Artigos Originais

Cotas Raciais: caminhos abertos entre o “facão” e o “bisturi”

Racial quotas: open paths between the “machete” and the “scalpel”

Cuotas raciales: caminos abiertos entre el “machete” y el “bisturí”

Vera Rodrigues 1
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, Brasil

Cotas Raciais: caminhos abertos entre o “facão” e o “bisturi”

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 25, núm. 1, e25117159, 2023

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Recepción: 09 Mayo 2022

Aprobación: 06 Abril 2023

Publicación: 03 Mayo 2023

Resumo: No início dos anos 2000, os debates e embates sobre a adoção de ações afirmativas, especialmente via reserva de vagas para a população negra, as chamadas cotas raciais, tensionavam o cenário acadêmico. Neste artigo recorro à memória da minha trajetória acadêmica de estudante à professora universitária durante o processo de discussão e implementação das cotas raciais no Brasil para evidenciar fatos e debates sobre o tema em foco. No período compreendido entre 2000-2012, vou nomeá-lo como o caminho aberto “a facão” em prol das cotas raciais, no qual o acirramento e polarização contrários à discussão se fizeram sentir, bem como o enfrentamento ao contexto adverso. A partir de 2012 até o momento presente, vou nomeá-lo como o momento do “bisturi” em que a política de ações afirmativas possui amparo legal e efetividade na sociedade brasileira, mas ainda é combatida por seus detratores.

Palavras-chave: cotas raciais, política pública, Brasil.

Abstract: In the early 2000s, the debates and clashes over the adoption of affirmative actions, especially through the reservation of vacancies for the black population, the so-called racial quotas, strained the academic scenario. In this article, I use the memory of my academic trajectory from student to university professor during the process of discussion and implementation of racial quotas in Brazil to highlight facts and debates on the topic in focus. In the period between 2000-2012, I will name it as the open path “to the machete” in favor of racial quotas, in which the intensification and polarization contrary to the discussion were felt, as well as the confrontation with the adverse context. From 2012 to the present, I will name it the “scalpel” moment in which the affirmative action policy has legal support and effectiveness in Brazilian society, but it is still fought by its detractors.

Keywords: racial quotas, public policy, Brazil.

Resumen: A principios de la década de 2000, los debates y enfrentamientos por la adopción de acciones afirmativas, especialmente a través de la reserva de vacantes para la población negra, las llamadas cuotas raciales, tensaron el escenario académico. En este artículo, utilizo la memoria de mi trayectoria académica de estudiante a profesor universitario durante el proceso de discusión e implementación de las cuotas raciales en Brasil para resaltar hechos y debates sobre el tema en foco. En el período 2000-2012 lo nombraré el camino abierto “al machete” a favor de las cuotas raciales, en el que se sintió la intensificación y polarización contraria a la discusión, así como el enfrentamiento con el contexto adverso. Desde 2012 hasta el presente, lo llamaré el momento del “bisturí” en que la política de acción afirmativa tiene respaldo legal y efectividad en la sociedad brasileña, pero aún es combatida por sus detractores.

Palabras clave: cuotas raciales, política pública, Brasil.

1 Introdução

Era início dos anos 2000 e os debates e embates sobre a adoção de ações afirmativas, especialmente via reserva de vagas para a população negras, as chamadas cotas raciais, tensionavam o cenário acadêmico. Embora não fosse difícil entender e mesmo concordar com o entendimento de ações afirmativas como:

(…) políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão sócio-econômica no passado ou no presente. Trata-se de medidas que têm como objetivo combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero, de classe ou de casta, aumentando a participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural”, (O QUE…, 2022, grifos do autor).

Isso não era suficiente para que ao evidenciar o mecanismo de cotas raciais dentro das ações afirmativas, houvesse uma reação contrária via pseudoargumentos, tais como o de que as cotas raciais comprometeriam a qualidade do ensino e pesquisa no país, advindo do ingresso de universitários(as) fora de um padrão mínimo de capacidade intelectual e trajetória meritocrática capazes de garantir a excelência da produção de conhecimento científico. Esse pseudoargumento é o que possivelmente motivou o comentário que ouvi naquela época de uma iminente antropóloga acerca do meu futuro acadêmico: “você é muito bem-vinda ao programa de pós-graduação na minha universidade, desde que não seja pela porta dos fundos.” Para a universitária negra que eu era e atuante na luta antirracista, a “porta dos fundos” não significava outra coisa senão o ingresso por cotas raciais. Esse comentário faz parte da memória e trajetória acadêmica que pavimentou meu caminho de estudante à professora durante o processo de discussão e implementação das cotas raciais no Brasil. No período compreendido entre 2000-2012, vou nomeá-lo como o caminho aberto “à facão” em prol das cotas raciais e, a partir de 2012 até o momento presente, 2022, vou nomeá-lo como o momento do “bisturi”. Em recente entrevista concedida a um grupo de jovens estudantes de antropologia, eu situei minha trajetória na antropologia, a partir desta metáfora entre o facão e o bisturi, a qual reproduzo aqui a fim de explicar como também enquadro nessa leitura a questão das cotas raciais durante as últimas duas décadas:

