Dossiê Temático: “A pesquisa em Educação Profissional e Tecnológica: temas, abordagens e fontes”

Formação de professores e inclusão de pessoas com altas habilidades ou superdotação: um debate na educação profissional e tecnológica

Teacher training and inclusion of people with high abilities or giftedness: a debate in Technical and Vocational Education and Training

Formación de profesores e inclusión de personas con altas habilidades o superdotación: un debate en educación profesional y tecnológica

Tertuliano Soares e Silva 1
Brasil
Maylta Brandão dos Anjos 2
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Brasil

Formação de professores e inclusão de pessoas com altas habilidades ou superdotação: um debate na educação profissional e tecnológica

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 24, núm. 2, 2022

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2022 pelos autores.

Recepción: 09 Enero 2022

Aprobación: 12 Julio 2022

Resumo: O artigo traça um caminho metodológico de revisão bibliográfica e tem como ponto de partida a reflexão sobre a inclusão de pessoas com altas habilidades ou superdotação (AH ou SD) e a formação de professores na perspectiva do Ensino Médio Integrado (EMI) na Educação Profissional e Tecnológica. Tem por referência dados sobre essa realidade na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT). Conclui que o docente na EPT que está em campo no EMI ou nos cursos superiores oferecidos por todo o Brasil precisa estar em constante aperfeiçoamento para lecionar e contribuir para a inclusão e emancipação humana de seus alunos. Isso consiste, também, em reconhecer, identificar e atender alunos com AH ou SD em suas comunidades escolares para que atendam as potencialidades e as desenvolvam.

Palavras-chave: Formação de Professores, Pessoas com Altas Habilidades ou Superdotação, Educação Profissional e Tecnológica.

Abstract: The article traces a methodological path of bibliographic review and its starting point is the reflection on the inclusion of people with high abilities or giftedness (AH or SD) and teacher training from the perspective of Integrated High School (EMI) in Technical and Vocational Education and Training. It has as reference data on this reality in the Federal Network of Professional, Scientific and Technological Education (RFEPCT). It concludes that EPT professors who are in the field at EMI or in higher education courses offered throughout Brazil need to be in constant improvement to teach and contribute to the inclusion and human emancipation of their students. That also consists of recognizing, identifying and assisting students with AH or SD in their school communities so that they meet their potential and develop it.

Keywords: Teacher training, People with High Abilities or Giftedness, Technical and Vocational Education and Training (TVET).

Resumen: El artículo traza un camino metodológico de revisión bibliográfica y tiene como punto de partida la reflexión sobre la inclusión de personas con altas habilidades o superdotación (AH o SD) y la formación docente en la perspectiva de Bachillerato Integrado (EMI) en Educación Profesional y Tecnológica. Tiene como datos de referencia sobre esta realidad en la Red Federal de Educación Profesional, Científica y Tecnológica (RFEPCT). Se concluye que los profesores de la EPT que se encuentran en el campo en el EMI o en los cursos de educación superior que se ofrecen en todo Brasil deben estar en constante perfeccionamiento para enseñar y contribuir a la inclusión y emancipación humana de sus estudiantes. Eso también consiste en reconocer, identificar y ayudar a los estudiantes con AH o SD en sus comunidades escolares para que alcancen su potencial y lo desarrollen.

Palabras clave: Formación de profesores, Personas con altas habilidades o superdotación, Educación Profesional y Tecnológica.

1 Introdução

Vivemos uma crise de civilização gravíssima. As distorções sociais são agudas e observamos, dentre outras, a invisibilidade de um número sem igual de pessoas com altas habilidades ou superdotação (AH ou SD). Pesquisas como a de Mettrau (2000, p. 7) assinalam que "segundo estatísticas internacionais, os portadores de altas habilidades estão contidos numa faixa de 1% a 10% de qualquer população, independente de etnia, origem ou situação sócio-econômica". Em recente publicação Renzulli (2021) defende que de 10% a 15% de um população tenham AH ou SD.

Ainda no final do século XX, um estudo do MEC (1999 apudREIS, 2006, p. 21) baseado em pesquisas comprovadas alertou que diante dos dados da rede escolar à época haveria “38,75 milhões de sujeitos talentosos; 1,55 milhão de pessoas com AH ou SD; e 155 gênios”. Após 22 anos do estudo, de acordo com o censo escolar 2020, existem identificados na rede pública brasileira apenas 24.424 estudantes com AH ou SD de um universo de 47,3 milhões de matriculas na educação básica.

