Dossiê Temático: “A pesquisa em Educação Profissional e Tecnológica: temas, abordagens e fontes”
A escrita de memoriais no ProfEPT: experiência e conhecimento
Memorials writing at ProfEPT: experience and knowledge
Escribir memoriales en ProfEPT: experiencia y conocimiento
A escrita de memoriais no ProfEPT: experiência e conhecimento
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 24, núm. 2, 2022
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 15 Diciembre 2021
Aprobación: 12 Julio 2022
Resumo: Escrever academicamente é um exercício que envolve uma prática laboral. Neste artigo, o objetivo perpassa pela apresentação e análise de memoriais escritos por mestrandos do ProfEPT do IFRO Campus Porto Velho Calama. Refletir sobre a escrita de memoriais é a meta a ser alcançada quando solicitado o gênero como processo avaliativo. Na perspectiva humanizadora da EPT, supomos que a escrita de memoriais poderá levar o estudante a se autocriticar e autorrefletir sobre sua escrita, mobilizando várias configurações na dimensão pedagógica. Os pressupostos metodológicos utilizados neste artigo perpassam pela Pesquisa Aplicada, pautada numa experiência de escrita acadêmica por meio do gênero memorial, produzido pelos discentes do ProfEPT, na disciplina Seminário de Pesquisa. A escolha por três memoriais se deu devido às diferenças entre eles na oportunidade de mostrar as peculiaridades e caminhos de escolhas e ao trazer fatos e subjetividades ao gênero trabalhado. Como referencial dialogamos com teóricos, como Bakhtin (2006), Barthes (2004), Larrosa (2021) e Santos (2008). A reflexão a respeito dessa escrita se torna justificável pela possibilidade de o aluno de mestrado refletir sobre si e sua produção acadêmica no tocante às peculiaridades do ProfEPT. A escrita de memoriais no ProfEPT traz reflexões sobre o processo de escrita acadêmica e cogita o ponderamento a respeito do conhecimento necessário advindo de uma escrita híbrida, em que se pode mesclar os conhecimentos teóricos com reflexões interpretativas e subjetivas.
Palavras-chave: Escrita, Memoriais, Formação docente, Ensino Profissional.
Abstract: Writing academically is an exercise that involves practical work. In this article, the aim is the presentation and analysis of memorials written by ProfEPT master's students at IFRO Campus Porto Velho Calama. To reflect on the writing of memorials is the goal to be reached when asking for gender as an evaluative process. In the humanizing perspective of TVET, we assume that the writing of memorials can lead the student to self-criticize and self-reflect on their writing, mobilizing several configurations in the pedagogical dimension. The methodological assumptions used in this article are the description of an academic writing experience through memorials, produced by ProfEPT students. The selection of three memorials was made due to the differences between them in terms of the opportunity to show the peculiarities and paths of selection, and to bring facts and subjectivities to the chosen genre. As a reference, we dialogue with theorists, such as Bakhtin (2006), Barthes (2004), Larrosa (2021), and Santos (2008). The reflection about this writing becomes justifiable by the possibility of the master's students to reflect on themselves and their academic production regarding the peculiarities of ProfEPT. In a partial assessment, the writing of memorials in ProfEPT brings reflections on the academic writing process and a consideration regarding a necessary knowledge arising from a hybrid writing, in which theoretical knowledge can be mixed with subjective interpretive reflections.
Keywords: Writing, Memorials, Teacher Training, Technical and Vocational Education and Training (TVET).
