise – o relatório de estágio –, demonstrando nossas concepções a partir de elementos mais tangíveis desse referido instrumento.

3 Relatório de Estágio Técnico: produção e reprodução?

O relatório de estágio técnico, do ponto de vista institucional, é comumente tomado como um trabalho de conclusão de curso que narra e descreve as experiências de um determinado período de atividade profissional. Contudo, ao refletirmos sobre o seu processo construtivo, percebemos que sua produção está associada com o tipo de perspectiva formativa que a sustenta. Dessa forma, mesmo que a essência construtiva do relatório técnico seja narrar e descrever atividades desenvolvidas em um dado ambiente de trabalho, é possível que ele textualize e, até mesmo, potencialize aspectos de uma formação multidimensional sustentada por um viés crítico.

Nessa perspectiva, é possível indagarmos: em que medida o modelo de relatório adotado pelo CMC/IFAM dispõe de elementos que contribuam para o desenvolvimento politécnico do estudante?

Para responder a esse questionamento, precisamos considerar que o referido campus adota dois documentos para nortear a produção do relatório: o primeiro se refere a um modelo global que serve como um template para os discentes; o segundo, é um roteiro de elaboração que orienta o estudante sobre quais informações inserir em cada seção textual. Esses dois documentos, por sua vez, serão avaliados a partir desta seção sob o olhar crítico dos fundamentos da formação politécnica, sem adentrarmos diretamente na concepção de gêneros discursivos, ao passo que essa discussão será adensada na seção posterior.

A princípio, entendemos que todo instrumento de natureza documental apresenta uma macroestrutura, seja ela semelhante ou estritamente distinta dos demais tipos de documentação. Nessa linha, o modelo de relatório do CMC/IFAM traz na sua macroestrutura a divisão que é constantemente denominada de: elementos pré-textuais, elementos textuais e elementos pós-textuais – organização similar ao que se vê em diversos gêneros da esfera acadêmica. Todavia, para esta análise, vamos nos concentrar apenas nos elementos textuais, tendo em mente que eles carregam de fato o corpo do relatório, destacando para isso a seguinte composição interna: introdução, desenvolvimento e conclusão.

Diante disso, observamos que o modelo/template do CMC/IFAM não apresenta informações direcionadas à escrita do relatório, estando elas localizadas no Roteiro de Elaboração. Dessa forma, compreendemos que ambos são interdependentes, contudo o grau de descritibilidade do roteiro é incontestavelmente maior, pois, além de trazer as seções presentes no modelo, ele ainda busca detalhar o conteúdo de cada uma delas.

Em primeira análise, nosso olhar se volta para a seção “Introdução”, na qual, de acordo com o roteiro, deve-se caminhar por quatro orientações principais de produção (Figura 1), em conformidade com o texto original.

Roteiro para elaboração do relatório final: ampliação da seção Introdução
Figura 1.
Roteiro para elaboração do relatório final: ampliação da seção Introdução
Fonte: Adaptado de Silva e Salazar (2021)

As recomendações descritas em quatro tópicos da introdução se voltam, de modo geral, para aspectos informacionais relativos ao processo de contratação do estudante – desde o encaminhamento do estagiário à empresa, até a natureza burocrática dos documentos exigidos. Além disso, são solicitadas descrições com foco na instituição contratante, tais como instalações, infraestrutura e área de atuação. Por fim, orienta-se o discente a explicar “o objetivo do relatório e descrever em linhas gerais as atividades” que serão relatadas no desenvolvimento.

O que se percebe no caráter injuntivo para a seção introdutória é uma tendência pouco exploratória de aspectos que poderiam tornar a construção do relatório mais ampla. Em outras palavras, a introdução poderia contribuir com a apresentação global dos elementos do estágio, mas também expor um caminho dissertativo que superasse o olhar unilateral do estudante. Assim, o relatório suplantaria o modus operandi presente no roteiro de elaboração.

Na sequência da macroestrutura do relatório, podemos observar a seção denominada de “Desenvolvimento”, a qual exige maior complexidade organizativa, se comparada com a “introdução”. Ela é a principal responsável por apresentar as informações de maneira mais densa, detalhada e articulada. Para tanto, vemos no roteiro de elaboração do IFAM algumas orientações que, de certo modo, não avançam para um sentido amplo (Figura 2).

