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Ataques e retrocessos na política de saúde mental, álcool e outras drogas, no período de 2016 a 2021, no Brasil

Attacks and setbacks to mental health policy, alcohol, and other drugs, in the period from 2016 to 2021, in Brazil

Ataques y retrocesos a la política de salud mental, alcohol y otras drogas en el período de 2016 a 2021, en Brasil

Cristiane Medeiros dos Santos 1
Nezo Educacional, Brasil
Carlos Antonio de Souza Moraes 2
Universidade Federal Fluminense, Brasil

Ataques e retrocessos na política de saúde mental, álcool e outras drogas, no período de 2016 a 2021, no Brasil

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 24, núm. 3, 2022

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2022 pelos autores.

Recepción: 24 Enero 2022

Aprobación: 02 Mayo 2022

Resumo: O presente artigo problematiza a Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas no período de 2016 a 2021, considerando uma conjuntura de ataques e retrocessos vinculados a um projeto de sociedade caracterizado pela apropriação do fundo público e pelo fortalecimento do mercado privado de saúde, para servir aos interesses econômicos. A partir de 2020, essa realidade é impactada pela pandemia da Covid-19 que, na particularidade brasileira, associa-se ao negacionismo do vírus, à superlotação e à exaustão de serviços e dos profissionais de saúde, com implicações diretas para a Política de Saúde Mental. De forma geral, os resultados apontam que os ataques à Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, bem como os retrocessos, têm sido caracterizados pelo processo de fortalecimento dos hospitais psiquiátricos, das organizações sociais e de comunidades terapêuticas com vínculos religiosos na oferta dos serviços de saúde mental, em uma lógica de remanicomialização dos serviços e de mercantilização da vida.

Palavras-chave: Ataques à Política de Saúde Mental, Sistema Único de Saúde, Pandemia da Covid-19, Remanicomialização dos serviços.

Abstract: This article discusses the Policy of Mental Health, Alcohol, and other Drugs in the period from 2016 to 2021, considering a conjuncture of attacks and setbacks linked to a society project characterized by the appropriation of the public fund and the strengthening of the private health market, to serve economic interests. Since 2020, this reality is impacted by the Covid-19 pandemic, which, in Brazil, is associated with the virus denialism, the overcrowding and the exhaustion of health services and of the professionals, with direct implications for mental health policy. In general, the results indicate that attacks and setbacks in mental health policy, alcohol, and other drugs have been characterized by the process of strengthening psychiatric hospitals, social organizations and therapeutic communities with religious ties in the provision of mental health services, in a logic of re-institutionalization of services and commodification of life.

Keywords: Attacks on Mental Health Policy, Unified Health System, Covid-19 pandemic, Re-institutionalization of services.

Resumen: Este artículo discute la Política de Salud Mental, Alcohol y otras Drogas en el período 2016 a 2021, considerando una coyuntura de embates y retrocesos vinculados a un proyecto de sociedad caracterizado por la apropiación del fondo público y el fortalecimiento del mercado privado de la salud, al servicio de los intereses económicos. A partir de 2020, esa realidad se ve impactada por la pandemia de la Covid-19, que, en Brasil, está asociada al negativismo del virus, al hacinamiento y al agotamiento de los servicios y de los profesionales de salud, con implicaciones directas para la Política de Salud Mental. En general, los resultados indican que los ataques y retrocesos en la Política de Salud Mental, Alcohol y otras Drogas se han caracterizado por el proceso de fortalecimiento de hospitales psiquiátricos, organizaciones sociales y comunidades terapéuticas con vinculación religiosa en la prestación de servicios de salud mental, en una lógica de reinstitucionalización de los servicios y mercantilización de la vida.

Palabras clave: Ataques a la Política de Salud Mental, Sistema Único de Salud, Pandemia de Covid-19, Reinstitucionalización de los servicios.

1 Introdução

Este artigo é produto de dissertação de mestrado defendida em 2021, no Programa de Estudos Pós-graduados em Política Social, da Universidade Federal Fluminense. Sua construção está fundamentada na compreensão de que as alterações processadas no campo das políticas sociais são condicionadas por determinações estruturais e conjunturais sob o comando do capital, configurando-as como campo de disputas, marcado por demandas de classes e permeado por interesses divergentes.

