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Acolhimento institucional de crianças e adolescentes: ecos da doutrina da situação irregular

Residential care for children and adolescents: echoes of the doctrine of irregular situation

Acogimiento institucional de niños y adolescentes: ecos de la doctrina de la situación irregular

Alice dos Santos Santos 1
Fórum Judicial de Barcarena/PA, Brasil
Lilia Iêda Chaves Cavalcante 2
Universidade Federal do Pará, Brasil
Dalízia Amaral Cruz 3
Brasil
Carlos Alberto Batista Maciel 4
Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil
Elson Ferreira Costa 5
Universidade do Estado do Pará (UEPA), Brasil

Acolhimento institucional de crianças e adolescentes: ecos da doutrina da situação irregular

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 24, núm. 3, 2022

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2022 pelos autores.

Recepción: 28 Enero 2022

Aprobación: 19 Julio 2022

Resumo: O presente estudo discute sobre a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes desenvolvida no Brasil, a partir da problematização do tempo de emissão de guias de acolhimento e desligamento pelo judiciário e dos motivos que justificaram a aplicação dessa medida por conselheiros tutelares, como aspectos reveladores de resquícios da doutrina da situação irregular. Foram analisados 144 prontuários de crianças e adolescentes atendidos por um serviço de acolhimento institucional em um município do estado do Pará, no período de 2009 a 2020, a partir de análises descritivas (frequência, média e desvio-padrão) e teste t, considerando-se o nível de significância estatística em p<0,05. Conclui-se, com base nos resultados, que ecos da cultura da institucionalização de crianças e adolescentes são observáveis nos motivos e justificativas apresentados pelos conselheiros tutelares, quase sempre validando o binômio pobreza-risco e com discurso moralizante e patologizante das condições de moradia da família, bem como pela diferença entre o tempo de emissão das guias de acolhimento e de desligamento pelo judiciário.

Palavras-chave: Institucionalização, Acolhimento institucional, Crianças e adolescentes.

Abstract: The present study discusses the culture of institutionalization of children and adolescents developed in Brazil, based on the questioning of the time of issuance of reception and dismissal guides by the judiciary and the reasons that justified the application of this measure by guardianship council, as revealing aspects of remnants of the doctrine of irregular situation. A total of 144 personal records of children and adolescents attended by an institutional care service in a municipality in the State of Pará were analyzed, from 2009 to 2020, based on descriptive analyzes (frequency, mean and standard deviation) and t test, considering the level of statistical significance at p<0.05. It is concluded, based on the results, that echoes of the culture of institutionalization of children and adolescents are observable in the reasons and justifications presented by guardianship council, almost always validating the poverty-risk binomial and with moralizing and pathologizing discourse of the family's housing conditions, as well as by the difference between the time of issuing the reception and dismissal guides by the judiciary.

Keywords: Institutionalization, Residential care, Children and adolescents.

Resumen: El presente estudio discute la cultura de institucionalización de niños y adolescentes desarrollada en Brasil, a partir del cuestionamiento del tiempo de emisión de las guías de acogida y destitución por parte del poder judicial y las razones que justificaron la aplicación de esta medida por parte de los consejeros de tutela, como aspectos reveladores de restos de la doctrina de la situación irregular. Se analizaron un total de 144 historias clínicas de niños y adolescentes atendidos en un servicio de acogimiento institucional en un municipio del Estado de Pará, de 2009 a 2020, con base en análisis descriptivos (frecuencia, media y desviación estándar) y prueba t, considerando el nivel de significación estadística a p<0,05. Se concluye, con base en los resultados, que ecos de la cultura de institucionalización de niños y adolescentes son observables en las razones y justificaciones presentadas por los consejeros de tutela, validando casi siempre el binomio pobreza-riesgo y con discurso moralizante y patologizante de las condiciones de vivienda familiar, así como por la diferencia entre el tiempo de emisión de las guías de acogida y destitución por parte del poder judicial.

Palabras clave: Institucionalización, Acogimiento institucional, Niños y adolescentes.

1 Introdução

A política de atendimento a crianças e adolescentes no Brasil remonta ao período colonial, sendo alicerçada por práticas de internação. Segundo Rossetti-Ferreira, Serrano e Almeida (2011), desde os primórdios, recolher crianças em asilos foi uma das características da chamada assistência ao menor, que confinava corpos e controlava excessivamente o uso do tempo, por meio da submissão e disciplina. Ressalta-se que no processo de institucionalização evidenciava-se a criança em situação de pobreza, que era “virtualmente inserida nas ‘classes perigosas e estigmatizada como menor’, objeto de controle especial, de educação elementar e profissionalizante”, que deveria ser preparada para o mundo do trabalho. Diante de todo esse aparato, se debruçaram os médicos higienistas e os juristas (MARCÍLIO, 1989, p. 224).

No Império, século XIV, surgiram iniciativas de higienistas, advogados, moralistas e religiosos para a construção de instituições do tipo asilar ou totais, com estrutura arquitetônica de grande porte e controle excessivo das atividades de vida diária (GOFFMAN, 2015). Na passagem para o século XX, juristas e higienistas articulavam forças no tocante às políticas para a infância apontada como pobre, desvalida, abandonada, delinquente e perigosa. Assim, foi criado o Juizado de Menores, onde advogados e juízes defendiam a criação de instituições de correção e legislação especiais e tribunais para menores (FALEIROS, 2011). Toda essa organização marcou profundamente a política de atendimento infantojuvenil e deflagrou na elaboração de um Código de Menores.

