Dossiê Temático: “A pesquisa em Educação Profissional e Tecnológica: temas, abordagens e fontes”
Currículo contra-hegemônico na EPT e suas relações com a centralidade do trabalho
Counter-hegemonic curriculum at TVET and its relations with the centrality of work
El currículo contrahegemónico de la EPT y sus relaciones con la centralidad del trabajo
Currículo contra-hegemônico na EPT e suas relações com a centralidade do trabalho
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 24, núm. 2, 2022
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 07 Febrero 2022
Aprobación: 15 Julio 2022
Resumo: O objetivo do trabalho em tela é apresentar tratamento teórico sobre as contribuições de um currículo contra-hegemônico à EPT através da centralidade do trabalho. Os seres humanos através do trabalho agem intencionalmente sobre o mundo natural e alteram de forma consciente os elementos naturais para alcançarem objetivos predeterminados. Desse modo, assume papel central na forma como os seres humanos constroem seus entendimentos e se relacionam em sociedade. Sustentamos que a EPT precisa, através de sua política curricular, possibilitar que o trabalho não seja concebido apenas como mão de obra para incremento do capital, mas sim ferramenta para o pleno desenvolvimento das capacidades humanas. Desta forma, entendemos que esse deslocamento viria atuar como instrumento de ruptura com os discursos hegemônicos instalados da EPT, que tentam construir falsa representatividade da classe trabalhadora. Para tal, conduziremos as discussões ancoradas no pensamento de Ernesto Laclau, que apresenta as dimensões de sustentação do discurso hegemônico, e suas relações com a política curricular.
Palavras-chave: Currículo, Contra-hegemonia, Trabalho, Educação profissional, Politecnia.
Abstract: The aim of the present work is to present a theoretical treatment of the counter-hegemonic curriculum contributions to TVET through the centrality of the work. Human beings through work intentionally act upon the natural world and consciously alter natural elements to achieve predetermined goals. This way, it assumes a central role in the way human beings build their understandings and relate to each other in society. We maintain that the TVET needs, through its curricular policy, to make it possible for the work to be conceived not only as labor to increase capital, but as a tool for the full development of human capabilities. Thus, we understand that this displacement would act as an instrument of rupture with the hegemonic discourses installed by the TVET, and that they try to build false representation of the working class. To this end, we will conduct the discussions anchored in Ernesto Laclau's thought, which presents the dimensions of support of the hegemonic discourse, and its relations with the curricular policy.
Keywords: Curriculum, Counter-hegemony, Work, Vocational education, Polytechnic.
Resumen: El objetivo del presente trabajo es presentar un tratamiento teórico de los aportes de un currículo contrahegemónico a la EPT a través de la centralidad del trabajo. Los seres humanos a través del trabajo actúan intencionalmente sobre el mundo natural y alteran conscientemente los elementos naturales para lograr objetivos predeterminados. De esta manera, asume un papel central en la forma en que los seres humanos construyen sus entendimientos y se relacionan entre sí en la sociedad. Sostenemos que la EPT necesita, a través de su política curricular, posibilitar que el trabajo sea concebido no sólo como mano de obra para aumentar el capital, sino como una herramienta para el pleno desarrollo de las capacidades humanas. De esta manera, entendemos que este desplazamiento actuaría como instrumento de ruptura con los discursos hegemónicos instalados por la EPT, que pretenden construir una falsa representación de la clase trabajadora. Para ello, conduciremos las discusiones ancladas en el pensamiento de Ernesto Laclau, que presenta las dimensiones de sustentación del discurso hegemónico, y sus relaciones con la política curricular.
Palabras clave: Currículo, Contrahegemonía, Trabajo, Formación profesional, Politécnico.