Resumen: Escribir académicamente es un ejercicio que implica un trabajo práctico. En este artículo, el objetivo abarca la presentación y el análisis de memoriales escritos por estudiantes de maestría del ProfEPT del IFRO Campus Porto Velho Calama. Reflexionar sobre la redacción de memoriales es el objetivo por alcanzar al pedir el género como proceso evaluativo. En la perspectiva humanizadora de la EPT, asumimos que la redacción de memoriales puede llevar al alumno a autocriticarse y a reflexionar sobre su escritura, movilizando diversas configuraciones en la dimensión pedagógica. Los supuestos metodológicos utilizados en este artículo son la descripción de una experiencia de escritura académica a través de memoriales. La elección de tres memoriales se debió a las diferencias entre ellos en cuanto a la oportunidad de mostrar las peculiaridades y caminos de elección y de acercarle hechos y subjetividades al género trabajado. Como referencia, dialogamos con teóricos como Bakhtin (2006), Barthes (2004), Larrosa (2021) y Santos (2008). La reflexión sobre este escrito se justifica por la posibilidad de que el estudiante de maestría reflexione sobre sí mismo y su producción académica, considerando las peculiaridades del ProfEPT. En una evaluación parcial, la redacción de memoriales en ProfEPT trae reflexiones sobre el proceso de escritura académica y considera pensar sobre un conocimiento necesario derivado de una escritura híbrida, en la que se pueden mezclar conocimientos teóricos con reflexiones interpretativas subjetivas.
Palabras clave: Escritura, Memoriales, Formación docente, Educación Profesional.
1 Introdução
O sujeito, então, se escreve. Sua escrita vai se construindo nesta relação com o Outro, em suas relações originárias, nestas relações em que o sujeito 'tateia', tentando responder, porém, sem saber ao certo, o que o Outro quer, naquilo que, no desejo, é desconhecido (BERGAMASCHI, 2006, p. 55).
Escrever não é apenas registrar ideias, mas também refletir sobre o registro. Sabemos que a sociedade do audiovisual está ganhando espaço na contemporaneidade, em detrimento do texto escrito, sobretudo entre os mais jovens – a rapidez da vida contemporânea propõe a mitigação da experiência reflexiva própria da escrita, dando-lhe um teor de registro esparso de informações da oralidade. Para Barthes (2004), “Todas as escritas apresentam um caráter de fechamento que é estranho à linguagem falada.” Desta forma, a escrita propõe uma individualidade de expressão e, nesta perspectiva, significa materializar um pensamento individual e torná-lo coletivo.
O ato de escrever se concretiza de várias formas, depende do espaço em que está o sujeito escritor e as razões que o impelem a escrever. Dificilmente podemos afirmar que a linguagem é neutra, seja ela escrita ou falada. Ela carrega em si aspectos linguísticos, narrativos, culturais e afetivos. Nesse sentido, podemos ver o processo da escrita como um aspecto essencialmente dinâmico e interlocutivo, mas que envolve vários interlocutores com várias intencionalidades. De toda maneira, escrever qualquer tipo de texto é expor-se ou lograr-se tanto de modo subjetivo como objetivo.
Uma das formas de revelar-se, mesmo que por fragmentos de memória é a escrita de memoriais. A estrutura do memorial, como escolha de escrita, insere-se num tipo de narração da própria vida. Nesse tipo de texto, os sujeitos se revelam a si mesmos e aos outros, testemunhando suas experiências de vida. Sendo assim, traremos para análise três textos escritos por alunos ingressantes do Programa de Mestrado Profissional em Rede, da Instituição Associada - IFRO. Os textos do gênero memorial serão analisados não como mero dispositivo de avaliação de uma disciplina, mas como escritas de si, que revelam ou escondem a identidade de cada aluno, o que será de grande importância para o Programa em sua dimensão pedagógica.
Com este artigo, pretendemos centrar forças nas análises dos textos propostos, com o intuito de ressaltar a importância da visão ontológica e histórica da educação, na dimensão que integra conhecimentos e saberes advindos de cada ser social. Pretendemos também repensar nosso papel de formadores de docentes que irão atuar na EPT.
Os textos selecionados para esta análise inicial originam-se nas atividades desenvolvidas na disciplina Seminário de Pesquisa, ministrada no primeiro período do curso. Esta disciplina tem como foco repertoriar o aluno iniciante do curso, de pesquisas/produtos já implementados, bem como subsidiar as(aos) possíveis orientadoras(es) com informações sobre as futuras pesquisas desses mestrandos, a partir da análise dos pretensos objetos de pesquisas escolhidos e descritos por eles.