No Brasil republicano, novos tempos foram anunciados quanto às políticas sociais destinadas a crianças e jovens. Contudo, as condições de internação permaneceram as mesmas e a criança em situação de pobreza continuou sendo vista como potencialmente abandonada e perigosa (PASSETTI, 2013). E, no contexto da Independência, a realização do primeiro “Congresso Brasileiro de Proteção à Infância” em 1922 evidenciou a criação de leis destinadas ao atendimento da infância, sendo instituída, em 1923, a regulamentação da assistência e de proteção aos menores abandonados e delinquentes. Anos depois, em 1927, tem-se a aprovação do primeiro Código de Menores, o qual demarcou a diferença entre ser criança e ser menor1. Nas palavras de Amin (2018, p. 52-53), sobre o contexto que deflagrou no Decreto do primeiro Código de Menores:

O pensamento social oscilava entre assegurar direitos ou “se defender” dos menores. Casas de recolhimento são inauguradas em 1906, dividindo-se em escolas de prevenção, destinadas a educar menores em abandono, escolas de reforma e colônias correcionais, cujo objetivo era regenerar menores em conflito com a lei… A influência externa e as discussões internas levaram à construção de uma Doutrina do Direito do Menor, fundada no binômio carência-delinquência. Era a fase da criminalização da infância pobre. Havia uma consciência geral de que o Estado teria de proteger os menores, mesmo que suprimindo suas garantias. Delineava-se, assim, a Doutrina da Situação Irregular. (AMIN, 2018, p. 52-53).

Nessa perspectiva, foi criado na Era Vargas, meados do século XX, o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), cuja função era organizar as Unidades de Internação, realizar o estudo e prover o tratamento aos menores. À época, as condições precárias de funcionamento das Unidades (corrupção, clientelismo e maus-tratos às crianças) foram denunciadas, tendo as autoridades, políticos e diretores proposto a criação de uma reorganização do SAM (PILOTTI; RIZZINI, 2011; RIZZINI; RIZZINI, 2004). No entanto, a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem) no período da Ditadura Militar em 1964 deu continuidade com as locações, os profissionais e as formas de funcionamento do SAM (ROSSETTI-FERREIRA et al., 2011).

Em 1970, diante da crise estrutural do capital, as políticas sociais passaram a receber investimentos ainda menores do que já recebiam. No entanto, as práticas de repressão e punição da Ditadura Militar continuaram inalteradas. Em 1979, entra em vigor o novo Código de Menores, que atualizou a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, potencializando o processo de estigmatização de crianças consideradas pobres e desvalidas, pois os termos menor e delinquente passaram a ser utilizados frequentemente (LORENZI, 2007), sendo instituída, assim, a categoria “menor em situação irregular”. Para Rizzini e Rizzini (2004), a situação irregular correspondia à situação de pobreza de parte da população. Ou seja, a pobreza determinava a irregularidade social, devendo-se assegurar a ordem social referente ao padrão estabelecido como normalidade. Dessa forma, as práticas punitivas tornaram-se latentes diante da criminalização infantojuvenil e situação de pobreza a que estavam submetidas muitas famílias.

Outrossim, naquela época, a categoria “situação irregular” referia-se à grande parcela da população infantojuvenil, marcada pela pobreza e pela falta de acesso às mínimas condições dignas para viver. Segundo Rizzini e Rizzini (2004, p. 69), “como justificativa ideológica, o recolhimento de crianças que perambulavam ou viviam nas ruas passou a ser denominado de prevenção - por preservar o menor do ‘perigo que representa, para si e para sociedade’, pelo seu ‘estado de carência afetiva e material’”. Assim, a institucionalização era uma consequência advinda da questão social e na prática utilizada como penalização de crianças/adolescentes e suas famílias.

Diante desse cenário, uma série de reivindicações por transformações despontaram na discussão entre instituições e entidades ligadas a movimentos sociais, igrejas e sindicatos, no sentido de pressionar o poder público a rever a forma de atendimento às chamadas crianças carentes. Com o fim do período ditatorial, muitas alterações na política voltadas ao público infantojuvenil foram solicitadas por classes e movimentos sociais, sindicatos de vários segmentos profissionais, especialmente no caráter repressor na forma de atendimento (RIZZINI; RIZZINI, 2004).

O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) se destacou ao apresentar no primeiro encontro Nacional em Brasília em maio de 1984 o cenário da violência na realidade de muitas crianças e adolescentes. O MNMMR, assim, objetivou discutir e sensibilizar a sociedade para a situação de crianças e adolescentes considerados “menores abandonados” ou “meninos de rua”. Nesse mesmo contexto, houve a criação do Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência, que seguiu na luta pela substituição do termo “menor” por criança e adolescente, sendo substituído pela Constituição de 1988. Assim, observa-se que o processo político referente à democracia com vistas à garantia de direitos foi intensificado, tendo como marco principal a Carta Constitucional de 1988, trazendo importantes mudanças no ordenamento jurídico nacional, vislumbrando novos paradigmas (AMIN, 2018).

Nesse sentido, os movimentos de luta, que abraçaram a causa infantojuvenil, tiveram suas reivindicações consideradas no texto constitucional, onde crianças e adolescentes passaram a ser vistos como sujeitos de direitos. Tudo isso foi coroado com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 1990), que instituiu os direitos fundamentais a todas as crianças e todos os adolescentes brasileiros, bem como a obrigação do Estado em efetivá-los. Essas mudanças de perspectiva foram fundamentais no cenário da proteção integral de crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade sociais (CORRÊA et al., 2020). Diante de tais considerações, o objetivo do presente artigo foi discutir sobre a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes desenvolvida no Brasil, a partir da problematização do tempo de emissão de guias de acolhimento e desligamento pelo judiciário e dos motivos do acolhimento apresentados por conselheiros tutelares em um serviço de acolhimento no estado do Pará, como aspectos que podem revelar a doutrina da situação irregular.

2 Metodologia

Este artigo caracteriza-se como um estudo exploratório e descritivo, elaborado a partir de uma pesquisa documental, com abordagem quanti-qualitativa no tratamento dos dados. Quanto às considerações éticas, a proposta da pesquisa foi apresentada à Secretaria Municipal de Assistência Social do município, solicitando a permissão para a execução do estudo e acesso aos prontuários, mediante ofício.