1 Introdução
Neste artigo buscaremos construir uma série de reflexões que nos permita pensar sobre as contribuições de um currículo contra-hegemônico na Educação Profissional Tecnológica (EPT), partindo da premissa de que o trabalho ocupa lugar central no devir humano. A apropriação da categoria trabalho para as demandas do mercado, sob o prisma da empregabilidade atua como instrumento de falsa representatividade da classe trabalhadora, principalmente sobre a imensa parte que possui necessidades imediatas de sobrevivência em um cenário econômico de exploração e direcionamento dos quereres dos indivíduos ali inseridos. Para tal, conduziremos as discussões ancoradas no pensamento de Ernesto Laclau, que apresenta as dimensões de sustentação do discurso hegemônico, e com isso, apresentaremos as possíveis contribuições de um discurso contra-hegemônico inserido em um currículo da EPT. Utilizaremos a perspectiva da centralidade do trabalho que permite a crítica às formas sociais determinadas na formação vigente, capazes de reduzir o trabalho humano como mera condição para a (re)produção do metabolismo social do capital (MÉSZÁROS, 2002).
Acompanhamos o entendimento de Gramsci (1980) ao evidenciar que perseguimos uma escola que dê ao estudante a capacidade de se tornar um adulto capaz de construir amplamente sua capacidade crítica, frente às questões que são apresentadas ao longo da vida social em seus diversos aspectos. Que os trabalhadores sejam capazes de assumir o que o intelectual sardo denomina por escola humanista capaz de construir homens do risorgimento1. Não negamos os aspectos tecnicistas da capacidade de fazer, dos olhares treinados e da mão que esteja preparada para fazer firmemente a atividade em que ele está inserido, mas que não se torne limitante do pensar certo (FREIRE, 1996).
Acreditamos no caráter diverso da sociedade, constituída por múltiplos indivíduos e grupos sociais, com características e identidades distintas. Cada indivíduo ao estabelecer relações sociais com outros grupos, sobretudo na escola, começa a construir sua identidade, e é por meio do trabalho que as relações entre os homens se estabelecem. E disso decorre a centralidade do trabalho, que não pode ser desconsiderada enquanto reprodutora da existência humana e pressuposto da identidade de seres humanos. O indivíduo através do trabalho transforma a natureza e a si mesmo, estabelecendo um processo de metamorfose de si, de sua identidade e do que o cerca.
Destacamos a questão da centralidade do trabalho enquanto categoria estruturante para a compreensão da sociedade. E como um currículo contra-hegemônico construído dentro da EPT pode contribuir no entendimento do currículo como uma construção social e como um ato de poder, o poder de significar, de criar sentidos e hegemonizá-los (LOPES; MACEDO, 2011), tornando-se assim um personagem importante na construção da visão de mundo e trabalho. Apresentaremos a seguir as dimensões do discurso hegemônico e a importância de se construir dentro da EPT um currículo que esteja baseado em práticas contra-hegemônicas.
2 As Dimensões do Discurso Hegemônico
Defendemos uma Educação Profissional (poli)técnica capaz de respeitar valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, construído de modo a contribuir com a escola na desconstrução da hegemonia social instalada. Freire (1996) destaca que a educação tende a reproduzir a ideologia dominante, contudo, se incutida de criticidade, contribui com sua desmoralização. Estamos ao lado da prática progressista, tentando fugir do ensino profissional/tecnológico conservador, subordinado à lógica da empregabilidade e da exploração do capital, por entender que assim poderemos contribuir com a desconstrução do modelo hegemônico estabelecido, reprodutivo e sem significado para os estudantes, sendo unicamente direcionado para o mercado de trabalho. Sustentamos que um ensino profissional tecnológico contra-hegemônico precisa construir com os alunos indagações sobre a centralidade do trabalho, sobre o conhecimento e sobre o próprio homem, contribuindo com a percepção do indivíduo como ser social e histórico. Santos (2010) sustenta que uma educação eficiente está diretamente associada ao respeito das múltiplas dimensões do sujeito e do conhecimento. Segundo a autora, a racionalidade tecnocientífica precisa ser acompanhada da dimensão poética, ética, utópica, histórica, social, cultural e filosófica. Entendemos que este é o primeiro passo no sentido de uma contra-hegemonia.