Roteiro para elaboração do relatório final: ampliação da seção Conclusão
Figura 2.
Roteiro para elaboração do relatório final: ampliação da seção Conclusão
Fonte: Adaptado de Silva e Salazar (2021)

A descrição contida no roteiro enfatiza o relato das atividades realizadas pelo discente, considerando o que foi desenvolvido na empresa na qual ele atuou. É oportuno observar os elementos próprios da tipologia narrativa que o roteiro destaca, isto é, “o que o estagiário fez”, “como fez”, “quando fez” e “onde fez”. Outra orientação se dirige para o uso da linguagem técnica na produção do texto e o alerta para que não ocorram reproduções explícitas de outras obras, o que implicaria plágio.

Neste ponto, queremos destacar que o roteiro se concentra em instruções pouco estimuladoras e, de certo modo, mecânicas, o que não faz jus à complexidade que a seção de desenvolvimento requer. Nessa esteira, também é notória a perspectiva da neutralidade, principalmente pelo fato de os direcionamentos se limitarem a uma organização de elementos textuais que não visam o “porquê” das atividades realizadas no ambiente de trabalho. Ora, ao nosso ver, a fecundidade das experiências vividas no mundo do trabalho permite que o estudante supere suas percepções básicas, isto é, desenvolva reflexões acerca do espaço formativo do estágio, sem ficar preso a uma razoabilidade discursiva. Desse modo, conduzir o educando à neutralidade esvaziada de sentido é, pois, uma forma de não dar voz a ele; é contribuir com a manutenção de um sistema acrítico.

A última seção textual do relatório recebe o nome de “conclusão”, dada a natureza de fechamento do texto. Tal espaço, ao contrário da “introdução”, se volta para o encerramento do trabalho, retomando informações, situações, descrições e relatos que foram vistos no decorrer do relatório, com a finalidade de apontar possíveis constatações da experiência. Visto assim, podemos analisar as recomendações do Roteiro de produção (Figura 3).

Roteiro para elaboração do relatório final: ampliação da seção Conclusão
Figura 3.
Roteiro para elaboração do relatório final: ampliação da seção Conclusão
Fonte: Adaptado de Silva e Salazar (2021)

Segundo se pode notar, a Conclusão é marcada por um tom mais pessoal, permitindo ao estudante escrever sobre sua visão acerca do curso, da empresa em que atuou e ainda sobre o estágio propriamente dito. Surge também o aspecto relacional, no qual o estudante pode se direcionar a um cenário hierárquico. Finalmente, o roteiro orienta para que o estagiário se posicione “criticamente” a respeito da experiência profissional e, nesse contexto, analise seu “aproveitamento”, sua “capacidade profissional” e sua perspectiva sobre o que é denominado “mercado de trabalho”.

Entendemos que as recomendações destinadas à Conclusão suscitam em dado momento um posicionamento importante para potencializar o senso crítico do estudante. Esse espaço dialógico do relatório, apesar de não ser recomendado nas seções introdutórias e de desenvolvimento, é bastante relevante para a valorização do contexto da experiência de estágio e das próprias relações de trabalho. Todavia, o roteiro também ressalta uma visão dependente de outros interesses, especialmente quando sugere que o estagiário realize uma “autoanálise” da sua capacidade profissional e de sua perspectiva para o mercado de trabalho.

Essa última observação presente no roteiro parece deixar em segundo plano o olhar do estudante para o todo vivenciado, limitando-o a um painel específico: o mercado profissional. Nesse caso, a concepção de formação politécnica é encoberta pela necessidade de formar um trabalhador com função restrita em vez de um cidadão integral. Além disso, de maneira velada, há uma cobrança para que o estudante consiga estar apto à futura profissão.

Afastar-se do modus operandi entalhado na cultura dos cursos técnico-profissionais, especialmente no que concerne à produção dos Relatórios de estágio, é tarefa complexa. A herança da profissionalização com o fim de atender ao mercado de trabalho é latente em nosso país, sobretudo pela desigualdade social que segrega a classe trabalhadora dos detentores do capital. Essa relação de dependência fica explícita quando analisamos o caminho construtivo do relatório de estágio adotado no Campus Manaus Centro do IFAM.