2.1 Seleção das fontes de dados

Foram utilizados dados secundários, obtidos a partir da consulta a 144 prontuários de crianças e adolescentes, acolhidos em um serviço de acolhimento de um município do estado do Pará no período de 2009 (ano em que a instituição passou a funcionar na modalidade Abrigo Institucional) a 2020. Selecionaram-se, assim, prontuários de crianças e de adolescentes que foram reintegrados na família de origem, extensa ou encaminhados para processo de adoção. Portanto, foram excluídos da análise prontuários de situações que ainda tramitavam (07), de situações de crianças e adolescentes que foram transferidos para outras instituições (02), que saíram voluntariamente do serviço (02), casos passageiros (29) e que não eram perfil/demanda para a modalidade do serviço - adultos e idosos (03), mas que foram judicialmente institucionalizados na referida instituição.

2.2 Contexto da pesquisa

O contexto de realização do estudo foi um serviço de acolhimento com 11 anos de funcionamento em um município de médio porte do estado do Pará, dividido em cinco distritos: Sede, Murucupi, Vila do Conde, Estradas e Ilhas. Destaca-se, economicamente, como polo industrial no setor de alumínio, caulim e siderurgia. O município possui uma área de 1.310,59 km² e pertence à mesorregião metropolitana de Belém.

O serviço no qual a pesquisa foi realizada é de natureza governamental e surgiu primeiramente como Casa de Passagem em 2008. Em 2009, passou a funcionar na modalidade Abrigo Institucional e, desde então, acolhe crianças e adolescentes, de ambos os sexos, na faixa etária de 0 a 18 anos incompletos. O local para a consulta e registro das anotações dos prontuários foi a sala de reunião, cedida pela equipe técnica do serviço.

2.3 Coleta de dados

Após a aprovação, a primeira autora da pesquisa realizou a consulta aos prontuários (compostos por relatórios, despachos, laudos, certidões, planos individuais de atendimento, entre outros) e preenchimento de uma planilha no Excel com dados das variáveis importantes para o estudo: motivo do acolhimento, faixa etária, sexo, criança ou adolescente, se era caso de reincidência, se compunha grupo de irmãos, tempo entre a entrada da criança/do adolescente no serviço e a emissão da guia de acolhimento e tempo entre o encaminhamento do relatório técnico para o judiciário (Fórum e Ministério Público - MP) e a emissão da guia de desligamento. E para as anotações das observações e reflexões de conversas no serviço, bem como de trechos de relatórios e despachos contidos nos prontuários, foi utilizado o diário de campo, importante instrumento de registro de percepções e processos interativos entre pesquisadores e equipe técnica (MORAIS; BORBA; KOLLER, 2016).

2.4 Análise de dados

Quanto à análise de dados, estes foram analisados por meio do software Statistical Package for the Social Sciences (versão 20.0). Análises descritivas como frequências e medidas de tendência central foram realizadas para identificar o perfil dos acolhidos (motivo do acolhimento, faixa etária, sexo, criança ou adolescente; se era reingresso e se compunha grupo de irmãos). Para análise comparativa da média de tempo entre a entrada da criança/do adolescente no serviço e a emissão da guia de acolhimento, e da média de tempo entre o encaminhamento do relatório técnico para o judiciário (Fórum e MP) e a emissão da guia de desligamento, foi realizado o teste t pareado, considerando-se o nível de significância estatística em p<0,05. Tal teste paramétrico foi selecionado a partir do resultado do teste de Kolmogorov-Smirnov, o qual apontou que a amostra tem uma distribuição normal. Os dados do diário de campo foram discutidos de forma integrada aos resultados estatísticos apresentados.

3 Resultados e discussão

Segundo as análises dos 144 prontuários, a maioria dos casos de acolhimentos foi na faixa etária de 12 a 15 anos (38,2%) e de crianças (56,9%). Além disso, 51,4% dos casos não incluem grupo de irmãos, e, em relação ao sexo, a maioria dos acolhimentos é de meninas, com 62,5% dos casos. Esses resultados são semelhantes aos encontrados no estudo de Corrêa et al. (2020), em que a maioria dos acolhimentos foi para o sexo feminino (58,7%) e a média de idade foi de 13 e 15 anos. Em estudo com dados nacionais, os resultados da presente pesquisa não convergem com os apresentados pelo Relatório do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (BRASIL, 2020), no qual houve certo equilíbrio na distribuição de meninos (51%) e meninas (49%). Na Tabela 1 encontram-se os dados do perfil de acolhimento realizado pela instituição.

Tabela 1.
Perfil de acolhimento nos anos de 2009 a 2020 na instituição
Variáveisf%
Faixa Etária
0-6 anos3625,0
7-11 anos4531,3
12-15 anos5538,2
16-18 anos85,6
Reincidência
Sim2215,3
Não12284,7
Grupo de irmãos
Sim7048,6
Não7451,4
Categoria
Criança8256,9
Adolescente6243,1
Sexo
Feminino9062,5
Masculino5437,5
Total144100,0
Fonte: Elaborada pelos autores

Entre as características estudadas, verifica-se, ainda, que a maioria dos casos não pode ser reconhecida como situações de reincidência ao serviço de acolhimento (84,7%). A não reincidência ao acolhimento é importante, pois evita a revitimização de crianças e adolescentes. Para Medeiros et al. (2009), o atendimento à família é fundamental para o retorno da criança e do adolescente ao contexto familiar. Porém requer atendimento especializado e permanente, mesmo após o desligamento institucional, para evitar a reincidência e a revitimização. Os autores também chamam a atenção para a provisoriedade do acolhimento, contudo isso não deve ser, por si só, a meta do serviço, tendo em vista que o objetivo primeiro é o fortalecimento da família e do seu vínculo com a criança/o adolescente para evitar a reinstitucionalização.

Segundo Paiva, Moreira e Lima (2019), a reinstitucionalização relaciona-se também a processos de reinserção familiar malsucedidos (SIQUEIRA; MASSIGNAN; DELL’AGLIO, 2011) ou múltiplas medidas de acolhimento aplicadas à criança ou adolescente. No estudo realizado por Fukuda, Penso e Santos (2013), foram encontradas 676 guias de acolhimento no Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Acolhidos do Conselho Nacional de Justiça em que a criança/o adolescente havia entrado mais de uma vez no sistema.