Entendemos, assim como Laclau (1998), que o conceito de hegemonia traduz um discurso particular e passa a representar algo maior que ele. A nossa questão é com a aparente extinção dos diferentes objetivos que acompanham a realidade da EPT, o nós substitui rapidamente o eles e principalmente o eu. Acolhemos as palavras de Pereira (2012), entendendo contra-hegemonia como:
… a produção de sentidos e identidades em contraposição à lógica hegemônica também como uma definição a priori. Rompendo com esse binarismo, Laclau nos permite pensar em hegemonias sendo permanentemente disputadas no campo da discursividade, sem que possamos prever exatamente quais sentidos e identidades serão produzidos. (PEREIRA, 2012, p. 35).
Laclau (1998) entende que um discurso se transforma em hegemônico quando consegue articular diferentes necessidades, criando a sensação de que elas estão sendo representadas. Em seu trabalho, Laclau (2000) apresenta quatro dimensões da lógica hegemônica. A primeira é a suposição de igualdade de poder, na qual vários discursos distintos estabelecem disputas na tentativa de se tornarem hegemônicos, na utopia de que são capazes de representarem os demais. A segunda dimensão constitui-se como supressão da dicotomia entre particular e universal, uma vez que o discurso hegemônico incorpora diferentes sentidos na tentativa de todos se sentirem representados. Dessa forma, a segunda dimensão completa a primeira, tendo como base as relações desiguais de poder nas quais um eu poderoso declara algo como universal. A produção de significantes vazios constitui a terceira dimensão, entendendo-se esses significantes como sem sentido determinado, podendo ser preenchido com significados diferentes, flutuando entre muitos, conciliando significados que pareciam inconciliáveis. Na última dimensão o autor apresenta a generalização das relações de representação como condição de constituição da ordem social, pois um discurso só será capaz de articular diferentes necessidades se constituindo hegemônico se exercer uma função de representação, dando sentido, por assim dizer, a uma determinada ordem gnosiológica.
Os entendimentos da realidade são moldados por discursos que conduzem práticas, induzem escolhas, edificam caminhos e constituem sínteses em meio às relações de poder (PEREIRA, 2012). Nesse sentido, Laclau (1998) destaca que o discurso hegemônico constrói interpretações e fixa sentidos na busca por uma universalização de objetivos e práticas, gerando pseudoconsensos sobre os fins da atividade docente. Pode-se inferir, assim, que essas disputas discursivas ditam os rumos do espaço escolar e da atividade docente, além de constituírem seus significantes e instrumentos de reprodução e validação. Assim como Laclau (2000), parte-se do entendimento dos sentidos como fracionados e transitórios, incapazes de representar a totalidade de necessidades presente na EPT, em que a busca por lucidez precisa ser acompanhada de objetivos necessários a processos educativos atentos às questões presentes na contemporaneidade.
O ambiente de formação se constitui como espaço de recontextualizações com muitas relações de poder em graus diferentes com os diferentes atores sociais ali inseridos. Lopes (2008) salienta que o discurso pedagógico reconstrói relações sociais a partir de posições dominantes do campo econômico e de controle simbólico. Defendemos que um ensino profissional tecnológico contra-hegemônico traz uma diretriz a um projeto político-pedagógico libertador, permitindo ao indivíduo construir suas próprias percepções, identificando suas necessidades e coletivamente participar da construção de uma rota para escola na qual estejam inseridos. Sensibiliza-nos a ideia de uma EPT que contribua para tornar uma população capaz de identificar seu papel social, entendendo que a atual conjuntura do mundo não é estática, não precisa necessariamente permanecer dessa forma.
Contestamos o dilema que acompanha a Escola de formação profissional de preparar seus estudantes para o mundo do trabalho ou permitir a continuidade dos estudos (KUENZER, 2007; FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005), admitimos a dimensão do trabalho como algo inerente a qualquer processo formal de educação.
Essa concepção é correta por tomar o conceito de trabalho como práxis humana, ou seja, como o conjunto de ações, materiais e espirituais, que o homem, enquanto indivíduo e humanidade, desenvolve para transformar a natureza, a sociedade, os outros homens e a si próprio com a finalidade de produzir as condições necessárias à sua existência. (KUENZER, 2007, p. 39).