A escrita de memoriais, cuja identidade textual, em sua gênese, parece ser predominantemente de cunho descritivo/narrativo, por isso com marcas de pessoalidade, vai além dessa perspectiva, como veremos no decorrer das análises. Essas escritas não são apenas exercícios de expressão subjetivas, mas produzem vários tipos de reflexões: do ponto de vista organizacional do texto, da reflexão de si e do estar no mundo, da reflexão sobre a escrita acadêmica que requer um conhecimento não apenas técnico estrutural como registro de um repertório de conhecimentos e do pensamento organizado. Esses tipos de textos são primordiais, sobretudo no campo da educação humanizadora apregoada pela EPT, pois revelam o ser em sua subjetividade.
2 Memoriais: narrativas de si e de outros
Escritas de si, memórias, testemunhos, são alguns termos muito utilizados para os tipos de texto que se referem a falar sobre experiências de mundo de modo subjetivo. Na vida profissional docente, a escrita deve fugir da ideia de que escrever significa treinar técnicas adequadas a uma boa escrita acadêmica objetiva. Esse procedimento, como já sabido, tolhe a aquisição de conhecimentos de forma a promover a ideologia da reprodução de técnicas e fórmulas já estabelecidas, do ponto de vista da estrutura textual acadêmica. Nesse sentido, a maneira dinâmica, individual e interlocutiva fica esmaecida.
A escrita de si, no campo da educação, pode revelar não só a história de vida, mas o autoconhecimento de si, de perspectivas de novos saberes internalizados e pode funcionar como dispositivo para a prática profissional, cuja missão maior é levar seu aluno a pensar por si, através de seu repertório de conhecimentos adquiridos ao longo de sua trajetória de vida.
As narrativas de vida profissional e de formação estão presentes na vida acadêmica, no Brasil, desde a década de 1930, quando se usava a escrita de memorial para a seleção de candidatos ao cargo de professor (PASSEGGI; BARBOSA, 2008). No decorrer dos anos, o memorial tem exercido papel importante, tanto nos cursos de formação de professores como nos cursos de pós-graduação, nos quais tem sido utilizado como dispositivo de formação, onde o sujeito narrador, em um processo de escrita – crítica reflexiva –, narra a trajetória formativa de si, enfatizando os acontecimentos significativos para sua formação.
Muito se tem relacionado a ideia de conhecimento com experiência. Diferentemente do que se pode imaginar, a experiência, no processo educativo, vai além do narrar fatos sobre si que sirvam de lição para outrem, ou seja, a experiência como experimento mesmo, de caráter transitivo. Ao contrário, o conhecimento advém de uma relação implícita com a experiência/sentido. Para Larrosa (2021), não é a verdade que dá sentido à escrita e à educação, mas sim a experiência: “Educamos para transformar o que sabemos e não para transmitir o já sabido.”
No campo das Humanidades, sobretudo da educação, há pelo menos duas vertentes que influenciam sobremaneira no processo de escrita como experiência de si: a questão metodológica e a questão crítica. Para Larrosa (2021), “o par ciência/técnica remete a uma perspectiva positiva e retificadora, o par teoria/prática remete sobretudo a uma perspectiva política e crítica.” Para esse autor, a experiência é sempre “impura”, não é um conceito provável cientificamente, pois é única e não universal, é uma reflexão do sujeito sobre si mesmo, portanto, única.
A ciência como fonte única e soberana do conhecimento entra em colapso nos tempos atuais. Boaventura de Sousa Santos, em seu “Discurso sobre as Ciências”, um texto escrito no final do século XX, já preanuncia a crise da hegemonia das ciências puras, que desemboca numa forma diferente de entender o que é o conhecimento, que se volta também para o senso comum e o autoconhecimento:
A ciência pós-moderna, ao sensocomunizar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida. É esta que assinala os marcos da prudência à nossa aventura científica. A prudência é a insegurança assumida e controlada. (SANTOS, 2008, p. 91).
O pensamento desse autor nos revela que o paradigma de conhecimento realmente solidificado se dá pela junção do objeto que se quer conhecer com o conhecimento íntimo de cada ser, em primeiro lugar.