A ausência de ações concretas de políticas públicas efetivas de acompanhamento familiar e fortalecimento de vínculos comunitários pode contribuir para a reincidência ou cronificação dos motivos que levam ao acolhimento das crianças e adolescentes. A reintegração familiar, assim, é mais que um retorno ao contexto familiar, é um processo que requer a construção de estratégias que, de fato, auxiliem as famílias a superar os motivos da institucionalização (PAIVA; MOREIRA; LIMA, 2019).

Segundo a equipe técnica do serviço no qual a presente pesquisa foi realizada, a dificuldade do trabalho encontra-se na fragilização articulatória da Rede de Atendimento. Pois, por mais que a equipe fortaleça os vínculos familiares, a rede socioassistencial (Proteção Social Básica e a Proteção Social Especial de Média Complexidade), por exemplo, não consegue realizar o acompanhamento da família durante ou após o acolhimento institucional da criança/do adolescente por diversos fatores, o que deixa a equipe do acolhimento sobrecarregada (Notas do Diário de Campo).

Quanto ao motivo do acolhimento (Tabela 2), identifica-se que para 34% dos casos, o Conselho Tutelar apresenta como justifica para o acolhimento mais de um motivo, seguido de 25,7% dos casos em que o motivo do acolhimento foi o risco social e pessoal. Destaca-se entre o conjunto de violações reunidas na categoria “mais de um motivo”: 1) Situação de risco pessoal e social e suspeita de violência sexual, 2) Fuga do lar e situação de risco, 3) Fuga do lar e conflito familiar e 4) Negligência e abandono de incapaz (as crianças estavam sozinhas em casa).

Tabela 2.
Motivos que levaram ao acolhimento
Variávelf%
Motivo do acolhimento
Violência Sexual1913,2
Violência Física85,6
Mais de um motivo4934,0
Risco social e pessoal3725,7
Fuga do lar74,9
Conflito familiar74,9
Negligência21,4
Consumo de bebidas10,7
Ameaça de morte10,7
Vulnerabilidade social53,5
Ato infracional21,4
Maus-tratos42,8
Situação de trânsito10,7
Entrega voluntária10,7
Total144100,0
Fonte: Elaborada pelos autores

Entende-se que fuga do lar, conflito familiar, negligência e abandono de incapaz aparecem como categorias indistintas, que podem ser interpretadas a partir de opiniões de senso comum. Por exemplo, deixar crianças sozinhas em casa, a despeito de qualquer motivo, é negligência e abandono de incapaz. A literatura tem discutido sobre o conceito tendencioso de negligência (MATA; SILVEIRA; DESLANDES, 2017; HILLESHEIM et al., 2008), uma vez que, ao serem referidas, as famílias recebem rótulos acusatórios, sendo reinscritas em um regime de vigilância e regulação, o que reforça a complexidade de definir uma situação como negligência. Nessa mesma linha de raciocínio, nas avaliações de negligência, no estudo de Berberian (2013), observou-se insuficiente problematização sobre a dimensão ética na prática profissional de assistentes sociais, apontando para a necessidade de superação do uso viciado do conceito negligência, que ainda é carregado de preconceitos.

Diante disso, Furlan e Lima (2021) destacam os documentos legislativos e normativos, que, desde os anos de 1990, apontam para a desconstrução da cultura da institucionalização de crianças e adolescentes, no sentido da garantia do direito à convivência familiar e comunitária. Contudo, ainda segundo os autores, o número de crianças e adolescentes em situação de pobreza afastados de suas famílias é expressivo, porém, “velado como uma cortina de fumaça no discurso da família negligente” (p. 239), sustentando uma cultura de institucionalização dos chamados “des-ajustados”.

Do mesmo modo, o termo risco aparece de forma imprecisa, tanto como categoria específica, quanto compondo um conjunto de violações (mais de um motivo). A Política Nacional de Assistência Social foi estruturada em torno dos conceitos de vulnerabilidade e risco social. Isso tem implicações para uma política que se pretende universal, pois o enquadramento das famílias/sujeitos nessas dimensões é o que justifica as intervenções. Assim, o foco de atenção da chamada Proteção Social Básica são pessoas e grupos caracterizados como em vulnerabilidade social, e o da Proteção Social Especial são pessoas e grupos caracterizados em situação de risco pessoal e/ou social (CRESTANI; ROCHA, 2018; SANTOS; ROECSH; CRUZ, 2014; SIQUEIRA; LINO, 2013).

Nessa perspectiva, a partir da utilização do mecanismo discursivo (risco social e pessoal), o Conselho Tutelar coloca em movimento estratégias de governamentalidade (FOUCAULT, 1979), reforçando a cultura da institucionalização que marcou a história do atendimento a crianças e adolescentes em situação de pobreza. Para Foucault (1979), a governamentalidade caracteriza-se pelo conjunto constituído, entre outros, de procedimentos, análises e reflexões por meio dos quais se exerce o poder, tendo como alvo principal a população.

O ECA (BRASIL, 1990) dá contorno à Doutrinada Proteção Integral e, entre os seus princípios, tem-se a reconfiguração social e estrutural dos serviços de acolhimento institucional. Estes são caracterizados como medida de proteção, excepcional e provisória, que deve ser aplicada sempre que uma criança ou adolescente estiver em risco social e pessoal. As Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2009, p. 24) reforçam os postulados do Estatuto, quando enfatizam que:

Todos os esforços devem ser empreendidos no sentido de manter o convívio com a família…, a fim de garantir que o afastamento da criança ou do adolescente do contexto familiar seja uma medida excepcional, aplicada apenas nas situações de grave risco à sua integridade física e/ou psíquica. Como este afastamento traz profundas implicações, tanto para a criança e o adolescente, quanto para a família, deve-se recorrer a esta medida apenas quando representar o melhor interesse da criança ou do adolescente e o menor prejuízo ao seu processo de desenvolvimento. Destaca-se que tal medida deve ser aplicada apenas nos casos em que não for possível realizar uma intervenção mantendo a criança ou adolescente no convívio com sua família (nuclear ou extensa) (BRASIL, 2009, p. 24, grifo nosso).