Ressaltamos que as disciplinas curriculares e as propostas pedagógicas podem auxiliar a escola com a perspectiva trazida por Kuenzer e nesse contexto a EPT possui papel preponderante, contribuindo ativamente em fazer emergir, em todos os alunos, o intelectual trabalhador, expressão de um novo equilíbrio entre o desenvolvimento das capacidades de atuar praticamente e de trabalhar intelectualmente. Acreditamos que um dos pressupostos do currículo contra-hegemônico é nunca desconsiderar as relações entre Ciência, Cultura e Trabalho.
3 O Discurso Contra-hegemônico na Educação Profissional Tecnológica
Gramsci (1980) sustenta que o debate hegemônico não opera somente na estrutura econômica e na disposição de ordem política da sociedade, estende-se também sobre o modo de pensar dos indivíduos, influenciando entendimentos, concepções, construindo novos modos de conhecer. Hegemonia que, nos termos oferecidos pelo intelectual sardo, deve ser compreendida como a construção de uma direção ético-moral em prol de uma dada dominação de classe ou fração de classe. Ou seja:
Quando Gramsci fala da hegemonia como ‘direção intelectual e moral’, afirma que essa direção deve exercer-se no campo das ideias e da cultura, manifestando a capacidade de conquistar o consenso e formar uma base social. Isso porque não há direção política sem consenso. A hegemonia pode criar também a subalternidade de outros grupos sociais que não se refere apenas à submissão à força, mas também às ideias. Não se pode perder de vista que a classe dominante repassa a sua ideologia e a realiza o controle do consenso através de uma rede articulada de instituições culturais, que Gramsci denomina de ‘aparelhos privados de hegemonia’, incluindo a escola, a Igreja, os jornais e os meios de comunicação de maneira geral (SIMIONATTO, 2011, p. 49).
Um discurso que se proponha contra-hegemônico precisa esvaziar velhos consensos e construir tensões capazes de protagonizar novas disputas, ressignificando concepções.
As sociedades se desenvolveram e as relações de trabalho se tornaram mais complexas, foram reestruturadas, ressignificadas, e esse processo sempre foi comandado pelas relações de poder aliadas às concepções do trabalho e a reflexão sobre seus propósitos em determinados momentos sociais.
Por sua vez, os sujeitos imersos nessa realidade social também se tornaram mais complexos, já que suas relações interpessoais e maneira de ver o mundo também se alteram com o tempo. Sua formação deixa de ser unilateral e passa a receber influência das diversas demandas sociais surgidas.
A busca por uma EPT emancipatória perpassa pela construção de um modelo curricular que vise às práticas contra-hegemônicas e se inicia com a identificação dos aspectos de edificação do discurso hegemônico de inserção no mercado de trabalho, permitindo que os atores inseridos no debate da EPT se percebam imersos em um sistema que almeja construir falsa representatividade e supressão do particular, produzindo aparente consenso entre as percepções e entendimentos (LACLAU, 2000). Não negamos a necessidade, muitas vezes imediata, de sobrevivência econômica da classe trabalhadora, contudo esse aspecto é apresentado como o ponto que baliza as decisões e todo o processo formativo dos indivíduos. Entendemos que é através do mundo do trabalho que seremos capazes de pensar de maneira contra-hegemônica a EPT, reiterando a concepção de educação básica, não tomando como foco da EPT apenas a geração de empregos (FRIGOTTO, 2005).
O ambiente da Educação Profissional e Tecnológica, insere-se na perspectiva do trabalho como princípio educativo e da formação do sujeito de forma crítica e reflexiva, construindo ao longo do caminho um discurso democrático e uma atuação de sujeitos que pertencem efetivamente ao seu meio. Acreditamos que o viés mais prejudicial, nesse sentido, está relacionado à perpetuação do trabalho alienado e acrítico. Por outro lado, o desenvolvimento de uma identidade cultural crítica e reflexiva pode ser considerado um ponto positivo na busca por uma educação emancipatória.
