Dossiê Temático: “A pesquisa em Educação Profissional e Tecnológica: temas, abordagens e fontes”

Saberes e disposições para a docência: um estudo com professores de Libras do ensino superior

Knowledge and provisions for teaching: a study with higher education Libras teachers

Saberes y disposiciones para la docencia: un estudio con profesores de Libras de educación superior

Lucinara Bastiani Corrêa 1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha, Brasil
Vantoir Roberto Brancher 2
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha, Brasil
Luana Cassol Bortolin 3
Prefeitura Municipal de Uruguaiana, Brasil

Saberes e disposições para a docência: um estudo com professores de Libras do ensino superior

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 24, núm. 2, 2022

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2022 pelos autores.

Recepción: 05 Febrero 2022

Aprobación: 03 Junio 2022

Resumo: Este artigo tem como objetivo conhecer os saberes docentes que são mobilizados pelos professores de Língua Brasileira de Sinais (Libras) no Ensino Superior. A profissão de professores de Libras é relativamente recente, sendo que passou a existir no Brasil com a oficialização da Libras como língua de comunicação e expressão das pessoas surdas brasileiras através da Lei nº 10.436/2002. Dessa forma, pesquisar os saberes docentes se torna importante na qualificação na formação de professores de Libras. Através de uma metodologia qualitativa, foi possível entrevistar seis professores de Libras atuantes do Ensino Superior; tais entrevistas foram categorizadas pela análise de conteúdo (BARDIN, 2016) para a posterior interpretação. Autores como Nóvoa (2009), Tardif (2014) e Cunha (2010) referenciaram teoricamente para as discussões sobre a docência em Libras. Como resultado, os dados mostram as distintas origens desses saberes que se estabeleceram desde a entrada na escola como alunos e se desenvolvem ao longo da vida. Desse modo, indicam a temporalidade da formação e desenvolvimento profissional, sendo um processo contínuo, a importância do trabalho coletivo e das trocas entre os pares como um dispositivo de formação significativo.

Palavras-chave: Saberes docentes, Libras, Ensino Superior, Formação, Docência.

Abstract: This article aims to get to know the teaching knowledge that is mobilized by Libras (Brazilian Sign Language) teachers in Higher Education. The profession of Libras teachers is relatively recent, and it came into existence in Brazil with the officialization of Libras as a language of communication and expression for Brazilian deaf people according to Law 10436/2002. Thus, researching teaching knowledge becomes important in qualifying the training of Libras teachers. Through a qualitative methodology it was possible to interview six Libras teachers working in Higher Education. The interviews were categorized by content analysis (BARDIN, 2016) for further interpretation. Authors such as Nóvoa (2009), Tardif (2014), and Cunha (2010) theoretically referred to the discussions about teaching in Libras. As a result, the data showed the different origins of this knowledge which have been established since entering school as students and developing throughout life. Furthermore, it indicated the temporality of training and professional development, as a continuous process, and the importance of collective work and the exchanges between peers as a device of significant training.

Keywords: Knowledge Teaching, Libras, Higher Education, Training, Teaching.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo conocer los saberes didácticos que movilizan los profesores de Lengua de Signos Brasileña (Libras) en la Educación Superior. La profesión de profesores de Libras es relativamente reciente, habiendo surgido en Brasil con la oficialización de Libras como lengua de comunicación y expresión de las personas sordas brasileñas a través de la Ley N.º 10.436/2002. De esta forma, la investigación del saber docente cobra importancia en la cualificación de la formación de los profesores de Libras. A través de una metodología cualitativa, fue posible entrevistar a seis profesores de Libras que trabajan en la Educación Superior; dichas entrevistas fueron categorizadas por el análisis de contenido (BARDIN, 2016) para su posterior interpretación. Autores como Nóvoa (2009), Tardif (2014) y Cunha (2010) referenciaron teóricamente discusiones sobre la enseñanza en Libras. Como resultado, los datos muestran los diferentes orígenes de este conocimiento que se establece desde que ingresan a la escuela como estudiantes y se desarrollan a lo largo de la vida. Así, indicando la temporalidad de la formación y el desarrollo profesional, siendo un proceso continuo, la importancia del trabajo colectivo y los intercambios entre pares como dispositivo significativo de formación.

Palabras clave: Saber didáctico, Libras, Educación superior, Capacitación, Docencia.

1 Introdução

A docência da Libras, como uma profissão reconhecida, se estabeleceu a partir de muitas lutas do Povo Surdo, as quais levaram ao sancionamento da Lei nº 10.436/2002 e do Decreto nº 5.626/2005. Ambos estão embasados em conceitos como o de Comunidade, Cultura e Identidade Surdas, que levam a uma concepção de diferença e não mais de deficiência (BRITO, 2013; DALL’ALBA, 2013; SKLIAR, 1997), relativas aos sujeitos surdos.

Pode-se dizer que é uma profissão relativamente recente, que se estabeleceu nas Instituições de Ensino Superior (IES) a partir do ano de 2006 com as determinações do Decreto supracitado, ao mesmo tempo em que um curso de Licenciatura em Letras/Libras abriu suas primeiras turmas. Assim, pesquisar como os professores de Libras de IES mobilizam os saberes docentes é importante e qualificador para a formação e o fortalecimento da profissionalização para atuação dos professores da área.

Considerando os autores Tardif (2014), Cunha (2010) e Nóvoa (2009) foi possível delinear a pesquisa sobre os saberes dos docentes de Libras surdos e ouvintes atuantes em duas IES com o intuito de se conhecer as disposições mobilizadas na prática desses profissionais.