Observa-se que há uma tentativa, por parte da legislação, de superação da cultura da institucionalização. Porém, a imprecisão e a falta de clareza do conceito de risco tendem a revelar ecos da Doutrina da Situação Irregular ainda nos dias atuais, sendo possível senti-las nas motivações apresentadas pelo Conselho Tutelar. Esses ecos podem se fazer presentes quando esse órgão, por meio de seus representantes, adota o mesmo conteúdo conceitual e valorativo dessa antiga Doutrina, que justifica identificar e tratar a criança/o adolescente em situação de pobreza sob a categoria de risco, sem especificação da violação de direito sofrida e dos encaminhamentos realizados pelo órgão para acompanhamento da família pela rede de serviço e realização de estudo diagnóstico. A retirada da criança/do adolescente do contexto familiar, portanto, é a primeira opção mesmo o Art. 101 do ECA (BRASIL, 1990) destacando o acolhimento institucional como a sétima medida de proteção a ser considerada, diante da verificação de quaisquer das hipóteses apresentadas no Art. 98 do Estatuto. Veja-se um trecho do relatório do Conselho Tutelar que explicita a situação de risco de forma vaga e subjetiva encaminhado ao serviço de acolhimento:

…a criança disse que queria morar com o pai, que não queria ver nem a tia nem a mãe. Mais tarde, a mãe da criança com a tia e o pai compareceram no Conselho Tutelar, e a mãe disse que quer a guarda do filho e o pai também disse que quer a guarda do filho. A criança foi abrigada no Espaço de Acolhimento devido a situação de risco em que estava inserida (Relatório do Conselho Tutelar/Diário de Campo, grifo nosso).

De acordo com Crestani e Rocha (2018), o discurso de proteção e cuidado pode ser usado como enredo para a vigilância e controle de uma parcela específica da população (por exemplo, as famílias em situação de pobreza), de modo a esconder determinantes históricos e estruturais dos problemas sociais, convocando o sujeito culpabilizado pelas próprias mazelas a buscar soluções. E, embora as legislações vigentes apontem a importância da articulação integrada das políticas setoriais para manter as crianças/os adolescentes no contexto familiar, o que de fato acontece é o acolhimento institucional, compreendido como a principal resposta; na saída-padrão para as famílias com funcionamento diferente dos prescritos pelo poder (CRESTANI; ROCHA, 2018). As autoras ainda afirmam que “os técnicos que atuam nas políticas públicas, os cidadãos… os membros do judiciário, todos são juízes da conduta alheia, juízes atentos às situações injuriosas à moral e aos bons costumes, definidas atualmente nas políticas de proteção social como situações de vulnerabilidade e risco” (CRESTANI; ROCHA, 2018, p. 6).

Durante a consulta aos 144 prontuários, foi possível verificar que, apenas em três, o acolhimento se deu mediante determinação judiciária, sem mediação do Conselho Tutelar. Em um desses casos, segundo relatório do Conselho Tutelar, a juíza da Comarca determinou o acolhimento institucional de um casal de irmãos, mesmo não havendo elementos concretos que justificassem a institucionalização.

No dia… a Juíza da 1ª Vara Cível… pediu para os Conselheiros Tutelares, que estavam acompanhando o caso para prestarem esclarecimentos sobre os procedimentos adotados, e no posicionamento deste Colegiado não caberia o acolhimento institucional e sim o fortalecimento dos vínculos para a inserção dos adolescentes na família materna pois até o exato momento nós não tínhamos conhecimento de outro parente, com todos os argumentos a Juíza optou pelo acolhimento dos adolescentes (Relatório do Conselho Tutelar/Diário de Campo).

E assim foi determinado o acolhimento institucional, mediante a decisão judicial, enfatizando uma “latente situação de risco social e pessoal”, supostamente vivida pelos irmãos (Nota do Diário de Campo). Situações como essa podem desvendar uma cultura de institucionalização enraizada nas práticas jurídicas, que remontam ao contexto da Doutrina da Situação Irregular em que, segundo Amin (2018, p. 63), “o juiz de menores centralizava as funções jurisdicional e administrativa, muitas vezes dando forma e estruturando a rede de atendimento”.

Destaca-se que esse é um caso excepcional, pois, segundo a equipe técnica da instituição, a maioria dos casos de acolhimento é sugerida pelo Conselho Tutelar (Nota do Diário de Campo). Nesse sentido, para Paiva, Moreira e Lima (2019), a solicitação da medida protetiva de acolhimento pelos conselheiros tutelares é realizada de forma apressada, geralmente feita aos finais de semana sem a busca de alternativas para evitar a retirada da criança/do adolescente do convívio familiar e comunitário. Para as autoras, esse cenário é potencializado pela precariedade de registros sobre a história das famílias e seus filhos, dificultando o planejamento, avaliação e aprimoramento de ações para superar os motivos que levaram à aplicação da medida. Observa-se, assim, no presente estudo, a descrição de um ambiente familiar, retirado de um relatório encaminhado pelo Conselho Tutelar ao serviço de acolhimento em tela, em que pobreza e risco são associados:

…a situação era de total miséria e de total risco de vida das crianças que estavam sozinhas, pois nem era uma casa e sim uma espécie de acampamento coberto com uma lona, sem piso no chão, sem banheiro sem pia, uma cama, sem fogão, sem condições para habitação digna do ser humano, tudo sujo louças sujas espalhadas por todo barraco, muita roupa pelo chão… (Relatório do Conselho Tutelar/Diário de Campo, grifo nosso).