Agradeço a vocês, a gentileza do convite para esse diálogo. Porque penso que é assim que a gente dá os avanços necessários, os toques necessários que faz com que a coisa toda valha a pena. Eu sou uma antropóloga por formação e paixão, eu sempre digo isso! É o que me move. Eu só acredito em fazer na vida aquilo que me move. Se não for assim eu acho que não vale a pena. Se não tem arrepio e o coração não dispara, então não faça nada. E para mim a questão racial vem na minha vida porque basicamente sou eu. Está em mim! Eu sou uma mulher negra! Foi um processo identitário e político que emergiu no movimento negro no Rio Grande do Sul, de onde eu venho. Ele se refina teoricamente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no curso de ciências sociais, especialmente na antropologia. Então, quando eu chego na universidade nos anos 1990, quando eu vi que o único lugar que estava interessado em debater sobre racismo, onde existia alguma possibilidade de alguma discussão com aquilo que eu já trazia comigo era na antropologia, eu me interessei. Eu não cheguei na universidade sem saber o que eu queria. Eu tinha os meus trinta anos, então já era algo definido para mim, já sabia o que eu queria fazer. A temática racial para mim era uma coisa entranhada politicamente, só faltava a questão da produção de conhecimento sobre. Então esse caminho trilhado é o caminho que chega nos anos 1990 lá na UFRGS, onde o debate máximo era sobre as questões de gênero. Então para mim esse debate de raça é fundamental. Debates e os embates. E na Antropologia eu situaria momentos para pensar isso em termos de Brasil. É fundante da Antropologia o debate sobre a diferença, mas ao mesmo tempo que é fundante vigorou por muito tempo um silêncio, ou uma dimensão de raça que eu chamava quando eu estava na graduação e ingressei no mestrado, eu sentia como uma dimensão de “raça festiva''. Que era isso que a Antropologia esperava de quem se debruçasse sobre relações raciais, principalmente se tu se debruçasse sendo negro. A raça festiva, para os estudos, ficava para a dimensão da cultura. Especialmente uma dimensão de cultura enquanto a dimensão da sociedade harmoniosa. Para mim era muito incômodo isso, porque uma vez ou outra alguém me perguntava, ou colegas ou professores, se eu iria pesquisar sobre o Carnaval em Porto Alegre, sobre as casas de batuque e etc. E eu costumava dizer "sim, eu até me interesso em pesquisar sobre o Carnaval, mas para discutir porque que os brancos estão ganhando dinheiro com isso e os negros não. Porque o Carnaval tem que ser do outro lado da cidade, enquanto que qualquer festinha de branco, vocês podem fazer aqui no Centro". Nessa linha! Usando até a palavra branco, mesmo. Porque é outra questão da racialização no processo da Antropologia. Quem foi racializado nesse país, a quem se aplicou o conceito de raça foi a figura do 'outro', que é o 'outro' da população negra, da população indígena. Os brancos neste país simplesmente são sujeitos universais. Eu costumo dizer nas minhas falas que branco não está acostumado a ter o dedo apontado para si enquanto branco. Para o tratamento de raça na Antropologia no Brasil eu diria que teria a fase do facão e agora a fase do bisturi. Na fase do facão, que foi a fase que eu peguei, que era tu abrir esse debate de forma mais contundente, não apenas questionando o conceito, eu acho muito cômodo questionar o conceito sem questionar os sujeitos produtores de conceitos. Quando a gente debate, no início dos anos 2000, as ações afirmativas, isso vem à tona. Quem sempre produziu antropologicamente sobre o conceito de raça, sobre sua aplicabilidade, seus desafios e limites foram brancos. Quando é que sujeitos negros e negras vão ter a possibilidade de serem produtores e produtoras de conhecimento sobre esse tema? Quando é que brancos vão parar para ouvir, ao invés de ficar sempre dizendo o que é, como deve ser? (RODRIGUES, 2021a, p. 4-6).

Nesta análise que faço de como as questões conceituais e políticas sobre raça atravessaram minha trajetória acadêmica, bem como moldaram os anos 2000, busco perceber que, no início dos debates e embates sobre as cotas raciais, foi preciso usar o facão para abrir esse caminho. No campo o facão é usado para abrir caminhos em matas fechadas, a fim de encontrar ou mesmo fazer uma clareira, um local aberto em que seja mais fácil se mover e enxergar o que nos circunda. Foi assim que eu vi o trabalho nos territórios quilombolas, a fim de demarcar os passos de quem lutava por não perder mais um hectare diante da sanha daqueles que teimavam em avançar sobre os direitos das comunidades. Neste sentido, o uso do facão é marcado por cortes amplos e de forte impacto, ao contrário daqueles feitos por um bisturi de forma precisa e nem sempre evasivos. Ambos são direcionados, conforme os resultados esperados e o tempo vivido. Foi assim com as comunidades quilombolas. Foi assim com as cotas raciais. Os enfrentamentos foram das resistências em ocupar territórios e espaços dentro da universidade às negociações em reuniões com o poder público. Em alguns momentos, o uso do facão, da voz enérgica, do corpo como barreira ao invasor. Em outros momentos, invocou-se a legislação, o direito à vida digna e o necessário enfrentamento ao racismo estrutural. Claro que isso não se deu de forma estanque ou linear, mas sim entre avanços e recuos. É um pouco disso que pretendo demonstrar a seguir, entre o facão e o bisturi.

2 O caminho aberto a facão

Meus olhos e ouvidos já estavam familiarizados com pseudoargumentos similares à comparação entre cotas raciais e a porta dos fundos, que eram disseminados dentro e fora da universidade. Por exemplo, na mídia hegemônica, representada por jornais de ampla circulação e telejornais de grande audiência com seus editoriais em que “especialistas” alertavam para os perigos de uma racialização das relações sociais, como se este país desconhecesse as hierarquias raciais constitutivas de espaços como a universidade pública em que o percentual de discentes negras(os) girava em torno dos 2%. No mundo acadêmico, os debates também oscilavam entre uma versão de “Onda negra, medo branco” e “Casa-Grande e Senzala”1 em que o temor pelo ingresso desses novos sujeitos vinha ancorado em alegações como: “a universidade não está preparada para recebê-los”; “As cotas raciais irão acirrar o racismo” ou ainda “é preciso investir na educação básica, pois o problema da sub-representação negra está na escola e não aqui [na universidade]”. Esses e outros pseudoargumentos fizeram parte de um contexto de cotas raciais para o campo das disputas de narrativas nas universidades e espaços legislativos. Em 2021, instaurou-se uma “nova” discussão agora sobre a revisão da Lei 12.711/12 (BRASIL, 2012) mais conhecida como Lei de Cotas Raciais que envolveu políticos, juristas, intelectuais e militantes da luta antirracista. Nesse cenário, a ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores Negros elaborou o Relatório “Sistematização de Argumentos Sobre a Lei de Cotas” (ABPN, 2022), em que foi feito um levantamento sobre o conjunto de posicionamentos que foram mobilizados por veículos da mídia brasileira para expressar o quadro de entendimento pró e contra cotas raciais estabelecido no país. Na sequência, reproduzo os posicionamentos evidenciados:

