Dossiê Temático: “A pesquisa em Educação Profissional e Tecnológica: temas, abordagens e fontes”
Comportamento autolesivo e ideação suicida na Adolescência: desafios na Educação Profissional e Tecnológica
Self-injurious behavior and suicidal ideation in Adolescence: challenges in Vocational Education and Training
Conducta autolesiva e ideación suicida en la adolescencia: desafíos en la Educación Profesional y Tecnológica
Comportamento autolesivo e ideação suicida na Adolescência: desafios na Educação Profissional e Tecnológica
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 24, núm. 2, 2022
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 29 Noviembre 2021
Aprobación: 15 Julio 2022
Resumo: Este artigo visa comunicar os resultados da pesquisa intitulada “Pedagogia da presença aplicada à prevenção de ideações suicidas e autoagressão na adolescência”, desenvolvida no Instituto Federal de Rondônia. Os objetivos do estudo consistiram em contribuir para o manejo pedagógico do problema da ideação suicida e conduta autolesiva em adolescentes, mediante reflexão teórica e transferência de dois produtos educacionais. A pesquisa foi desenvolvida em abordagem qualitativa, com base na metodologia da Pesquisa-ação educacional. Os resultados indicam que a Escola tanto é fator de estresse e adoecimento como tem o potencial de contribuir para a promoção da saúde mental dos estudantes, do cuidado de si e do cuidado do outro. Defende-se que uma formação omnilateral, apoiada na Pedagogia da Presença, seja capaz de favorecer a compreensão dos fatores estruturais e conjunturais de nosso tempo – o que favorece a redução das frustrações pessoais, a flexibilização das noções de fracasso e sucesso entre os adolescentes, e o desenvolvimento de competências cognitivas e socioemocionais, para além do que tem sido estimulado pelas reformas neoliberais da Educação.
Palavras-chave: Saúde Mental, Educação Profissional e Tecnológica, Pedagogia da Presença.
Abstract: This article aims to communicate the results of the research entitled “Pedagogy of presence applied to the prevention of suicidal ideation and self-harm in adolescence”, developed at the Federal Institute of Rondônia. The objectives of the study were to contribute to the pedagogical management of the problem of suicidal ideation and self-harming behavior in adolescents, through theoretical reflection and transfer of two educational products. The research was developed in a qualitative approach, based on the Educational Action Research methodology. The results indicate that the school is both a factor of stress and illness and it has the potential to contribute to the promotion of students' mental health, self-care and care for others. It is argued that an omnilateral training, supported by the Pedagogy of Presence is capable of favoring the understanding of the structural and conjunctural factors of our time - which favors the reduction of personal frustrations, the flexibilization of the notions of failure and success among adolescents, and the development of cognitive and socio-emotional skills, in addition to what has been stimulated by neoliberal education reforms.
Keywords: Mental health, Vocational Education and Training, Pedagogy of Presence.
Resumen: Este artículo presenta los resultados de la investigación titulada “Pedagogía de la presencia aplicada a la prevención de la ideación suicida y las autolesiones en la adolescencia”, desarrollada en el Instituto Federal de Rondônia. Los objetivos fueron contribuir al manejo pedagógico del problema de la ideación suicida y la conducta autolesiva en adolescentes, a través de la reflexión teórica y transferencia de dos productos educativos. La investigación se desarrolló en un enfoque cualitativo, basado en la metodología de la Investigación Acción Educativa. Los resultados indican que la Escuela es tanto factor de estrés como de enfermedad y tiene el potencial de contribuir para la promoción de la salud mental de los estudiantes, el autocuidado y el cuidado de los demás. Se argumenta que una formación omnilateral, apoyada en la Pedagogía de la Presencia, es capaz de favorecer la comprensión de los factores estructurales y coyunturales de nuestro tiempo - lo que favorece la reducción de las frustraciones personales, la flexibilización de las nociones de fracaso y éxito entre los adolescentes, y el desarrollo de habilidades cognitivas y socioemocionales, además de lo que ha sido estimulado por las reformas educativas neoliberales.
Palabras clave: Salud mental, Educación Profesional y Tecnológica, Pedagogía de la Presencia.
1 Introdução
Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF) têm nos estudantes de Ensino Médio Integrado ao Técnico a maior parte de seu alunado. Esses estudantes, em sua maioria adolescente, encontram na instituição oportunidades de aprendizagem, desenvolvimento pessoal e profissional e de convivência social. Muitos deles, contudo, são oriundos de contextos de violência e trazem em suas histórias de vida experiências de dor, abuso, exploração e uso de substâncias ilícitas, que configuram situações de sofrimento mental. Por outro lado, a própria vivência nos espaços da instituição pode ser também fator de adoecimento, em função de estresse, excesso de atividades, dificuldades de aprendizagem, exclusão, bullying e assédio, como atestam os estudos de Soares (2015) e de Pacheco, Nonenmacher e Cambraia (2020).
Não menos relevante é o fato de que tem havido progressivo direcionamento de organismos internacionais, como o Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sobre a Educação dos países em desenvolvimento. Esses organismos internacionais têm induzido reformas educacionais, como a reforma do Ensino Médio brasileiro de 2017 e a da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que reduzem as oportunidades de desenvolvimento cognitivo em favor do desenvolvimento de competências socioemocionais, as quais, sob o manto de favorecer o autoconhecimento, a criatividade e as relações humanas saudáveis, funcionam, na prática, como mecanismos de coerção, ajustamento e controle do futuro trabalhador ao sistema capitalista (ACCIOLY, 2021).
Competências socioemocionais são necessárias para a vida em sociedade, constituem-se em elementos de destaque para a promoção e proteção da saúde mental (PORTUGAL, 2019), e têm ganhado cada vez mais espaço nos processos de escolarização, configurando o que Ciervo (2019) denominou de “giro emocional”. A forma como elas têm sido inseridas no currículo e promovidas nas práticas escolares, desvia-se, contudo, de uma formação omnilateral, tal qual proposta por Ramos (2014) e pelos clássicos do pensamento educacional de matriz marxista, e evidencia claro alinhamento a uma perspectiva conservadora, na qual as emoções são esvaziadas de seu sentido e transformadas em objetos, instrumentalizando o que Ciervo (2019) identificou como “capitalismo emocional”.