Nessa perspectiva, os saberes da prática docente surgem como um modo de ressaltar a profissionalização do ensino. A formação de professores está além da graduação e abarca também o trabalho desenvolvido pelo profissional na escola, por exemplo. Segundo Tardif (2000), os saberes dos professores também são construídos e modelados no local de trabalho, com a prática com os alunos, desse modo a reflexão e a conversa coletiva com os colegas são determinantes para o desenvolvimento profissional.

Desse modo, este artigo consiste em um recorte revisado da pesquisa realizada no período de 2015-2017, que culminou na dissertação de Corrêa (2017)1. O enfoque dessa escrita são os saberes dos professores de Libras surdos e ouvintes atuantes em duas instituições do Ensino Superior do RS, que são mobilizados no processo teoria e prática na sua atuação.

2 Saberes docentes: Pressupostos teóricos

Na contemporaneidade, autores como Tardif (2014) e Cunha (2010) têm se dedicado a tentar sistematizar o que denominam de saberes necessários à docência, ou em uma mesma perspectiva com o que Nóvoa (2009) e Garcia (1999) vão denominar de disposições. Ambos convergindo a um mesmo ponto: a intrínseca relação entre a pessoalidade e a profissionalidade dos professores na constituição de sua identidade profissional, ou de seu processo identitário (NÓVOA, 2000); a complexa e diversificada natureza dos componentes de sua atuação que precisam ser considerados em sua formação.

Tardif (2000) sinaliza os saberes docentes como algo plural e heterogêneo que perpassa vários espaços e influencia na prática pedagógica. Assim sendo, no Quadro 1 é possível perceber os saberes classificados epistemologicamente.

Quadro 1.
Definição Saberes Docentes a partir de Tardif (2000)
SABERESDEFINIÇÃO
Saber DisciplinarCorrespondem aos diversos campos do conhecimento, aos saberes que se encontram integrados às universidades sob a forma de disciplinas.
Saber CurricularDiscursos, objetivos, conteúdos e métodos pelos quais as instituições escolares categorizam e selecionam os modelos de currículo.
Saberes ExperienciaisSão fruto da experiência e por ela são validados. Incorporam-se à experiência individual e coletiva pelo habitus e de habilidades, de saber-fazer e saber-ser.
Formação ProfissionalCorrespondem àqueles apreendidos nas instituições de formação profissional, inicial e continuada, sobre as doutrinas ou concepções advindas das reflexões sobre a prática educativa.
Fonte: Adaptado de Tardif (2000)

No Quadro 1, ficam explícitos os saberes dos professores classificados de modo organizado. Na prática docente, conforme Tardif (2000), esses saberes ficam como uma espécie de amálgama e misturam-se de modo a dar origem à práxis.

Para Cunha (2010, p. 19), “os saberes dos professores também são heterogêneos e constituídos a partir de múltiplas origens”, que se organizam em alguns núcleos, relativos ao campo pedagógico. Ainda a autora pressupõe a docência como uma ação complexa, na qual, em sua prática pedagógica, o professor aciona os diferentes saberes para a consolidação da prática (CUNHA, 2010). Os saberes dimensionados por Cunha (2010) dialogam com os aspectos relacionais e contextuais que permeiam o trabalho e que também fazem parte da formação docente.

Nóvoa (2009) traz algumas disposições importantes para a prática do professor: o conhecimento, a cultura profissional, o tato pedagógico, o trabalho em equipe e o compromisso social. Essas disposições, segundo o autor, dimensionam a profissão do professor à dimensão subjetiva inseparável de sua prática, o trabalho científico não é suficiente para definir a profissão, deve-se destacar o ser professor, a pessoa-professor (NÓVOA, 2009). A pessoalidade no centro da profissionalidade demanda reflexão e autoanálise do profissional, visto que seus modos de ensinar estão relacionados ao seu jeito de ser, à sua biografia e ao seu trajeto formativo. O tato pedagógico depende da comunicação e de saber se relacionar com o outro; nessa ótica, a pessoalidade está em torno da profissão.

Além disso, todos os docentes de Libras, colaboradores desta pesquisa, possuem formação em nível de graduação em cursos de Licenciatura; sendo assim, estão familiarizados com os saberes “profissionais incluindo os das ciências da educação e da pedagogia” (TARDIF, 2014, p. 33) que remetem aos conhecimentos didáticos e pedagógicos mobilizados em sua práxis. Entretanto, sendo os saberes oriundos de “múltiplas origens e plurais” (TARDIF, 2000, p. 14), dizem respeito à história de vida e cultura escolar anterior dos professores. Dessa forma, também são compostos por conhecimentos disciplinares adquiridos na formação inicial ou por conhecimentos curriculares, quer dizer, o próprio saber dos professores está ligado à experiência do trabalho e, em tradições peculiares, ao ofício de professor.

3 Metodologia

A partir de uma metodologia qualitativa, foram realizadas entrevistas individuais, do tipo semiestruturada, com professores de Libras. Os colaboradores da pesquisa foram professores surdos e ouvintes efetivos em duas Instituições de Ensino Superior do Rio Grande do Sul. As entrevistas foram gravadas em vídeo com colaboradores surdos e realizadas em Libras, com a autorização de cada um, para que não se perdessem detalhes de suas falas.

A utilização desse procedimento na pesquisa se justifica pelo fato de a Libras ser uma língua de modalidade gestual-visual que demanda uma forma de registro distinta (vídeo) daquela utilizada para as línguas orais-auditivas (gravador de voz). No caso dos docentes ouvintes, a entrevista foi somente gravada em áudio. A partir daí, seguiram-se os seguintes passos: transcrição, devolutiva e análise dos dados produzidos.