É comum, no campo pedagógico, utilizar-se de expressões como os “vários saberes”, “inteligência emocional”, entre outras. Muitas vezes, esses conceitos são escamoteados em nome de uma “novidade” que vira regra. As narrativas de si, neste caso, passam a serem vistas como dispositivos metodológicos para se atingir um determinado conhecimento coletivo, que sirva de “exemplo” e não como conhecimento único e inerente ao ser. Inevitavelmente, o conhecimento se tornará uma “acumulação progressiva de verdades objetivas” (LARROSA, 2021, p. 34). Nesse sentido, é preciso pensar e refletir sobre o que vem a ser de fato esses saberes, que por ora podem se constituir a partir das experiências vistas no sentido que estamos falando.
Desta forma, como experiência de escrita, ao focarmos nossa análise na produção de textos escritos por alunos do curso de mestrado em educação profissional e tecnológica do Instituto Federal de Rondônia – ProfEPT – IFRO, que revelam as escritas de si, ressaltamos que tais textos serviriam não apenas para o registro das experiências ou exercícios de escrita, mas para a mobilização de constantes reconfigurações na prática pedagógica.
Entendemos que, mesmo de modo subjetivo, a escrita do memorial promove um exercício racional, de organização mental de ideias tão importantes para o conhecer-se e o expressar-se, e, sobretudo, poderá auxiliar o mestrando na escrita mais objetiva de uma dissertação ou artigo científico, por exemplo. O que pode ser um excelente instrumento de revelação do eu na trajetória de vida acadêmica.
O memorial poderá expressar o potencial criador do mestrando de acordo com suas escolhas e atitudes do passado. Segundo Bakhtin (2006), o sujeito é dialógico, ou seja, constrói suas histórias, discursos e narrativas sempre em relação ao outro, mesmo que esse outro seja ele próprio numa perspectiva autobiográfica.
E essa escrita autobiográfica nos apresenta marcas, pistas de uma identidade sempre em construção, em reconstrução. E cada memorial é construído de forma única, de partículas resgatadas do passado para um presente com contexto diferente. As escolhas dos fatos a serem expostos no memorial podem sugerir uma identidade de acordo com as linhas e nós que o sujeito escritor realiza em seu texto. A escrita acadêmica em alinhavo com escolhas pessoais traz um exercício de expressão autoral que fica na fronteira do científico com o autobiográfico. E o sujeito construído nessa narrativa será o protagonista, o narrador de visão única que tecerá memórias escolhidas para uma leitura de outro.
3 Memoriais do ProfEPT: uma construção híbrida e inquieta
Escrever, na perspectiva que lhe é única, e sobretudo o gênero memorial, significa materializar um pensamento individual e torná-lo coletivo. Com isso, analisaremos alguns excertos dos memoriais produzidos pelos alunos ingressantes do Programa de Mestrado ProfEPT. Consideraremos que escrever sobre si não significa fazer somente um exercício de subjetividade, sem importância acadêmica, mas sim organizar o pensamento de modo racional, que demonstra uma experiência única, em um estilo único. E esse estilo pode ser traduzido, de início, pelos títulos:
O primeiro e o segundo sugerem uma objetividade de escrita acadêmica, como única forma de expressão. O terceiro título sugere uma escrita voltada para as experiências subjetivas da vida profissional e pessoal. Veremos como isso se configura no decorrer das análises de cada texto.
A escolha destes textos para análise se deu por serem textos escritos em registros muitos distintos. No texto 1, o registro faz uso de uma linguagem objetiva, sucinta, cujas etapas da vida se dão por meio de marcadores de datas. No texto 2, há a reconstituição da própria trajetória constituída como o percurso do herói, no qual é necessário ultrapassar muitas dificuldades para conseguir o almejado. No texto 3, o ponto de destaque é a escrita marcada pelo domínio do que chamamos de estilo até certo ponto poético.