Em face dessas disputas de sentidos e do crescente número de casos de comportamentos autolesivos e suicídio no Brasil entre adolescentes (BRASIL, 2019; GABRIEL et al., 2020; PREITE SOBRINHO, 2019), o artigo em tela visa contribuir para uma reflexão crítica acerca dos desafios da promoção da saúde mental nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, bem como compartilhar experiências construídas no Instituto Federal de Rondônia, no âmbito do projeto de pesquisa intitulado “Pedagogia da Presença aplicada à prevenção de ideações suicidas e autoagressão na adolescência”, desenvolvido no período de julho de 2019 a agosto de 2021.
As categorias de análise centrais ao estudo foram: comportamento autolesivo (também conhecido pela sigla SIB - do inglês, Self-Injurious Behaviors), ideação suicida e suicídio. Por comportamento autolesivo entende-se uma série de condutas individuais que visam produzir lesões mais ou menos graves no próprio corpo. Essa prática é também conhecida como autoagressão e automutilação. Cedaro e Nascimento (2013) a definem como o ato de se machucar intencionalmente, de forma superficial, moderada ou profunda, sem que haja intenção suicida consciente. Caracteriza-se, portanto, por atos lesivos contra o próprio corpo, como cortes, perfurações e escoriações, feitos com as próprias mãos ou com o uso de objetos – geralmente cortantes e perfurantes. Em geral, condutas autolesivas não estão associadas à intenção suicida – o adolescente que se corta quer apenas, na maioria das vezes, dar vazão à dor emocional que sente por meio de uma dor física latente, que desvie o foco da primeira, bem como pedir ajuda – chamar a atenção para seu sofrimento. Contudo, determinadas condutas, mesmo que não intencionais, podem levar à morte, como o consumo ou exposição a medicamentos e substâncias químicas (VIEIRA; SANTANA; SUCHARA, 2015).
Embora a maioria dos casos de condutas autolesivas seja praticada sem a intenção de pôr fim à própria vida, há casos em que essa intencionalidade está presente. Ambas as manifestações precisam de acompanhamento especializado, pois tais comportamentos podem se apresentar de forma crônica e causar riscos graves a quem se engaja neles, e podem se mostrar em padrões rítmicos ou repetitivos que variam em intensidade, grau de lesão e rompimento com o ambiente social (CEPPI; BENVENUTI, 2011). Desse modo, é fundamental desencorajar sua prática, e auxiliar os adolescentes a superar o sofrimento vivenciado, por meio de acompanhamento médico e psicológico, e do desenvolvimento de formas saudáveis de se expressar e de habilidades cognitivas e emocionais que lhes possibilitem novas formas de interpretação da situação em que vivem e da interação com o meio.
No campo científico, o problema das condutas autolesivas ainda necessita de mais estudos e não há consenso sobre seus fatores desencadeantes. De modo, sintético, considera-se o fenômeno como produto de “complexas interações entre fatores genéticos, biológicos, psiquiátricos, psicológicos, sociais e culturais” (SANTOS et al., 2018, p. 124). Os autores destacam ainda que, no Brasil, não foram encontrados estudos epidemiológicos em nível nacional sobre a incidência do fenômeno, mas pesquisas realizadas no exterior mostram o crescimento da prática nos últimos anos em populações adolescentes (HESTER, 2022; MARTÍNEZ-ALÉS; JIANG; KEYES; GRANDUS, 2022; MCLOUGHLIN; GOULD; MALONE, 2015).
Ideações suicidas, por sua vez, são entendidas como pensamentos/fantasias acerca da autodestruição. Podem ser expressos por meio de pensamentos eventuais e não consequentes, rapidamente esquecidos, como também por meio de pensamentos repetitivos, que resultam em planejamento da abreviação da própria vida (REYNOLDS, 1988). De acordo com Azevedo e Matos (2014), a presença de ideação suicida é habitualmente um sinal de sofrimento emocional grave e aparece como um dos principais preditores de tentativas de suicídio e de suicídio consumado. Desse modo, é fundamental construir, no âmbito escolar, uma atmosfera de acolhimento, respeito e abertura para o diálogo, bem como oferecer ajuda oportuna aos adolescentes que demonstrem estar em sofrimento emocional. É fundamental também superar o mito de que conversar sobre sofrimento psíquico gera mais sofrimento, e que falar de ideação suicida e suicídio desencadeia ondas de suicídio. O diálogo aberto, responsável, respeitoso e sem julgamentos morais é recurso relevante para o conhecimento das situações de sofrimento emocional vivenciados pelos estudantes e oportunidade singular para a construção de uma rede de apoio, que deve envolver tanto o aconselhamento e acompanhamento pedagógico constante, como a disponibilização ou encaminhamento para serviços de saúde especializados.
O suicídio, por sua vez, caracteriza-se como morte voluntária, e é um fenômeno histórico que possui registros desde a Antiguidade. Os valores em torno dele, contudo, variam culturalmente, sendo representados de maneira diferente conforme a religião, o período histórico, a classe social ou a situação vivenciada pelo sujeito que praticou o ato de pôr fim à própria vida (BARBAGLI, 2019; MINOIS, 2018). Da Antiguidade até os dias de hoje, a escolha voluntária da morte tem causado inquietações e quase sempre foi vista como objeto de reprovação social, salvo raras exceções, em que a morte voluntária foi considerada um ato de heroísmo, de fidelidade e subsunção ao Estado - ou de suprema liberdade. Em todos os casos se mostrou inquietante, ainda que essas inquietações fossem dissimuladas sob discursos ou silêncios, isso porque “a morte voluntária é um tipo de óbito cujo significado não é de ordem demográfica, mas filosófica, religiosa, moral, cultural” (MINOIS, 2018, p. 2).
Do ponto de vida da saúde pública, o suicídio pode e deve ser prevenido (OMS, 2019), e isso é factível por meio de ações educativas que levem ao desenvolvimento do senso crítico, da compreensão histórica e conjuntural dos fenômenos, e da construção de habilidades cognitivas e socioemocionais. De igual relevância é a disponibilização de informações responsáveis, a demonstração de empatia e solidariedade e a restrição aos meios e objetos capazes de resultar em lesões autoinfligidas e em suicídio.
2 Metodologia
A pesquisa ora comunicada foi desenvolvida com base no método da Pesquisa-ação educacional (TRIPP, 2005). De acordo com esse autor, “a pesquisa-ação educacional é principalmente uma estratégia para o desenvolvimento de professores e pesquisadores de modo que eles possam utilizar suas pesquisas para aprimorar seu ensino e, em decorrência, o aprendizado de seus alunos” (TRIPP, 2005, p. 445). Trata-se, portanto, de investigação fortemente ligada ao contexto escolar. Na experiência aqui reportada, o principal objetivo com o acionamento deste método foi colaborar para a melhoria das práticas pedagógicas desenvolvidas no espaço do Instituto Federal de Rondônia Campus Porto Velho Calama, notadamente as concernentes à promoção da saúde mental de estudantes adolescentes.