É de grande relevância para os estudos sobre inclusão de pessoas com AH ou SD no âmbito da Educação Profissional e Tecnológica (EPT) um estudo de caso da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT), realizado por Bruno (2020), que demonstrou existir 51 AH ou SD em 11 Institutos Federais localizados em 17 campi. No Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), segundo o mesmo estudo, havia apenas 1 AH ou SD identificado no Campus de Realengo. Na ocasião da pesquisa, segundo o MEC (BRASIL, 2018, p. 2 apudBruno, 2020, p. 50), a RFEPCT tinha ao todo “661 unidades distribuídas entre as 27 unidades federadas do país com um universo de 602.361 alunos”. Assim, em termos estatísticos tem-se apenas 0,0084% da população identificada de um percentual que deveria atingir entre 6.023 (1%) e 90.354 (15%), segundo estudos de Mettrau (2000) e Renzulli (2021).

Diante desse contexto, Reis (2006, p. 201) já alertava que “o campo teórico das altas habilidades ou superdotação no Brasil não se fortalece porque não temos formação que prepare profissionais para atuar nessa área”. Esse escopo de pesquisas aponta que as políticas públicas para formação docente devem considerar a inclusão de pessoas com AH ou SD como um de seus eixos mais importantes, sob pena de desperdício e exclusão de talentos.

O ponto de partida escolhido para a reflexão sobre a inclusão de pessoas com AH ou SD é a formação de professores na perspectiva do EMI na EPT tendo por referência dados sobre essa realidade na RFEPCT, segundo pesquisas de Bruno (2020) e Silva (2020), as quais podem servir de subsídios para formulação de políticas públicas para inclusão de AH ou SD em todo o país.

Inicialmente é necessário o reconhecimento de que existem disputas de poder e de visões de mundo no currículo da EPT, e o EMI é uma possibilidade metodológica contra-hegemônica para a superação dos dilemas de exclusão, que ora ainda subsistem nos desafios da educação brasileira. Nesse sentido, o EMI é historicamente pensado para fazer existir duas escolas que reproduzem uma sociedade dual – a daqueles que são formados numa escola para pensar e liderar, e outra escola onde são formados aqueles que irão obedecer acriticamente e realizar obra braçal que o capitalismo precisa para subsistir. Doravante a classe dirigente e a classe trabalhadora têm no ensino médio a arena de luta pela hegemonia de seus projetos (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012).

No tocante à inclusão de pessoas com AH ou SD, os projetos de poder podem assumir a defesa de consolidação de um modelo de sociedade excludente e elitista que garante reconhecimento, identificação e atendimento somente a pessoas com AH ou SD que têm condições econômicas de acesso a tais serviços; ou podem ser projetos inclusivos e distributivos das riquezas produzidas pela sociedade, incluída a pessoa com AH ou SD. A concepção de Mettrau (2000) concebe a inteligência humana sobre um aspecto novo: vê-la como patrimônio social de todos e para todos, ou seja, deve ser compartilhada com a coletividade o seu saber, sua compreensão de mundo e seus projetos para o benefício da sociedade. E é no sujeito com AH ou SD que a inteligência pode expressar-se no seu maior potencial de realização, impondo o dever de a ele ofertar a formação humana integral para sua inclusão e para o desenvolvimento de suas potencialidades. A coletividade carece das possíveis contribuições e realizações que a pessoa com AH ou SD tem a compartilhar com suas produções, quando de sua inclusão e da sua alta capacidade.

Nesse contexto, a educação profissional, em seus níveis básicos e médios, foi apartada da educação propedêutica (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2012). Esse mecanismo de exclusão e reprodução das lógicas de poder e dominação do sistema capitalista também se instaura na educação especial com seus diversos públicos. Assim, a discussão entre a educação especial e a educação profissional acabou por dar ênfase à profissionalização da pessoa com deficiência para tarefas simples, de caráter manual e com o mínimo possível de reflexão, pensamento ou uso da potencialidade humana que todos possuem (PASSERINO; PEREIRA, 2014).