De acordo com Rizzini e Rizzini (2004), crianças não deveriam ser institucionalizadas por serem pobres, mas ainda são. Trata-se de uma questão do âmbito das políticas públicas, devendo-se criar alternativas a partir das necessidades das crianças e seus direitos. É preciso que sejam desenvolvidas outras formas alternativas de cuidar da infância. Há, geralmente, a tendência de “transposição do foco de uma gestão da vida para a gestão dos riscos” (HILLESHEIM et al., 2008 apudCRESTANI; ROCHA, 2018, p. 6), onde a situação de risco é um meio para gerenciar o futuro e um mecanismo privilegiado da sociedade de controle. Nessa situação, a antecipação do futuro conduz à relação com o tempo presente. E, se tal antecipação apontar qualquer risco de algo indesejado, o presente deve ser modificado, objetivando mudar também o futuro (HILLESHEIM et al., 2008 apudCRESTANI; ROCHA, 2018). Com efeito, a indagação feita pelas autoras sobre grupo em risco pode indicar pistas relevantes para a reflexão dos dados dessa investigação, pois:

No caso específico do acolhimento institucional, não seria essa uma medida destinada a um determinado grupo de risco - família pobre, sobre o qual recaem inúmeros preconceitos e discursos moralizantes, e que visa a promover a profilaxia através do isolamento da criança/adolescente de um contexto considerado nocivo? (CRESTANI; ROCHA, 2018, p. 8).

Os resultados corroboram a indagação feita pelas autoras. Veja-se a descrição feita por um conselheiro tutelar em relatório encaminhado ao serviço de acolhimento:

…o local de moradia onde encontrei as duas crianças não havia condições de moradia digna, na verdade, a única coisa que encontramos foi uma estrutura feita de madeira, sem o mínimo de utensílios domésticos, muito menos higiene necessária para uma moradia digna. A genitora entrou em crise psicótica... segundo o pastor, “a genitora já apresentava sintomas que não estava bem, pois suas ações não condiziam com a sensatez de uma pessoa normal”, havia na residência rastros de desordem provocados pela genitora das crianças (Relatório do Conselho Tutelar/Diário de Campo).

Chama-se a atenção para a descrição das condições espaciais e estruturais do ambiente, fundamentada em um discurso moralizante e patologizante. Em vez dessa visão criminalizante sobre a família, são necessárias ações práticas (encaminhamentos e intervenções) que se atenham aos dramas sociais e pessoais que afligem as famílias e seus filhos, visando ao cuidado, ao apoio e à proteção social às primeiras.

Como forma de aprofundar as reflexões até aqui tecidas e observadas nas justificativas para o acolhimento, verificou-se também marcas da cultura da institucionalização, edificada no contexto da Situação Irregular, no arranjo de situações que foram judicializadas no serviço em questão. Assim, analisou-se a média de tempo entre a entrada da criança/do adolescente na instituição e a emissão da guia de acolhimento; e a média de tempo entre o encaminhamento do relatório técnico para o judiciário (Fórum e MP) e a emissão da guia de desligamento. Conforme a Tabela 3, a média de tempo para a emissão da guia de acolhimento no serviço de acolhimento é de até 10 dias (45,1%). Já o tempo médio de emissão da guia de desligamento é de 11 a 30 dias, com 34,7% dos casos. Observa-se que, para a média superior a 30 dias, há uma pequena diferença, com 31,3% dos casos. O teste t indicou diferença significativa (p<0,001) entre o tempo para emissão da guia de acolhimento (Tempo 1) e para a emissão da guia de desligamento (Tempo 2), ou seja, a média para o Tempo 2 é significativamente mais alta (M=29,13, DP=40,273). Pode-se dizer, assim, que a judicialização dos casos é mais rápida, comparada à desjudicialização.

Tabela 3.
Frequências, Médias e desvios-padrão do tempo de emissão de guias de acolhimento e desligamento
Variáveisf%MédiaDesvio Padrãotp-valor
Tempo entre a entrada da criança/do adolescente no serviço e a emissão da guia de acolhimento 16,44 26,773 3,502 <0,001
Até 10 dias6545,1
11 a 30 dias2517,4
+ de 30 dias2517,4
Sem Informação2920,1
Tempo entre o envio do relatório técnico e a emissão da guia de desligamento 29,13 40,273 3,502 <0,001
Até 10 dias2920,1
11 a 30 dias5034,7
+ de 30 dias4531,3
Sem Informação2013,9
Total144100,0
Fonte: Elaborada pelos autores

Esses resultados podem revelar aspectos da Doutrina da Situação Irregular e reforçam a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes quando apontam que há maior celeridade na emissão das guias de acolhimento em comparação às guias de desligamento. Ou seja, entra-se mais rápido do que sai do serviço de acolhimento. De forma convergente, Bernal (2004) analisou os prontuários de crianças e adolescentes que viveram em instituições do SAM em São Paulo no período de 1938 a 1960. E nos casos de desligamento de crianças/adolescentes, segundo a autora, o pedido de liberação atrasava, geralmente, por motivos burocráticos.

Segundo Santos (2004), embora a história como tempo passado de uma instituição não exista mais como tempo, ela se presentifica como espaço, objetivada na atualidade. Quando o esquema valorativo está sedimentado, “a força vinculante objetifica o conjunto hierárquico incorporado no habitus do indivíduo como fenômeno de longa temporalidade. E assim, este conjunto hierárquico torna-se opaco em relação a sua própria historicidade, mas se vivifica no ancoramento institucional” (MACIEL, 2008, p. 8). Ou seja, muitos profissionais que compõem os dispositivos judiciários reproduzem práticas arraigadas no passado no tempo presente.

Diante disso, é importante refletir sobre a importância de a criança/o adolescente entrar no serviço de acolhimento já com a guia de acolhimento. De acordo com o parágrafo 3º do Art. 101 do ECA (BRASIL, 1990), crianças e adolescentes só devem ser encaminhados ao serviço de acolhimento por meio de uma guia de acolhimento, expedida pela autoridade judiciária. Segundo Franco (2014), a guia legitima a atuação da equipe técnica do serviço de acolhimento.