Portanto, a análise proposta a respeito da Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas reconhece as históricas disputas relativas ao projeto de reforma psiquiátrica pautado na luta antimanicomial e por questionamentos e oposições fortalecidas pela proposta de manutenção da perspectiva manicomial tradicional.

No Brasil, a proposta e o processo de desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação em hospitais psiquiátricos foram adensados a partir dos anos 1990, com avanços significativos em 2002, por meio de normatizações do Ministério da Saúde que instituem mecanismos para a redução de leitos psiquiátricos. A desinstitucionalização e a efetiva reintegração das pessoas com transtornos mentais graves e persistentes na comunidade são tarefas às quais o Sistema Único de Saúde (SUS) se vem dedicando.

Contudo, nos últimos 10 anos e, mais intensamente a partir de fins de 2015 e início de 2016, movimentos defensores da perspectiva manicomial tradicional têm conquistado espaços importantes para a remanicomialização dos serviços. A título de exemplo, destaca-se a publicação das Portarias n. 3.088, de 23 de dezembro 2011 e n. 131, de 26 de janeiro de 2012, que garantem maior financiamento do orçamento público às Comunidades Terapêuticas, reconhecendo-as como oferta pública de cuidados a pessoas que fazem uso prejudicial de substâncias psicoativas, inserindo-as na Rede de Atenção Psicossocial (Raps).

Essa iniciativa é fruto de disputas no campo da saúde mental, marcadas por opositores à luta antimanicomial brasileira e que estiveram presentes ao longo de todo o processo de implantação da Reforma Psiquiátrica, sendo organizados, predominantemente, por meio da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract) e da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o que demonstra que esse é um segmento complexo e heterogêneo (PRUDENCIO; SENNA, 2022).

Passos (2017) aponta que, desde o início dos anos 1990, esses atores disputam a Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, mediante sua relevância na conformação da política de saúde mental. Contudo, até 2015, essa coordenação “[…] era representada por pessoas que fizeram parte da organização e construção da reforma psiquiátrica antimanicomial” (MORAES, 2021, p. 80), mas, a partir desse ano, a gestão dessa coordenação foi assumida por um psiquiatra contrário aos princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira (PASSOS, 2017).

Até então, esse cenário de disputas, marchas e contramarchas foi marcado por uma linha relativamente firme e contínua de progresso da reforma psiquiátrica pautada na luta antimanicomial, sendo a primeira vez, em mais de três décadas, que marchamos para trás (DELGADO, 2019), configurando, em anos seguintes, um novo desenho assistencial da nova política de saúde mental (DUARTE, 2018).

Tais elementos, orquestrados pelo radicalismo neoliberal, configuram contrarreformas no campo da saúde mental que se articulam à precarização dos vínculos trabalhistas dos/as profissionais inseridos/as nesse espaço ocupacional-funcional, bem como incentivam a medicalização, almejando o lucro das indústrias farmacêuticas e o tratamento baseado no remédio como uma forma de atendimento em massa (BISNETO, 2007).

Diante dessas informações preliminares, neste artigo objetivamos problematizar a Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas no período 2016 a 2021, considerando os ataques e os retrocessos que têm garantido o “[…] aumento de vagas para usuários e financiamento público nas Comunidades Terapêuticas, além de se omitir quanto ao processo de internações forçadas nas principais capitais brasileiras, levado a cabo por agentes públicos de forma repressora e autoritária.” (DUARTE, 2018, p. 230).

Para o seu desenvolvimento, recorremos ao estudo bibliográfico como fonte secundária de pesquisa e, para tanto, utilizamos, para critério de seleção do material, as publicações avaliadas por comitês científicos e bancas, a fim de garantir a validade dos dados. Nesses processos, os títulos dos trabalhos foram os primeiros indicativos para identificá-los quanto ao seu conteúdo. Além disso, verificamos os resumos, os sumários e outras informações contidas na obra, para identificá-la como objeto de pesquisa e como conteúdo a ser analisado.

Assim, recorremos a publicações do campo interdisciplinar, referentes ao tema da pesquisa, tais como: teses de doutorado, dissertações de mestrado, livros, capítulos de livros e artigos científicos.