Posicionamentos anticotas raciais:

Posicionamentos pró-continuidade das cotas raciais:

No referido relatório, observa-se o quanto a adoção das cotas raciais continua a ser desde o seu início nos anos 2000, um reflexo do que pode ou não ser entendido na ótica do racismo estrutural discutido por Almeida (2018), em que o autor afirma que “o racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade”. O alerta que o autor nos faz deveria ser entendido como a plena justificativa para a adoção de cotas raciais, pois sem medidas que perpassem a restruturação da sociedade, na forma como essa é organizada, não haverá efetivo combate ao racismo estrutural. Nesse sentido, destaco aqui três momentos que ilustram essa discussão no seu âmbito acadêmico e político, tendo como amparo o inequívoco entendimento de que assumo um posicionamento fruto de uma trajetória de vida na luta antirracista e no diálogo prioritário em prol das ações afirmativas. Assim, inicio com uma abordagem sobre os manifestos pró e contra cotas, em 2006; a criação da Unilab – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (2001-2008) e a decisão favorável do STF – Supremo Tribunal Federal à constitucionalidade das cotas raciais.

3 Os manifestos

Em 30 de junho de 2006 um grupo diverso formado por intelectuais, sindicalistas e artistas entregou ao presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Gilmar Mendes, o manifesto "113 Cidadãos Anti-Racistas Contra as Leis Raciais"2 (ADUR, 2008). O texto pedia a suspensão das cotas para negros nas universidades e do programa ProUni. O documento intitulava-se “Todos têm direitos iguais na República Democrática”:

O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção por diversos dispositivos dos projetos de lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos a uma decisão final no Congresso Nacional.

O PL de Cotas torna compulsória a reserva de vagas para negros e indígenas nas instituições federais de ensino superior. O chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta uma classificação racial oficial dos cidadãos brasileiros, estabelece cotas raciais no serviço público e cria privilégios nas relações comerciais com o poder público para empresas privadas que utilizem cotas raciais na contratação de funcionários. Se forem aprovados, a nação brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela "raça". A história já condenou dolorosamente estas tentativas (MANIFESTO…, 2008a).

O referido manifesto ignorou as desigualdades enraizadas na sociedade brasileira, para, em nome da república e de princípios democráticos, evocar um ataque aos fundamentos da nação. O uso da palavra “privilégios” buscou desconfigurar as cotas raciais como mecanismos de acesso a direitos para significativa parcela da população. Essa leitura social também tem de interessante o fato de que veio de estudiosos(as) das relações raciais, especialmente no campo das ciências sociais, que construíram suas carreiras tendo a população negra como objeto de estudo. Ao que pareceu à época, especialmente para esses intelectuais, as cotas trariam um deslocamento na posição objeto-sujeito inadmissível na produção de conhecimento nacional. A ideia de raça era o ponto crucial para refutar as ações afirmativas, ainda que houvesse a nítida tentativa de quem defendia as cotas de explicar que não estávamos lidando com o conceito biológico de raça, mas sim com o sociológico que a define enquanto uma construção social que possui uma efetividade nas relações sociais entre brancos e negros no país. Estranhamente, houve uma dificuldade em dialogar neste sentido. Ainda assim, organizações do movimento negro e aliados(as) fizeram o enfrentamento devido via o “Manifesto em favor da lei de cotas e do estatuto da igualdade racial”:

Aos/as deputados/as e senadores/as do Congresso Nacional –

Colocando o sistema acadêmico brasileiro em uma perspectiva internacional, concluímos que nosso quadro de exclusão racial no ensino superior é um dos mais extremos do mundo. Para se ter uma idéia da desigualdade racial brasileira, lembremos que, mesmo nos dias do apartheid, os negros da África do Sul contavam com uma escolaridade média maior que a dos negros no Brasil no ano 2000; a porcentagem de professores negros nas universidades sul-africanas, ainda na época do apartheid, era bem maior que a porcentagem dos professores negros nas nossas universidades públicas nos dias atuais. A porcentagem média de docentes nas universidades públicas brasileiras não chega a 1%, em um país onde os negros conformam 45,6% do total da população. Se os Deputados e Senadores, no seu papel de traduzir as demandas da sociedade brasileira em políticas de Estado não intervierem aprovando o PL 73/99 e o Estatuto, os mecanismos de exclusão racial embutidos no suposto universalismo do estado republicano provavelmente nos levarão a atravessar todo o século XXI como um dos sistemas universitários mais segregados étnica e racialmente do planeta! E, pior ainda, estaremos condenando mais uma geração inteira de secundaristas negros a ficar fora das universidades, pois, segundo estudos do IPEA, serão necessários 30 anos para que a população negra alcance a escolaridade média dos brancos de hoje, caso nenhuma política específica de promoção da igualdade racial na educação seja adotada. Para que nossas universidades públicas cumpram verdadeiramente sua função republicana e social em uma sociedade multi-étnica e multi-racial, deverão algum dia refletir as porcentagens de brancos, negros e indígenas do país em todos os graus da hierarquia acadêmica: na graduação, no mestrado, no doutorado, na carreira de docente e na carreira de pesquisador (MANIFESTO…, 2008b).