Os estudantes dos cursos técnicos, de modo geral, são orientados a produzirem um texto carregado de descrições meramente informacionais, sendo que elas deveriam ser apenas o início da sistemática estrutural do gênero relatório. Em face disso, o relatório passa a ser visto como uma simples produção textual para o cumprimento do curso, mas, por trás dessa ótica, ele também se torna um reprodutor das dicotomias que fortalecem a segregação social e que contribuem para a fragmentação do homem.

Sendo assim, sob qual prisma teórico o relatório poderia ser compreendido para evidenciar elementos de uma formação ampla, crítica e emancipatória, tendo como base a politecnia?

4 Relatório de Estágio Técnico sob a perspectiva dos gêneros discursivos: subversão?

Até aqui, analisamos a sequência textual do roteiro de produção adotado IFAM para a construção do relatório, considerando a perspectiva formativa presente nas orientações preconizadas pelo Instituto. Nesse percurso, problematizamos determinados aspectos do modelo de elaboração, evidenciando neste a pouca aproximação com os fundamentos que dão base à educação politécnica, conceito político-pedagógico compreendido como um dos caminhos possíveis para a EPT.

Agora, propomos um olhar direcionado ao estudo dos gêneros discursivos, na tentativa de enxergar o relatório de estágio sob um viés que se preocupa com o aspecto identitário e estrutural do referido instrumento, mas não se limita a isso, ao passo que visa ao plano contextual das experiências e das representações do homem na sociedade. Para tanto, começaremos pela definição de gêneros do discurso, apoiando-nos na visão clássica de Bakhtin (1997), segundo o qual são enunciados elaborados nas variadas esferas de utilização da língua, apresentando-se de maneira relativamente estável.

Bakhtin (1997), nessa proposição genérica, nos fornece duas informações fundamentais: a primeira é a noção de “esferas de utilização da língua”. Nessa, o autor intenciona evidenciar a importância de compreender o contexto e as condições de uso de cada gênero, afinal, eles não podem ser tomados como estruturas meramente instrumentais desvinculadas de um todo significativo. Na segunda, a “estabilidade relativa dos gêneros”, Bakhtin supõe uma identidade que caracteriza o gênero discursivo, mesmo que eles variem em menor ou maior grau. Tal identidade é sistematizada pelo autor como: construção composicional, conteúdo temático e estilo.

Essas três dimensões, ou elementos, “fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação” (BAKHTIN, 1997, p. 280). Nessa perspectiva, o autor ainda complementa da seguinte forma: “cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (BAKHTIN, 1997, p. 281). Baseados nessa última compreensão, cabe estabelecer uma relação direta com o relatório de estágio, antes de progredirmos para outras questões.

Tomando como fio condutor as mudanças históricas pelas quais a EPT passou, é natural identificarmos diversas alterações que ocorreram no sistema escolar. Tais mudanças se tornaram expressivas tanto no plano ideológico que sustenta a EPT, quanto de modo específico nos processos formativos. Desse modo, não estaria o próprio Relatório de estágio inserido nesse panorama de inúmeras modificações?

Ora, se no passado a visão tecnicista advinda do intenso processo de industrialização promovia uma formação estritamente profissionalizante, hoje, precisamos refletir sobre o que Bakhtin (1997) considerou acerca do desenvolvimento das esferas comunicativas e o quanto elas vão se tornando mais complexas. Em outras palavras, a seara atual da EPT, situada numa sociedade distinta de meados do século XX, quando iniciávamos a industrialização brasileira, não pode mais ser vista sobre a mesma perspectiva. Esse atraso, no entanto, ainda persiste nos modelos de produção dos relatórios adotados em diversos cursos técnicos, incluindo aqui os do Instituto que analisamos.

Seguindo essa visão, Marcuschi (2008), traça uma leitura dialógica com o pensamento bakhtiniano. Para isso, o autor adensa a percepção já analisada aqui, definindo gênero textual como:

[…] os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração das forças históricas, sociais, institucionais e técnicas […] os gêneros são formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica e socialmente situadas (MARCUSCHI, 2008, p. 155).