Além disso, foi realizada análise documental, reconhecendo, segundo Richardson (1999, p. 230), que ela consiste em uma série de operações que visam estudar documentos no intuito de compreender circunstâncias sociais e econômicas. Para tanto, realizamos um levantamento de documentos e portarias, tais como: Portaria GM/MS n. 3.588, de 21 de dezembro de 2017; Portaria n. 2.979, de 12 de novembro de 2019; e Portaria n. 437, de 13 de julho de 2020 (BRASIL, 2020b).

Diante dessa proposta, optamos por dividir o artigo em duas seções, além da Introdução, da Conclusão e das Referências. Na primeira, abordamos os ataques à Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas no período de 2016 a 2019, assim como os retrocessos nesse campo; e, na segunda seção, tratamos de tais ataques e retrocessos durante o governo de Jair Bolsonaro e no contexto da pandemia da Covid-19 (2020-2021).

2 Ataques e retrocessos à Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas no período de 2016 a 2019

Inúmeros ataques à luta antimanicomial e à Reforma Psiquiátrica são verificados no Brasil a partir da segunda metade de 2015 e início de 2016. Ataques construídos por meio de articulações políticas que permitiram que a gestão da Coordenação de Saúde Mental fosse liderada a partir desse período, por um psiquiatra contrário aos princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira (PASSOS, 2017), além de permitir a construção de normativas e de resoluções que, mais amplamente, indicam a desconstrução das políticas sociais públicas, com destaque para o questionamento de seu papel.

O desmonte da Política de Saúde Mental intensifica-se com a Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016, que institui o Novo Regime Fiscal, determinando que, em 20171, as despesas primárias teriam, como limite, a despesa executada em 2016, corrigida em 7,2%. Os efeitos dessa política de austeridade tendem a permanecer até dias atuais e deixam um rastro de retrocessos no cenário público.

Tais retrocessos e desmontes relativos às políticas sociais e particularmente à Política de Saúde Mental se associam a um projeto de sociedade marcado pela apropriação do fundo público e pelo fortalecimento do mercado privado de Saúde. Para Cislaghi (2021, p. 23), as propostas e as ações desenvolvidas a partir do golpe parlamentar e posse do então vice-presidente Michel Temer apontam para uma versão mais radical do projeto neoliberal, denominado ultraneoliberalismo2. Nesse projeto, “[…] o capital, cada vez mais, para garantir suas taxas de lucro, necessita se apropriar de fundo público, dados os limites para a formação de um mercado consumidor diretamente capitalista em tempo de ampliação da pobreza e da miséria”. É proposto um remodelamento do Sistema Único de Saúde (SUS), com vistas à ruptura da universalidade e da integralidade, um transformismo no sentido do que é o controle social, o fim da gratuidade para todos com o estabelecimento de mecanismos de copagamento e graves retrocessos a uma compreensão da saúde restrita a seus aspectos biológicos.

Para Delgado (2019), os resultados da agenda ultraneoliberal impactam imediatamente a saúde pública e, particularmente, os indicadores de bem-estar e de qualidade de vida: o desemprego, no início de 2016, era cerca de 5,5% e atingiu 12,5%, no primeiro trimestre do governo de Jair Bolsonaro. Mediante isso, vale destacar que há uma variedade de consequências vinculadas ao desemprego, às condições precárias de vida e à desigualdade social, postas pela lógica capitalista ultraneoliberal adotada pelos governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2018-2022) e que possuem relação com o aumento dos transtornos mentais da população brasileira.

Além disso, por meio de articulação política junto à Comissão Intergestores Tripartite (CIT), foi aprovada a Resolução CIT n. 32, de 14 de dezembro de 2017 (BRASIL, 2017a), que reformula a Rede de Atenção Psicossocial (Raps). Baseando-se única e exclusivamente nessa instância, institui a Portaria GM/MS n. 3.588, de 21 de dezembro de 2017, que se configura, segundo Duarte (2018), como o novo desenho assistencial da “nova” política de saúde mental.