Para análise dos dados, optou-se pela Análise de Conteúdo, seguindo os pressupostos de Bardin (2016), que a define como pré-análise, exploração do material, categorização e inferência.

A opção por essa forma de análise se deu em função da busca por uma possível compreensão do que está implícito ou explícito nas narrativas, na tentativa de classificá-los em categorias temáticas, relacionadas ao contexto histórico, psicológico, político e social do narrado e do vivido. Cabe salientar que foram utilizadas letras do alfabeto A, B, C, D, E e F, acompanhados das letras S, no caso de colaborador surdo e O, para colaborador ouvinte, como forma de nomear os colaboradores e preservar sua confidencialidade. No Quadro 2, pode-se ver o codinome de cada colaborador e sua respectiva formação.

Quadro 2.
Perfil dos Participantes de Pesquisa
PROFESSORESFORMAÇÃO INICIAL
Professor ASInstrutor de Libras e Licenciatura em outra área
Professor BSInstrutor de Libras e Licenciatura Letras/Libras
Professor COLicenciaturas Educação Especial e Letras/Libras
Professor DSBacharelado outra área e Licenciatura em Letras/Libras
Professor EOLicenciatura Educação Especial
Professor FOLicenciatura Educação Especial
Fonte: Adaptado de Corrêa (2017)

A participação dos colaboradores nesta pesquisa precisou de seus aceites com a assinatura da Carta de Apresentação e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Esta pesquisa teve aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da instituição.

4 Resultados, análise e discussão dos dados

Nas narrativas dos professores de Libras, colaboradores desta pesquisa, há, pelo menos, dois elementos a serem considerados inicialmente, os quais os apontam como constituintes de seus trajetos formativos e presentes em suas práticas pedagógicas por encontrarem ressonâncias nos autores trazidos anteriormente: “saberes heterogêneos e constituídos a partir de múltiplas origens” e o “contexto da prática pedagógica”.

Dessa maneira, das narrativas, destacam-se os trajetos percorridos na constituição desses saberes. O Professor AS expressa a aprendizagem ao longo de sua escolarização de forma sucinta, mas significativa:



Professor AS - […] eu acho que de cada professor que passou acabou deixando uma coisa sabe. […] eu tenho uma coisa talvez muito antiga: pra mim professor é aquele que dá aula, que traz o programa, o seu conteúdo. Então eu tenho algumas coisas assim ainda. E eu tive alguns professores, não é que sejam maus professores, mas a forma como eles percebem a docência, como deve ser ministrar uma aula, é se jogando no chão, indo ao pátio fazendo uma ciranda. Então para ele deve fazer algum sentido, mas para mim eu tenho um sentido mais tradicional, digamos assim, do que é ser professor do que é uma sala de aula.

O Professor DS fala com gratidão de alguns professores que marcaram sua constituição identitária pessoal e profissional, em diferentes momentos de sua vida:



Professor DS - […] aprendi muito, muitas coisas junto com essas duas professoras (na infância). Lembro-me das duas porque me ensinavam muitas coisas. Sou muito grata a elas. Elas me ajudaram muito na construção da minha identidade surda. São exemplos pra mim. Nunca esqueci delas. E agora somos colegas de novo. Eu fiquei muito feliz em encontrá-las em minha vida de novo.

Em período posterior, já com mais idade, o Professor DS ingressou na escola de surdos desenvolvendo trabalho administrativo e foi convidado pelo diretor da escola a ser instrutor de Libras, sendo que estava cursando o Letras/Libras. Dessa experiência, relata o seguinte:



Professor DS - […] Ele me incentivou e me auxiliou na questão dos materiais, planejamento, recurso, conteúdo, questões didáticas, da forma como trabalhado no L/L, e ali eu comecei. Depois, com o passar do tempo fui trabalhar em um curso particular, do [X], ele me ajudou muito com o planejamento do curso e disciplina de Libras, com o conteúdo também. Eu perguntava o que precisava ensinar, olhávamos juntos, está OK e desenvolvia. Eu aprendi muito, aproveitei que estava estudando L/L e observava, estudava profundamente as questões de organização e planejamento e fui melhorando. Quem me ajudou a começar foi este professor surdo.

Nesses relatos, estão presentes os saberes referentes ao contexto pedagógico que foram desenvolvidos no contato com os pares mais experientes e é apontada a importância atribuída a eles, já que, embora estivesse cursando a licenciatura específica para formar-se professor de Libras, considera essas experiências significativas em sua formação. O Professor BS também se refere à aprendizagem da docência ter tido início na observação de outros professores:



Professor BS - […] vendo os professores de lá que me ensinaram a desenvolver o perfil deles como profissionais professores. Observei bastante. E quando eu fui atuar eu trouxe um pouco do jeito deles para me constituir. E comecei estudar como estimular os alunos surdos. A importância de pensar como ensinar a eles.

Aqui, encontram-se indícios de constituição do professor artesão trazido por Gianini (2012, p. 140), o qual demarca:

[…] o modelo do professor artesão, que tinha a possibilidade de construir saberes docente na troca com vários outros professores, o que vai permitir impulsionar e partilhar a criação de procedimentos de ensino e de comportamentos em sala de aula, que a deviam ser cumpridos de forma precisa. Para ensinar era necessário, então, dominar o conteúdo, um método e estratégias para desenvolvê-lo.

Talvez por se acreditar somente no domínio de conteúdo, é preciso recorrer à imitação de “bons” mestres ou mestres representativos, no entanto, se aprofundar os estudos, talvez seja possível construir as disposições necessárias ao ensino de Libras.