O trabalho, em sua dimensão ontológica, é pressuposto fundamental de nossa reflexão. Neste sentido, é relevante reiterar que refutamos a categoria trabalho tal qual compreendida como força de trabalho, mão de obra e/ou mercadoria inerente à reprodução do capital. É historicamente correto afirmar que desde a economia política clássica – A. Smith, J. B. Say – o trabalho é visto como atividade fundante e central na geração de valor. Entretanto, a crítica à economia política, advinda do campo socialista (de Proudhon a Marx), nos permite compreender o trabalho como categoria central na produção de valor, mas alienado se subordinado à propriedade privada. Mais do que produzir valor e corroborar com a incessante acumulação, leitmotiv do modo de produção capitalista, o trabalho deve ser visto como realizador da condição humana, isto é, o produto do trabalho para aquele que o realiza. Qualquer clivagem entre quem produz e quem se apropria privadamente do trabalho do outro produz a heteronomia necessária (e indesejável, a nosso ver) para a alienação do indivíduo. Expropriação esta, fundante de formações sociais estratificadas e notadamente marcadas pela exploração do trabalho humano por outrem. “Quem não trabalha, não come!”. A fórmula simples trazida pelos revolucionários russos no governo dos sovietes, e reiterada pelo educador racionalista do início do século XX Adelino de Pinho, transpõe de maneira didática a noção de trabalho como dimensão central e emancipadora da condição humana defendida aqui por nós:
O trabalho é a fonte perene e inexaurível de vida. É pelo trabalho que se arranca da natureza toda uma série de elementos; é pelo trabalho que se extrai a hulha do fundo das minas para nos aquecermos, para cozinharmos os nossos alimentos, para nos transportarmos para todo e qualquer ponto do globo. Ele é a mola propulsora de todo o progresso, de toda a civilização, de toda felicidade. (PINHO, 2015, p. 35)
Analisando os caminhos e as possibilidades para uma ação educativa contra-hegemônica na EPT, centramos nossa atenção, nesse momento, ao aspecto cultural necessário à prática. Lopes e Macedo (2011) trazem reflexões pertinentes sobre esse aspecto, considerando que a cultura se refere à ação direta do homem, por meio de técnicas, na transformação física do ambiente, sendo assim a forma que os indivíduos têm de se identificar uns com os outros. O que precisa ficar claro é que os sentidos que atribuímos a esses aspectos próprios da identidade cultural dos grupos são construídos socialmente, entendendo-se, assim, a ciência em geral e a educação em particular como construções humanas, produtos de uma determinada cultura. Almejamos com isso identificar os elementos do discurso hegemônico vigentes na Educação Profissional e Tecnológica como forma de darmos o primeiro passo na superação desse cenário que compreende a Educação profissional como mera (re)produtora de força para o mercado de trabalho. Invertendo a lógica predominante nos discursos acerca da formação na e para a EPT, o trabalho emerge então a partir de outro prisma: o da criticidade e da formação para uma inserção não subordinada no “mundo do trabalho”, compreendido a partir de suas complexidades e dinâmicas inerentes ao seu funcionamento.
4 Currículo e Centralidade do Trabalho
O pós-estruturalismo divide com o estruturalismo uma série de pressupostos relevantes. Para a desconstrução dos conceitos de currículo existentes podemos focar o lugar da linguagem na constituição social. Segundo Lopes e Macedo (2011), ambos adotam uma postura antirrealista, advogando que, ao invés de representar o mundo, a linguagem o constrói. “É por isso que dizemos que a realidade é constituída pela linguagem, entendida, em sentido amplo, como um sistema abstrato de relações diferenciais entre as suas várias partes.” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 38).