Para Guimarães e Rosa (2019), pode-se analisar essa política a partir de quatro elementos centrais: i) Trata da ambulatorialização do cuidado com equipes especializadas, historicamente voltado para a prescrição medicamentosa. Esse elemento traz a desconstrução da lógica de cuidado no território, ancorada pelo acolhimento. ii) Diz respeito à remanicomialização da saúde mental, assegurando enorme investimento financeiro no reajuste de recurso do Governo Federal, que aumenta o valor da diária dos manicômios em média 65%, acompanhado do não aumento de repasse para os Caps desde 2011, intensificando a precarização dos serviços e gerando dificuldades na operacionalização. iii) A utilização de até 20% dos leitos em Hospitais Gerais para alas psiquiátricas, gerando maior investimento em internações e um investimento reduzido em estratégias de reabilitação psicossocial. iv) A ampliação do aporte financeiro das comunidades terapêuticas de 4.000 para 20.000 vagas, evidenciando a ausência de investimentos na Raps.

Conforme Guimarães e Rosa (2019, p. 14),

Há uma disparidade de valores oferecidos por usuário/mês em cada serviço. Para o Governo Federal, um usuário/mês em CAPS AD II, com porta aberta, ou seja, sem limites de atendimento, custa, em média, R$ 43,00, enquanto o mesmo usuário/mês para uma Comunidade Terapêutica custa aproximadamente R$ 1.100,00, para no máximo 50 pessoas.

É nítido que a internação em comunidades terapêuticas e no modelo manicomial se tornou, no período de 2016 a 2021, o foco central do cuidado. Logo, a partir da Resolução Conad n. 1, de 9 de março de 2018, a política brasileira sobre drogas dá uma verdadeira guinada rumo à tendência predominantemente proibicionista, tendo em vista que se trata de uma proposta que representa um grande retrocesso, fruto de um golpe de Estado, que retoma investimentos significativos em dispositivos antirreformistas e segregadores que limitam o usuário ao diagnóstico e à prescrição medicamentosa.

A proposta de centralização da Política de Saúde Mental, nos hospitais psiquiátricos e no financiamento das comunidades terapêuticas com viés religioso, propicia inúmeros retrocessos, dentre eles a retomada da lógica da medicalização dos usuários, centrada no saber psiquiátrico e na “saúde da moeda”, isto é, no lucro de empresários da saúde, de instituições religiosas e de indústrias farmacêuticas, dentre outros, em detrimento do saber científico. Além disso, entre 2016 e 2019, a Política Nacional de Atenção Básica sofre alteração, com a dispensa da obrigatoriedade da presença do agente comunitário de saúde nas equipes de saúde da família, tendo consequências imediatas na descaracterização e na fragilização da atenção básica, além de ocorrer a ampliação do financiamento dos hospitais psiquiátricos (DELGADO, 2019).

Desse modo, compreende-se que, diante das premissas ultraneoliberais, da patologização da vida e da mercantilização da saúde, faz-se complexa a realidade que se alastra, com o redirecionamento de recursos dos Caps para o modelo focado na internação, com o desmonte do SUS, a insuficiência de qualificação dos profissionais para lidar com essa demanda, a desresponsabilização do Estado, além dos processos de precarização das condições e relações de trabalho, dentre outros.

Outro ponto importante é a redução do cadastramento de Centros de Atenção Psicossocial (Caps), em proporção ainda imprecisa, uma vez que o Ministério da Saúde deixou de fornecer os dados sobre a rede de serviços de saúde mental, bem como houve a ampliação do financiamento para 12 mil vagas em Comunidades Terapêuticas e a restauração da centralidade do hospital psiquiátrico (DELGADO, 2019). Além disso, verifica-se a baixa cobertura e investimento por parte do poder público, por intermédio dos chamados “novos modelos de gestão”, instituídos pela parceria com as Organizações Sociais de Saúde (OSS)3, que surgem no país, por meio da lógica da terceirização, da precarização e da privatização do acesso à saúde com uma larga possibilidade para a gestão pública prover esses serviços.