A defesa das cotas raciais foi feita com base na análise sócio-histórica da realidade brasileira em que o racismo estruturou lugares de desigualdades raciais para negros e de privilégios para brancos. Os dados sobre desigualdades foram apresentados como a concretude que ensejava às cotas raciais. Era preciso fazer o enfrentamento para além de uma ideologia e suas abstrações, mas naquilo que ela produz de efetivo na vida dos sujeitos. Sair do discurso do “Somos todos iguais” para a prática antirracista foi e ainda é um grande desafio. Os manifestos como sabemos foram a expressão do que diferentes grupos queriam para o Brasil naquele momento. Eram apostas em um país com e sem a inclusão da população negra no âmbito da educação superior. Esse embate teve continuidade com a criação, em 2008, da Comissão de Implantação da Unilab − Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Iria o Brasil agora partir para a criação de uma universidade pública pautada por uma relação de cooperação com países africanos no âmbito da educação, ciência e tecnologia?

4 A criação da Unilab

A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira é um projeto único e potente no cenário educacional brasileiro. Trata-se de uma universidade que emerge no vislumbre da ampliação do acesso ao ensino superior para jovens estudantes do nordeste do país e para aqueles que cruzaram o atlântico na perspectiva de uma cooperação científica e cultural entre Brasil e os PALOP – Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Nessa chave interpretativa, a potência da diáspora se amplia e se reveste de desafios na consolidação da interiorização e da internacionalização como pilares institucionais. Se esses são os pilares que sustentam esse projeto de universidade, temos sua base no ensino, na pesquisa e extensão. Esse tripé desafia a nós docentes a buscarmos uma transversalidade alinhada com aquilo que entendemos como o projeto Unilab. Qual o significado simbólico e político dessa universidade? Como dar sentido ao ensino, à pesquisa e extensão alinhados a esse entendimento?

Ainda que não haja respostas únicas ou absolutas, gostaria de compartilhar com os(as) leitores(as) algumas interpretações possíveis geradas por quem vem refletindo e agindo, a partir desse lócus social. Inicio com o olhar de professores, pesquisadores e ex-gestores da Unilab que, em artigo (GOMES; LIMA; SANTOS, 2018) publicado recentemente em um dossiê sobre as relações Brasil-África, nos oferecem um olhar sobre a universidade:

O movimento de criação da Unilab se insere dentro do ciclo expansionista do ensino superior público brasileiro, coincidindo com um cenário propício ao aumento de instituições e de vagas no ensino superior federal. Tal situação corresponde ao período ocorrido depois da estabilização econômica do país, quando iniciativas diversas de inclusão social e políticas afirmativas foram estimuladas, propiciando uma melhoria da distribuição de renda, o que tem sido associado à emergência de uma nova classe média. Neste contexto, tem se destacado não apenas o crescimento do consumo de bens econômicos, como também de bens culturais. A ampliação do acesso à educação superior é parte deste movimento, onde a aspiração pela universidade passa a integrar o imaginário de famílias antes pertencentes aos setores mais pobres da população. Tal contexto é também marcado pela forte presença dos movimentos sociais no Brasil que cada vez mais incluem o acesso e a permanência à educação superior como uma das suas pautas de luta. O Brasil viveu, a partir dos anos 2000, uma intensa mobilização social em torno dos processos de democratização da educação superior que pressionou as instituições públicas e o Estado e influenciou na configuração do ciclo expansionista acima citado. O movimento negro brasileiro se destaca nesse cenário. Juntamente com ações em nível internacional e nacional, suas lideranças trouxeram para o debate nacional a discussão sobre a adoção de políticas afirmativas na educação superior, sobretudo na modalidade de cotas raciais. (GOMES; LIMA; SANTOS, 2018, p. 96, grifos meus).

A contextualização feita pelos autores ressalta a perspectiva da Unilab como uma ação afirmativa, bem como para os sujeitos promotores desse enquadramento: o movimento negro brasileiro. É inovador pensar uma universidade como mecanismo de promoção da igualdade racial e, portanto, de mecanismos redutores das desigualdades sociorraciais. Nesse sentido me alinho à definição trazida pelo GEMMA – Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa3, filiado ao Instituto de Estudos sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que assim nos diz:

Ações afirmativas são políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão sócio-econômica no passado ou no presente. Trata-se de medidas que têm como objetivo combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, aumentando a participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural (O QUE..., 2022, on-line).

A demanda por acesso à educação é uma reivindicação antiga do movimento negro brasileiro por entender que o acesso foi historicamente negado à população negra brasileira. A inserção dessa demanda na pauta política nacional ocorre na esteira do processo de redemocratização do país e da luta incessante dos movimentos sociais, entre eles o movimento negro. Assim, é que no último país das Américas a abolir a escravidão, as ações afirmativas tornam-se uma realidade no início do século XXI por meio da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) que trata do ensino da história e cultura africana e brasileira. Mais tarde em 2010, a Lei 12.289/10 (BRASIL, 2010) cria a Unilab. Esse papel do movimento negro é enfatizado em Gomes (2017, p. 21) quando a autora reitera que o mesmo é “produtor de saberes emancipatórios e um sistematizador de conhecimentos sobre a questão racial no Brasil. Saberes transformados em reivindicações, das quais várias se tornaram políticas de Estado nas primeiras décadas do século XXI”.

A visão trazida pela antropóloga e educadora Nilma Lino Gomes transparece na leitura da autora de “Política Externa como Ação Afirmativa: projeto e ação do governo Lula na África 2003/2006”, a embaixadora Irene Vida Gala. Nesta obra, ela faz a relação intrínseca entre política externa e ação afirmativa, com base na sua atuação na diplomacia brasileira em países africanos, atentando especialmente para o início do século XXI. Em seu livro, a autora destaca que:

As relações internacionais, sejam elas de comércio, de intercâmbio cultural, intelectual e tecnológico, ou quais forem, não poderão desconsiderar o corte racial. Isso faz com que o Brasil, em relação aos outros países, coloque na agenda internacional a questão racial. […] No programa de governo da Coligação Lula Presidente, verifica-se, como já foi anunciado, uma inédita vinculação entre a política externa brasileira para a África e a promoção da igualdade racial e a luta contra o racismo no Brasil. Neste capítulo, demonstra-se que ela é fruto de mais de duas décadas de relações entre o movimento negro e o PT, que acabaram por inspirar a proposta petista de voltar-se para a África e, ao mesmo tempo, por produzir uma convergência temática responsável por legitimar múltiplos interesses associados a uma parceria entre o Brasil e os países africanos. Ela também é tributária de uma nova cultura política em processo de evolução e consolidação no Brasil, que passou a incorporar novos valores ao cotidiano da sociedade brasileira, em particular no que diz respeito aos direitos e à cidadania dos afrodescendentes brasileiros. (GALA, 2019, p. 69).