No texto 1, a escrita parece passar por uma espécie de autoafirmação dos fatos narrados, sobretudo os da vida profissional, como se no decorrer dos acontecimentos o(a) autor (a) se isentasse de qualquer dificuldade. É como se o sujeito narrado estivesse no patamar dos que são vencedores:
Obtive meu progresso profissional
Em 1991, fui convidada para assumir o cargo de professora…
Tive total liberdade para desenvolver meus projetos…
Passando pela minha memória, destacam-se os anos de… também sendo convidada…
…obtive grande destaque nacional…
Essa maneira eufórica de encarar a vida e seus entraves parece estabelecer uma resistência que pode mostrar ou esconder os fatos como realmente aconteceram. Essa postura pode demonstrar também uma autoria criadora com o objetivo de transparecer sucesso e vitórias em sua caminhada. Sabemos que houve dificuldades, no entanto, o autor(a) optou por não inserir, avaliando mais interessante abordar apenas as conquistas:
Cumprindo meu papel social…
O texto todo marcado por um estilo que quer destacar mais os sucessos que os fracassos, como também a necessidade de provar os conhecimentos adquiridos na trajetória da vida.
Ao ser solicitada a escrita de memoriais como parte avaliativa, a intenção era muito mais a de conhecer melhor o que pensa, o que sabe e o que faz cada aluno do que propriamente avaliar a estrutura híbrida desse tipo de texto. Entretanto, houve uma maior preocupação, por parte dos autores em escrever para ser avaliado:
Atualmente, sou mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica (PROFEPT) com o objetivo de desenvolver um produto que colabore com a comunidade estudantil.
No texto 2, os marcadores vão na direção quase oposta do texto 1. As interposições são colocadas de forma que os tropeços e insucessos realçam as dificuldades encontradas, como se fosse possível justificar os fracassos na trajetória da vida. O tom do texto parece ser, portanto, de luta pela sobrevivência:
[…] concluí meu ensino Médio em escola pública. Na época não consegui ser aprovada no vestibular … Precisei trabalhar para atender às necessidades básicas e isto dificultou e retardou minha inserção junto a um curso de nível superior
Inicialmente, detectei que não era possível efetivar naquela ocasião tudo que acreditava ser ágil no período do estágio…
Porém, o texto toma uma direção mais eufórica, quando narra com entusiasmo a escolha da área profissional. Esse é um dado interessante; há uma tensão crescente de estilo de escrita entre o que se era antes e o que se passa a ser a partir de descobertas feitas por intermédio do outro:
Ingressei no Curso de Ciências Sociais em 2009, mas atuava como balconista (vendedora), em uma empresa privada, desde 2006.
Acabei sendo aprovada […] para o curso de Ciências Sociais,
Escolhi esse curso por se tratar de uma área de conhecimento que envolvia as questões sociais
O curso foi bastante inspirador
Parece que o curso da narrativa segue o mesmo da vida narrada. A encontrar o motivo que o impulsiona e o move para um lugar de fala, o autor(a) também acelera o ritmo do texto e o organiza de forma mais objetiva possível, deixando rastro de confiança:
O produto educacional que pretendo realizar junto ao Programa de Pós-graduação em Educação Profissional e Tecnológica- ProfEPT […] “Violações de direitos, estigmatizações em comunidades tradicionais na Amazônia: Localizar, Empoderar e Dialogar”
O texto 3 apresenta uma estrutura bem cuidada academicamente, ao mesmo tempo que consegue mesclar a criação estilística ficcional e realística, de modo a ser considerado mesmo como um texto de tessitura híbrida. É um texto que tem um ritmo acelerado, ligado ao tempo cronológico, mas se detém, vagarosamente, num tempo que traz a memória psicológica. Esses marcadores textuais são devidamente dosados pelo autor.
Apontamos o início escolhido pelo(a) autor(a) para o texto 3:
Travessias e construção do Memorial Acadêmico
"O narrador conta o que ele extrai da experiência - sua própria ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história." Walter Benjamin
O autor escolhe um subtítulo poético para iniciar sua escrita; “Travessias e construção do Memorial Acadêmico”. No título, já percebemos a hibridização do gênero a ser escrito. A palavra Travessias evoca poeticidade, atravessamento, ultrapassar fronteiras; e a palavra construção evoca a elaboração, a criação. São duas ideias que se perpassarão e aparecerão em seu texto. Outro ponto é a evocação do teórico Walter Benjamim com uma epígrafe em que coloca o leitor no processo, alguém que irá ouvir a história dele.