Classifica-se, quanto ao gênero, como pesquisa metodológica – por se tratar de investigação voltada ao desenvolvimento de metodologia de abordagem pedagógica do problema das condutas autolesivas praticadas por adolescentes. Segundo Demo (1994), essa modalidade de pesquisa não só se direciona à formulação metodológica, como também se destaca pelo estudo dos paradigmas, das crises da ciência, dos métodos e técnicas predominantes nessa forma de produção de conhecimento. Quanto aos objetivos, a pesquisa em esquadro delineia-se como pesquisa explicativa, e quanto à natureza, como pesquisa aplicada. Sua aplicação consistiu no desenvolvimento de metodologia para a abordagem educacional do problema da ideação suicida e de comportamentos autolesivos demonstrados por adolescentes, e de um portal com informações educativas sobre o tema.
O processo de ensino-aprendizagem no campo da Educação Profissional e Tecnológica pública pauta-se no princípio do trabalho como princípio educativo, que articulado a uma sólida base cultural, técnica e científica possibilitará uma formação omnilateral (BRASIL, 2019; MOURA, 2007). Assim, o aprendizado se refere não só aos componentes curriculares como também à cidadania, à ética e aos valores necessários para vida em sociedade. Nessa toada, uma educação efetivamente politécnica deve ocupar-se, também, da promoção da saúde mental dos educandos, levando-os a compreender os mecanismos socioeconômicos e culturais que resultam nas diversas formas de opressão do ser, e a identificar quando, como e onde buscar ajuda profissional para os casos de sofrimento emocional que não possam ser geridos por eles próprios.
A pesquisa em tela visou o aprofundamento teórico de situações que emergiram espontânea e contingencialmente na prática profissional dos autores, e não coletou dados de seres humanos, nem revelou informações capazes de identificar os atores escolares em sofrimento emocional, o que, conforme item VII do Art. 1.º da Resolução n.º 510, de 07 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2016), isenta o projeto de avaliação em Comitê de Ética em Pesquisa. Prevalece desse modo, o caráter de revisão de literatura. Em oportunidade futura estima-se desenvolver novos desdobramentos deste estudo, a partir da definição de novos objetivos e instrumentos de coleta de dadas. No atual momento optou-se por observações participantes, revisão de literatura e desenvolvimento da metodologia de abordagem pedagógica do problema e do portal informativo.
Os materiais utilizados para a coleta de dados foram dissertações, teses, livros, artigos científicos e relatórios publicados nos repositórios do Ministério da Saúde, como o VIVA/Sinan, o SIM – Sistema de Informações de Mortalidade e as notas de pesar publicadas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO) acerca dos óbitos por suicídio de estudantes matriculados nos diversos campi que integram a instituição. As fontes coletadas foram lidas e fichadas em editor eletrônico de texto, e na sequência, foram serializadas por tipo e discutidas entre os professores e os estudantes bolsistas do projeto.
As análises dos dados foram realizadas com base em literaturas concernentes ao assunto, colacionando-se as evidências teóricas com os conhecimentos empíricos vivenciados no espaço de desenvolvimento da pesquisa: o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia Campus Porto Velho Calama com vistas à formulação da metodologia de abordagem do problema, e do portal educativo – produtos educacionais resultantes desta pesquisa.
No que se refere ao desenvolvimento da Metodologia de Abordagem Pedagógica de Ideações Suicidas e Comportamento Autolesivos na Adolescência, foram realizadas as seguintes operações: (1) Pesquisa de similares; (2) Elaboração do protótipo; (3) Teste do protótipo; (4) Elaboração do produto; (5) Transferência do produto. A pesquisa de similares foi realizada em sites da Internet, por meio do buscador Google e os documentos encontrados foram lidos e fichados, servindo de base para os protótipos da metodologia e do portal de informações. O protótipo da Metodologia de Abordagem Pedagógica de Ideações Suicidas e Comportamento Autolesivos na Adolescência foi elaborado em forma de orientação técnica, e seu teste foi procedido mediante avaliação por cinco profissionais, sendo dois professores da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (EBTT), uma pedagoga e uma psicóloga. Com base nas avaliações realizadas pelos colaboradores, realizamos os ajustes apontados e elaboramos o produto final, que foi apresentado durante a 11.ª Semana Pedagógica do IFRO Campus Porto Velho Calama. Quanto ao desenvolvimento do portal eletrônico, foram levados em consideração os itens apontados pelos bolsistas do projeto, os quais se enquadram na faixa etária da adolescência. Assim, foi escolha deles a palheta de cores, o tipo de linguagem utilizada, bem como os conteúdos publicados.
3 Resultados
Conforme dados da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS, 2018), cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos, sendo esta a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos em todo o mundo, no ano de 2016. Estima-se que cerca de 20% dos suicídios globais acontecem por autoenvenenamento com pesticidas, dos quais a maioria ocorre em zonas rurais de países com baixa e média renda. Outros métodos recorrentes são enforcamento e uso de armas de fogo (OPAS, 2018).
Os dados globais acerca da morte voluntária apresentaram uma diminuição de 32% no período de 1990-2016, mas na contramão dessa tendência geral, no Brasil, a taxa de suicídio entre adolescentes de 15 a 19 anos é crescente: aumentou 24% nas grandes cidades no período de 2006 a 2015, e 13% no interior do país (PREITE SOBRINHO, 2019). Provavelmente, esses números estão subnotificados, uma vez que se trata de tema tratado como tabu na sociedade brasileira, de modo que, muitas vezes, quando ocorrem mortes por suicídio, as famílias preferem omitir essa informação, para não gerar estigma, e solicitam que nos atestados de óbitos constem outras causa mortis. Ainda de acordo com Preite Sobrinho (2019), o suicídio é três vezes maior entre elementos do sexo masculino do que entre elementos do sexo feminino. Os dados são alarmantes e comprometeram a meta traçada pela OMS, de reduzir a taxa global de suicídio em 10% até 2020.