O diálogo trazido pelas autoras me instiga a pensar no entrelaçamento produzido por uma visão de universidade tensionada pelas ações afirmativas e luta antirracista. Será que isso se reflete na produção de conhecimento de nossos discentes? Haverá um impacto no ensino, na pesquisa e extensão? Obviamente que não tomo essa visão como consensual e única, enquanto antropóloga o gosto por pensar sobre uma “Teoria Vivida” impele tais questionamentos.

Na perspectiva de Moore (2010), ao discorrer sobre a cooperação existente entre nosso país e o continente africano, a cooperação estratégica entre ambos passa pela superação antagônica das desigualdades etnorraciais e a capacidade de ambos em se constituir como blocos estratégicos no cenário global.

A eliminação das estruturas históricas lastreadas nas iniquidades raciais internas, ao tempo que estabelece as bases para uma nova sociedade alicerçada no respeito à cultura e à história do componente de origem africana, converter-se-á em um fator de suma importância estratégica na pretensão do Brasil de se erguer, no século XXI, ao status de potência mundial (MOORE, 2010, p. 30).

Nesse repensar e em uma visão estratégica de cooperação, insere-se a UNILAB enquanto um universo diaspórico marcado por um lado pela dinâmica da interiorização, ou seja, um olhar endógeno para “quem somos nós” acompanhado de um olhar exógeno “para quem podemos ser” via a dinâmica da internacionalização. Na conjugação de olhares, abrem-se os caminhos para diálogos em torno da produção de conhecimento e participação social de nossos estudantes brasileiros e internacionais. Nesse diálogo sul-sul, a comunidade acadêmica empenha-se na busca de um contraponto epistemológico e político à naturalização das desigualdades etnorraciais; de gênero e classe social, além de enfatizar a produção de um conhecimento para além das premissas eurocêntricas que embasam secularmente o saber, o ser e o poder nas relações sociais como enfatizam os estudos decoloniais e afrocêntricos. Assim, estamos imersos, enquanto comunidade acadêmica, em um cenário que se amplia para além dos muros da universidade.

Em 2017 ainda sem o aparato de uma resolução institucional, a qual só viria em 2021, o colegiado do curso de bacharelado em antropologia da Unilab criou em regime associativo, o seu programa de pós-graduação em antropologia. A criação desse programa veio acompanhada de um cenário alinhado às ações afirmativas e propositivo no âmbito de um colegiado formado à época por doze antropólogos(as), sendo dois colegas do continente africano e duas colegas brasileiras e negras. Essa composição em termos de raça e nacionalidade se faz relevante de ser informada, já que veremos na continuidade deste artigo que há programas de pós com sub-representação negra quando não como única representação docente em termos raciais, professoras(es) brancas(os) e isso nos ajuda a perceber que é preciso também investir, além do ingresso discente, o ingresso de docentes negras(os) como parte da adoção de ações afirmativas.

O PPGA UFC-UNILAB é um programa associado entre a Universidade Federal do Ceará e a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Trata-se de um mestrado acadêmico que a agrega em seu colegiado a experiência de docentes formados no contexto das ações afirmativas com aqueles(as) que passaram a se defrontar com essa iniciativa de acesso à educação pela primeira vez no âmbito deste programa de pós. Isso vem acrescido de um desafio de produção de conhecimento que busca dialogar e construir de forma próxima com as/os estudantes provenientes dos países envolvidos no projeto de cooperação internacional que deu origem à UNILAB, quais sejam: Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, novas epistemologias bem-vindas ao cenário acadêmico. Obviamente, que esse não tem sido um percurso fácil de ser construído. Desde o início do Programa houve adoção de ações afirmativas com reserva de vagas para candidatas(os) negros, indígenas e pessoas com deficiência. Como consequência não foram poucas às vezes em que os editais de processo seletivo para ingresso no PPGA foram questionados por estarem supostamente no âmbito de uma ilegalidade, especialmente por um “desconhecimento” judicial e/ou de gestão que nos permitisse, enquanto colegiado, aderir às ações afirmativas, ainda que não haja legislação específica para a pós-graduação.

Na graduação também houve problemas com editais na ótica das ações afirmativas. Em 2018, por meio do Ministério da Educação, o governo federal interveio e obteve o cancelamento de um edital voltado para pessoas transgêneras e intersexo. O motivo alegado foi de que a base legal utilizada para o referido edital, a Lei de Cotas, não previa candidaturas advindas desse público-alvo. É possível imaginar o quanto esse fato gerou um desgaste político em torno das ações afirmativas na comunidade acadêmica, pois um instrumento de inclusão passou a ser de exclusão de estudantes na universidade pública. Por outro lado, manteve-se a interpretação de que mesmo diante de um retrocesso seria preciso continuar avançando na conquista de direitos no acesso à educação e foi assim que no ano seguinte, 2019, a Unilab lançou seu primeiro edital para indígenas e quilombolas. Em Ferreira (2021) o acesso à universidade por estudantes quilombolas é analisado na ótica de uma reafirmação de direitos que “perpassa múltiplos aspectos como as pressões exercidas pelo movimento quilombola, organização político-estudantil, bem como as estratégias para permanecer no âmbito universitário”.