Em raros momentos históricos se incluiu nas políticas públicas alguma estratégia de profissionalização da pessoa com AH ou SD, mas essas medidas não consignaram as estratégias para inclusão da dupla excepcionalidade da pessoa com deficiência, ou seja, quando ela vier também a possuir a condição de AH ou SD. Portanto, as pessoas com AH ou SD são um público que merece maior aprofundamento e visibilidade na Educação Especial. Recente pesquisa reitera esse pensamento:

Diferentemente dos demais alunos público-alvo da educação especial, […] pessoas com Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) ainda são pouco visualizadas, se comparadas às pessoas com deficiência, tanto pela família quanto pela escola. Este aspecto, talvez, possa ser compreendido, uma vez que as pessoas com deficiências, geralmente, apresentam uma característica que os identificam, que os marcam, diferentemente da pessoa com AH/SD, pois essa não tem um traço que a identifique de forma instantânea. (RECH, 2018, p. 159).

Mesmo sob o paradigma da inclusão os avanços para a público das pessoas com AH ou SD é pequeno – mais ainda em Educação Profissional e Tecnológica (EPT). O que faz oportuno discutir o tema da formação de professores para inclusão de pessoas com AH ou SD, com foco na formação continuada docente para o reconhecimento desse público.

O presente artigo discute os resultados parciais da pesquisa qualitativa na forma bibliográfica em andamento no Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica (PROFEPT) na linha de pesquisa Práticas Educativas em EPT sendo, por fim, abrigado como macroprojeto de inclusão e diversidade em espaços formais e não formais de ensino na EPT. O objetivo geral da pesquisa é discutir a formação continuada de professores da EPT para o reconhecimento, identificação e atendimento de pessoas com AH ou SD no corpo discente do IFRJ. E tem por objetivos específicos identificar a formação continuada de professores na EPT nas políticas públicas para inclusão de pessoas com AH ou SD; apontar os saberes necessários para o reconhecimento, identificação e atendimento de pessoas com AH ou SD na EPT; elaborar um plano de curso de formação continuada de professores na modalidade EaD para a inclusão de alunos com AH ou SD adequada à conformação institucional do Instituto Federal do Rio de Janeiro.

Assim a pesquisa vem sendo realizada conforme as etapas previstas por Gil (2018): escolha do tema; levantamento bibliográfico preliminar; formulação do problema; elaboração do plano provisório de assunto; busca das fontes; leitura do material; fichamento; organização lógica do assunto; e redação do texto. De tal forma que a partir do diagnóstico do estado da arte se pode inferir novos olhares e interpretações ao objeto deste trabalho.

Enfim deve anotar que serão usados como terminologia as expressões “Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD)” quando de citações anteriores a Lei n.º 13.234, de 29 de dezembro de 2015, que consignou ao texto legal a expressão “Altas Habilidades ou Superdotação (AH ou SD)” sendo a terminologia oficial utilizada atualmente.

2 A formação de professores no contexto do Ensino Médio Integrado (EMI) na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT)

Não se pode fazer perdurar a exclusão pela invisibilidade do público com AH ou SD diante da existência de uma proposta inovadora nas políticas públicas brasileiras que é o caso da opção teórico-metodológica da concepção de EMI na RFEPCT.

A proposta teórica, investida nesse artigo, almeja trazer a referência de educação omnilateral, integral e unitária sob a qual se assenta o trabalho como princípio educativo. Nesse sentido, a defesa é que o currículo deva proporcionar que todos sejam incluídos e tenham uma formação na qual os sujeitos emancipem-se para existirem como trabalhadores que liderem o movimento de pensar-fazer-produzir, conforme defendem Frigotto; Ciavatta e Ramos (2012, p. 17):

A educação integrada ou do ensino médio integrado ao ensino técnico e à educação profissional, postula que a educação geral se torne parte inseparável da educação profissional em todos os campos onde se dá a preparação para o trabalho: seja nos processos produtivos, seja nos processos educativos como a formação inicial, como o ensino técnico, tecnológico ou superior. Significa que se busca enfocar o trabalho como princípio educativo, no sentido de superar a dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual, de incorporar a dimensão intelectual ao trabalho produtivo, de formar trabalhadores capazes de atuar como dirigentes e cidadãos.