Muitos fatores estão atrelados a esse aumento do suicídio entre adolescentes, sendo que a popularização do uso da internet e a escassez de políticas públicas de Juventude e de Saúde Mental são vistas como fatores de grande influência sobre o fenômeno. Muniz, Silva e Marins (2020) apontam que o uso intensivo da internet e de Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) aumentam o risco de o adolescente sofrer cyberbullying, experiência que pode gerar sofrimento emocional e angústia, devido às possibilidades de o perpetrador não ser responsabilizado criminalmente, e mesmo no que se refere à reparação do dano, pois o constrangimento sofrido pode “viralizar” rapidamente, dificultando medidas de contingenciamento e reparação. O cyberbullying e a exposição negativa (exposed) podem ocasionar nível intenso de sofrimento mental em alguns adolescentes, contribuindo para ideações e tentativas de suicídio, assim como para a consumação de suicídio, sem falar na existência de grupos virtuais que estimulam o referido ato, incentivando, inclusive, a sua transmissão ao vivo.
O uso exacerbado da internet, a redução de vínculos afetivos, a substituição de relações reais por relações virtuais idealizadas, e muitas vezes prejudiciais, têm levado ao aumento do isolamento social de adolescentes, perda de vínculos com a realidade e posturas de excessiva flexibilidade em relação a responsabilidades, compromissos, cuidado de si e cuidado do outro. O problema se amplia em razão da ausência dos progenitores na maior parte do dia, em função das necessidades de trabalho e renda, e do despreparo ou falta de vontade política das instituições – inclusive as escolares, em contribuir para a mitigação do desafio.
Os principais fatores de risco para o suicídio em crianças e adolescentes apontados pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2000) são de seis ordens, a saber:
- Fatores culturais e sociodemográficos, como baixo nível socioeconômico e/ou educacional e desemprego na família;
- Padrão familiar e eventos de vida negativos durante a infância, como abuso sexual, brigas e divórcio;
- Estilo de personalidade e cognitivo, tais como humor instável, raiva e comportamento agressivo;
- Transtornos psiquiátricos, como depressão, transtornos de ansiedade, transtornos alimentares e agressividade;
- Tentativas prévias de Suicídio;
- Presença de eventos de vida negativos, desencadeadores de comportamento suicida, tais como eventos estressantes e sensações que podem ser vividas como prejudiciais (sem necessariamente serem, quando avaliadas objetivamente), como problemas familiares, separação de amigos, namorado (a) e colegas de classe.
Estima-se que os conjuntos de fatores elencados pela OMS estejam presentes na vida de muitos adolescentes, seja como desafios cotidianos, seja como experiências passadas que legaram marcas dolorosas na memória. Esses conjuntos de fatores podem ainda se articular e se sobrepor um aos outros, elevando ainda mais o risco para condutas autolesivas e suicídio.
Quanto aos principais fatores de proteção contra o comportamento suicida, a OMS (2000) apresenta os seguintes:
- Padrões familiares: bom relacionamento com familiares, apoio familiar;
- Personalidade e estilo cognitivo: boas habilidades/relações sociais, confiança em si mesmo, em suas conquistas e sua situação atual, capacidade de procurar ajuda quando surgem dificuldades, capacidade de procurar conselhos quando decisões importantes devem ser tomadas, estar aberto para os conselhos e as soluções apresentadas por outras pessoas mais experientes, estar aberto ao conhecimento.
- Fatores culturais e sociodemográficos: integração social, como a participação em esportes, igrejas, clubes e outras atividades, bom relacionamento com colegas de escola, bom relacionamento com professores e outros adultos, capacidade de aceitar ajuda de professores, enfermeiros, assistentes sociais, médicos, psicólogos e outros adultos mais experientes.
A Escola, embora não deva responder por todos os problemas sociais, é uma instituição capaz de promover ações relevantes na promoção do conhecimento e na promoção da própria saúde mental da criança e do adolescente, tendo em vista seu papel precípuo: o de educar, de ensinar a pensar, de ensinar a ver além da opacidade do mundo. Nesse sentido, a educação escolar não deve se limitar a desenvolver o currículo, mas assumir de fato um projeto de desenvolvimento social, que passa, necessariamente, pelo indivíduo. Nesse tempo de dissociação, de identidades e fronteiras líquidas (BAUMAN, 2001), em que as relações humanas se vêm pautadas pelo utilitarismo e pelo consumismo, é indispensável que a escola promova ações integrativas e afetivas, que promovam a ética, o diálogo, o autocuidado e o cuidado do outro.
Nas sociedades atuais, tecnificadas e centradas no ter, as pessoas têm se distanciado umas das outras, substituindo a convivência por relações virtuais efêmeras, nas quais, muitas vezes, o rosto, o nome, as experiências narradas não são genuínas. Cada vez mais, adultos, crianças e adolescentes têm menos tempo para conviver, conversar, partilhar experiências, experimentar a alegria do convívio. A solidão, a falta de boas referências, e os horizontes de futuro limitados pela conjuntura política e econômica têm tornado os adolescentes especialmente vulneráveis às ideações suicidas, à autoagressão e à morte voluntária. Considerando que os adolescentes passam boa parte de seus dias no espaço escolar, esse problema se torna em certa medida um problema da escola. Não que caiba a ela saná-lo, mas que dela é esperado o esforço de ser uma presença de esperança, um espaço de diálogo e inclusão. A instituição escolar pode promover o diálogo, a escuta ativa e a orientação sobre o caráter histórico, necessariamente dinâmico dos fenômenos socioeconômicos que angustiam seu corpo discente. No âmbito escolar, notadamente nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, a adoção da Pedagogia da Presença (SANTOS, 2016; SÍVERES, 2015) em uma perspectiva educacional integradora, voltada à omnilateralidade, pode ser positiva na medida em que redimensiona a relação entre professor e aluno, constituindo-os em colaboradores do processo de aprendizagem – processo esse que não se limita aos aspectos técnicos e propedêuticos, mas à transversalidade dos temas que afetam a vida humana. Essa Pedagogia tem se revelado capaz de impulsionar relações embasadas em compreensão, acolhimento, solidariedade e respeito.
Estimulados pelas possibilidades humanizadoras oferecidas pela Pedagogia da Presença, desenvolvemos um portal educativo, que pode ser acessado pelo endereço: https://pedagogiadapresenca.org/ e uma Metodologia de Abordagem Pedagógica de ideações suicidas e autoagressão na adolescência, cujo uso recomendamos a professores e demais profissionais da educação que trabalham direta ou indiretamente com adolescentes. Dada a limitação de espaço, priorizaremos neste artigo a apresentação da Metodologia desenvolvida. Essa Metodologia consiste em ações continuadas, e em ações específicas, a serem realizadas em periodicidade semanal ou quinzenal (conforme a possibilidade da escola), no contraturno das aulas.