Recentemente, em agosto de 2021, o Conselho Universitário aprovou a Resolução n.º 40 (UNILAB, 2021, p. 2) que dispõe sobre o programa de ações afirmativas que deverá permear toda a universidade em nível de graduação e pós-graduação. A resolução trata do “ingresso e permanência de indígenas, negros, quilombolas, ciganos, povos e comunidades tradicionais, refugiados, pessoas com deficiência, pessoas com identidades trans e pessoas em situação de privação de liberdade ou egressas do sistema prisional.” A resolução por si só não basta. A meu ver será preciso pensar o acompanhamento dos estudantes cotistas de forma próxima e em uma perspectiva ampla de revisar e aprimorar as ações afirmativas. No foco das cotas raciais, como mecanismo de ações afirmativas, é essencial que se produza uma análise de conjuntura capaz de incidir em uma análise mais ampla das políticas de cotas raciais no país. No ano de 2022, é isso que está em jogo. Na Câmara Federal e, posteriormente no senado, assistimos a uma intensa disputa de narrativas e de correlação de forças que oscilam entre os que desejam o fim das cotas raciais e aqueles(as) que lutam por sua permanência. Diante de um cenário bastante adverso pode-se dizer que a precisão de um bisturi seria necessária para garantir as conquistas do passado, bem como abrir os caminhos para conquistas futuras.

5 O bisturi: caminhos a serem abertos

Em 2001, o antropólogo Kabengele Munanga publicou artigo em que defendia as cotas raciais em que contra-argumentava contra os seguintes pontos: a) não se sabe quem são os negros no Brasil; b) as políticas de ação afirmativa estão sendo abandonadas nos Estados Unidos; c) as cotas não são destinadas aos índios; d) as cotas poderiam prejudicar a imagem profissional dos negros que foram beneficiados; e e) as cotas levariam a uma degradação da qualidade de ensino.

Em meio a sua contra-argumentação, o autor chama a atenção para o cenário eleitoral e aposição dos candidatos ao Planalto:

Os três candidatos principais ao posto de Presidente da República nas eleições de 2002 não mostram uma postura clara e firme sobre este problema, ou adotam a estratégia da desinformação, ora para não se comprometerem com a população negra, ora para não perderem seus eleitores no meio de racistas brancos, já que o importante para alguns deles é ser eleito presidente a qualquer custo! (MUNANGA, 2001, p. 35).

Em 2012, quando o STF – Supremo Tribunal Federal – decidiu pela constitucionalidade das cotas raciais, abriram-se os caminhos para uma nova fase da luta antirracista pela via da construção de uma legislação favorável às ações afirmativas de modo geral. Mas, de modo algum, isso significou a eliminação de todos os entraves e prejuízos à população negra causados pelo racismo estrutural e pelo próprio Estado que nem sempre exerce um papel de promotor e garantidor de direitos, por vezes é violador. Nesse último escopo, estão as estatísticas que não nos deixam nos iludir sobre as mortes a cada 23 minutos de um jovem negro no Brasil. Entre vítimas mulheres, os nomes de Claudia Silva Ferreira (1976-2014) e Marielle Franco (1979-2018) guardam entre si, além da repercussão dos casos, a não resolução e punição dos envolvidos. A mortalidade negra contemporânea também é exacerbada pelo contexto da pandemia de covid-19, em que o perfil dos óbitos é de homem negro, pobre e periférico. O que isso nos diz sobre esse país?

Pode nos dizer muitas coisas. Inclusive, que nossas vidas negras não importam e que a luta por vida e dignidade continua. E essa continuidade pede cada vez mais estratégia e precisão em nossos embates cotidianos. Por isso, a analogia com o bisturi. Não que o facão tenha se tornado obsoleto, mas sim que, conforme a batalha, escolhemos as armas. Por exemplo, se foi abrindo a facão que chegamos à Lei de Cotas, será com o aprofundamento de um bisturi que chegaremos ao acompanhamento e aprimoramento da lei.

A fim de ilustrar com dados o quadro que se desenha e se faz necessário enfrentar no terreno das ações afirmativas, especialmente as cotas raciais, compartilho dados produzidos pelo GEMAA – Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas ligado ao Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Segundo Venturini (2019), a distribuição de raça no quadro docente de todos os programas de mestrado e doutorado em Ciências Sociais (antropologia, sociologia, ciência política e relações internacionais), apresenta a seguinte configuração: 77% (branco); 12% (pardo); 3% (preto) e 8% (outros). Além disso, a autora destaca que há programas de pós-graduação em que o quadro docente é exclusivamente branco, como por exemplo na antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na ciência política da Universidade Estadual de Campinas ou ainda na sociologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Por fim, chama a atenção de que não há, segundo a mesma autora, “instituições com quadro docente integralmente preto e/ou pardo”.

O que nós temos aqui é um recorte das ações afirmativas direcionadas à pós-graduação com ênfase em apresentar o quadro situacional na área de ciências sociais, no que tange à presença docente sub-representada em raça e gênero, bem como a adoção das ações afirmativas na pós-graduação, em sua maioria fruto de uma decisão política de colegiado, não de resolução institucional que abranja a universidade como um todo.

Em 2022 estivemos novamente diante de um cenário eleitoral. E, diga-se de passagem, um cenário extremamente difícil para a população negra vítima do descaso e da perversidade de um projeto político de governo disposto a desmontar as conquistas das últimas décadas, entre elas a Lei de Cotas. Em meio a tudo isso, nosso bisturi, o voto, nas eleições presidenciais em outubro, teve que atentar para o que estava em jogo e de como era preciso agir em defesa não só da democracia, mas das conquistas históricas das organizações do movimento negro brasileiro.