Os autores defendem um novo EMI como contribuição a uma nova sociedade, o que impõe pensar que os diversos públicos que a escola alcança tenham condições de exercício pleno da cidadania e da felicidade por meio do trabalho. De sorte que as práticas educativas que se realizam no currículo do EMI devem servir a uma educação libertária que não pode excluir grupos quaisquer, pelo contrário devem ser concebidos processos que aprimorem os mecanismos intrínsecos de inclusão no currículo. A formação de professores para inclusão de pessoas com AH ou SD é uma estratégia para promover a liberdade dentro da EPT, conforme afirma Anjos (2021, p. 271):

A liberdade é arma que empunharemos como causa de entendimento do universo escolar na educação profissional e tecnológica que assuma o trabalho como princípio educativo. A conquista da liberdade como caminho da felicidade põe em evidência a capacidade que temos de poder sermos quem queremos ser; de trilhar caminhos universais para a felicidade, traçando itinerários para o sensível, para a prática de uma educação divertida. Todos esses ingredientes tornam os processos para a educação libertária a grande pauta.

A partir desse ponto de reflexão sobre aspectos principiológicos da educação freiriana, em sua intersecção com a EPT, é preciso aprofundar o entendimento sobre a temática da formação de professores que, segundo Franco (2008), deve primar por desenvolver a postura crítico-reflexiva sobre o destinátário da ação educativa em termos de saber como educá-lo no contexto e suas necessidades. Não obstante, Tardif (2014) concorda e acrescenta o imperativo de compreender o professor na sua realidade e no seu processo de trabalho docente.

Portanto, existe um cotidiano escolar em que o professor ensina e aprende, pesquisa e reflete, constrói e desconstrói. Nesse cenário de investigação-intervenção para formação continuada de professores, as iniciativas devem superar os preceitos de uma educação bancária, meramente reprodutiva e alienada.

Destarte, Soffner (2014) defende que somente num contexto de reflexão e pesquisa sobre o fazer, o aprender e o ensinar é que a formação continuada de professores pode contribuir para que eles sejam inovadores em sua práticas educativas. Se os professores não forem imersos num ambiente de pesquisa e inovação terão muitos problemas e falhas para serem inovadores. É imperativo compreender a formação de professores a partir do princípio de que os atributos da educação inclusiva e democrática são basilares da EPT.

Assim, há um desafio a enfrentar que é a superação de um fato crucial na formação de professores da EPT que trata da crença que somente os cursos de capacitação complementares é que são necessários para que os docentes, que comumente são chamados de “instrutores” nos cursos de formação inicial e continuada, mais conhecidos como “cursos básicos”, sejam bem-sucedidos no exercício do magistério, situado como, meramente, preparador dos estudantes para o mercado de trabalho de acordo com seus ciclos. Como também entendem Cordão e Moraes (2017, p. 157):

O que se exigia dos professores desse ensino profissional era, simplesmente, alguma formação em "cursos apropriados", ou então em "cursos especiais" ou "cursos emergenciais". O nome mais comum para designar esses docentes era o de "instrutores". Sua formação consistia principalmente em orientar aprendizes em cursos e treinamentos que pudessem dar conta do atendimento às necessidades específicas do mundo do trabalho. (grifo nosso)

A EPT começa a discutir e a agir nesse estigma quanto ao seu corpo magisterial. A RFEPCT representa uma proposta que defende a educação unitária, omnilateral, politécnica e tem o trabalho como princípio educativo, por isso realizar a crítica quanto à força da tradição secular que produziu a diferença entre formar para pensar e formar para o emprego às artes manuais – estas menores em status – produz influências de tradições antigas na formação de professores.

Outro aspecto que chama atenção na interpretação de Cordão e Moraes (2017) é a conclusão de que há a primazia da orientação para o mundo do trabalho. A existência dessa dimensão ao pensar a formação continuada não é equivocada, deve existir; mas como uma dimensão que não pode prescindir da formação integral do ser humano que ora está na EPT. Assim, oferecer formação continuada a professores para que possam contribuir para o desenvolvimento pessoal dos alunos em sua dimensão propedêutica deve ser também relevante e comum quando do cotidiano docente na EPT.

A continuidade da formação docente em serviço se traduz num esforço contínuo que a escola deve fazer a fim de aprimorar não somente o sujeito professor, mas também o sujeito aluno que é alvo do exercício profissional do primeiro. Esse dever está previsto no Art. 67, inciso II da Lei 9.394/96 que informa:

Art. 67 Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público:

(…)

II - aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim .

