Artigos Originais

Revisitando Ações Afirmativas

Revisiting Affirmative Actions

Revisitando las Acciones Afirmativas

Felícia Picanço 1
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil
Andrea Lopes da Costa 2
Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil

Revisitando Ações Afirmativas

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 25, núm. 1, e25118089, 2023

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Recepción: 21 Julio 2022

Aprobación: 06 Marzo 2023

Publicación: 05 Mayo 2023

Resumo: O objetivo deste artigo é revisitar o desenvolvimento das Ações Afirmativas no ensino superior no Brasil e traçar as mudanças ocorridas entre os elegíveis ao ensino superior (estudantes com o ensino médio completo) articulando com as mudanças no perfil dos universitários ao longo do tempo. O ensaio concluiu que ações afirmativas desempenharam papel fundamental para a inclusão de um novo perfil de universitário, mas não esgotou seu papel na redistribuição de oportunidades educacionais.

Palavras-chave: ação afirmativa, ensino superior, juventude, educação básica.

Abstract: The aim of this paper is to revisit the development of Affirmative Actions in higher education in Brazil, and to trace the changes that have occurred among those eligible for higher education (students who have finished high school) articulating with the changes in the profile of university students over time. The essay concludes that affirmative actions played a fundamental role in the inclusion of a new university profile, but did not deplete its role in the redistribution of educational opportunities.

Keywords: affirmative action, higher education, youth, basic education.

Resumen: El objetivo del artículo es revisar el desarrollo de las Acciones Afirmativas en la educación superior en Brasil y rastrear los cambios ocurridos entre los elegibles para la educación superior (estudiantes con enseñanza secundaria completa), articulando los cambios en el perfil de los estudiantes universitarios a lo largo del tiempo. El ensayo concluye que la acción afirmativa jugó un papel fundamental en la inclusión de un nuevo perfil universitario, pero no agotó su papel en la redistribución de oportunidades educativas.

Palabras clave: acción afirmativa, educación superior, jóvenes, educación básica.

1 Introdução

Após quase vinte anos em que as universidades estaduais UERJ, UENF e UNEB tornaram-se pioneiras na utilização de medidas de reserva de vagas para o acesso ao ensino superior e, após dez anos da Lei nº 12.711/12 (BRASIL, 2012), ainda há confusão acerca do significado de ação afirmativa e de como a Lei n. 12.711/2012 é aplicada. Esse mal-entendido talvez tenha sido fortalecido pela forma como foi nomeada na esfera pública: “Lei de Cotas”. Tal desconhecimento permite, entre outras desinformações: a) que sejam confundidas com mera forma de inclusão de alunos na universidade, levando ao esvaziamento de seu principal objetivo: promoção de igualdade social mais ampla; b) que sejam resumidas como medidas de inclusão no e para o ensino superior, dissociando-as das práticas políticas necessárias para o ensino básico (fundamental e médio); e c) que têm como beneficiárias exclusivas as populações negra e indígena.

Ação afirmativa trata de todo programa, política pública e iniciativa privada1 que têm por objetivo fornecer recursos, direitos especiais, vagas ou posições a um grupo social discriminado ou com recursos escassos que está em posição de desvantagem na competição, nos processos seletivos ou na representação política e cultural (FERES JÚNIOR et al., 2018; GOMES, 2001; VIEIRA, 2003). O objetivo é combater as desigualdades sociais e econômicas e as manifestações de discriminação enraizadas na sociedade. As categorias elegíveis e sua formatação variam em função das escolhas feitas pelos promotores, sendo as mais comuns aquelas que elegem etnia, raça, classe, gênero, religião e castas.