Para o estruturalismo, a linguagem é um sistema de signos, compostos por significante (som ou palavra) e significado (seu conceito) que guardam, entre si, uma relação arbitrária. O signo é a unidade fundamental de entendimento de um código linguístico e só adquire significados quando inserido em contextos sociais, ele pode ser decomposto em dois níveis de compreensão como mencionamos acima. O significante que podemos entender como o elemento material e perceptível do signo e o significado como elemento abstrato do signo. Na medida em que a linguagem não representa a realidade, qualquer significado pode ser atribuído a um significante e isso é um processo cultural. Com a crítica à estrutura, o pós-estruturalismo é obrigado a desconectar a ideia de significado e significante. Não há relações estruturais entre dois significantes e, portanto, não há significados definidos. Cada significante remete a outro significante, indefinidamente, sendo impossível determinar-lhe um significado. Todo significante é, portanto, flutuante, constrói seu significado a partir de um contexto definido, e seu sentido só pode ser definido dentro de uma formação discursiva histórica e socialmente contingente (LOPES; MACEDO, 2011).
Entendemos o currículo, assim, como uma prática discursiva e como um ato de poder, o poder de significar, de criar sentidos e hegemonizá-los (LOPES; MACEDO, 2011), assim ele fazendo parte de uma luta pela produção de significado, a própria luta pela legitimação. Para entendermos melhor os sentidos atribuídos a esse significante, é conveniente ressaltarmos alguns aspectos da teoria de discurso de Ernesto Laclau (2011) voltada para a construção de significados e para as identidades construídas a partir de uma determinada hegemonização.
Laclau (2011) concebe o discurso como categoria analítica na medida em que possibilita a investigação dos mecanismos pelos quais os sentidos são produzidos e orientam os fenômenos sociais. Nessa perspectiva, a teoria do discurso de Laclau expressa a sua compreensão sobre os processos de construção da hegemonia, idealizada como uma operação discursiva que almeja à universalização de um discurso específico, buscando fixar sentidos, de forma a alcançar a perfeição que falta ao social (COSTA; PEREIRA, 2012).
Para Laclau (2011), a hegemonia ocorre justamente quando um significante passa a representar algo mais amplo, quando o particular assume uma função universal. É no processo de hegemonização que uma demanda passa a se esvaziar de seus sentidos e significados anteriores, como se desprendendo de sua referência anterior, e vai se acomodar num significante vazio (LACLAU, 2006).
Um significante vazio é, no sentido estrito do termo, um significante sem significado. Seria uma mera sequência de sons e, se este é desprovido de qualquer função significativa, o termo “significante” se tornaria, nesse caso, excessivo (LACLAU, 2011). Para Lopes (2011), significantes vazios surgem pela própria impossibilidade da significação no interior de um dado discurso e tem seu esvaziamento produzido pelo excesso, pela proliferação e flutuação de sentidos, gerando a imprecisão de significados. Sendo assim, devido a sua polissemia, tal significante perde qualquer possibilidade de produzir sentidos específicos.
Precisamos olhar para o currículo como um significante flutuante uma vez que suas articulações políticas permitem que esse signo compreenda significados instáveis. Entendemos que o currículo é um espaço de concentração e de desdobramento de algumas lutas em volta dos diferentes significados sobre questões sociais e políticas e é através do currículo como prática discursiva que determinados grupos dominantes expressam sua visão de mundo. Portanto, o currículo é responsável por estabelecer diferenças, construir hierarquias e produzir identidades (CABRAL; FERREIRA; COLOMBI, 2002).