Na síntese do teórico, observamos que os gêneros são uma materialização caracterizada por um padrão sociocomunicativo, o que nos permite identificar uma convenção social que, até certo ponto, fornece uma organização preestabelecida. Não obstante, Marcuschi (2008) também sugere uma tríade análoga ao que vimos em Bakhtin (1997), mas agora definida da seguinte forma: composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos que consideram forças históricas, sociais, institucionais e técnicas. Além disso, o autor destaca a natureza “bastante estável” dos gêneros, modificando o que Bakhtin (1997) chamou de “relativamente estável”.

Aqui, cabe um vértice com os dois autores, a fim de encontrar um denominador comum. Primeiramente, é preciso esclarecer que a percepção de Marcuschi (2008) sobre a estabilidade dos gêneros não contesta a visão bakhtiniana, mas atualiza o estudo do referido autor, tendo em vista que, historicamente, as formas textuais foram cada vez mais se ajustando aos padrões sociocomunicativos, processo natural dos enunciados em cada espaço da sociedade. Nesse viés, conforme já discutimos, não podemos deixar de observar também o próprio desenvolvimento da esfera comunicativa em que o gênero está inserido, uma vez que isso influencia diretamente o conteúdo que ele apresentará.

Ressaltando o dialogismo teórico entre os autores, é pertinente agora compreendermos como as tríades estruturais citadas por ambos podem ser analisadas, e por que elas são relevantes para o gênero relatório aqui investigado. Para tanto, adotaremos a divisão clássica de Bakhtin (1997): a) composição; b) conteúdo temático e c) estilo. Nesse caso, esclarecemos que essa divisão é tomada como pressuposto por outros diversos autores que se debruçaram sobre a obra bakhtiniana e, a partir dela, adensaram conceitos com os quais buscaremos promover um diálogo.

A priori, retomamos a visão de gênero como forma textual, haja vista ela sugerir naturalmente uma estruturação. Sobre esse olhar, Marcuschi (2008, p. 156) nos diz que “é claro que os gêneros têm uma identidade e eles são entidades poderosas que, na produção textual, nos condicionam a escolhas que não podem ser totalmente livres nem aleatórias […]”. Assim, a composição de um gênero, de certo modo, é aquilo que o restringe a determinadas convenções de produção discursivas, isso porque a tendência natural dos espaços sociais é criar meios que organizem o pensamento humano.

Dentro dessa percepção, a estrutura composicional de um gênero auxilia a sistemática do conteúdo e a identificação que lhe é necessária. Logo, a composição é a dimensão do gênero que melhor representa a “estabilidade” citada por Bakhtin (1997), a qual foi, posteriormente, aprofundada e atualizada por Marcuschi (2008). Nos processos de ensino e aprendizagem sobre determinada produção textual, é comum que a estrutura composicional seja a primeira dimensão a ser explicada. Por meio dela, muitos gêneros são imediatamente reconhecidos em função de sua identidade visual; outros, por se assemelharem estruturalmente, necessitam de um olhar mais apurado em outras dimensões.

Nesse caso, podemos dizer que há uma macrocomposição e uma microcomposição em cada gênero. Todavia, se compreendidas de maneira meramente técnicas ou isoladas das outras dimensões, a estrutura composicional não se configura como dimensão de um gênero textual, mas como um elemento fracionado. Consequentemente, é preciso evidenciar a indissociabilidade entre o eixo da composição e as demais dimensões, como a do conteúdo temático (ou tema), elemento que será explanado a partir daqui.

Traçando uma analogia como referência, podemos pensar na estrutura composicional do gênero como um “corpo”, mas que ainda está “vazio”. Desse modo, a dimensão “conteúdo temático” daria a “vida” para tal estrutura, o que nos leva a analisar o nível de relevância que a referida dimensão possui. Com base nesse pensamento subjetivo, passaremos à compreensão técnica do conteúdo temático em si.

As informações, ou os enunciados propriamente ditos, são a parte integrante que darão ao gênero a complexidade fundamental para singularizá-lo. Nesse caso, estamos nos referindo ao conteúdo temático do texto, o qual é capaz de conduzir inúmeros aspectos sobre ele mesmo. Segundo Wachowicz (2012, p. 37):

Numa visão mais abrangente do que o nome sugere, tema é o conjunto de informações trazidas pelos interlocutores em determinadas situações com vistas à construção textual. Logo, o tema está diretamente associado às possíveis condições que definem usos específicos de gêneros. Ou seja, a escolha de um gênero vem ancorada em parâmetros como finalidade, interlocutores, situação e conteúdo.