Entre as diversas modalidades de ações afirmativas, uma das mais comuns é a cota, aquela em que se reserva uma porcentagem ou número de vagas ou postos a serem preenchidos por indivíduos portadores da característica que o torna alvo de discriminação e de menor chance competitiva em função das desvantagens acumuladas. Outras modalidades são a preferência na contratação, concessão de bônus, oferta da bolsa de estudo, empréstimos financeiros e reparação financeira. As ações afirmativas distribuem recursos, oportunidades e vagas no âmbito da participação política, acesso à educação, admissão em instituições de ensino superior, serviços de saúde, emprego, oportunidades de negócios, bens materiais, redes de proteção social e reconhecimento cultural e histórico (FERES JÚNIOR et al., 2018).

1.1 Breve história das ações afirmativas

Embora ações afirmativas implementadas no Brasil tenham sido inspiradas no modelo americano promovido a partir da década de 1960, sua origem é igualmente associada aos processos de independência dos países asiáticos e africanos, uma vez que precisaram substituir os colonizadores nos postos de comando. Segundo Feres Júnior et al. (2018), tais políticas foram primeiramente desenvolvidas no sul da Índia, ainda no período colonial entre o final do século XIX e começo do século XX, quando a autoridade colonial foi pressionada a reduzir o domínio dos brâmanes através da implementação de reservas de vagas para não brâmanes no serviço público e nas instituições educacionais.

Essa medida sustentou-se na desconstrução das assimetrias produzidas pelo sistema de estratificação social indiano, historicamente baseado nas castas: grupos endogâmicos, hereditários e hierarquizados, sendo os dalits considerados inferiores e chamados de “intocáveis”; e os brâmanes, uma casta superior.

Após a independência da Índia, em 1947, a nova constituição do país, promulgada em 1950, criminalizou a intocabilidade, utilizada para hostilizar e discriminar os dalits, adotou termos legais para se referir às castas dos estratos mais baixos e instituiu reserva de vagas na educação, cargos públicos e no legislativo (FERES JÚNIOR et al., 2018). Os governos que se seguiram, não sem conflitos, disputas e tensões, incorporaram novos setores da população ao sistema classificatório para fins de serem beneficiários das modalidades de reservas de vagas, bem como modificaram o próprio sistema de classificação e porcentagens designadas para as diferentes reservas de vagas.

Se o pioneirismo na adoção de medidas de proteção a minorias étnicas e raciais está na Índia, o primeiro uso efetivo do termo ação afirmativa, por sua vez, pode ser encontrado na legislação trabalhista americana de 1935, National Labor Relations Act. Nela foi definido que, se um empregador tivesse comprovadamente discriminado um sindicalista ou trabalhador sindicalizado, deveria não apenas cessar com a discriminação como também adotar ações afirmativas para restituir as vítimas à posição que ocupariam caso não tivessem sido discriminadas (FERES JÚNIOR et al., 2018). Além dessa referência, outras ações que tiveram curso no governo do presidente Franklin Roosevelt (presidente de 1933 a 1945) são acionadas como parte da história das ações afirmativas: a formação do “gabinete negro” para assessorá-lo sobre o tema e a ordem executiva 8802, que proibiu a discriminação racial e religiosa no emprego entre prestadores da indústria de defesa. A partir dos anos 1950, o Movimento dos Direitos Civis e as ações dos governos do período foram formatando o sentido das ações afirmativas nos EUA.

Identifica-se, portanto, a origem das ações afirmativas na Índia e a definição do termo nos Estados Unidos. Isso porque, em 1961, sob o governo de John F. Kennedy, a expressão foi utilizada na Ordem Executiva nº 10.925, que previa: “take affirmative action to ensure that applicants are employed and that employees are treated during employment without regard to their race, creed, color, or national origin".

Em 1965, Lyndon Johnson, sucessor de John F. Kennedy, promulgou a Ordem Executiva 11.246 com o seguinte texto: “prohibits federal contractors and federally assisted construction contractors and subcontractors, who do over $10,000 in Government business in one year from discriminating in employment decisions on the basis of race, color, religion, sex, or national origin”. A interpretação de Feres Júnior et al. (2018) é que, na proposição de Ordem 11.246, a ação afirmativa é mais do que um princípio orientador, um dispositivo de promoção da igualdade racial na contratação.