No que se refere às ações cotidianas de prevenção de ideações suicidas, recomenda-se aos professores e demais profissionais da educação que compõem a equipe multidisciplinar da escola um olhar atento aos sinais de sofrimento mental dos alunos e de risco para comportamentos autolesivos. No caso de perceberem indícios do fenômeno, orienta-se uma abordagem direta e clara, que convide o estudante a narrar sobre seus problemas - narrativa esta que pode ser feita oralmente ou por meio de texto. É fundamental realizar uma escuta ativa, sem julgamentos e preconceitos, e na sequência, oferecer conselhos e orientações, em especial no que se refere ao diálogo com a família e à busca de ajuda profissional.
Após escuta atenciosa, em ambiente acolhedor e privativo, deve-se solicitar do estudante a autorização para apresentar sua situação à equipe de apoio ao discente, que nos Institutos Federais é composta por profissionais da Psicologia, da Enfermagem, Serviço Social e Educação, dentre outros. Nas escolas regulares essa equipe costuma ser composta por pedagogos e orientadores. Solicitar o assentimento é uma atitude de respeito ao estudante e de valorização de sua autonomia, entretanto as responsabilidades do adulto em relação ao menor o autorizam a mover ação em benefício de sua saúde, mesmo diante de sua negativa. A obtenção do assentimento formal é o cenário ideal, contudo, caso haja resistência por parte do adolescente, é importante esclarecer quanto às responsabilidades da instituição, e que se trata de um ato de cuidado para com ele, visando ao seu bem-estar físico e emocional. Havendo constatação de riscos ou práticas consumadas de autolesão, e tentativa prévia de suicídio ou risco em relação a isso, é preciso informar a família e pedir sua colaboração, bem como mediar o acesso do estudante em sofrimento emocional aos profissionais específicos que poderão auxiliá-lo a superar o sofrimento.
A abordagem que se seguirá será feita por profissionais específicos, conforme o caso: médico, psicólogo, assistente social, agente comunitário de saúde, agente indígena de saúde, e na falta desses profissionais na escola, deve-se recorrer aos Centros de Apoio Psicossocial (CAPS) e unidades básicas de saúde, ou outros serviços de saúde conveniados com a instituição de ensino. O encaminhamento para avaliação de saúde e terapêuticas específicas é um passo relevante para a prevenção dos danos, todavia o trabalho pedagógico não se encerra aí.
A postura em relação a esses estudantes, mesmo quando já estejam em tratamento, deve ser a de acolhimento, de presença constante e solidária e de promoção da reflexão crítica sobre as implicações das escolhas políticas e econômicas e das configurações de nossa cultura sobre o nosso bem-estar. É importante que, ao promover essas reflexões, o professor também se inclua, fazendo o estudante perceber que determinados fenômenos possuem impactos coletivos, não apenas sobre sua vida, e que determinados problemas são comuns à maioria das pessoas, acontecem mais em determinadas fases da vida e podem ser superados, ou que se pode aprender a conviver com eles, redimensionando a interpretação sobre o sofrimento. Observe-se que não se trata de negar, minimizar ou depreciar a dor do outro, mas de ensiná-lo a olhar por outros ângulos, visualizar outros cenários e acessar recursos de ajuda. Para isso, o portal informativo que elaboramos apresenta informações de utilidade pública.
O trabalho educativo com esses estudantes deve ser contínuo, global e sequencial, o que implica “alterações do ambiente físico e social, das relações interpessoais e mudança de comportamentos de todos os intervenientes nos processos de ensino-aprendizagem” (PORTUGAL, 2019, p. 13). Ele não pode se limitar à sala de aula, uma vez que ela congrega uma série de demandas que nem sempre pode ser interrompida para se dar a atenção devida ao aluno em sofrimento mental. Desse modo, além de trabalhar em sala de aula, de modo transversal, o tema da saúde mental e dos fatores econômicos, sociais e culturais que levam ao adoecimento – superando, portanto, o modelo biomédico de explicação do processo saúde-doença, propomos a realização de Rodas de Conversa no contraturno das aulas.
As rodas de conversa devem ser um espaço acolhedor e favorável ao diálogo, onde os estudantes possam falar de forma voluntária sobre suas preocupações e angústias e compartilhar possíveis alternativas para enfrentamento dessas questões. As rodas de conversa devem possibilitar o livre-falar, mas sempre com a mediação do profissional da educação responsável pela atividade. Atitudes discriminatórias ou de estímulo à violência devem ser reprimidas. É importante que as regras da atividade (ações permitidas e proibidas) sejam informadas no início de cada reunião, de modo a evitar desconforto entre os participantes.
Como incentivo ao diálogo, pode-se proporcionar a oitiva de uma música, a exibição de um filme ou documentário e mesmo a disponibilização de textos que contribuam para a reflexão. Temas como preconceito, bullying, cyberbullying, sexualidade, pensamento de morte, autoagressão, suicídio, violência doméstica e violência sexual podem ser problematizados. Em face de tais temas é importante que o mediador apresente os mecanismos de defesa/suporte às vítimas, tais como telefones para denúncia, legislação vigente, instituições de apoio, bem como se prontifique a auxiliar os alunos a buscarem ajuda, caso estejam passando por situação de violência e abuso. É recomendada, ainda, a presença de profissional da Psicologia nesses eventos, se possível.
Com essas rodas de conversa acontecendo periodicamente, aos poucos se consolidará na instituição uma cultura de acolhimento, e elas passarão a ser vistas como espaços humanizados, onde os estudantes em sofrimento emocional podem conversar e buscar ajuda. Ao final de cada roda de conversa, os novos participantes deverão ser convidados a preencher uma ficha de registro, a qual conterá informações sobre sua vida familiar, situação econômica, problemas de saúde, existência de pensamentos de suicídio, se já se lesionou voluntariamente, tipos de lesões autoprovocadas, periodicidade, motivos percebidos/desencadeantes do comportamento, tipo de tratamento ou suporte buscado à época. Ao final da ficha deverá constar termo de assentimento ou consentimento do estudante em receber ajuda institucional, caso apresente-se em risco em relação à sua saúde mental.
Estima-se que a metodologia proposta possa contribuir tanto com profissionais da educação quanto com estudantes adolescentes. Em relação aos primeiros, a metodologia proposta auxiliará a desenvolver ações coordenadas de prevenção aos riscos concernentes ao comportamento autolesivo e ideações suicidas em prol de seus alunos; em relação aos estudantes, a metodologia poderá impactar positivamente na sua saúde mental, na medida em que promoverá acolhimento, escuta e encaminhamentos para ajuda especializada. Por oportuno, informa-se que a metodologia desenvolvida ao longo desta pesquisa alinha-se às orientações da Organização Mundial de Saúde para professores (OMS, 2000) e a programas internacionais já validados acerca da matéria, como o Youth Aware of Mental Health (YAM) e o Programa de Prevenção do Suicídio Question Persuade Refer (QPR).