A autora, fazendo uso da terminologia “tema” – denominação também utilizada por Bakhtin (1997) –, compreende que a dimensão temática é o conjunto das informações que se relacionam com determinadas condições de uso. Para tanto, essa dimensão não se limita ao assunto que será explanado, mas ultrapassa tal visão a partir do momento em que o gênero se dedica a outros parâmetros que envolvem a situacionalidade, a contextualização, o público-alvo, as relações sociais, os objetivos enunciativos, a esfera social, entre outros.

A quantidade de variáveis que envolve o elemento tema constitui mais do que um simples conjunto de fatores internos e externos ao gênero. Ela demonstra a essencial perspectiva que precisa nortear o processo construtivo de um texto, pois, conforme Marcuschi (2008, p. 155), “Não se pode, portanto, tratar o gênero de discurso independentemente de sua realidade social e de sua relação com as atividades humanas”. Sob essa mesma ótica sociodiscursiva, nos apoiamos em Bakhtin (1997) para definir a última dimensão da tríade supracitada neste texto – o estilo. Assim, para o autor:

[…] o estilo linguístico ou funcional nada mais é senão o estilo de um gênero peculiar a uma dada esfera da atividade e da comunicação humana. Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um gênero, um dado tipo de enunciado […] o estilo entra como elemento na unidade de gênero de um enunciado (BAKHTIN, 1997, p. 284).

Diante do que o teórico propõe, a dimensão do estilo está diretamente associada à esfera comunicativa à qual pertence o gênero. Por essa razão, o estilo não pode aqui ser confundido com a individualidade da escrita de um autor, mas deve partir de um conjunto de especificidades conduzidas por estruturas sociais e pelas relações que nela existem. Segundo Wachowicz (2012, p. 129), “na concepção marxista de estilo, o indivíduo escolhe formas linguísticas subordinado a um contexto discursivo específico – construído histórica e socialmente”.

Na mesma direção que as demais dimensões, ressalta-se a relevância das condições de produção do gênero no que se refere à influência direta sobre o estilo. Isso significa que determinado enunciado deverá se adequar às variáveis que venham a interferir no processo de construção do texto. Nesse caso, as características tipológicas – como narração, descrição, argumentação–, os fatores como formalidade/informalidade do texto, os recursos de linguagem utilizados (ironia, humor, crítica), os objetivos discursivos (objetividade, clareza etc.), a parcialidade ou a imparcialidade do discurso são exemplos de aspectos que podem constituir a dimensão estilística do gênero.

Considerando todas as propriedades identificadas, descritas e discutidas aqui, é pertinente frisar a notória relevância que cada uma apresenta. Mas, a indagação que ainda persiste é: de que modo o relatório de estágio se relaciona com o estudo dos gêneros discursivos? E ainda: De que maneira a politecnia também se relaciona com esse campo investigativo da linguagem?

Nesse caso, devemos sobretudo considerar que o relatório, por si só, já constitui um gênero textual, ainda que este não seja assim representado no seu processo de construção. Traçando um paralelo direto, podemos observar que a tríade bakhtiniana – composição, conteúdo temático e estilo – está presente em todo o relatório, basta lembrarmos que na organização estrutural das suas três seções principais, a dimensão composicional está constituída pelos elementos pré-textuais, textuais e pós-textuais. Por sua vez, as dimensões temática e de estilo do gênero estão expressas principalmente na “introdução”, no “desenvolvimento” e na “conclusão”, ao passo que elas são responsáveis por reunirem o conjunto de informações que adensam o corpo textual do gênero, mediante as condições de produção da esfera técnico-profissional.

Contudo, as referidas dimensões do relatório não podem ser encaradas apenas sob o ponto de vista funcional, restringindo-se a compor a narração e as descrições do estagiário. E é diante dessa problemática, em especial, que a natureza sociodiscursiva dos gêneros encontra o caráter sócio-histórico da politecnia.

Se de um lado temos que os gêneros textuais são manifestações da linguagem situadas histórica e socialmente (MARCUSCHI, 2008), do mesmo modo temos que a politecnia apresenta como princípio a perspectiva histórica e social do trabalho na base de sua constituição (SAVIANI, 2003). Essa relação direta entre ambos os conceitos nos permite firmar uma perspectiva de estudo não apenas coerente do ponto de vista epistemológico, mas essencial para a compreensão de um objeto de estudo tão importante para a EPT.