A partir daí, vários estudos documentam os caminhos que as ações afirmativas tiveram nos EUA e mostram a adoção nas instituições de ensino superior e no mercado de trabalho, espaços centrais para os processos de promoção e ascensão social que, por natureza, são mais herméticos e refratários ao acesso de grupos minoritários.

Embora parecesse um passo importante para o combate à desigualdade racial americana, as ações afirmativas sofreram um abalo em 1978, quando Allan Bakke, branco, candidato a uma vaga no curso de medicina na Universidade da Califórnia, processou a universidade por ter negado sua admissão em favor de candidatos negros com menor avaliação. A suprema corte julgou que as cotas raciais violavam a 14ª Emenda constitucional, mas considerou que a raça poderia ser utilizada como critério. As instituições de ensino superior seguiram utilizando o critério de raça e etnia e alguns julgamentos sobre a constitucionalidade foram acontecendo com resultados variados, tanto na direção de manter a possibilidade de uso da raça e etnia como critério, quanto de negar a possibilidade (BLANCHARD, 2018; FERES JÚNIOR et al., 2018).

Nesse processo de disputa legal e política das ações afirmativas, a diversidade é o tema a partir do qual as instituições têm defendido a adoção das ações afirmativas (FERES JÚNIOR et al., 2018; TERANISHI et al., 2009). Logo, desigualdade social, desvantagens econômicas e reparação social são justificativas que não entram na pauta, o discurso se sustenta não pela justiça social, mas pela eficiência para as organizações.

Embora a África do Sul só tenha adotado políticas de ação afirmativa nos anos 90, esse país é sempre tratado como emblemático dado o regime violento de segregação racial, o apartheid, instaurado a partir de 1948 e que iniciou seu desmonte em 1991. Sob o regime do apartheid a população foi dividida entre brancos, africanos, indianos e coloured (mestiços), e leis cujo objetivo era a reserva de espaços e posições privilegiadas para brancos em detrimento dos negros africanos e de outros grupos não brancos foram estabelecidas. Desse modo, institucionalizou-se a discriminação negativa, cujo objetivo era o de prejudicar ainda mais um grupo social. Com o fim do apartheid, as políticas de ação afirmativa foram implementadas objetivando reparação e justiça sociais.

2 Ações Afirmativas no Brasil

Os estudos sobre raça no Brasil tendem a ser apresentados em quatro fases, segundo as rupturas que provocam com as leituras predominantes na época. A primeira fase é a do racismo científico no final do século XIX e começo do século XX.

A segunda está localizada nos anos 30/40 do século XX e tem o livro Casa-Grande e Senzala (publicado em 1933) de Gilberto Freyre e suas análises baseadas na harmonia racial da sociedade brasileira como marco. Mais tarde o termo democracia racial foi cunhado para expressar essa ideia (GUIMARÃES, 2001).

A terceira fase se localiza nos anos 50 com o protagonismo dos estudos de natureza sociológica do Projeto Unesco (MAIO, 2000). O Projeto Unesco foi desenvolvido entre os anos 40 e 50 com o objetivo de analisar as relações raciais no Brasil para compreender o sucesso do “caso” brasileiro, definido como uma experiência social de convívio entre hierarquias raciais, sem a segregação racial institucionalizada, como a experiência americana. O Projeto reuniu diferentes pesquisadores para desenvolver pesquisas em cidades com características socioeconômicas distintas.

Os resultados dos trabalhos elaborados ao longo do Projeto Unesco marcam o início de uma fase na qual as narrativas produzidas acerca da existência de pacifismo racial, de ausência de mecanismos de discriminação e de livre acesso dos grupos raciais aos distintos estratos sociais são destituídas. O discurso sui generis e fundamentalmente nacional de nação harmonicamente “mestiça” foi, ao menos no campo intelectual, destituído diante das evidências de “preconceito de cor” (categorização frequentemente usada à época) apresentadas por estudos como os de Nogueira (2007[1954]), Fernandes (2008 [1978]) e Ramos (1981 [1954]).