Sabemos que o campo progressista ainda precisa avançar – e muito – na sua compreensão e efetivo comprometimento na luta antirracista. É preciso ir além do discurso e, como já disse a socióloga e política baiana Vilma Reis (REIS, 2019, p. 2), é preciso “Quebrar a hegemonia branca na política”4. No discurso (LULA, 2022, p. 1) de lançamento da pré-candidatura de Luís Inácio Lula da Silva, foi citada a “política de cotas” no rol das memórias dos governos petistas, mas como algo que é “uma conquista do povo”. Se esse for o entendimento geral de uma ideia de “Vamos juntos pelo Brasil”, então temos caminhos a abrir de forma contundente.

Essa abertura de caminhos também aparece na fala da ex-ministra da SEPPIR – Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, quando relembra os enfrentamentos vividos em relação às cotas raciais:

Eu considero que algumas ações feitas no Governo Lula e no Governo Dilma são muito emblemáticas para derrubar a farsa da democracia racial e não derrubou 100%. Mas balançou a roseira. Sobre as cotas, eu participei, como ministra, da sedimentação do que veio a ser a Lei 12.711, a Lei de Cotas. Eu acompanhei até um determinado momento e, depois, a fila anda. As coisas continuaram acontecendo. Eu saí do Governo de uma maneira muito desgastada, envolvida num grande escândalo, em 2008. Então, construir a Lei de Cotas foi um processo muito árduo. Muito árduo. Por quê? Se não tem racismo, por que vai ter cotas? É a fala conservadora e da elite brasileira. E esse pensamento conservador e da elite tá na elite e tá lá também no trabalhador dos mais pobres possíveis, pela lavagem cerebral e a condução da ideologia dominante.

Em 29 de agosto de 2022, completou dez anos da aprovação da Lei de Cotas. Há uma interpretação completamente múltipla em relação ao que está na Lei de Cotas. A lei diz que tem que ter uma revisão. Não diz que é pra terminar. E é mais palatável pra sociedade e pra alguns setores políticos dizer que os dez anos e a avaliação são pra acabar com o sistema de cotas. Mas isso não está escrito na lei. O que eu acredito é que a batalha não tá ganha em relação às cotas ou mesmo às políticas de quilombo, às políticas de igualdade racial como um todo.

Mas nós temos situações emblemáticas de avanço. A fotografia das universidades brasileiras mudou. E tem alguma fotografia que é preta, que é a fotografia da Unilab. Mas as demais universidades, todas as universidades públicas, elas, por lei, por força da lei, têm que desenvolver a política de cotas. Não é porque os conselhos acadêmicos estão totalmente convencidos. Mas o fato é que tem cota em todas as universidades federais brasileiras, com formatos diferenciados. Uma preza mais por trabalhar acesso, permanência e continuidade, o que é raro. Na maioria dos casos, fez-se o acesso e o aluno e a aluna tem que se virar lá dentro. Essa é a maioria dos formatos. E, publicamente, se faz o debate sobre a combinação entre acesso, permanência e olhar pra fora, pro mundo do trabalho. Esse é o debate que tem que ser feito mais e mais.” (RIBEIRO, 2022).

Nas palavras da ex-ministra pode-se presumir que o tema das cotas raciais vem perpassando governos de forma tensa, entre avanços e recuos. Independente disto cabe o devido enfrentamento frente ao anestesiamento social, como já trazido por Marielle Franco em sua análise do golpe articulado em 2016 contra a presidenta Dilma Roussef. Na visão de Marielle Franco, há um papel crucial das mulheres negras e periféricas na reconquista dos direitos sociais que nos foram retirados:

[…] Coloca-se assim, como desafio da esquerda no século XXI, registrar as ações das mulheres negras e faveladas que são marcas de conquistas e pigmentações de ações transformadoras, inventivas e potencialmente revolucionárias. Disputar o olhar, sentimentos e pensamentos para um mundo que vive mudanças todo o tempo e situar as ações existentes das mulheres negras, nesses territórios, superando em suas vidas o impacto do racismo institucional, é uma ação estratégica para esquerda no contemporâneo e ganha ênfase no cenário do golpe imposto no Brasil (FRANCO, 2017, p. 94).

O papel das mulheres negras e periféricas pode assim ser visto como o bisturi não só por uma recomposição, via voto, de governador(es) e deputadas(os) – sim, é preciso ir além da presidência da república – mas também pela via da representatividade de sujeitas que também podem ser eleitas. Esse processo político pode ser definidor na constituição de forças que atuem na defesa de pautas como a política de cotas raciais.

Nesse escopo de um protagonismo feminino e negro no manejo do bisturi que abre caminhos, destaco falas de algumas mulheres negras. Pude compartilhar, em publicação recente, suas visões sobre a sociedade brasileira e as políticas públicas de promoção da igualdade racial:

Zelma Madeira, ex-coordenadora especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial (CEPPIR) no estado do Ceará − […] Nós mulheres negras, ontem a gente lembrou muito isso, que nós estamos lembrando o tempo todo lembrando, chamando a sociedade brasileira para um novo pacto civilizatório onde coloque no centro que “Vidas Negras Importam”. (RODRIGUES, 2021b, p. 43).

Joanice Conceição, antropóloga, professora na Unilab – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira – As instituições estão infectadas pelo germe do genocídio, cujo alvo é a população negra. As instituições precisam, antes de mais nada, admitir que estão doentes para que possam se tratar, Vidas negras importam porque crianças, mulheres e homens negros têm direito de viver sem que seus pescoços sejam apertados, asfixiados, sem que seus rostos sejam esbofeteados. Vidas negras importam pelo direito de continuarmos vivos e vivas, a fim de ver filhas, filhos sobrinhos e netos cresçam e logrem o melhor da vida e assim possam continuar respirando o hálito puro expirado por quem nos criou. Deixem-nos viver! Vidas negras importam.”. (RODRIGUES, 2021b, p. 44).