No entendimento de Nóvoa (2009), os elementos abordados pelos professores entrevistados referem-se a uma das “disposições para a docência”, qual seja “a cultura profissional” relativa ao contexto institucional e suas práticas de registros e avaliações, as quais são aprendidas no convívio e diálogos com pares mais experientes no próprio contexto educacional. Cunha (2010, p. 21) também menciona a “dimensão relacional e coletiva das dimensões do trabalho e dos processos de formação” que envolvem o trabalho coletivo, a formação entre pares, parcerias entre professores e atores educacionais, tendo como referência “contextos vivenciais”.

Nesse sentido, o Professor CO acrescenta elementos relativos à temporalidade presente na constituição dos saberes dos professores:



Professor CO - Uma coisa eu tenho aprendido e que eu não me arrependo de fazer, por exemplo, são aulas abertas. Por exemplo, profissões. Eu não chego à sala de aula com uma lista de profissões, que eles não têm interesse. Interessa pra ele é saber a profissão dele, as profissões que ele tem contato: do pai, da mãe, da namorada. […] então essas aulas abertas, elas me colocam como professora numa situação, como é que eu vou te dizer, assim, que eu não tenho tanta segurança. Porque é muito mais fácil para o professor chegar à sala de aula com uma lista, tu entendeste, com uma aula rígida, com uma aula fechada e sair imaginando: ai dei conta de tudo.

Aqui, o Professor CO indica, para além do desenvolvimento profissional ao longo do tempo e da formação que ocorre no viver a docência em contexto real de atuação, a preocupação com o “incentivo à curiosidade dos alunos, de envolvimento com a proposta de ensino e com as tarefas dele decorrentes” que Cunha (2010, p. 21) denomina “Saberes relacionados com a ambivalência da aprendizagem”. Todavia, aproxima-se também dos “saberes relacionados com o contexto sócio-histórico dos alunos”, dado que, ao propor “uma aula aberta”, se permite conhecer um pouco da história dos alunos, seus interesses, os sentidos e significados que os movem e, dessa forma, os estimula e incentiva para a aprendizagem.

Retomando essa questão, o Professor AS também declara:



Professor AS - No começo fazia a mesma ementa para todas as turmas, mas à medida que o tempo foi passando, senti falta de algo diferenciado. Fui buscar informações, conversar com outros professores de outras cidades, trocamos conhecimentos e isso contribuiu para modificar de maneira satisfatória o conteúdo.

Mais uma vez aparecem as trocas entre os pares como importante qualificador da docência, além do fator temporal. Embora o processo de formação demande a reflexão e o comprometimento do professor consigo, com suas crenças, valores e sentidos - significações -, também é importante a troca, as discussões, enfim, o intercâmbio com os colegas, com os alunos e com o contexto de atuação.

Tardif (2000, p. 13), por sua vez, considera que “os saberes dos professores são temporais, ou seja, são adquiridos através do tempo”: relativo ao tempo vivido enquanto alunos, mas também aos primeiros anos de prática enquanto professores que irão edificar o “saber experiencial” (TARDIF, 2000, p. 14), ao tempo vivido na carreira, sendo um “processo de vida profissional, bem como fases de mudanças” (TARDIF, 2000, p. 14). Dessa maneira, as significações que os profissionais têm da docência, as interações com os pares, as dificuldades encontradas no processo de ensino são elementos que irão contribuir na composição do saber experiencial.

No entanto, em outro de seus estudos, Tardif (2002) considera que os saberes dos professores demandam ser sustentados por uma base teórica de reflexão, não podendo serem, simplesmente, entendidos como possíveis de serem adquiridos somente na prática, ou seja, no “aprender fazendo”.

Sendo assim, tais saberes são construções do sujeito, que devem ser refletidas a partir de uma gama de conexões, sendo que exigem planejamento, justificativa, entendimento e reflexão, visto que terão ressonância no contexto da prática pedagógica. Cunha (2010) relaciona com as teias sociais e culturais do espaço, onde o processo de ensino e aprendizagem acontece e suas inter-relações, com a escola como instituição social e com as disciplinas e sua ressignificação na comunidade de aprendizagem. Nas falas dos colaboradores, a preocupação com o contexto da prática pedagógica repetiu-se várias vezes, conforme se vê nas narrativas a seguir:



Professor EO - Um bom professor de libras eu acho que é alguém que planeja, que pensa, por exemplo, em qual curso ele vai trabalhar. Então eu acho que esse professor de Libras ele tem que ter o discernimento de como ele vai trabalhar. Claro que ele tem aquela ementa para seguir, mas algumas coisas ele vai elencar de acordo com o que julgar mais importante para uma licenciatura ou para um bacharelado de uma engenharia, por exemplo.



Professor CO - Depende muito do contexto. Por exemplo, ser professor de Libras no bacharelado e ser professor de Libras na Licenciatura. E tem mais ainda, ser professor de Libras no bacharelado na área da saúde. […] então o interesse desse grupo é diferente, por exemplo, do interesse da licenciatura. A licenciatura quer fazer uma discussão mais pedagógica: como eu vou receber o aluno surdo em função das políticas públicas de inclusão).

Segundo Cunha (2010), um dos saberes que qualificam a docência como uma ação complexa é o saber relacionar o ensino ao contexto sócio-histórico dos alunos, ou seja, saber transpor didaticamente o que faça sentido ao aluno e para sua atuação profissional. Assim, seguem as outras narrativas:



Professor FO - […] E pensar muito no curso, se o curso é mais exato o que eu posso fazer uma dinâmica que seja mais peculiar para o curso dele, se o curso é da saúde então fazer uma dinâmica que eles possam trazer a área da saúde e usar Libras, fazer um vídeo que ensine escovar os dentes, por exemplo, para a Odontologia.