Se os estudos do Projeto Unesco permitiram a constatação de que o Brasil não somente havia produzido distinção de cor, mas também práticas de preconceito, o livro Discriminação e Desigualdades Sociais no Brasil (1979), de Carlos Hasenbalg, resultado de sua Tese de doutorado, buscou dimensionar os efeitos do preconceito e da discriminação sobre a distribuição ocupacional e as chances de mobilidade social dos negros. No livro, o autor utiliza dados demográficos para se contrapor tanto à perspectiva da democracia racial quanto àquela que concebia a desigualdade racial como resquícios da escravidão, havendo a tendência de que ela desaparecesse à medida que o capitalismo moderno se desenvolvesse no país (FERNANDES, 2008 [1978]).

Para o autor, o racismo e a discriminação são processos sociais que existem em diversas sociedades antes da escravização e que não apenas incidem nas práticas discriminatórias mas também impactam na formação subjetiva e psicológica dos indivíduos produzindo uma autoimagem e conformando aspirações de vida. Os processos de escravização conformaram, no passado, a relação de quem é senhor, o branco; e escravo, o negro. Porém são as práticas discriminatórias contemporâneas que explicam as desigualdades observadas. O mito da democracia racial não apenas mascara as desigualdades, como também é um obstáculo para a ampliação da mobilização política dos negros.

Nos anos 80, década seguinte à publicação do livro-marco, a discussão sobre a questão racial no Brasil foi alimentada pelas esferas acadêmicas e políticas. No âmbito acadêmico, Hasenbalg em parceria com Nelson do Valle Silva deram a tônica dos estudos quantitativos sobre as desigualdades raciais e, através do trabalho de orientadores de pós-graduação, formaram quadros de pesquisadores no tema.

O movimento negro, não obstante sua atuação, fruto de um processo de reorganização (RODRIGUES, 2014), parecia ter dificuldade de ampliar sua base de militância. O contexto de redemocratização do país colocava em pauta o fortalecimento das instituições democráticas, mas era um Estado pouco afeito a absorver as demandas dos movimentos negros e reduzir as desigualdades raciais.

Os anos 90 inauguraram uma outra fase no Brasil dentro de um contexto internacional em que o debate sobre raça estava presente, em especial com o fim do regime de apartheid na África do Sul e a demanda pelo enfrentamento do racismo, discriminação e desigualdades raciais em vários países. Nessa fase, os militantes dos movimentos negros se apropriam das oportunidades na política institucional e conquistam mandatos, ocupam cargos e fomentam a criação de Conselhos voltados para a questão racial; e um salto para “baixo”, as bases da militância, onde houve a ampliação de iniciativas como os pré-vestibulares para negros e carentes (PVNC), organizações de cunho cultural, religioso e educacional, mas também, se buscou a articulação entre as entidades negras e as comunidades culturais e religiosas (RODRIGUES, 2014). É interessante notar que o movimento de ampliação das organizações, entidades e iniciativas voltadas para a questão racial produziu leituras divergentes: uma perspectiva crítica da pulverização de iniciativas, pois ela tende a enfraquecer a força política do movimento negro como um todo; e uma perspectiva positiva, que via, na pulverização de ações e entidades, o fortalecimento da pauta racial dentro de diferentes campos de ação: acesso ao ensino superior, saúde e cultura, dentre outros.

A articulação foi fundamental para a construção do evento que se tornou um marco na história do movimento negro recente: a Marcha de Zumbi dos Palmares no dia 20 de novembro de 1995, no 300º aniversário de morte de Zumbi, no qual 30 mil pessoas estiveram reunidas em Brasília.