Sustentamos que o trabalho é a primeira forma de ação dos seres humanos sobre o mundo natural, desse modo qualquer possibilidade apresentada à classe trabalhadora precisa partir das relações de trabalho, possibilitando a construção de uma formação crítica e emancipatória. Desta forma, partimos da constatação que, no campo discursivo na EPT, mas também no âmbito da ação prática pedagógica, a categoria trabalho deve ser entendida não como mercadoria em si, mas como ação humana social inerente a sua dimensão ontológica. Assim e necessariamente a formação profissional deve estar integrada à formação mais ampla, tal qual entendida por Ramos (2008):
A integração, no primeiro sentido, possibilita formação omnilateral dos sujeitos, pois implica a integração das dimensões fundamentais da vida que estruturam a prática social. Essas dimensões são o trabalho, a ciência e a cultura. O trabalho compreendido como realização humana inerente ao ser (sentido ontológico) e como prática econômica (sentido histórico associado ao respectivo modo de produção); a ciência compreendida como os conhecimentos produzidos pela humanidade que possibilita o contraditório avanço produtivo; e a cultura, que corresponde aos valores éticos e estéticos que orientam as normas de conduta de uma sociedade. (RAMOS, 2008, p. 4-5)
A formação plena dos sujeitos e a politecnia da aprendizagem2 são também categorias relevantes para a ideia de centralidade do trabalho que defendemos para a EPT. No campo da pedagogia histórico-crítica, dialogamos com o que Frigotto, desde 1989, propõe para se compreender o trabalho fora de sua perspectiva mercadológica e alienante:
(…) implica superar a visão utilitarista, reducionista de trabalho. Implica inverter a relação situando o homem e todos os homens como sujeito do seu devir. Esse é um processo coletivo, organizado, de busca prática de transformação das relações sociais desumanizadoras e, portanto, deseducativas. A consciência crítica é o primeiro elemento deste processo que permite perceber que é dentro destas velhas e adversas relações sociais que podemos construir outras relações, onde o trabalho se torne manifestação de vida e, portanto, educativo (FRIGOTTO, 1989, p. 8 apudRAMOS, 2008, grifo nosso).
Nosso trabalho entende o debate curricular como uma forma de disputar os processos de atribuição de sentidos à realidade através de um processo cultural. Só conseguiremos possibilitar ressignificações quando trouxermos esse olhar contra-hegemônico para as políticas curriculares inseridos na Educação Profissional, percebendo as políticas curriculares como processos de negociação complexos, sendo a produção dos dispositivos legais, a produção dos documentos curriculares e o trabalho dos professores associados à forma como os sujeitos agem sobre o mundo natural (LOPES, 2004).
5 Considerações finais
O recorte teórico que apresentamos evidencia o papel da centralidade do trabalho na construção de uma Educação Profissional e Tecnológica (EPT) emancipatória e crítica. Resgatamos a centralidade do trabalho no cerne das questões que envolvem a atividade humana e dos desdobramentos que se sucedem a partir desse lugar de construção de significados e estabelecimento das disputas discursivas fundamentais para o debate hegemônico. Assim, assumimos o trabalho como ponto de partida da ação dos seres humanos, desse modo é a partir dessas ações que somos capazes de deslocar entendimentos e construir novos entendimentos.
Pensar de modo contra-hegemônico é ter como ponto de partida os sujeitos historicamente silenciados, é assumir a importância dos discursos na disputa pela hegemonia, é construir práticas capazes de deslocarem entendimentos e comportamentos para que possamos assumir o papel emancipatório da educação, evidenciando o papel multiplicador do docente e das práticas pedagógicas. A EPT, ao evidenciar esse debate, coloca no centro das reflexões as contribuições que quer proporcionar à classe trabalhadora e aos sujeitos, produto dos seus espaços formativos.
Trazer a centralidade do trabalho para o foco dos debates curriculares na EPT é resgatar os aspectos históricos e sociais na construção de percepção da realidade, de tomada de consciência, possibilitando aos trabalhadores posicionamento crítico frente aos desafios do dia a dia, integrando a dimensão manual e intelectual das atividades desenvolvidas durante suas interações no mundo natural. Tendo em vista o que discutimos até aqui, currículo contra-hegemônico se constrói a partir do trabalho, assumindo verdadeiramente sua centralidade na construção dos entendimentos da classe trabalhadora, propiciando uma percepção crítica do mundo, assumindo o papel dos sujeitos e da cultura que constroem na manutenção do processo hegemônico.
Referências
CABRAL, A. L.; FERREIRA, R.; COLOMBI, F. C. C. Currículo, poder e identidade. Revista Contrapontos, Itajaí, v. 2, n. 1, p. 121-127, 2002. Disponível em: https://periodicos.univali.br/index.php/rc/article/view/138. Acesso em: 1 ago. 2022.