As Organizações Sociais, no campo da saúde mental, integram um projeto de desconstrução da proposta da Reforma Psiquiátrica e de luta antimanicomial que se edifica a partir de um conjunto de resoluções que, nos últimos anos, recriaram os hospitais psiquiátricos no âmbito da Raps e redirecionaram o modelo de atenção em Saúde Mental. Entre as principais mudanças consideradas como retrocessos, podemos destacar: a criação de hospital psiquiátrico, hospital dia e unidades ambulatoriais especializadas no âmbito das Raps; inclusão da Eletroconvulsoterapia (ECT) para o tratamento de usuários em determinadas situações; bem como a possibilidade de internação de crianças e adolescentes em enfermarias psiquiátricas de hospitais gerais ou de hospitais psiquiátricos e da ampliação dos serviços de residências terapêuticas religiosas.

Diante disso, compreende-se que o processo de contrarreforma do Estado4, no Brasil, permite que a iniciativa privada assuma responsabilidades do Estado, transformando dimensões da vida social em negócios, reforçando a consolidação e a afirmação de um Estado mínimo para os trabalhadores e máximo para o capital.

Em 2019, o Ministério da Saúde, a Secretaria de Atenção à Saúde, o Departamento de Ações Programáticas Estratégicas e a Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas lançaram a Nota Técnica n. 11, de 2020 (BRASIL, 2020a), com esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Essas mudanças retomam a defesa de ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos e que o SUS deverá financiar as comunidades terapêuticas como dispositivo da atenção psicossocial, atingindo princípios básicos da Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial.

A esse conjunto de ações, somam-se as alterações nas regras para o financiamento da Atenção Primária em Saúde no Brasil, por meio do Programa Previne Brasil, publicadas pela Portaria n. 2.979, de 12 de novembro de 2019, no Diário Oficial da União de 13 de novembro 2019. Segundo o site Agência Brasil, a nova portaria determina que, para o cálculo do valor a ser repassado para cada prefeitura, o governo deverá levar em conta o número máximo de potenciais usuários da Atenção Primária à Saúde. Sendo assim, em 2020, as cidades brasileiras passaram a receber as verbas referentes à população cadastrada em suas unidades básicas de saúde. A questão central foi o tempo exíguo para o cadastramento da população, que não possibilitou alcançar a sua totalidade e condicionou a redução do financiamento, que foi previsto em R$ 290 milhões a menos para os municípios em 2020. Já em 2021, devido à pandemia da Covid-19, os municípios receberam R$ 14 bilhões por meio do Programa Previne Brasil.

A partir do primeiro ano do governo de Jair Messias Bolsonaro (2018-2022), foram ainda mais reduzidos os investimentos para atuação pautada no viés terapêutico, ampliando o discurso banalizador da vida e criando limites objetivos à construção do trabalho profissional na perspectiva da integralidade5 da atenção à saúde.

Conforme Delgado (2019), as novas diretrizes para a Política de Saúde Mental a serem implementadas, no Brasil, pelo governo de Bolsonaro, vêm sendo consonantes com o sentido do governo de extrema direita em geral. Isso porque representa ataques frontais às lutas por direitos humanos, pela humanização do acompanhamento das pessoas com transtorno mental, contra a lógica manicomial e a diversas conquistas que foram fruto de décadas de luta dos movimentos sociais, de profissionais da saúde, de familiares e de usuários, muitas das quais foram parcialmente consolidadas pela reforma psiquiátrica de 2001. Muitas notas técnicas são fundamentadas por meio de uma lógica autoritária, restritiva, centrada no lucro, no saber psiquiátrico, do fortalecimento da lógica da medicalização dos usuários, desqualificando a fundamentação das investigações científicas.

O negacionismo científico e a subversão de seus dados caracterizam parte da trajetória política de Jair Bolsonaro, fundamentando discursos e ações durante a pandemia da Covid-19, com implicações para o campo da saúde mental, conforme será abordado na próxima seção.

3 Ataques e retrocessos à Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas durante o governo de Jair Bolsonaro e no contexto da Pandemia da Covid-19 (2020-2021)

Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia do novo coronavírus, denominado SARS-CoV-2. O anúncio da pandemia reforçou a necessidade da adoção de medidas preventivas ao vírus, como a lavagem das mãos, o uso frequente de máscara e o distanciamento social. Tais medidas recomendadas por cientistas e pela própria OMS consideraram o estarrecedor potencial de transmissibilidade do vírus, levando algumas pessoas contaminadas rapidamente a um estado crítico, o que provocou mais de meio milhão de óbitos no Brasil.