Do ponto de vista dos movimentos sociais e políticos a questão racial ganhava muito fôlego e, do ponto de vista do Estado, a pauta racial começou a ser colocada. O resultado é que, pela primeira vez em sua história, o Estado incorporou como tarefa o enfrentamento das desigualdades raciais. Desse modo, pressionado pelas denúncias apresentadas pelo movimento negro contra o Brasil junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT), o segundo presidente da República eleito, Fernando Henrique Cardoso (presidente de 1995-2002), assumiu trazer a pauta racial e, em 1995, ainda no dia da Marcha de Zumbi, assinou o decreto que instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra. Em fevereiro de 1996, o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra foi instalado e, em julho do mesmo ano, a Secretaria de Direitos de Cidadania (SDC) promoveu o Seminário Internacional “Multiculturalismo e Racismo: o Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos”. Por fim, a presidência publicou o Programa Nacional de Direitos Humanos e, como parte do programa de incorporação da pauta racial, delegou um capítulo à população negra e definiu como ação de médio prazo: Desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta (BRASIL, 1996).

As ações do Governo Federal seguiram: em abril de 1997 foi criada a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (SNDH) vinculada ao Ministério da Justiça, em substituição à SDC, e, em janeiro de 1999, a SNDH passou a ser a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (SEDH), com assento nas reuniões ministeriais. A importância dessas ações é destacada por Rodrigues (2014), pois lideranças do movimento negro passam a ocupar postos nessas secretarias.

Em 1997, dentro do seu programa de conferências globais, a ONU marcou para 2001 em Durban na África Sul, a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa. As duas anteriores aconteceram em 1978 e 1983 em Genebra. Em setembro de 2000, o presidente Fernando Henrique Cardoso criou o Comitê Nacional Preparatório para a Conferência de Durban. Como destaca Heringer (2014), foram muitos debates e encontros para a construção do documento a ser levado pela comitiva brasileira, bem como para a busca de adesão de diferentes setores da sociedade às pautas nele contidas.

Em 2001, a conferência de Durban ampliou a visibilidade do tema das desigualdades raciais no país, sobretudo quando, ao assinar a Declaração de Durban, o país se comprometeu a promover medidas e a elaborar ações afirmativas para o combate a essas desigualdades. Ainda nesse período, a movimentação em relação à adoção de políticas de ação afirmativa nas universidades estava em curso. Em 1999, a deputada Nice Lobão do Partido da Frente Liberal (PFL) apresentou, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº. 73/1999 (BRASIL, 1999), que definia 50% de reserva de vagas para egressos da escola pública, mas o Projeto não foi votado.

Em 2000, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) aprovou a Lei n. 3.524 (RIO DE JANEIRO, 2000), que reservava 50% das vagas para estudantes egressos de escolas públicas, e, em 2001, a Alerj aprovou a Lei n. 3.708 (RIO DE JANEIRO, 2001), que destinava 40% das vagas para candidatos autodeclarados negros aplicáveis para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Para o ingresso em 2003, a decisão foi, a partir da prova de vestibular comum, separar dois processos seletivos: um de ampla concorrência e o Sade (Sistema de Acompanhamento do Desempenho dos Estudantes do Ensino Médio), exclusivo para estudantes egressos de escola pública da rede estadual e municipal. A reserva de vagas para pessoas negras priorizava o ingresso via Sade e, somente no caso de 40% de negros não serem aprovados pelo Sade, haveria a complementação com os autodeclarados negros da ampla concorrência. Em 2003, a Lei n. 4.151 (RIO DE JANEIRO, 2003) substitui as duas anteriores e define a reserva de vagas de 45% para pessoas de baixa renda, dividida entre 20% para estudantes da rede pública, 20% para pessoas negras e 5% para pessoas com deficiência e integrantes de minorias étnicas.

Em 2001, a Assembleia Legislativa do Estado do Paraná aprovou a Lei nº 13.134 (PARANÁ, 2001), que determinou a criação de três vagas em cursos regulares das universidades estaduais para indígenas das sociedades indígenas do Estado. O processo seletivo foi realizado através do “Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná”. A experiência é considerada pioneira em relação à adoção de cotas para a população indígena.