Esse aperfeiçoamento não é somente um dever legal, mas um dever ético, moral e de comprometimento da EPT com uma formação integral. Segundo Silva (2020), em levantamento realizado junto a Plataforma Nilo Peçanha, existem na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica 46.688 docentes que combinados com os dados do Censo da Educação Básica (BRASIL, 2020) somam 150 mil professores sem habilitação para o exercício profissional na EPT. O autor chama a atenção que com o advento da Reforma do Ensino Médio que estimula a formação técnica e profissional existe uma grande probabilidade da demanda por docentes na EPT crescer vertiginosamente. E indaga-se se a formação oferecida a esses professores será a de caráter “emergencial”, “de curta duração” e para formar “instrutores”. Reforçando as representações sociais e as “constatações sociais” que cursos de formação continuada servem apenas para o ensino de competências “de fábrica” e não para contribuir para a formação integral dos sujeitos.

Sobre esse debate, Silva (2020, p. 73) destaca que “uma quantidade mínima dos docentes possui apenas Ensino Fundamental, 3,3% Ensino Médio, 39,4% Graduação e 57,3% Pós-graduação. Observa-se também que, dentre aqueles que possuem Graduação, 43,3% não possuem Licenciatura”. Segundo Silva (2020) haverá uma grande demanda por formação continuada de professores em razão do grande número da falta de escoloridade e formação adequada em nível superior (Quadro 1).

Quadro 1.
Escolaridade e formação acadêmica dos docentes em EP
TotalEscolaridade e Formação Acadêmica
FundamentalEnsino MédioEnsino Superior
GraduaçãoPós-Graduação
TotalCom LicenciaturaSem LicenciaturaEspecializaçãoMestradoDoutorado
130,05697,101122,83570,85851,97752,82323,5598,050
Fonte: Sinopse Estatística da Educação Básica, INEP/MEC (2019 apud SILVA, 2020, p. 73)

A formação de professores em serviço ganhará grande impulso nos próximos anos como estratégia para confrontar a demanda, que em suposição irá crescer nos próximos anos pelas consequências da Reforma do Ensino Médio e/ou por retomada econômica no pós-pandemia (SILVA, 2020). O problema identificado é se a formação continuada do docente – que ora já está em atividade – deverá abster-se da dimensão propedêutica, mantendo a ruptura conceitual entre trabalho intelectual e manual. Se tal perspectiva ainda se mantiver, servirá ao propósito que evitará o alcance de outras práticas pedagógicas promotoras do desenvolvimento da consciência de que a existência serve à transformação do mundo, ao exercício pleno da cidadania, da emancipação humana, leitura de mundo e da busca do conhecimento com autonomia e felicidade.

Cabe entender sobre “onde” e “como” a formação de professores se realiza; se deve ocorrer na universidade – um espaço escolar de saber erudito – ou na escola profissional – espaço do saber de aplicação. Nesse sentido, Silva (2020, p. 79) destaca que “quando comparados, os professores da universidade e das escolas de educação profissional, surge a oposição entre a escola do saber e a escola do fazer – uma divisão ideológica, marcada pela repulsa ao trabalho e pelo preconceito com as atividades manuais”. Aos egressos da universidade, o saber propedêutico lhes foi apresentado como mapa do caminho, isto é, que tudo que lhes fosse necessário ao exercício da profissão pudesse ser encontrado à consulta desse mapa.

A formação realizada sob a tradição da falsa oposição entre teoria e prática faz com que docentes sejam reféns da percepção de que o conhecimento teórico erudito deve prevalecer sobre os saberes práticos em sua generalidade – não somente oriundos do senso comum, mas os trabalhos práticos como um todo. Tal abordagem induz à falsa noção de que basta saber em que livro encontrar a resposta que o docente será capaz de responder ao problema da realidade que ele enfrenta (SILVA, 2020).

A ausência do reconhecimento e da valorização dos saberes práticos, mas também a sua prática, ou seja , o “saber-fazer” mobilizado para o “fazer-aprender” produz uma reprodução da tradição “conteudista” nas instituições de EPT e na sociedade como um todo desse modus operandi no exercício das profissões. Essa pespectiva cria estereótipos para pessoas e para instituições que são: professores teóricos demais ou professores práticos demais; escolas que só ensinam teoria ou escolas que só ensinam para o mercado.

Tais estereótipos refletem a dicotomia existente no plano epistemológico da EPT no que tange às abordagens de formação docente. Portanto, responder à questão do lugar onde ocorre a formação de professores é menor do que a necessidade de superar a dualidade nociva de saberes teóricos versus saberes práticos. Seja na universidade ou na escola média, a abordagem de que o conhecimento é uno, complementar, interdependente e sistêmico deve ser o paradigma a se refletir.