Além dos aspectos biofísicos, a pandemia da Covid-19 adensou um processo de desigualdade social que, na particularidade brasileira, assume contornos marcados pela vigência do projeto ultraneoliberal articulado ao desrespeito pela vida, pela superlotação e pela exaustão de serviços e de profissionais de saúde.

Evidencia-se a superlotação das Unidades de Tratamento Intensivo (UTI), a ausência de medicamentos e de vagas em hospitais de todo país, sendo que, no início de 2021, a região Norte do país vivenciou verdadeiro colapso da saúde (LAVOR, 2021). No mês de abril de 2021, a maioria dos estados brasileiros teve elevados níveis de ocupação das UTIs, acima de 80%, e também o aumento no número de óbitos por Covid-19 (MS, 2021). Em oito de abril de 2021, morreram mais de quatro mil pessoas por Covid-19. (SOUZA, 2021, p. 11).

Essa situação levou os governadores a decretarem medidas de lockdown, com reações contrárias por parte do presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido), que acusou tais governadores de provocarem a crise econômica e do seu governo, acionando o Supremo Tribunal Federal (STF) para que as medidas de lockdown fossem declaradas inconstitucionais (ARBEX, 2021).

A gravidade da situação levou à criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as irregularidades e omissões do Governo Federal e do Ministério da Saúde (MS) no enfrentamento da Covid-19 e do colapso do sistema de saúde no Amazonas, sendo criada a CPI da Covid-19, em abril de 2021, a partir do requerimento do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) (CASTRO, 2021). A CPI da Covid-19 ampliou a investigação para os estados, para apurar possíveis desvios de recursos destinados ao enfrentamento da pandemia (SOUZA, 2021).

Esse contexto sócio-político e sanitário, articulado ao processo de precarização e de sucateamento instalado e intensificado nos últimos anos, nos serviços de saúde mental, foi no início da pandemia da Covid-19, no Brasil, marcado pela ausência do equipamento de proteção individual (EPI) para trabalhadores, usuários e seus familiares.

Além disso, entende-se que o isolamento social trouxe significativas mudanças no cuidado diário das famílias. Sabe-se que a população usuária do serviço de saúde mental é marcada pela desigualdade social e que, muitas vezes, não possui uma rede de apoio efetiva para o cuidado diário. Assim se entende que o serviço de saúde mental, especialmente os Centro de Atenção Psicossocial (Caps), vem a ser o único espaço para proteção desse sujeito, considerando que esse lugar oferta alimentação, refúgio, troca de experiências e visibilidade.

No âmbito doméstico, a mulher e mãe tem sido histórica e culturalmente vinculada ao cuidado da pessoa com transtorno mental, ainda que se reconheçam os avanços conquistados pelo movimento feminista. Desse modo, com o isolamento social, considera-se importante a abordagem sobre o aumento expressivo da violência doméstica, uma vez que a dinâmica familiar foi alterada sem qualquer preparo antecipado e condições necessárias para que isso não viesse acontecer de forma efetiva, tendo em vista que, com a diminuição de investimentos públicos nos serviços de saúde mental, desde 2017, segundo relatório publicado pelo Ipea (2021), ocorre, de forma brutal, a redução da construção de estratégias para garantir o atendimento para os usuários e familiares.

Desse modo, fica evidente que, apesar de a Raps possuir, como diretrizes fundamentais para sua configuração, o cuidado territorializado e a reinserção social da pessoa com transtorno mental, considera-se que, desde o ano de 2016 até os dias atuais, englobando a pandemia da Covid-19, as ações propostas têm-se aproximado do modelo asilar com as medidas contrárias à luta antimanicomial, ainda que se reconheçam as resistências e as lutas sociais nesse contexto.

Assim, a centralidade do modelo defendido pelo atual governo retorna à hospitalização em âmbito psiquiátrico, fator esse que vai na contramão do acúmulo de conhecimento em pesquisas, debates, leis e ações desde a década de 1970. É a retomada do senso comum aniquilando anos de dedicação em pesquisas junto a usuários, em nome de uma política engessada, reducionista, elitizada e higienista.