Sueli Carneiro, filósofa, militante – Como disse Bell Hooks, mais do que qualquer grupo de mulheres, as negras têm sido consideradas só corpos sem mente. E aqui estou eu nesta noite, realizando sonhos não ousados, fruto da generosidade e do acolhimento, não apenas dos meus discursos, mas sobretudo de reconhecimento de realidades e vivências cruéis que pessoas negras experimentam nessa sociedade e contra as quais tem que estar sempre em luta, sempre alerta, em legítima defesa, afirmou. […] Sueli também pontuou que seus escritos são resultantes das dores causadas pelo racismo e pelo sexismo, tanto no passado quanto no presente, e citou questões que considera a “argamassa” de sua literatura: São produto de algum momento dessa luta permanente, a qual as pessoas negras estão condenadas para assegurar o direito à vida, sempre ameaçado, para alcançar a igualdade de oportunidades de direitos, sempre negados; para ter o direito a uma representação justa e para alcançar reconhecimento e justiça social.”. (RODRIGUES, 2021b, p. 37).

Ao evidenciar a perspectiva política advinda de mulheres negras, gestoras ou não de políticas de promoção da igualdade racial – o que inclui pensar as cotas raciais, busca-se perceber o quanto essa metáfora do bisturi tem nas mãos e atos dessas mulheres, o protagonismo que maneja temas árduos como as cotas raciais há muito tempo. Por vezes, nos deparamos com abordagens que excluem do fenômeno em foco os sujeitos e neste caso, as sujeitas, que na interface entre a teoria e a política são referência para não só um pensamento crítico, mas também um compromisso político com a problemática envolvida. Se ouvimos que o racismo é estrutural e que a luta é de toda a sociedade, também ouvimos que não basta não ser racista, mas é preciso ser antirracista. Para isso é preciso posicionamento construído em trajetórias que longe de explicitar o conforto de uma neutralidade cientifica e/ou política assumam os riscos do manejo do bisturi e promovam novas posturas sociais diante das desigualdades e opressões.

6 Considerações finais

Neste ano de 2023, talvez ainda tenhamos desdobramentos da política de cotas raciais que se desenhem, a partir da convergência entre governo e sociedade civil. Essa convergência poderá ocorrer ainda via o manejo do bisturi, ou seja, com precisão e estratégias de ambos os lados, tendo a noção de que o facão da ruptura democrática ainda ronda o país. No ato de criação do Ministério da Promoção da Igualdade Racial, o presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva anunciou que o ministério viria para “ampliar a política de cotas”. Do lado da sociedade civil, a iniciativa da ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadoras(os) Negras(os) lançou o “Observatório Agimcra: agência de impacto de cotas raciais da ABPN”, a partir do entendimento de que a discussão sobre a revisão da Lei de Cotas, 12.711/2012 (BRASIL, 2012), que ocorreu em 2022, ensejou a necessidade de organizar o fortalecimento e o debate “munindo diferentes setores sociais com uma base de dados sólida para produção da argumentação em prol da proteção, manutenção da referida lei e aperfeiçoamento de critérios que beneficiem a população negra”.

Diante disso, gera-se uma expectativa que na citada convergência entre governo e sociedade haja uma ampliação das condições de garantia do aumento da eficácia e solidez que ultrapasse os limites de governo, mas que alcance a ideia de uma política de Estado. Talvez, seja uma vã expectativa, mas é preciso reconhecer o caminho percorrido até aqui, o chão em que se tem pisado, para traçar novos caminhos e parcerias na caminhada.

Sem ingenuidades ou romantismos precisaremos fazer escolhas e assumi-las. Diante dessa perspectiva a inspiração vem da escrita assertiva de uma mulher negra: Conceição Evaristo e seu poema “É tempo de nos Aquilombar”:



É tempo de caminhar em fingido silêncio,
e buscar o momento certo do grito,
aparentar fechar um olho evitando o cisco
e abrir escancaradamente o outro.

É tempo de fazer os ouvidos moucos
para os vazios lero-leros,
e cuidar dos passos assuntando as vias
ir se vigiando atento, que o buraco é fundo.

É tempo de ninguém se soltar de ninguém,
mas olhar fundo na palma aberta
a alma de quem lhe oferece o gesto.
O laçar de mãos não pode ser algema
e sim acertada tática, necessário esquema.

É tempo de formar novos quilombos,
em qualquer lugar que estejamos,
e que venham os dias futuros, salve 2021,
a mística quilombola persiste afirmando:
“a liberdade é uma luta constante”

Fuente: (EVARISTO, 2021)

Referências

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Notas

1 No livro “Onda Negra, Medo Branco”, da historiadora Célia de Azevedo (2004), há, por parte da população branca do século XIX, especialmente as elites, um imaginário marcado pelo temor diante das crescentes insurreições negras e da inevitável abolição. Nesse cenário as perguntas eram: o que fazer com o negro quando a escravidão acabar? Como impedir um final brusco da escravidão? Tudo isso é revelador do quanto a presença negra gerava incômodos e temores em uma sociedade que sempre oprimiu essa população. Já em Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (2003), o imaginário era de não abalar as estruturas de um Brasil dado ao convívio harmonioso em que as diferenças não impõem barreiras sociais aos negros(as). Neste caso admitir as desigualdades raciais é admitir que há problemas no decantado “paraíso racial” brasileiro.

Notas de autor

1 Doutora em Antropologia Social (2012) pela Universidade de São Paulo (USP). Professora associada no Instituto de Humanidades da UNILAB- Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. Professora efetiva no Programa Associado de Pós-Graduação em Antropologia UFC-UNILAB - Brasil. E-mail: vera.rodrigues@unilab.edu.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): RODRIGUES, V. Cotas raciais: caminhos abertos entre o “facão” e o “bisturi”. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 25, n. 1, e25117159, 2023. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n12023.17159. Disponível em: https://essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/17159.

COMO CITAR (APA): Rodrigues, V. (2023). Cotas raciais: caminhos abertos entre o “facão” e o “bisturi”. Vértices (Campos dos Goitacazes), 25(1), e25117159. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n12023.17159.

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