Professor AS - Quando eu trabalho com alunos ouvintes, preciso pensar que esses alunos querem se comunicar com pessoas surdas que estão inseridas na sociedade. Existe uma abordagem de ensino diferenciada para alunos surdos e ouvintes. […] no primeiro momento, observo o perfil dos alunos, pois não há um padrão. Existem alunos com mais dificuldades, por exemplo. A partir deste primeiro olhar, preparo o plano de aula. […] eu recebo a ementa, o conteúdo a ser ensinado e faço adequações a partir de pesquisas e observações. […] não há como manter sempre o mesmo modo de trabalho, com a mesma ementa para todos. Percebi que precisava desenvolver novos conteúdos, criar novas estratégias para despertar o interesse dos alunos. Então, as ementas são bem diferenciadas.

Nessas narrativas, vê-se a preocupação dos professores em trabalhar a disciplina de Libras de forma contextualizada com a realidade dos futuros profissionais que compõem aquelas turmas, sem perder de vista seu “objeto de trabalho”2 (TARDIF, 2000), ou seja, seus alunos. No mesmo viés, Cunha (2010, p. 21) aponta a importância dos saberes “relacionados com a ambivalência da aprendizagem” - já citado anteriormente -, em que os professores incentivam a curiosidade e o envolvimento dos alunos.

A partir do olhar de Nóvoa (2009), os pontos trazidos pelos colaboradores se aproximam das disposições de docência que ele denomina como “tato pedagógico”, que diz respeito às relações e comunicações entre professores e alunos, sem a qual não é viável um processo de ensino e aprendizagem real; e com o compromisso social da docência que obriga os professores irem além da escola, “[…] comunicar com o público, intervir no espaço público da educação, faz parte do ethos profissional docente” (NÓVOA, 2009, p. 31). Entende-se que, ao se preocuparem com a utilização social da Libras por seus alunos de diferentes áreas do conhecimento, esses professores estão demarcando o compromisso social de sua docência.

Ademais, os saberes dos professores de Libras - em Libras [conhecimento disciplinar/do conteúdo/da língua] - devem ser amplos, aprofundados e diversificados. Como aprender isso? Onde aprender tais especificidades? Onde buscar suporte para aprofundamento em áreas específicas? Os cursos básicos de Libras, aos quais se tem acesso, não possibilitam conhecimentos mais específicos. O curso de Letras/Libras oferece isso? Será que a formação inicial, mesmo em curso específico, dá conta da realidade de trabalho da Libras como L2 em diferentes cursos de formação?

Em Albres (2016), há um tópico de estudo dedicado ao curso de Letras/Libras, que auxilia a pensar isso. A autora indica que o primeiro curso de Licenciatura em Letras/Libras foi oferecido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em modalidade EaD “para atender aos surdos interessados em ensinar a língua de sua comunidade e promover uma formação em massa” (ALBRES, 2016, p. 99). Essa colocação já demarca a intencionalidade de qualificar somente os surdos para o ensino da Libras. Nesse sentido, Ferry (1990, p. 50) indica que “lós dispositivos de formación (de lós enseñantes) son portadores de ideologias. No son útiles para todos lós fines”, quer dizer, o curso de Licenciatura foi pensado para promover, em primeira instância, a demarcação de um território de luta e resistência surda, como demarca Carvalho (2016).

A autora explicita também que todas as disciplinas e materiais utilizados no curso foram desenvolvidos em Libras, tendo, inclusive, os textos utilizados nas disciplinas dos núcleos de linguística e educação (metodologias de ensino) traduzidos para a Libras (CARVALHO, 2016). Mais um apontamento que chama a atenção é, segundo Albres (2016, p. 102-103):

Levantamos a questão de que o peso e dimensionamento dos conhecimentos atribuídos a esse curso (organizados em núcleos) estaria dimensionada em quantidade de horas inferior à necessária para uma formação consistente de professores, pois há disciplinas com conteúdo de ensino insuficiente – principalmente as da área pedagógica, e consequentemente estabelece dificuldades de cumprir os requisitos das diretrizes curriculares – formação docente. O núcleo menos privilegiado é pedagógico e isso faz falta para a atuação como professor.

Essa colocação indica que, mesmo em um curso específico para a formação de professores de Libras, a maior preocupação é com o conteúdo, ou seja, com a língua em si, deixando em segundo plano os saberes que compõem a docência. O interessante é observar que, nas narrativas dos colaboradores que não cursaram esta Licenciatura, há a crença de que esta é uma formação completa, que proporciona aos seus acadêmicos e aos futuros professores todos os saberes necessários ao exercício dessa docência, conforme pode-se verificar:



Professor AS - Alguns surdos fazem o curso de Letras/Libras, pois o currículo é voltado para a licenciatura, bem aprofundado. O Letras/Libras é um curso completo, pois após concluir a formação, já pode trabalhar como professor. O curso proporciona todas as aprendizagens necessárias para atuar em diversos contextos: em escolas, universidades e outras instituições.



Professor FO - […] o Letras/Libras que é um curso completo que é uma formação de graduação quatro anos, que vai dar conta - eu não tenho essa formação - mas que vai dar conta da língua em si e da docência, eu acho. Não conheço a fundo o curso só aqui quando tinha as meninas que o fazem.