Além disso, é fundamental fortalecer o projeto de Reforma Psiquiátrica pautado na luta antimanicomial, reconhecendo a Política de Saúde Mental como um campo em disputa. Para Passos (2017), estão em disputa três projetos no campo da saúde mental, são esses: i) a proposta radical de Reforma Psiquiátrica, pautada na Luta Antimanicomial; ii) a proposta de manutenção da perspectiva manicomial tradicional; iii) a proposta de uma Reforma Psiquiátrica simpática às mudanças de caráter meramente legislativo e assistencial.

Conforme Moraes (2021), em meio à pandemia da Covid-19, no dia 4 de dezembro de 2020, o Governo Federal colocou em pauta, no Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), propostas de revisão da atual Política de Saúde Mental, que incluem a revogação de cerca de cem portarias editadas entre 1991 e 2014. A própria expressão “dependentes químicos”, no texto da Portaria n. 437/2020, a respeito dos Centros de Referência em Dependência Química (Ceredeq), demarca retrocessos na concepção dos usuários de álcool e de outras drogas como sujeitos de direitos, além de fortalecer as comunidades terapêuticas como centros de referência a serem financiados com recursos públicos (BRASIL, 2020b).

Seguindo essa tendência, em 2021, foi posto em votação, na Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro, o Projeto de Lei n. 565, de 2019, de autoria do deputado estadual e pastor Samuel Malafaia, irmão do pastor Silas Malafaia, árduo defensor das Comunidades Terapêuticas. Esse PL apresenta as Comunidades Terapêuticas como política pública permanente na atenção aos usuários de drogas (RIO DE JANEIRO, 2019).

Por fim, destacamos que as medidas tomadas pelo Governo Federal, a partir de 2016, no campo da saúde mental, possuem o objetivo de atribuir novamente ao hospital psiquiátrico um papel estratégico no “cuidado” de pessoas com transtorno mental, além de garantir, ampliar e fortalecer o espaço de participação permanente das comunidades terapêuticas com vínculos religiosos e das organizações sociais, na atenção aos usuários de drogas, apontando para um projeto mais amplo de negacionismo da ciência, de desmonte do SUS e do projeto de reforma psiquiátrica.

4 Considerações finais

Este artigo objetivou problematizar a Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas no período 2016 a 2021, considerando ataques e retrocessos. Verifica-se, nesse período um processo de fortalecimento dos hospitais psiquiátricos, das Organizações Sociais e de comunidades terapêuticas com vínculos religiosos na oferta dos serviços de saúde mental, em uma lógica de remanicomialização dos serviços e de mercantilização da vida.

Tais elementos se associam a um projeto de sociedade marcado pela apropriação do fundo público e pelo fortalecimento do mercado privado de saúde, para servir aos interesses econômicos e adensado por uma versão mais radical do projeto neoliberal, denominado ultraneoliberalismo que, a partir de 2020, associa-se, na particularidade brasileira, à pandemia da Covid-19 e, posteriormente, à criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as irregularidades e omissões do Governo Federal e do Ministério da Saúde (MS) no enfrentamento da problemática, enfrentamento marcado pelo negacionismo científico, pelo desrespeito à vida e pela superlotação e exaustão de serviços e de profissionais de saúde.

Na Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, tais elementos se articulam à precarização, ao fortalecimento da lógica proibicionista e da medicalização, a retrocessos na concepção dos usuários de álcool e de outras drogas como sujeitos de direitos, além de fortalecer as comunidades terapêuticas como centros de referência a serem financiados com recursos públicos.

Na condição de campo de disputas e de correlação de forças, mais do que nunca, essa realidade tem exigido a criação de estratégias contra-hegemônicas por dentro do capitalismo, valorando os espaços coletivos responsáveis pela organização política e pelas resistências à remanicomialização da saúde mental no Brasil, em estados e municípios, tais como: movimentos sociais; instituições de ensino superior, por meio de seus grupos/núcleos de pesquisa; intervenções culturais, eventos festivos e trocas afetivas, em uma perspectiva que objetiva a desinstitucionalização do próprio movimento de luta antimanicomial.