Ora, se criticamos a construção de um relatório de estágio reprodutor da formação unilateral, cúmplice de um sistema que segrega o acesso ao conhecimento, o que propomos, então? Para esse questionamento, trazemos duas acepções de Wachowicz (2012). A primeira traz o seguinte argumento: “Se gênero é instrumento de interação social, a manifestação de linguagem que o sustém manifesta as vozes da interação” (WACHOWICZ, 2012, p. 28). A segunda, complementar à primeira, orienta que texto é “produto social; é criação da história que se entrelaça às relações organizadas dos indivíduos, é instrumento por meio do qual os indivíduos criam, mantêm ou subvertem suas estruturas sociais […]” (WACHOWICZ, 2012, p. 22-23, grifo nosso).

Com isso, ao propor o estudo do relatório de estágio a partir dos pressupostos sociodiscursivos dos gêneros textuais, estamos caminhando por um viés que permite uma visão sistemática da estrutura a ser seguida, mas também uma perspectiva que extrapola o caráter técnico, afastando-se da mera reprodução, do modus operandi. Nessa trajetória, o relatório de estágio é mais que um trabalho final de curso, é mais do que um documento de registro, é o recorte da realidade de um sujeito, é a manifestação de uma percepção de mundo, é a representação de uma perspectiva que pode se tornar subversiva.

5 Travessia: um caminho possível para a construção do Relatório de Estágio Técnico na EPTNM

Durante toda a tessitura deste trabalho, enveredamos por nuances teóricas que em determinado momento atingiram um ponto congruente: a relação sociodiscursiva e sócio-histórica entre a politecnia e os gêneros discursivos. Nesse trajeto, discutimos diversos aspectos, problematizando as perspectivas formativas unilaterais e segregadoras, ressaltando a necessidade de construir um Relatório de Estágio Profissional capaz de evidenciar o olhar politécnico do sujeito (no sentido mais abrangente da expressão).

Agora, buscaremos apresentar uma proposta de produto educacional cujo cerne do conteúdo é o próprio gênero textual aqui analisado. Tal material educativo é um dos desdobramentos de pesquisa de mestrado de Silva (2021), intitulada: “O gênero textual relatório de estágio na Educação Profissional Técnica de Nível Médio: articulação de fundamentos para uma formação politécnica”. Por sua vez, o produto foi denominado de: “Travessia: um guia para o processo orientativo de construção do Relatório de Estágio na EPTNM”.

Capa do produto educacional “Travessia”
Figura 4.
Capa do produto educacional “Travessia”
Fonte: captura de tela do produto educacional Travessia (SILVA; SALAZAR, 2021)

Tendo como público-alvo os professores orientadores de estágio dos cursos técnicos de nível médio, o Travessia foi pensando para a construção do relatório, porém no sentido de auxiliar o docente no processo orientativo dos estagiários cuja finalidade é a produção do referido texto. Assim, o material foi estruturado em 4 (quatro) unidades, sendo que as três primeiras partes reúnem os principais fundamentos para a compreensão da formação politécnica, alicerçando uma base reflexiva que amplie a concepção sobre o estágio supervisionado e, consequentemente, permita uma articulação com o gênero textual Relatório de estágio, objeto central da última unidade do produto.

No que tange a essa última seção do material, destacamos a natureza didática da proposta, tendo em vista que ela foi elaborada com foco na descrição detalhada de toda a estrutura composicional do Relatório. Dessa forma, a macrocomposição analisada no decorrer deste artigo – introdução, desenvolvimento e conclusão – é destaque no produto educacional Travessia, sendo abordada sob a ótica da politecnia e da sociodiscursividade dos gêneros.

Recorte da unidade 4 do produto Travessia
Figura 5.
Recorte da unidade 4 do produto Travessia
Fonte: captura de tela do produto educacional Travessia (SILVA; SALAZAR, 2021)

Da mesma forma, o Travessia também salienta o conteúdo temático do Relatório e, nesse ponto, o material ganha ainda mais relevância, pois organiza e classifica sete eixos comunicativos que podem estar presentes num Relatório de estágio. Trata-se de uma sistemática com grau de ineditismo que tem como foco denominar e explicar as chamadas “tipologias informacionais do Relatório”, expressão criada para dar nome aos eixos descritos.