3 A identidade profissional e o trabalho docente na Educação Profissional e Tecnológica (EPT)

A identidade profissional e o trabalho docente produzem uma nova reflexão à inclusão do aluno com AH ou SD na EPT. O fato de que o professor da educação profissional e tecnológica deva saber reconhecer, identificar e atender os alunos com AH ou SD é digno de grande debate e relevância de ação. O trabalho docente não pode se restringir à técnica; outras dimensões da formação lhe cabem na educação. Moraes (2016) assinala sobre a identidade do professores da EPT na RFEPCT. Seu estudo demonstra que os docentes da RFEPCT são também professores-pesquisadores da realidade que os envolvem, e assim produzem novos conhecimentos e aplicam-nos às suas práticas pedagógicas.

A RFEPCT tem na oferta da educação profissional a sua premissa de existência e tem no aporte teórico no Ensino Médio Integrado um ponto importante para realização dessa missão. Por meio da opção teórico-metodológica de organização institucional, a RFEPCT mobiliza-se para atender as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Técnica de Nível Médio. A Resolução CNE/CEB n.º 6, de 20 de setembro de 2012, determina a observância no seu artigo 6.º, inciso IX, da obrigatoriedade da “articulação com o desenvolvimento socioeconômico-ambiental dos territórios onde os cursos ocorrem, devendo observar os arranjos socioprodutivos e suas demandas locais, tanto no meio urbano quanto no campo” (BRASIL, 2012).

Logo, se há o desejo de uma oferta de ensino que tenha por foco a necessidade local, se infere que o docente seja preparado para trabalhar além dos muros de sua instituição, interagindo com esses universos do trabalho e trazendo para sua sala de aula esses componentes do mundo real.

Retomando o ponto do lugar onde se realiza a formação docente, a educação profissional de nível médio, em oferta inicial ou continuada, importa que o docente possa ser educado na mesma perspectiva de uma formação integral, omnilateral e observando o trabalho como princípio educativo. Nesse lugar teórico o docente poderá se constituir para o desafio que a nação exige por meio de suas DCN para Educação Profissional Técnica de Nível Médio, observando os princípios da educação inclusiva e democrática.

Na interpretação desse marco regulatório, Moraes (2016) entende que a diretriz não é apenas no sentido da articulação dos currículos, mas também do perfil do docente. Logo, sua abordagem sugere que os docentes que realizarão o seu exercício de magistério na RFEPCT devem exercer sua práxis educativa sob novos princípios, superando as possíveis lacunas de sua formação que lhes tornam afeitos à cultura da desvalorização do conhecimento prático e do trabalho.

A configuração institucional dos Institutos Federais possui a oferta do ensino médio integrado e a oferta da educação tecnológica como razão de existir. Isso uniu a escola técnica com o modelo universitário. Nesse sentido, propostas de formação continuada não podem se afastar do que esteja entrelaçado com a profissionalização técnica.

Silva (2020, p. 84) assinala que “um programa de formação de professores de abrangência nacional precisa ser flexível, coerente, de ampla capilaridade e especialmente sintonizado às demandas formativas dessa modalidade”. Essa reflexão cabe na RFEPCT, dada a heterogeneidade de seus docentes em suas diversas regiões em suas instituições que têm uma missão institucional a cumprir à luz do interesse público e já determinada em sua regulação.

Destarte, para que a EPT se realize na RFEPCT numa perspectiva de educação omnilateral impõem-se novas possibilidades de formação continuada que contribuam para a construção de saberes humanísticos que permitam ao docente pensar sua práxis e a historicidade de seu fazer pedagógico de forma verticalizada e integral. O alunado participante das práticas educativas do professor na EPT, ao viver uma formação integral, exige da RFEPCT um esforço maior para superar velhas práticas alienantes, compartimentalizadas e redutoras do conhecimento, práticas essas que não contribuem para a emancipação humana desejada para o corpo acadêmico e escolar. Como diz Tardif (2014, p. 17):

Os saberes nunca são relações estritamente cognitivas: são relações mediadas pelo trabalho que lhes fornece princípios para enfrentar e solucionar situações cotidianas. Essa ideia possui duas funções conceituais: em primeiro lugar, visa a relacionar organicamente o saber à pessoa do trabalhador e ao seu trabalho, àquilo que ele faz, mas também ao que foi e fez, a fim de evitar desvios em direção a concepções que não levem em conta o seu processo de trabalho, dando ênfase à socialização na profissão docente e ao domínio contextualizado da atividade de ensinar. Em segundo lugar, ela indica que o saber do professor traz em si mesmo as marcas do seu trabalho, que ele não é somente utilizado como um meio no trabalho, mas é produzido e modelado no e pelo trabalho.