Porém, segundo a equipe técnica da instituição em tela, a maioria das crianças/dos adolescentes era encaminhada ao serviço de acolhimento pelo Conselho Tutelar, sob a justificativa da emergência/urgência da medida, portanto sem guia de acolhimento (Nota do Diário de Campo). Tais resultados corroboram os apresentados no estudo realizado por Franco (2014) que, a partir de falas de profissionais, demonstram que o acolhimento sempre é amparado em situação de emergência. Contudo, quando os mesmos profissionais buscam por intervenção anterior à aplicação da medida, verificam que muitas crianças/muitos adolescentes e suas famílias não foram, sequer, acompanhadas pela Proteção Social Básica (acrescenta-se, e nem pela Proteção Social Especial de Média Complexidade), tornando-se a medida do acolhimento uma regra e não uma exceção. A pesquisa realizada por Bernal (2004) descortina o processo de institucionalização enquanto regra quando fala da sindicância realizada pelos comissários de vigilância:

A história de Paulo nos ajuda a compreender como se desenvolvia tal procedimento de sindicância. Paulo… recebeu a visita de um comissário, quando foi retirado da casa onde morava e internado no Abrigo Provisório de Menores, para que fosse “feita com urgência uma sindicância sobre a situação moral, social e econômica do Sr. J.B.C., procedendo-se o mesmo com relação a toda a sua família… Paulo ficou afastado de sua família, só podendo retornar após cinco meses… retornou para a sua família em março de 1939, sob autorização do juiz. (BERNAL, 2004, p. 44-45).

O mesmo raciocínio foi verificado no trecho retirado do relatório de um conselheiro tutelar quase 90 anos depois: “Foi constatado fuga do lar e que a adolescente estava sem os cuidados adequados com a higiene pessoal (suja e com mau cheiro), assim encaminhamos para o espaço de acolhimento” (Relatório do Conselho Tutelar/Diário de Campo). De fato, é possível identificar que a força das práticas sócio-históricas do paradigma da Doutrina da Situação Irregular tende a se reproduzir na atualidade, reforçando a cultura da institucionalização a partir da alusão aos ofícios do Juízo Privativo de Menores. Segundo Valente (2020), a medida de proteção deve estar sempre acompanhada da guia de acolhimento, na qual é obrigatório constar, entre outros:

I – sua identificação e a qualificação completa de seus pais ou de seu responsável, se conhecidos; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009). II – o endereço de residência dos pais ou do responsável, com pontos de referência; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009). III – os nomes de parentes ou de terceiros interessados em tê-los sob sua guarda; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009). IV – os motivos da retirada ou da não reintegração ao convívio familiar. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) (Art. 101, § 3º, BRASIL, 1990).

A guia de acolhimento, portanto, traz o percurso da criança/do adolescente pela rede de atendimento, mostrando que foram esgotadas todas as outras medidas para evitar o afastamento do convívio familiar. Essa conduta evita a revitimização da criança/do adolescente e também da família, que já deve ter um percurso extenso pelos serviços. Revitimizar significa submeter a pessoa a processos que levam a reviver, por meio de repetições da história, a violação sofrida (SILVA, 2016). Tais repetições “na peregrinação pelos serviços”, ou mesmo pela lembrança da violência sofrida, podem acarretar prejuízo para a criança/o adolescente, quando é exposta(o) a um atendimento sem privacidade para relatar a história diante de terceiros (VILELA, 2005, p. 52).

O Art. 86 do ECA (BRASIL, 1990) preconiza que a política de atendimento à criança e ao adolescente deverá ser feita a partir de um conjunto de ações governamentais articuladas da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. E, de forma complementar, a resolução 113/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e Secretaria de Estado de Direitos Humanos apresentam parâmetros para a institucionalização e o fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente - SGD (VALENTE, 2020). Segundo a autora, pode-se dizer que a operacionalização do ECA (BRASIL, 1990) só será possível se as ações da Política de Assistência, por exemplo, forem realizadas na forma de um sistema. Então a criança e o adolescente e também a sua família, que estão em situação de acolhimento, devem ser compreendidos como sujeitos de direitos, ou seja, como responsabilidade de todos, ainda que a situação esteja ancorada na Política de Assistência Social. Assim, o funcionamento do trabalho em Rede deficiente expõe o fato de que ela tem uma existência meramente formal. A eficiência da Rede, portanto, requer que cada conexão sua, formada pelos serviços, programas e projetos, tenha uma existência plena. É fundamental assumir configurações mais concretas, pois para o trabalho em Rede avançar, cada serviço precisa ser ativo em sua particularidade e juntos comporem uma sinergia daquilo que se pretende em termos de garantia de direitos e emancipação social.

É importante que os profissionais que atuam na área da infância e adolescência conheçam as inúmeras situações das quais se desdobram as violações de direitos de crianças/adolescentes, para não caírem no risco de tecer análises e tomar decisões balizadas em um ideário próprio, com práticas que se ancoram em uma época regida pela Doutrina da Situação Irregular, conhecida pelo princípio menorista (FRANCO, 2014).

4 Considerações finais

No contexto brasileiro, desde o século XVI, desenvolveu-se a prática de recolher e internar crianças/adolescentes nas mais diversas instituições (internatos, educandários, orfanatos, reformatórios). Isso contribuiu com a formação de uma cultura da institucionalização de crianças e adolescentes, primordialmente as que se encontravam em situação de pobreza. Dessa forma, o estudo teve como objetivo discutir sobre a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes desenvolvida no Brasil, a partir da problematização do tempo de emissão de guias de acolhimento e desligamento pelo judiciário e dos motivos do acolhimento apresentados por conselheiros tutelares em um serviço de acolhimento no estado do Pará, como aspectos que podem ser reveladores da Doutrina da Situação Irregular.

Apesar de o ECA (BRASIL, 1990) ser fundante na proposição de novas práticas de cuidado e de atendimento a crianças/adolescentes em situação de acolhimento institucional, ainda parece perdurar uma cultura estigmatizante, construída e cristalizada ao longo da história da institucionalização desse segmento da população. Os resultados levantados nessa pesquisa sugerem que tal cultura se revela por meio dos motivos e justificativas apresentadas pelos conselheiros tutelares para o acolhimento institucional, bem como pela diferença na média de tempo na emissão das guias de acolhimento e de desligamento.