4 Discussão
A adolescência é uma fase da vida marcada por importantes mudanças biológicas, cognitivas, comportamentais, emocionais e sociais (REIS; MALTA; FURTADO, 2018). Novas experiências vivenciadas nessa fase podem se constituir em fatores de risco para a saúde física e mental, como uso de tabaco, consumo de álcool, alimentação inadequada, o sedentarismo, a solidão e exposição por longas horas às Tecnologias da Informação e Comunicação (MUNIZ; SILVA; MARINS, 2020).
Esses fatores tendem a se tornar ainda mais relevantes do ponto de vista da saúde pública na medida em que vivemos um momento particularmente complexo, sobrecarregado de sons, imagens e temporalidades múltiplas e irrefletidas, que objetificam a vida (MARQUETTI, 2011). Nesse contexto, presenciamos o crescimento do número de casos de suicídio, de ideações suicidas e de comportamentos autolesivos. Embora suicídio, ideação suicida e comportamento autolesivo sejam ações diferentes, com intencionalidades próprias (nem sempre visam ao suicídio), apresentam-se como desafio relevante para a família, a escola e para o campo da Saúde, causando inquietação e desconforto nos adultos que se veem responsáveis pelo cuidado de adolescentes (SIMONSEN, 2015).
Situações de sofrimento emocional podem desencadear condutas autolesivas, como a prática de cortes, escoriações e perfurações em partes do corpo, ideações suicidas e, em casos extremos, pode levar à morte por suicídio. Condutas autolesivas configuram um problema de saúde pública, que demanda ações intersetoriais para seu enfrentamento, assim, não se trata de um problema exclusivo da escola; mas de um problema que, ao se manifestar, muitas das vezes, nos espaços escolares, demanda que essas instituições reavaliem suas teorias e práticas pedagógicas, de modo a promover um ensino que colabore para uma compreensão ampla dos contextos sócio-históricos que envolvem os estudantes e que resultam em adoecimento e falta de esperança. Não obstante esse trabalho pedagógico continuado de reflexão e ação em favor da valorização e da defesa da vida, também são pertinentes ações específicas de promoção da saúde mental e de suporte biopsicossocial aos estudantes em sofrimento emocional.
Segundo Santos e Faro (2018), condutas autolesivas representam um comportamento típico entre adolescentes. Em geral, são atos acidentais ou impulsivos, e ocorrem “quando a pessoa sente raiva, medo ou ansiedade de forma tão esmagadora que não sabe como expressá-los” (SANTOS; FARO, 2018, p. 2). Não se trata, contudo, de problema de menor importância, mas sim de um problema de saúde pública, sobretudo porque pode ocorrer de tais condutas estarem acompanhadas de ideações suicidas, ou de serem mal calculadas e resultarem em lesões comprometedoras, ou mesmo na morte da pessoa. Já as ideações suicidas podem ser conceituadas como pensamentos sentimentos autolesivos em um grau mais avançado, sendo, também, comum na adolescência. Para Herenio e Zanini (2020, p. 234), “a alta incidência de ideações e tentativas de suicídio neste período da vida pode ser explicada pelos conflitos típicos da adolescência”.
O fato de práticas autolesivas e ideações suicidas serem comuns na adolescência, não quer dizer que devam ser negligenciadas, nem que serão superadas automaticamente com o avançar para a idade adulta. Evidenciam situações mais ou menos graves de sofrimento emocional, que podem ser intensificadas e se tornar insustentáveis em função do ambiente, das relações estabelecidas e do funcionamento cognitivo de cada adolescente. No limite, esse sofrimento mal gerenciado pode resultar em morte por suicídio. Assim, fazem-se necessárias ações integradas, efetivas e continuadas de promoção da saúde psíquica, inclusive no espaço escolar, pois “Suicídios são evitáveis. Há uma série de medidas que podem ser tomadas junto à população, subpopulação e em níveis individuais para prevenir o suicídio e suas tentativas” (JAEN-VARAS et al., 2019; OPAS, 2018), assim como para prevenir comportamentos autolesivos. Essas ações se fazem urgentes, tendo em vista as crescentes ameaças às condições materiais de subsistência da classe trabalhadora, que se somam à solidão, ansiedade, depressão, falta de perspectivas de vida, vínculos sociais frágeis, relações utilitaristas, rápidas transformações tecnológicas, instabilidade e insegurança.
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2019), o suicídio está entre as dez principais causas de morte na população mundial em todas as faixas etárias, ocupando o terceiro lugar no grupo com idade entre 15 e 34 anos. Sua prevalência é maior em indivíduos do sexo masculino, todavia as ideações e tentativas de suicídio são mais frequentes entre pessoas do sexo feminino. No Brasil os indicadores para o fenômeno apresentam baixa magnitude quando comparados com países nórdicos, balcânicos e asiáticos, mas ainda assim são dignos de preocupação, pois se revelam ascendentes. Dados do Portal PEBMED (https://pebmed.com.br/setembro-amarelo-taxa-de-suicidio-aumenta-7-no-brasil-em-seis-anos/) informam que a taxa de suicídios no Brasil para cada 100 mil habitantes aumentou 7% no período de 2014 a 2019, revelando-se o oposto da tendência mundial, que foi de queda de 9,8%. Ainda segundo o referido portal de notícias médicas, o suicídio foi a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos, após os acidentes de carro. Entre os adolescentes de 15 a 19 anos, o suicídio foi a segunda principal causa de óbito entre meninas (após condições maternas) e a terceira principal causa de morte de meninos (após lesões na estrada e violência interpessoal). Assim, estamos diante de um problema de saúde pública, que atinge de maneira significativa pessoas em idade escolar, o que desafia não só os serviços de saúde e as famílias, como também as instituições escolares.
No que se refere à violência interpessoal e à autoprovocada, o sistema de Vigilância de Violências e Acidentes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (VIVA/Sinan), do Ministério da Saúde, informa que no período de 2011 a 2016 foram registrados 1.173.418 casos de violências interpessoais ou autoprovocadas, sendo que 176.226 (15%) é relativo à prática de lesão autoprovocada. Também foi constatado no período o aumento no número de casos de lesão autoprovocada, tanto em indivíduos do gênero feminino (209,5%) quanto do masculino (197,7%), sendo que a faixa etária que apresentou maior prevalência desses casos é justamente a da adolescência, definida no Brasil, para fins de políticas públicas, como a que vai de 10 a 19 anos de idade.