Considerando os estudos de Albres (2016, p. 102), conforme mencionado anteriormente, há um núcleo direcionado para os diferentes contextos de atuação – “Língua Materna, Segunda Língua e Literatura Surda”, como sugere o Professor D, porém deixa a desejar nos aspectos pedagógicos, mas está carregado de significações de “um curso completo”, desejo de muitos que não tiveram a oportunidade de cursá-lo, e de legitimador político de ocupação desse lugar.

Pelo visto até o momento, este curso não supre as necessidades específicas da prática pedagógica no ensino superior conforme as narrativas – conhecimento de sinais específicos de diferentes áreas, por exemplo. Nessa perspectiva, os colaboradores apontam, mais uma vez, a importância do “trabalho em equipe” (NÓVOA, 2009) - o qual implica um trabalho coletivo e colaborativo através de projetos educativos na instituição - e do “contexto da prática pedagógica” (CUNHA, 2010), ou seja, do espaço onde o processo de ensino e aprendizagem e suas inter-relações acontecem. Nessa direção, destacam-se as ações propostas pelos colaboradores na busca de qualificar seus fazeres:



Professor AS - […] acho que devemos compartilhar maneiras de melhorar o desempenho na docência. As pessoas têm experiências diversas, temos que incentivá-las para que transformem suas metodologias, que consertem sua maneira de ensinar. […] O contato com outros surdos também é essencial, essa troca de informações qualifica o profissional.



Professor CO - Eu faço parte no WhatsApp de vários grupos do Brasil, […] A gente encaminha vídeos perguntando qual é o sinal daí o pessoal lá do Norte põe o sinal, o pessoal de Santa Catarina, o pessoal de Pernambuco, o pessoal do Rio Grande do Sul. E aí a gente vai fazendo uma análise. Se esse sinal é o mesmo em todo o Brasil ou se tem uma especificidade regional. Isso é bem bacana, porque tem que trabalhar em sala de aula.

Nóvoa (2009) pontua a importância da partilha dos conhecimentos entre os professores para o desenvolvimento e articulação profissional, por isso a importância de, nas universidades, também ter a oportunidade de relação entre os docentes. Assim, segue nas narrativas a importância das trocas com os demais colegas de profissão:



Professor EO - São várias coisas que ao longo do que vai acontecendo nas disciplinas, ou mesmo dentro do departamento e da universidade que vai batendo com a gente, e a gente vem pensando. Quando eu digo “a gente” eu digo dos professores de Libras, pois a gente faz muitas trocas, a gente vem pensando na realidade que a gente tem, porque afinal de contas a gente pode dizer que a universidade é uma pioneira com relação à quantidade de professores de Libras, de professores surdos e de alunos surdos.



Professor FO - […] onde eu vou achar atualização ou um lugar pra pensar na minha formação se eu não tenho esses espaços? É no “cara a cara”, no dia a dia com os meus colegas mesmo. Aquilo de sentar e as necessidades que a gente tem que se transforma em projeto. O que fazemos, de alguma forma é criar um projeto, pensar em projeto que de conta da nossa demanda, mas não tem um “lugar” aonde me atualizo, aonde eu trabalho com a minha formação a não ser entre nós mesmos em algum projeto.

Percebe-se, nessas narrativas, que há a necessidade de ampliação dos espaços de formação no sentido de aprofundamento linguístico e didático na área, sendo que a formação permanente para o docente de Libras tem sido uma busca incessante de suprir lacunas existentes na prática a partir de um trabalho localizado e colaborativo. Não havendo, então, um “espaço”3 ou um “lugar”4 definido para tais formações, sendo ainda ações mais ou menos isoladas, tendo em vista o exposto por todos os colaboradores, que podem ser sintetizados na fala de Professor F:



Professor FO - E se a gente pensar um curso, um departamento que tem nove professores de libras ouvintes e surdos, que espaço a gente tem pra pensar na nossa formação e ai que esta o papel da gente pensar, gente fazer uma hipercrítica do nosso próprio grupo: ta na hora da gente propor uma formação para o professor de libras, nós não temos em Santa Maria uma atualização entende. Onde a gente continua falando do nosso papel de professor de libras é na nossa sala aqui, nos corredores ou particularmente com um colega ou quando a gente faz a reunião dos professores de libras, mas assim cursos pra nos atualizar pra falar da nossa profissão de libras nós não temos.

A partir de tudo que foi disposto até aqui, entende-se que seja importante olhar explicitamente para os saberes profissionais dos professores a partir do que Tardif (2000, p. 10) chama de uma “epistemologia da prática profissional [entendido por ele como] o estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar suas tarefas”. Nesse intuito, utilizar-se-á mais uma vez a fala dos colaboradores para elencar os saberes da prática pedagógica em seus contextos de atuação:



Professor FO - Primeiro o que é mais importante é: Quem é esse sujeito? E ai têm as disciplinas que dão conta disso, mais a psicologia, mais essa vertente. Depois é a parte mais didática, mais técnica que é a metodologia, isso que é necessário para a profissão docente. Daí dentro disso tem as coisas subjetivas: mesmo que tu tenhas disciplinas que te ensinem técnicas de metodologia, tem coisas que estão só na F - os princípios, os valores que tu vais usar de “temperos” pra dar essa tua aula, se tu vais tentar dar o melhor de ti, se tu vais fazer mais ou menos, se tu vais tentar melhorar tua prática todo o dia. E para ser o professor de Libras a mesma coisa, você vai ter que ter tudo isso e conhecimento de língua, isso é base.