Na continuidade, o autor utiliza da metalinguagem ao explicar o que está fazendo e ao mesmo tempo, teorizando e refletindo sobre esse escrever:
Utilizo a palavra “desafio” para este texto porque há um limite tênue na produção acadêmica: o uso adequado das palavras, os sentidos que delas advêm e a necessidade do escrever científico. Isso quando não se tem fortes influências das literaturas e suas sinestesias. Proponho, então, o equilíbrio.
Ele consegue visualizar, além de rememorar e produzir um texto para uma atividade avaliativa, a possibilidade da crítica em relação à sua escrita. E o memorial acadêmico poderá levar o autor a refletir sobre essa inquietação.
As narrativas de si são colocadas na ordem eufórica, em que os “personagens” aparecem para serem coadjuvantes atuantes e precisos em suas conquistas e suas escolhas.
Aos cinco anos de idade fui para a pré-escola alfabetizado, uma vez que a ocupação de minha irmã adolescente era ensinar a escrever e ler.
Certo dia, para uma tarefa escolar, escrevi um texto com a máquina e minha professora disse para quando chegasse em casa que eu lesse para a família.
O memorial transpõe a esfera do público e do privado; e é por isso que possibilita a transgressão das hierarquias, fazendo com que as referências sejam tanto pessoais como teóricas. O texto 3 é repleto delas, o que demonstra, do autor, conhecimento e capacidade de organização teórica:
É preciso realizar essa dinâmica desde a educação básica, omnilateral, com o reconhecimento do aluno enquanto ser social, ativo na luta das classes e dinâmico frente às tensões necessárias para a equiparidade humana, especialmente no que se refere à emancipação […]
Como temas de interesse à pesquisa: Práticas Educativas, Comunicação e Educação, Diversidade e Comportamento, pretendo desenvolver meu projeto, com foco nas estratégias transversais e interdisciplinares, com escopo nas Habilidades Sociais da Comunicação para a EPT.
O gênero memorial não é uma simples biografia em que se colocam datas e acontecimentos desvinculados do eu e da subjetividade. Ao mesmo tempo que narra sobre si, seus sentimentos, sua vida e suas mazelas, o autor pode deixar transparecer seus saberes e seus conhecimentos organizados teoricamente, servindo de embasamento não apenas para uma ideia, mas também para uma vivência, uma experiência narrada anteriormente, como no exemplo a seguir:
Como Clarice escreveu em sua gratidão à máquina:
Que é leve bastante para o meu estranho hábito: o de escrever com a máquina no colo. Corre bem, corre suave. Ela me transmite, sem eu ter que me enredar no emaranhado de minha letra. Por assim dizer provoca meus sentimentos e pensamentos.
As várias escolhas de marcadores textuais que demarcam a experiência e conhecimento de cada autor sobressaem-se nos textos 2 e 3. Neles, conforme já dissemos, os saberes aparecem como forma demarcatória do saber. Saber que perpassa o caminho da subjetividade para a objetividade, do individual para o coletivo. No texto 2, ao referir-se às escolhas, o autor enfatiza um motivo exterior:
A experiência no estágio supervisionado… fez eu perceber que poderia fazer algo que aproximasse mais a Disciplina de Sociologia aos estudantes, uma vez que boa parte dos professores de Sociologia não eram graduados em Ciências Sociais, naquela ocasião. Além de ressaltar uma problemática vivida pelos professores e estudantes do Ensino Médio, uma vez que, os professores tinham que dar aulas de Sociologia para complementar suas cargas horárias de trabalho. Contudo, os estudantes sofriam prejuízos teóricos, não compreendiam a relevância da disciplina, tampouco a percebiam enquanto elemento essencial para uma boa colocação junto aos resultados do ENEM.
Desse modo, a perspectiva pessoal transborda para uma análise do lugar da área nos currículos do Ensino Médio, além da falta de profissionais especializados que, segundo ela, ocasionam prejuízos teóricos. Os limites entre o abstrato e o concreto, o sentimento e a razão tornam-se mais opacos. A elaboração do pensamento deixa de ser compartimentada, materializando-se na escrita por uma seleção que deixa ver tanto a formação humana como a formação profissional. Ou melhor, que esta faz parte daquela.