Entende-se que as instituições educacionais possam contribuir de maneira significativa para a promoção da saúde mental dos estudantes, mediante ações continuadas de acolhimento, inclusão, diálogo e reflexões sistemáticas sobre os temas em questão. Também podem desenvolver campanhas de promoção da saúde mental, oferecer aconselhamento e acompanhamento pedagógico aos estudantes em sofrimento mental, firmar parecias com serviços especializados, ou oferecer, de modo direto, suporte biopsicossocial, quando dispuser, em seus quadros, de profissionais como psicólogo, assistente social e enfermeiro – como ocorre em grande parte dos Institutos Federais (IF), que contam com esses recursos humanos.
Nesse sentido, os IF têm condições diferenciadas para oferta desse suporte, sendo relevante sua defesa enquanto instituição pública, gratuita, laica e autônoma do ponto de vista financeiro e didático-pedagógico. É fundamental, portanto, barrar os processos de precarização e desvio de seus objetivos sociais: “Urge que, nesse ‘tempo presente’, lutemos no sentido da contra-hegemonia” (SOUZA; MEDEIROS NETA, 2021, p. 120). Por outro lado, não podemos desconsiderar que as próprias dinâmicas escolares podem se tornar elementos estressores, capazes de contribuir com o adoecimento dos estudantes. Sobrecarga de atividades, tensão por rendimento, competitividade, falta de aceitação social e bullying são fatores que podem desencadear adoecimento físico e mental, resultando em processos de autoagressão e de ideação suicida quando o estudante não vê alternativas para seus sofrimentos.
É difícil mensurar em que medida as instituições escolares contribuem para o adoecimento emocional de estudantes, entretanto, a suspeita é de que essa escala de contribuição seja vasta. Contribuem para essa percepção fatores como a dualidade estrutural presente na educação pública brasileira, a exclusão justificada a partir de parâmetros psicométricos e o “giro emocional” contemporâneo (CIERVO, 2019), conexo à lógica gerencial/capitalista, que limita e subverte o sentido do trabalho educativo, ampliando ainda mais a cisão entre cognição e emoção, capacidade intelectual e capacidade emocional. Ademais, não podemos esquecer que desde o início de nossa vida republicana, a Educação foi estruturada a partir de instituições, currículos e práticas formativas diferenciadas para ricos e pobres: aos filhos da classe trabalhadora foi oferecida, tão somente, a educação básica, quase sempre de perfil profissionalizante, com vistas a formar mão de obra para atividades produtivas de baixa remuneração; enquanto para os filhos das elites não foram medidos esforços para consolidar uma educação humanista, que assegurasse o acesso ao ensino superior e à pós-graduação. Aos pobres, portanto, formação técnica; aos ricos, formação universitária. Essa dualidade injusta que marca, até os dias de hoje, a educação pública brasileira, é estratégica aos interesses do grande capital:
[…] a divisão social e técnica do trabalho constitui-se estratégia fundamental do modo de produção capitalista, fazendo com que seu metabolismo requeira um sistema educacional classista e que, assim, separe trabalho intelectual e trabalho manual, trabalho simples e trabalho complexo, cultura geral e cultura técnica, ou seja, uma escola que forma seres humanos unilaterais, mutilados, tanto das classes dirigentes como das subalternizadas (MOURA; LIMA FILHO; SILVA, 2015, p. 1.059).
Outro aspecto a ser considerado em relação ao “mal-estar” gerado pela própria escola se refere aos processos de exclusão que lhes são inerentes, e que resultam em fracasso escolar e interrupção do processo formativo dos estudantes que não correspondem às suas expectativas de normalidade e rendimento. Essas práticas de exclusão basearam-se amplamente, nas décadas de 1930 a 1980, de ideologias segregadoras pautadas em parâmetros psicométricos, que serviram para rotular como “problemáticos”, “atrasados” ou “incapazes de acompanhar a turma” os estudantes com dificuldades de aprendizagem, desconsiderando os contextos e desafios enfrentados por eles. Nesse período, os discursos higienistas, médicos e psicológicos tiveram realce (MOLERO, 2015).
Mesmo com o advento das políticas de regularização de fluxo, que contribuíram para a redução do fracasso e evasão escolar e da distorção idade-série, a exclusão e marginalização social produzidas pela escola não cessaram, apenas mudaram de forma. Conforme Paparelli:
Apesar de produzirem o aumento nos índices de aprovação escolar e menor evasão, não incidem sobre a lógica excludente do sistema escolar, não garantem aos alunos uma educação de qualidade, conforme revelam os próprios dados oficiais constituídos pelos programas de avaliação escolar. Ao que tudo indica, temos aqui um processo de sutilização dos mecanismos de exclusão dos alunos, caracterizado pela diminuição da exclusão DA escola, acompanhada de um aumento da exclusão NA escola (PAPARELLI, 2009, p. 21).
A partir da década de 1990, os agenciamentos neoliberais sobre a escola têm conjugado reformas educacionais que reduzem o currículo, suprimem conteúdos e mesmo disciplinas inteiras, limitando as oportunidades de desenvolvimento cognitivo – que são fundamentais para a compreensão dos fenômenos e o posicionamento crítico no mundo. Ao empobrecerem os currículos, estreitam os horizontes da cidadania e ampliam as desigualdades sociais, reforçando as diferenças de classe, já que, mais uma vez, os estudantes que possuem dinheiro poderão estudar em escolas particulares, que fogem a essa regra e oferecem sólida formação propedêutica; e os que não o possuem, ficarão limitados ao currículo assistemático e fragmentado, sob a ilusão de “poder escolher” o itinerário formativo que quiserem.
No contexto dessas reformas, o desenvolvimento de competências socioemocionais tem ganhado cada vez mais relevo, e isso fica claro quando direcionamos nosso olhar para o Novo Ensino Médio brasileiro:
Concretamente, do total de 3.000 horas (ou 4.200 horas, no caso de expansão para 1.400 horas anuais) do ensino médio, apenas 1.800 horas poderão ser dedicadas ao ensino do currículo mínimo. As 1.200 horas restantes (ou 2.400, no caso de currículo com 1.400 horas anuais), deverão compor itinerários educativos que sigam quatro eixos estruturantes: “investigação científica; processos criativos; mediação e intervenção sociocultural; e empreendedorismo” (BRASIL, 2019). […] Assim, os itinerários formativos consomem uma parte expressiva da carga horária da escolarização da juventude em nível médio e se apresentam como meio de viabilizar a efetiva orientação da oferta de competências de acordo com a demanda do empresariado (ACCIOLY, 2021, p. 713).