Partindo disso, elaboramos o Quadro 1 com o intuito de apresentar as referidas tipologias que tanto contribuem para que o conteúdo temático do relatório carregue a essência do gênero, mas também abranja outras dimensões formativas do estudante.

Quadro 1.
Tipologias informacionais elaboradas no produto Travessia
ClassificaçãoNatureza descritiva
Tipologia referencialDiz respeito às informações mais básicas do relatório e, em comparação às demais, podemos dizer que são as mais fixas, pois contribuem com identificações objetivas e factuais. Ex.: identificação da instituição, do curso realizado, do lócus onde o estágio foi desenvolvido etc.
Tipologia reflexivo-contextualRefere-se à contextualização que o estudante faz acerca do estágio supervisionado. Nesse caso, o discente tem a liberdade de explorar reflexões ge­rais sobre o mundo do trabalho e seu universo formativo. Vale lembrar que não se trata de uma etapa relativa a críticas, mas sim voltada à apresentação de um panorama com características reflexivas.
Tipologia teórico-científicaDireciona-se às percepções que os estudantes textualizam acerca dos conhecimentos teórico-científicos que observaram no curso técnico. Para tanto, podem recorrer a livros, manuais, e-books, vídeos, entre outras fontes que sustentem seus pensamentos. Nesse caso, é muito importante que o estagiário consiga articular essas informações com a prática realizada no estágio.
Tipologia técnico-processualDireciona-se às experiências práticas realizadas ou vivenciadas pelo estudante. Para tanto, são considerados processos e técnicas executadas ou analisadas pelo discente. No que tange à característica fundamental dos relatórios de estágio, essa tipologia é a mais comumente vista.
Tipologia procedimentalTrata-se de uma tipologia que evidencia as atitudes expressas ou desenvolvidas durante o período de estágio. São exemplos: a cooperação, o respeito, a disciplina, o relacionamento interpessoal, a organização, a ética, entre outros. Destacam-se tanto as atitudes que dependem apenas do estudante, quanto as de natureza coletiva.
Tipologia construtivaEssa é, talvez, a tipologia que mais expressa a liberdade do discente. Ela evidencia a capacidade criativa e inovadora do estudante. É o momento que o estagiário expõe e descreve algum processo, técnica ou perspectiva que ele mesmo pensou para a melhoria ou evolução de um serviço ou atividade já existente. O discente pode ainda propor a criação de algo inovador, demonstrando seu potencial de contribuição para a área em que atua.
Tipologia crítico-reflexivaMostra-se nos momentos em que o estudante expõe suas percepções, avalia situações e experiências ou até mesmo expressa suas opiniões. Nesse caso, essa tipologia é mais comumente apresentada nas considerações finais do Relatório, mas também pode aparecer de maneira implícita em outras partes do texto, uma vez que a imparcialidade do discurso é uma característica subjetiva.
Fonte: Silva (2021)

Como se pode analisar, cada uma das tipologias apresenta características específicas na constituição do texto. Algumas delas carregam o conteúdo temático comumente visto nos Relatórios de Estágio Profissional, como é o caso das tipologias: referencial, teórico-científica e técnico-processual. Nesse caso, a natureza narrativo-descritiva é a característica mais presente nesses eixos, o que não é inadequado; mas, sem os demais eixos, limitam o estudante a uma construção com pouco ou nenhum significado emergente das atividades realizadas no ambiente profissional.

Em contrapartida, as dimensões que alcançam perspectivas diferenciadas – a tipologia reflexivo-contextual, a tipologia procedimental, a tipologia construtiva e a tipologia crítico-reflexiva – fogem da trajetória unilateral e passam a potencializar a dimensão formativa do educando. Nelas, vemos um conjunto temático que se volta para o desenvolvimento de competências reflexivas acerca das experiências vivenciadas no mundo do trabalho, promoção de aspectos atitudinais compreendidos pelo educando (como a cooperação, o respeito e a ética), valorização do potencial criativo do estudante e expressão crítica do discente com relação ao curso e ao estágio propriamente dito.