Tardif (2014) destaca que a formação de professores acontece com o trabalho docente cotidiano enfrentado pelo professor. Desse cotidiano vem a fonte de desafios e saberes que respondem a tal realidade e a resolução de problemas apresentado por ela. Fala de uma formação de professores que advém da tarefa e da interação do docente com sua comunidade escolar em todas as suas dimensões – não apenas no ensino técnico, mas em tudo que rodeia e faz pensar e agir o professor. Fato que vai muito além do que se prescreve em teorias. Para o autor, é também criar soluções educativas para a formação continuada que funcione na relação de conflito e oposição de teoria versus prática e educação média, é criar outras possibilidades de interpretação da realidade social que rompa com a forma dicotômica de ver o mundo. Inovar na formação de professores, para além dessa antiga discussão e, a partir do trabalho como princípio educativo, efetivar programas de educação continuada dos docentes, eis aí um grande desafio.

4 Considerações Finais

A formação de professores e a inclusão de pessoas com AH ou SD têm sua correlação na EPT quando se faz necessário ao docente e aos demais protagonistas do cotidiano escolar na EPT reconhecer, identificar e atender alunos com AH ou SD. Essa tarefa impõe aos docentes adquirir competências, habilidades e atitudes em formação continuada com comprometimento à formação integral.

Tal aquisição de saberes para o enfrentamento da invisibilidade da pessoa com AH ou SD na EPT deve ser compreendida como um investimento público a ser realizado no professor em sede de formação continuada em concomitância no aparelhamento das salas de recursos. Conciliar formação continuada do professor com sua valorização nesse processo inclusão, bem como com as melhorias de infraestrutura das condições materiais de trabalho e de atendimentos aos alunos com AH ou SD é imprescindível para a superação da precarização do trabalho docente no setor público em particular na RFEPCT.

O docente na EPT que está em campo no EMI ou nos cursos superiores oferecidos por todo o Brasil precisa estar em constante aperfeiçoamento para lecionar e também estar apto a contribuir para o desenvolvimento e emancipação humana de seus alunos. O que consiste em reconhecer, identificar e atender alunos com AH ou SD em suas comunidades escolares para que atendam as potencialidades e as desenvolvam. Para tanto, novos saberes docentes são necessários e vão além dos conteúdos que o professor recebe em sua formação inicial.

As recentes pesquisas realizados no âmbito da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica servem de referência para a elaboração de políticas públicas para EPT como um todo. O magistério que atua nas escolas técnicas e nos cursos superiores de tecnologia enfrentam a mesma problemática e estão diante de alunos com AH ou SD que do mesmo modo são invisiveis – problema que poderia ser minimizado pela formação continuada para reconhecimento, identificação e atendimento de AH ou SD, fato esse que amplia a ação inclusiva.

Por fim, a formação continuada de professores é essencial ao desenvolvimento EPT no Brasil para que essa dimensão da escolarização dos brasileiros venha superar a dualidade histórica que ainda existe e resiste. A inclusão de pessoas com AH ou SD é vital como ação inclusiva nas RFEPCT.

Agradecimentos

Os autores registram seu agradecimento à comunidade acadêmica do Programa de Pós-graduação do Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT) no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) Campus Mesquita em razão do apoio de seu corpo docente e administrativo à pesquisa e à inovação.

Referências

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Notas de autor

1 Doutorando em Educação pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP) – Petrópolis/RJ – Brasil. E-mail: tertuliano@tertuliano.pro.br.
2 Doutora em Ciências Sociais pelo CPDA da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação Profissional e Tecnológica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro/RJ - Brasil. E-mail: maylta.anjos@unirio.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): SILVA, T. S.; ANJOS, M. B. Formação de professores e inclusão de pessoas com altas habilidades ou superdotação: um debate na educação profissional e tecnológica. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 2, p. 622-633, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p622-633. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16969.

COMO CITAR (APA): Silva, T. S. & Anjos, M. B. (2022). Formação de professores e inclusão de pessoas com altas habilidades ou superdotação: um debate na educação profissional e tecnológica. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(2), 622-633. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p622-633.

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