É fundamental, portanto, disseminar o conhecimento teórico e prático do ECA (BRASIL, 1990) por meio da oferta de disciplina obrigatória do ECA (BRASIL, 1990) em cursos como de Serviço Social, Direito, Psicologia, Pedagogia, entre outros. Muitos operadores da Política de Assistência Social, por exemplo, bem como candidatos ao Conselho Tutelar, participam de concursos públicos e do processo de escolha para conselheiro sem ter travado o mínimo de conhecimento com o ECA (BRASIL, 1990), sem sequer ter conhecimento da doutrina atual que rege o atendimento à população infantojuvenil, a da proteção integral e da prioridade absoluta. No âmbito do legislativo, também, é importante que ações políticas que tendem a agredir a cultura dos direitos humanos tenham a obrigação de colocar em movimento os pressupostos do Estatuto, no sentido de evitar que muitos projetos de leis sejam sugestivos de descaracterização do ECA (BRASIL, 1990).

Outra questão importante de se refletir acerca da importância de desconstruir a cultura da institucionalização na lógica de atuação de muitos profissionais do SGD é o percurso da família na Política de Assistência Social (VALENTE, 2020). A atuação na Proteção Social deve se respaldar em um compromisso metodológico, onde os olhares técnicos devem ser integrados a partir da premissa da articulação em Rede, uma vez que o afastamento de uma criança/um adolescente do contexto familiar é uma medida extremamente complexa. Portanto, as decisões sobre o afastamento devem ser tomadas coletivamente, com ações planejadas, sendo isso que caracteriza uma Rede sinérgica. Por isso, de acordo com as Orientações Técnicas (BRASIL, 2009), todos os esforços devem ser mobilizados no sentido de manter o convívio com a família (nuclear ou extensa, em seus diversos arranjos), de modo que o afastamento da criança ou do adolescente da família seja uma medida excepcional aplicada somente em situações que configurem grave risco à integridade física e/ou psíquica.

A realização de um estudo diagnóstico com a supervisão e articulação com o Conselho Tutelar, Justiça da Infância e da Juventude e equipe de referência do órgão gestor da Assistência Social é imprescindível. E se julgar necessário, o órgão aplicador da medida poderá requisitar uma avaliação da situação por parte de outros serviços da rede (Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente, Serviços de Saúde, Escolas). E mais, deve-se definir fluxos e responsabilidades para a realização do estudo diagnóstico entre os órgãos envolvidos, os quais devem fazer a avaliação criteriosa das condições a que estão submetidas crianças e adolescentes, bem como das condições da família para superação das violações de direitos observadas e o provimento de proteção e cuidados (BRASIL, 2009).

Nesse sentido, na avaliação da necessidade de afastamento da criança ou do adolescente do contexto da família, faz-se necessária a problematização dos conceitos de Vulnerabilidade e Risco, não como imperativo um do outro ou sinônimos, mas como dimensões de esferas distintas. A primeira relacionada à Proteção Social Básica, operacionalizada pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS); e a segunda, relacionada à Proteção Social Especial de Média (Centros de Referência Especializados de Assistência Social - CREAS) e Alta (Serviços de Acolhimento Institucional) Complexidades. Sugere-se que a coordenação do órgão gestor da assistência social possa organizar uma equipe de trabalho especializada, responsável pela construção de uma matriz de análise de risco com elementos críveis para auxiliar os profissionais na tomada de decisão pelo acolhimento ou não de crianças e adolescentes.

Quanto às limitações, houve dificuldades em encontrar estudos que abordassem o tema a partir de experiências empíricas ou documentais, no sentido de darem suporte e sustentação para a discussão. Além disso, devido ao tempo estabelecido para o cumprimento do estudo, não foi possível envolver outras fontes de dados, tais como relatórios das equipes técnicas do serviço de acolhimento, da Proteção Social Básica (CRAS), de Média Complexidade (CREAS) e do judiciário, bem como despachos expedidos por este último. Sugere-se, portanto, que pesquisas futuras sejam desenvolvidas como forma de ampliar o estudo documental aqui realizado e de trazer a voz dos profissionais do SGD (conselheiros tutelares, juízes, promotores, defensores públicos, equipes técnicas dos CRAS, CREAS e judiciário) a partir de investigações empíricas.

No que diz respeito às contribuições desta pesquisa a partir das reflexões tecidas, pode-se dizer que os profissionais que estejam atuando, especialmente na área da assistência social, seja na Proteção Social Básica seja na Especial, poderão aprofundar e ampliar a atuação e a discussão sobre a importância de desconstruir a cultura da institucionalização infantojuvenil, por meio de orientações e capacitações, por exemplo, aos conselheiros tutelares e profissionais do judiciário.

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Notas

1 No contexto do Código de Menores, em suas duas versões (1927-1979), o termo menor era relacionado ao segmento social infantojuvenil de famílias em situação de pobreza e marginalizadas pela elite. Ao passo que o termo criança se referia aos filhos de famílias abastadas.

Notas de autor

1 Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Auxiliar de secretaria/judiciário do Fórum Judicial de Barcarena/PA - Brasil. E-mail: alicesanthos@gmail.com.
2 Doutorado em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora da Faculdade de Serviço Social na Universidade Federal do Pará – Belém/PA – Brasil. E-mail: liliac@ufpa.br.
3 Doutorado em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela Universidade Federal do Pará (UFPA) – Belém/PA – Brasil. E-mail: liz.amaralcruz@gmail.com.
4 Doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Professor Associado da Universidade Federal do Pará (UFPA) – Belém/PA – Brasil. E-mail: maciel@ufpa.br.
5 Doutorado em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade do Estado do Pará (UEPA) – Belém/PA – Brasil. E-mail: elson.fcosta@uepa.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): SANTOS, A. S. et al. Acolhimento institucional de crianças e adolescentes: ecos da doutrina da situação irregular. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 3, p. 900-918, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n32022p900-918. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16975.

COMO CITAR (APA): Santos, A. S., Cavalcante, L. I. C., Cruz, D. A., Maciel, C. A. B., & Costa, E. F. (2022). Acolhimento institucional de crianças e adolescentes: ecos da doutrina da situação irregular. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(3), 900-918. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n32022p900-918.

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