Logo, são essas as tipologias que mais ganham notoriedade no decorrer do produto educacional, pois elas dão voz ao educando e carregam o potencial para concretizar as reflexões que tanto buscamos apresentar no decorrer deste texto. Nesse viés, o Travessia projeta um status de caminho possível para a construção do Relatório de Estágio sob a ótica da politecnia e dos gêneros discursivos.

6 Considerações finais

Remar contra a correnteza é sempre mais difícil, mas às vezes é necessário quando queremos, de fato, chegar à outra margem do rio. Em muitos momentos somos levados pela força da água, contudo recuperamos o fôlego e voltamos a remar. A chegada é o ponto máximo, mas é da trajetória que não nos esquecemos.

Neste texto, trouxemos uma concepção dirigida ao Relatório de Estágio Técnico sob a perspectiva dos gêneros discursivos, como bem explicita nosso título. Dito assim, realizamos uma análise objetiva e pontual, na qual o processo analítico foi apenas um dos caminhos pelo qual passamos. Por trás dele, evidenciamos uma articulação entre dois conceitos cuja relevância em suas respectivas áreas é mais do que notória; é substancial.

Mostramos que os gêneros discursivos dialogam com a formação politécnica e, juntos, nos permitiram compreender o Relatório de estágio como um instrumento cujas dimensões vão além de uma organização estrutural. Nesse sentido, o relatório se revela como um gênero do discurso marcado por uma identidade composicional, temática e estilística que, indissociavelmente, representa uma finalidade discursiva situada histórica e socialmente. Por essa razão, o Relatório é produto da criação humana que, dentro de sua esfera comunicativa, manifesta as vozes dos sujeitos que o estruturam.

Em análise dialógica com os autores escolhidos para este texto, verificamos que o roteiro de elaboração do relatório técnico adotado pelo IFAM Campus Manaus Centro, pouco se aproxima dos princípios formativos da politecnia. Além disso, a construção do relatório é conduzida de forma mecânica, sem destacar a significância da experiência vivenciada no mundo do trabalho, isto é, indicando uma postura de mero registro narrativo-descritivo que, em alguns pontos, engendra a experiência profissional como qualificação necessária para o êxito no mercado de trabalho.

Em contrapartida, na última fração deste texto demonstramos a natureza didática de um material educativo estruturado a partir de unidades que se apropriam da concepção politécnica, ao mesmo tempo que possibilitam a compreensão de uma estrutura de relatório alicerçada na perspectiva sociodiscursiva dos gêneros textuais. Tal produto – denominado Travessia – propõe uma sistemática informacional do texto baseada em sete tipologias para a construção do conteúdo temático do Relatório, a partir das quais podemos entender como a articulação entre os conceitos aqui abordados pode, em expressivo grau, se materializar.

Diante disso, consideramos a necessidade de as investigações relacionadas a essa temática serem aprofundadas, principalmente se considerarmos que um trabalho envolvendo de fato a produção dos estudantes ainda precisa ser feito. Portanto, salientamos a relevância das considerações alcançadas até aqui, mas vislumbramos um adensamento futuro que pode contribuir ainda mais com as discussões e ações tão urgentes no campo da EPT brasileira.

Referências

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WACHOWICZ, T. C. Análise linguística nos gêneros textuais. São Paulo: Saraiva, 2012.

Notas de autor

1 Mestre em Educação Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM). Professor efetivo da Secretaria de Educação e Qualidade do Ensino do Estado do Amazonas (SEDUC-AM) e Professor colaborador na modalidade EaD da Faculdade Metropolitana de Manaus (Fametro) – Amazonas – Brasil. E-mail: gilsonchavesdasilva@gmail.com.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professora do ensino básico, técnico e tecnológico (EBTT) e Professora permanente do Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM) – Amazonas – Brasil. E-mail: deuzilenemarques@gmail.com.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): SILVA, G. A. C.; SALAZAR, D. M. Relatório de Estágio Técnico na perspectiva dos gêneros discursivos: produção, reprodução e subversão. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 2, p. 511-530, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p511-530. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16335.

COMO CITAR (APA): Silva, G. A. C., & Salazar, D. M. (2022). Relatório de Estágio Técnico na perspectiva dos gêneros discursivos: produção, reprodução e subversão. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(2), 511-530. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p511-530.

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