Por fim, destacamos que tais questões apresentadas neste artigo se constituem como elementos necessários para serem tratados por pesquisadores, integrantes do movimento antimanicomial, profissionais, estudantes, familiares e população usuária desses serviços. Faz-se necessário considerar, nesse sentido, a importância da discussão sobre o lugar dos usuários de álcool e outras drogas na Política de Saúde Mental diante desse cenário, bem como sobre as mudanças propostas pela Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas.

Referências

ARBEX, T. Bolsonaro vai ao STF contra lockdown e toque de recolher em estados. CNN Brasil, [s. l.], 27 maio 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/bolsonaro-vai-ao-stf-contra-lockdown-e-toque-de-recolher-em-estados/. Acesso em: 13 jul. 2021.

BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

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Notas

1 Conforme Moraes (2021, p. 87), entre os dias 8 e 9 de dezembro de 2017, na cidade de Bauru, São Paulo, foi realizado o Encontro de 30 anos da Carta de Bauru. Esse evento reuniu mais de 2.000 usuários, familiares, trabalhadores e trabalhadoras da saúde mental e ativistas de Direitos Humanos, que tinham, por objetivo, comemorar o modelo de atenção psicossocial e a criação dos serviços substitutivos em oposição ao modelo manicomial centrado no isolamento social.
2 Segundo Freire (2006), a notoriedade atribuída por essas políticas à sociedade civil tem promovido a emergência de novas formas institucionais que conduzem a uma redefinição do espaço público (como esfera não estatal), do sentido atribuído ao direito social como direito universal, tanto quanto da própria noção de cidadania e democracia. Ou seja, estamos diante de um sintoma muito mais grave que o tão mencionado efeito (neo)liberal de redução do gasto público. É esse nítido sintoma que abre e fundamenta os caminhos do que estamos chamando de avalanche ultraneoliberal (FREIRE, 2006, p. 34).
3 De acordo com Muylaert et al. (2015, p. 3.471), as organizações sociais são dispositivos usados para a gestão das unidades de saúde. Foram formalizadas em 1998, pela Lei n. 846, de 9 de novembro de 1938, e são definidas por Bresser Pereira como instituto público de direito privado, com um contrato de gestão com o estado e, portanto, é financiada parcial ou mesmo totalmente pelo orçamento público.
4 “Embora o termo reforma tenha sido largamente utilizado pelo projeto em curso no país, nos anos 1990, para se autodesignar, partimos da perspectiva de que se esteve diante de uma apropriação indébita e fortemente ideológica da ideia reformista […], cabe lembrar que esse é um termo que ganhou sentido no debate do movimento operário socialista, ou melhor, de suas estratégias revolucionárias, sempre tendo em perspectiva melhores condições de vida e trabalho para as maiorias. Portanto o reformismo […] é um patrimônio da esquerda.” (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 149).
5 “A ‘integralidade’ como eixo prioritário de uma política de saúde, ou seja, como meio de concretizar a saúde como uma questão de cidadania, significa compreender sua operacionalização a partir de dois movimentos recíprocos a serem desenvolvidos pelos sujeitos implicados nos processos organizativos em saúde: a superação de obstáculos e a implantação de inovações no cotidiano dos serviços de saúde, nas relações entre os níveis de gestão do SUS e nas relações destes com a sociedade.” (PINHEIRO, 2009, p. 5).

Notas de autor

1 Assistente Social. Mestre em Política Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Idealizadora da plataforma www.inovesaber.com.br, faz parte da coordenação pedagógica e gerência geral do Nezo Educacional – Rio de Janeiro – Brasil. E-mail: medeiros.seso@gmail.com.
2 Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Líder do Grupo Interdisciplina de Estudo e Pesquisa em Cotidiano e Saúde (Gripes/CNPq/UFF). Professor adjunto da Universidade Federal Fluminense/Departamento de Serviço Social de Campos – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: as.carlosmoraes@gmail.com.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): SANTOS, C. M; MORAES, C. A. S. Ataques e retrocessos na política de saúde mental, álcool e outras drogas, no período de 2016 a 2021, no Brasil. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 3, p. 919-931, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n32022p919-931. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16974.

COMO CITAR (APA): Santos, C. M., & Moraes, C. A. S. (2022). Ataques e retrocessos na política de saúde mental, álcool e outras drogas, no período de 2016 a 2021, no Brasil. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(3), 919-931. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n32022p919-931.

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