Do mesmo modo, o Professor DS reforça como primeiro saber o conhecimento da Libras, conforme trecho a seguir. Além disso, entrelaça a pessoalidade com a profissionalidade:



Professor DS - O professor precisa saber a Libras, buscar entender a língua. Precisa estratégias de ensino, sinto que precisa entender tudo sobre a língua, o foco deve ser a Libras, os alunos precisam entender isso. Também sobre a comunidade surda, essas coisas. O professor precisa ter alegria, ser mediador, expressivo, estimular os alunos, eu gosto disso. É preciso ser sério e ter cobranças – não pode ter bate-papo entre os alunos que atrapalhe a aula. É necessário atenção na Libras porque ela é visual. Se ficarem de bate-papo podem atrapalhar a aula. Precisa estimular, mas precisa ser responsável. Ter controle, eu sinto isso. Estar atenta, observar a turma, pois precisa participar, avaliar e eu sinto que ser responsável, cuidadoso e ter o controle é importante. Eu sou participativa, aviso, combino, faço planejamento e mostro – peço, por favor, olhem me avisem se vão faltar participar em congresso, curso, me avise! Essas trocas são importantes, esta comunicação entre nós. Sempre são combinados que eu considero importantes. Ter responsabilidade.

Por sua vez, o Professor AS aponta os saberes disciplinares e a identidade do professor como importantes no processo de ensino-aprendizagem:



Professor AS - O professor é aquele que ensina a teoria e a prática de Libras. Esse professor tem identidade, deve pensar em diferentes contextos, os regionalismos da Libras [e que] o surdo é construído na experiência visual, aprende através de uma língua visual e espacial. O bom professor é aquele que sempre incentiva, conversa, compartilha conhecimento, é exigente, pois sabe que isso proporciona a aprendizagem. Esse professor precisa ter leveza, ser alegre. Esse é o objetivo.

Aqui, o relato dos professores colaboradores sinaliza que a natureza dos saberes dos professores é também “personalizados e situados”, pois os professores “não são somente sistemas cognitivos, […] tem uma história de vida, é um ator social, tem emoções, um corpo, poderes, uma personalidade, uma cultura, ou mesmo culturas, e seus pensamentos e ações carregam as marcas dos contextos nos quais se inserem” (TARDIF, 2014, p. 15). Dessa forma, são saberes personalizados por terem sido “apropriados, incorporados, subjetivados” (TARDIF, 2014, p. 15) a partir da pessoa do professor e de todas as variáveis que a constituem, além da sua experiência e situação de trabalho, conforme apontado anteriormente em outros excertos.

Além disso, o Professor CO reafirma que a base para ser docente de Libras é saber a língua e as questões didáticas e pedagógicas de como ensiná-la, pontos igualmente mencionados pelos outros colaboradores. A narrativa é permeada por questões didáticas e pedagógicas relativas ao planejamento, elaboração de planos de ensino, seleção de conteúdo, metodologias, bibliografias e processos avaliativos, enfim, saberes que envolvem o fazer docente.



Professor CO - Questões da morfologia, da sintaxe, da semântica, da fonologia me encantam, me desafiam, e esses saberes são saberes necessários sim, são saberes necessários para que eu seja professora de Libras. […] saber conduzir uma aula, como se portar no ensino superior como professor de língua.

No entendimento do Professor EO, os saberes necessários ao professor de Libras são:



Professor EO - Primeiro, claro, é a questão da língua. Não que o professor tenha que saber toda a questão da linguística da Libras, não é isso pois como eu disse a língua está em constante movimento. Mas saber por que esses alunos estão tendo essa disciplina; quem vai ser o sujeito que esses futuros professores poderão encontrar na sala de aula, [e situar] de onde ele veio, que língua o constitui. Toda a questão do planejamento da língua é primordial, eu acho. […] um bom professor de Libras é alguém que planeja, que pensa quais estratégias que ele pode utilizar, pensa na dinâmica da sua aula, que busca leituras relacionadas ao ensino da língua, que não fique somente no ensino do ‘ABC’. Alguém que está sempre estudando, se atualizando, na constante procura/estudo, reflexão. Enfim, é professor.

Dessa maneira, nessa narrativa, os saberes da docência da Libras baseiam-se no conhecimento disciplinar específico e adentrando questões teóricas sobre os sujeitos surdos, mas vai além, lembrando que, apesar de ser um professor de uma área específica, continua sendo professor e deve lançar mão dos saberes que compõem a docência como um todo. Nóvoa (2009), Tardif (2000, 2014) e Cunha (2010) auxiliam nesse pensar ao apontarem que os saberes dos professores não se sustentam somente pelo saber disciplinar, mas necessitam ir além, envolvendo saberes da prática pedagógica, do contexto dessa prática e do objeto de ensino, ou seja, os alunos, pontos que vêm sendo tecidos ao longo do texto.

Na narrativa do Professor BS, os saberes listados vêm ao encontro dos demais, quais sejam:



Professor BS - Principalmente conhecimento da Libras, formação e perfil certo. O professor precisa procurar estratégias diferentes e didática. Para o ensino superior com ouvintes o foco é o ensino da Libras e as estratégias serão para divulgar informações para que eles tenham conhecimento sobre os surdos, como é a cultura, a Lei, o decreto. Temas como: História de surdez - como começou, como veio para o Brasil; discussão sobre escola bilíngue e inclusão ou escola pura. Se responderem que é melhor a inclusão eu faço outras provocações - o professor conhece a Libras? Então? Provoco a discussão para refletirem. Também ensino configurações de mão, sinais contextualizados e depois peço que produzam em Libras um texto. Combino seminário temático em duplas sorteadas - por exemplo, cultura surda, história dos movimentos sociais surdos, o paradigma das leis para os surdos – eles compartilham isso com o grupo.