Nesse sentido, vimos que o memorial como gênero acadêmico está na esfera dos mais completos, por ser um texto de cunho intimista, descritivo, que revela, além do poder de organização textual, também conhecimentos teóricos e saberes empíricos do sujeito. Essa forma de registro textual revela o que pode ser escondido pela neutralidade e imparcialidade, abrindo um campo discursivo, teórico e crítico. No caso dos alunos do ProfEPT, Programa de Mestrado em rede nacional, que ingressam no curso sem um projeto de pesquisa pré-definido, o memorial pode funcionar como uma espécie de tornar-se conhecido para o Programa. A escrita do memorial instaura-se de forma híbrida, na ordem do “expor-se” e ao mesmo tempo do “lograr-se”. Logo, como já dissemos, o ato de escrever se reveste de várias formas, depende do espaço em que está o sujeito e as razões que o impelem a escrever, já que nenhum texto é autônomo, sem intencionalidade.
4 Breves considerações
O ProfEPT tem como proposta formar professores para atuarem na educação profissional e tecnológica de nível médio. Em sua gênese, a educação profissional vislumbra o ser humano histórico e social, visto de forma integral. Desta forma, o professor que atua nessa área precisa estar preparado para compreender que a lógica pragmática isolada esvazia a ciência e a educação. Dizendo de outro modo, a relação teoria e prática deve estar atrelada ao campo de conhecimento omnilateral de mundo. O conhecimento se adquire, portanto, não apenas com a descrição de uma realidade, de modo positivista, mas com a compreensão e análise dessa realidade de maneira ontológica. Desta forma, o sujeito constrói seu conhecimento a partir dos saberes que lhe são inerentes política, social e filosoficamente.
O gênero acadêmico memorial poderá contribuir para a formação docente no contexto da EPT no sentido de o estudante reconhecer que a escrita de si é um aspecto fundamental para a educação humanizadora em seu exercício profissional. Os memoriais podem ser avaliados como narrativas que contemplam a visão acadêmica com a intenção de se mostrar e apresentar seus pontos positivos em relação à carreira profissional e pessoal, perpassando por várias subjetividades. E nessas narrativas híbridas são compartilhadas as subjetividades familiares, pessoais, de formação, de crescimento profissional em uma escrita criadora única. O memorial como escrita de si pode ajudar o mestrando a conhecer-se e a se enxergar no processo de aprendizado para a formação docente. É um exercício que evoca, em sintonia com Passeggi e Barbosa (2008), uma performance, um fenômeno social e uma formação de si, de um sujeito que, por meio da escrita, produz informações que foram marcantes em sua trajetória.
Entendemos que, mesmo de modo subjetivo, a escrita do memorial promove um exercício racional, de organização mental de ideias tão importante para o conhecer-se e o expressar-se, e, sobretudo, poderá auxiliar o mestrando na escrita mais objetiva de uma dissertação ou artigo científico, por exemplo. O que pode ser um excelente instrumento de revelação do eu como sujeito autônomo na trajetória de vida acadêmica.
Referências
BARTHES, R. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. Trad. Mário Laranjeiras. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BAKHTIN, M. Metodologia das Ciências Humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [1974]. p. 393-410.
BERGAMASCHI, R. Escrita morte-origem em psicanálise. 2006. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, 2006.
LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Tradução: Cristina Antunes e João Wandeley Giraldi. 1. ed., 5. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
PASSEGGI, M. C.; BARBOSA, T. M. Memórias, memoriais: pesquisa e formação docente. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008. Coleção Pesquisa (Auto)Biográfica & Educação.
SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
Notas de autor
Información adicional
COMO CITAR (ABNT): FERRARI, S. A. F. L.; GOMES, I. R. A escrita de memoriais no ProfEPT: experiência e conhecimento. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 2, p. 531-540, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p531-540. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16562.
COMO CITAR (APA): Ferrari, S. A. F. L., & Gomes, I. R. (2022). A escrita de memoriais no ProfEPT: experiência e conhecimento. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(2), 531-540. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p531-540.