O que está por trás, portanto, dessa ênfase nas competências socioemocionais é a formatação de um tipo de trabalhador flexível às demandas do capital, limitado em sua capacidade de compreensão das relações sociais de produção e conformado com sua situação no mundo. Diante do exposto, concordamos com Molero quando diz que: “Não há como deixar de associar tal ideologia aos padrões comportamentais de resignação produtiva e de condicionamento e docilização dos corpos dos alunos, máxima da escola contemporânea” (MOLERO, 2015, p. 9).
Na dialética entre as pressões dos organismos neoliberais sobre a educação pública dos países em desenvolvimento e os inúmeros desafios vivenciados pelos profissionais da educação no chão da escola, tem havido, por parte desses últimos, boa aceitação da proposta de desenvolver educação emocional. Há a crença de que esta possa resultar não só em ganhos econômicos e produtivos, mas em benefícios para os alunos, dentre os quais a redução de comportamentos de risco, a melhoria da saúde mental e a melhoria do rendimento escolar (PORTUGAL, 2019). Nesse contexto, a formação de competências socioemocionais desponta como a nova panaceia da resolução dos problemas educacionais.
Como toda promessa fácil, nossa postura deve ser de cautela. Não se trata de negar os benefícios do aprimoramento das formas de expressão das emoções, do autoconhecimento, do cuidado de si, e da definição de parâmetros éticos na relação com outro, mas de identificar os interesses que se ocultam nesses novos discursos (que na verdade nem são novos), e de buscar promover uma educação integradora, omnilateral, atenta ao desenvolvimento dos diversos aspectos constituintes do ser humano.
Em face de tal perspectiva, defendemos que é pertinente que as instituições escolares se consolidem como ambiente acolhedor e comprometido com o cuidado de seus alunos, inclusive no que reporta à proteção e promoção da saúde mental, de modo a ampliar os fatores de proteção aos riscos de comportamentos autolesivos e suicídio. Entretanto, o desenvolvimento das competências socioemocionais não pode ser trabalhado em dissociação dos aspectos cognitivos. O que propomos é a integração dessas competências em prol de uma formação omnilateral – ou seja, de uma formação comprometida com as diferentes dimensões do ser humano, dentre as quais o trabalho, a ciência e a cultura (RAMOS, 2014). Para que essa ocorra, é imprescindível, portanto, uma base sólida de História, Geografia, Filosofia, Sociologia, Literatura, em suma, de cultura universal, bem como de compreensão do trabalho como princípio educativo, incluindo suas apropriações pelo capitalismo nas relações contemporâneas de produção.
5 Considerações finais
Vivemos em um tempo acelerado em determinados aspectos, mas limitado e reprodutivo das velhas mazelas sociais em outros aspectos. Um tempo que promete liberdade, realizações, horizontes quase que infinitos, mas que se omite em relação ao essencial: a saúde mental, as dificuldades de aprendizagem e de convivência, as condições materiais da existência. Neste tempo, ideações suicidas, comportamentos autolesivos e suicídio configuram um problema de saúde pública que tem se agravado entre adolescentes e jovens, o que indica que esse segmento populacional está sofrendo de várias maneiras e em variados níveis.
Esses problemas se fazem presentes também em estudantes dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, desafiando a Educação Profissional e Tecnológica a considerar tais problemáticas em suas formulações teóricas e em suas práticas pedagógicas, visto que negligência, abandono, carências materiais, violência familiar, escolar e social, incertezas em relação ao futuro (estudos, trabalho, constituição de família), preconceitos de gênero, etnia e cor compõem o complexo mosaico da vida cotidiana de milhares de pessoas em idade escolar no Brasil.
Apesar dos agenciamentos neoliberais que a escola vem sofrendo, e de seu perfil reprodutor da ordem social vigente – em outros termos, instrumento do capital, ela também é espaço de resistência e de recriação das relações humanas. Por isso pode ser um importante ponto de apoio para o desenvolvimento saudável de adolescentes e jovens, desde que se comprometa a ser “presença gentil”, empática, compreensiva e disposta a contingenciar os fatores de risco para comportamento autolesivo, por meio de uma educação problematizadora dos fatores econômicos e socioculturais que contribuem para o adoecimento psíquico. Mas a responsabilidade em relação à prevenção de riscos e promoção da saúde mental de adolescentes não pode ser apenas da escola. A comunidade, a família e a escola devem caminhar juntas, pois o perigo do suicídio é real, as ideações suicidas, autoagressão e tentativas de morte autoinfligida são mais comuns do que se costuma imaginar.
Na esteira do compromisso político com uma formação omnilateral, que integre as múltiplas dimensões do ser, a pedagogia da presença é o horizonte pedagógico indicado por este estudo para o enfrentamento dos problemas aqui discutidos, pois ela traz em seu enredo a necessidade da “presença”, do estar junto sem julgar, do acolher e ensinar não só por palavras, mas por exemplos. Ela se apresenta como um convite à reflexão sobre os desafios do mundo moderno que se reproduzem no microcosmo escolar e se revela estratégia relevante para uma educação integradora.
Recomenda-se aos profissionais da educação que atuam na Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica a aproximação em relação a essa pedagogia, com vistas avaliar os benefícios que ela pode gerar em seus espaços de trabalho e desenvolver oportunidades continuadas de promoção da saúde mental de seus estudantes.
Agradecimentos
Agradecemos aos bolsistas de Iniciação Científica Maria Eduarda Almeida Lustosa e Gustavo Brito Bezerra Siqueira pela colaboração na pesquisa, bem como à Pró-Reitoria de Pesquisa, Inovação e Pós-graduação do IFRO e ao CNPq, pelo subsídio concedido.
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Notas de autor
Información adicional
COMO CITAR (ABNT): BARBOSA, X. C.; OLIVEIRA, R. L. S. Comportamento autolesivo e ideação suicida na adolescência: desafios na Educação Profissional e Tecnológica. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 2, p. 581-600, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p581-600. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16337.
COMO CITAR (APA): Barbosa, X. C., & Oliveira, R. L. S. (2022). Comportamento autolesivo e ideação suicida na adolescência: desafios na Educação Profissional e Tecnológica. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(2), 581-600. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p581-600.