Esses discursos nos aproximam do processo identitário dos professores de Libras que colaboraram com esta pesquisa, o qual Nóvoa (2000, p. 16) relaciona as dimensões pessoais e profissionais como constituintes, “realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor”. O autor parte do entendimento de que não é mais possível que a vida escolar seja reduzida às dimensões racionais, tendo a “convivialidade como valor essencial” (NÓVOA, 2000, p. 14) emergente das colocações de grande parte dos atores educativos. Além disso, atribui a crise de identidade dos professores como consequência, dentre outros fatores, da “separação entre o eu pessoal e o eu profissional” (NÓVOA, 2000, p. 15), enfatizada em pesquisas a partir da década de 1980.

No que lhe concerne, Pimenta (2008, p. 19) considera que a “identidade [docente] se constrói, a partir da significação social da profissão; da revisão constante dos significados sociais da profissão; da revisão das tradições, também da reafirmação de práticas consagradas culturalmente e que permanecem significativas”. Assim, a construção da identidade docente está relacionada às representações simbólicas da profissão instituídas através dos tempos, sendo uma construção histórica, social e cultural.

Tais considerações demonstram o complexo universo da atuação profissional do professor, bem como a complexidade de fatores que merecem ser considerados em sua formação. Em função disso, com as aproximações das narrativas dos professores de Libras do ensino superior - entre si e com os autores -, tenta-se delinear os saberes e as disposições necessárias para a docência que se vivificam em seus trajetos formativos. Embora demarquem - os colaboradores da pesquisa - o domínio do conteúdo - a língua - como fator primeiro da atuação profissional, reconhecem a dinâmica do ensino, o conhecimento pedagógico e didático, bem como o reconhecimento do contexto de trabalho e dos alunos como importantes elementos a serem considerados na prática e, consequentemente, na formação.

Entretanto, se faz necessário o entendimento de que são saberes paralelos, que não podem ser hierarquizados, ou seja, tão importante como saber Libras, para ser docente, é saber ensiná-la. Caso contrário, é insucesso certo nessa tarefa. Sem qualquer um dos saberes, é impossível ser um bom professor de Libras.

5 Considerações finais

No que se refere aos saberes e disposições para a docência, os professores entrevistados convergem no entendimento de que é importante saber o conteúdo específico - a língua - enquanto saber disciplinar, mas indicam também os saberes relacionados ao contexto da prática pedagógica, aos alunos, organização, planejamento e desenvolvimento da aula, enfim, os múltiplos saberes que envolvem a docência como um todo. Indicam, ainda, as distintas origens desses saberes que se estabeleceram desde a entrada na escola como alunos e se desenvolvem ao longo da vida, indicando a temporalidade da formação e desenvolvimento profissional, sendo este um processo contínuo.

Assinalaram, também, a importância do trabalho coletivo e das trocas entre os pares como um dispositivo de formação significativo, mesmo porque mostram não haver espaços e lugares instituídos para a formação continuada especificamente para o exercício da docência da Libras - saberes pedagógicos e didáticos -, nem mesmo no que se refere à apropriação das mudanças linguísticas.

Ao mesmo tempo que há poucos congressos, seminários e eventos sobre a linguística da Libras, menos ainda existe no que tange aos aspectos da docência da Libras em si. Assim, proporcionar a oportunidade de refletirem e narrarem sobre esses fatos se tornou, para boa parte dos colaboradores, uma provocação no sentido de se incluírem como atores/agentes no processo de promoção desses lugares de formação, tendo em vista que será mais significado se passar para dentro de sua profissão e vir ao encontro de seus desejos e necessidades.

Referências

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Notas

1 O projeto de pesquisa que originou este trabalho foi encaminhado para apreciação pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto Federal Farroupilha, a fim de obter respaldo legal e ético na sua forma e realização. O início da pesquisa somente ocorreu após a liberação por este Comitê sob o número 54945616.0.0000.5574.
2 Tardif (2000) considera que o professor no exercício da docência - por ser um trabalho realizado por seres humanos, para/com seres humanos, que embora pertençam a grupos, existem como indivíduos - deve considerar tais individualidades em sua prática profissional.
3 Baseado no conceito de espaço atribuído por Cunha (2010, p. 56) - remete ao elemento físico, podendo ser uma sala de aula, uma sala de professores, um departamento, que “podem ser mapeados com facilidade”.
4 Ainda baseado em Cunha (2010), refere-se aos sentidos e significados atribuídos aos espaços.

Notas de autor

1 Mestre em Educação Profissional e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha – Santa Maria/RS – Brasil. E-mail: lucinara.correa@iffarroupilha.edu.br.
2 Doutor em Educação (2013) pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha – Santa Maria/RS – Brasil. E-mail: vantoir.brancher@iffarroupilha.edu.br.
3 Graduada em Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional e em Artes Visuais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professora de arte na Secretaria Municipal de Educação Uruguaiana e coordenadora de formação continuada de arte da Prefeitura Municipal de Uruguaiana – Uruguaiana/RS – Brasil. E-mail: luana.cassol@hotmail.com.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): CORRÊA, L. B.; BRANCHER, V. R.; BORTOLIN, L. C. Saberes e disposições para a docência: um estudo com professores de Libras do ensino superior. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 2, p. 680-694, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p680-694. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16982.

COMO CITAR (APA): Corrêa, L. B., Brancher, V. R., Bortolin, L. C. (2022). Saberes e disposições para a docência: um estudo com professores de Libras do ensino superior. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(2), 680-694. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p680-694.

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