BRITO, L. L. Politecnia da aprendizagem e a centralidade do trabalho em Proudhon: alguns breves apontamentos. Revista Brasileira de Educação Profissional e Tecnológica, v. 2, n. 19, 2020. DOI: https://doi.org/10.15628/rbept.2020.11235. Disponível em: https://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/RBEPT/article/view/11235. Acesso em: 1 ago. 2022.
COSTA, H. C.; PEREIRA, T. V. Interdisciplinaridade: um significante flutuante nos currículos de ciências e geografia. Poíesis Pedagógica, v. 10, n. 2, p. 155-175, 2012. DOI: https://doi.org/10.5216/rpp.v10i2.24147. Disponível em: https://revistas.ufg.br/poiesis/article/view/24147. Acesso em: 1 ago. 2022.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M.; RAMOS, M. (org.). Ensino médio integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005.
GALASSO, G. “Risorgimento”. Revista Gramsci e o Brasil. [S. l.. s. n., 2022]. Disponível em: https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=658. Acesso em: 5 fev. 2022.
GRAMSCI, A. Cronache torinesi, 1913-1917. Turim, Itália: Giulio Einaudi, 1980.
KUENZER, A. Z. As relações entre trabalho e educação no regime de acumulação flexível: apontamentos para discutir categorias e políticas. Curitiba, 2007.
LACLAU, E. Desconstrução, pragmatismo, hegemonia. In: MOUFFE, C. et al. (comp.) Desconstrucción y pragmatismo. Buenos Aires: Paidós, 1998. p. 97-136. (Espacios del Saber; 4)
LACLAU, E.; BUTLER, J.; ZIZEK, S. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left. London: [s. n.], 2000.
LACLAU, E. Inclusão, exclusão e a construção de identidades: Inclusão social, identidade e diferença: perspectivas pós-estruturalistas de análise social. São Paulo: Annablume, 2006. p. 21-37.
LACLAU, E. Emancipação e diferença. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011. 222 p.
LOPES, A. C.; MACEDO E. Teorias de Currículo. São Paulo: Cortez, 2011.
LOPES, A. C. Políticas de Integração Curricular. 1. ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.
LOPES, A. C. Políticas Curriculares: continuidade ou mudança de rumos. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, v. 26, p. 109-118, maio/ago. 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/bjF9YRPZJWWyGJFF9xsZprC/abstract/?lang=pt. Acesso em: 2 ago. 2022.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital: Rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. (Edição Eletrônica).
PEREIRA, T. V. Analisando alternativas para o ensino de ciências naturais: uma abordagem pós-estruturalista. 1. ed. Rio de Janeiro: Quartet, 2012.
PINHO, A. Pela Educação e Pelo trabalho e outros escritos (1908). São Paulo: Biblioteca Terra Livre, 2015.
RAMOS, M. Concepção do Ensino Médio Integrado: Texto para discussão. 2008. Disponível em http://forumeja.org.br. Acesso em: 29 dez. 2021.
SANTOS, A. Didática do pensamento complexo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2010.
SIMIONATTO, I. Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2011.
TREVISANO, R.; QUEIROZ, G. R. P. C.; SILVA, L. R. Contra-Hegemonia: um caminho possível para o Ensino de Ciências. Cadernos da Educação Básica, v. 3, n. 1, p. 29-41, 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.33025/ceb.v3i1.1792. Disponível em: http://cp2.g12.br/ojs/index.php/cadernos/article/view/1792. Acesso em: 2 ago. 2022.
Notas
Notas de autor
Información adicional
COMO CITAR (ABNT): BRITO, L. L.; SILVA, L. R.; BARROS, R. T. Currículo contra-hegemônico na EPT e suas relações com a centralidade do trabalho. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 2, p. 470-480, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p470-480. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16984.
COMO CITAR (APA): Brito, L. L., Silva, L. R., & Barros, R. T. (2022). Currículo contra-hegemônico na EPT e suas relações com a centralidade do trabalho. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(2), 470-480. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n22022p470-480.