A partir de 2003, somaram-se a essas universidades pioneiras e com diferentes formatos as universidades estaduais do Mato Grosso do Sul (UEMS) e da Bahia (UNEB) além das federais UNB e UFBA. A UNB teve um papel central, pois, embora não estivesse entre as maiores universidades do país, encontrava-se no centro do poder federal. A Universidade incorporou, desde o princípio, uma comissão de heteroidentificação para analisar o fenótipo dos candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, com o objetivo de evitar fraudes.

Na esteira das ações afirmativas no ensino superior e após a conferência de Durban, ainda em 2003, já sob o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada a Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial). Com status de ministério, a Seppir colocou como agenda a atuação interministerial, o que implicou em estimular que os diferentes ministérios incluíssem a questão racial nas suas políticas e ações.

No período de 2000 a 2012, enquanto as universidades estaduais e federais iam implementando suas ações afirmativas próprias ou modificando-as, o Projeto de Lei n.º 73/1999 (BRASIL, 1999) da deputada Nice Lobão foi incorporando outras contribuições e tramitou no congresso, mas não sem resistência. Em 2006, em função da tramitação do Projeto de Lei, grupos a favor e contra as cotas se mobilizaram. Em maio, foi lançada a carta-manifesto “Todos têm direitos iguais numa República democrática”, que ficou conhecida como o manifesto contra as cotas, assinado por 114 professores, pesquisadores e personalidades públicas. Em seguida, foi divulgada uma carta-manifesto a favor das cotas assinada por mais de 400 professores, alunos e militantes (para ver ambos os manifestos, acessar: https://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml).

Além de matérias de jornais e debates públicos, em 2007, Peter Fry, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo Ventura Santos, pesquisadores de instituições públicas brasileiras, lançaram o livro “Divisões Perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo”, pela Editora Civilização Brasileira, reunindo ensaios dos próprios organizadores, jornalistas e outros profissionais contra a adoção de políticas públicas com critérios raciais. Os organizadores apresentam sua argumentação: “para debelar a discriminação racial é necessário extinguir a crença herdada do século XIX de que a aparência das pessoas revela qualidades ou defeitos morais e intelectuais. Para tanto, não podemos compactuar com políticas que entronizam o conceito de 'raça' na letra da lei” (FRY et al., 2007).

Em 2009, o Partido dos Democratas (DEM) ajuizou junto ao Supremo Tribunal Federal a ADPF n.º 186/DF com o objetivo de questionar a ação afirmativa com cota racial na UNB, argumentando a existência de um “racismo estatal” e afronta à Constituição de 1988 por violar a igualdade formal e a dignidade humana daqueles que veem seus direitos lesados, muito próximo ao modelo de questionamento existente na Suprema Corte dos EUA. O desfecho ocorreu em 2012 sendo favorável à manutenção da ação afirmativa com cota racial.

Foram mais de 10 anos de debates até chegar à formulação final e promulgação da Lei n. 12.711, em 2012, sob o governo da presidenta Dilma Rousseff. Quando a Lei (BRASIL, 2012) foi promulgada, 40 das 58 instituições de ensino superior federal já tinham alguma modalidade de ação afirmativa. Definiu-se na Lei que 50% das vagas deviam ser reservadas para egressos do ensino médio de escola pública para que, dentro da reserva, as demais cotas fossem definidas (Figura 1).

Distribuição das vagas com a reserva de vagas da Lei no 12.711/2012
Figura 1.
Distribuição das vagas com a reserva de vagas da Lei no 12.711/2012
Fonte: MEC, 2022. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cotas/sobre-sistema.html

De qualquer forma, mesmo que a Lei de Cotas tenha tido um caminho moroso e imerso em disputas, seu papel é simbólico e material na medida em que ela estabeleceu o sistema de cotas para todas as universidades e instituições de ensino federais brasileiras, inclusive para as que, até o momento, estavam mais resistentes à adoção de tal medida. No ano seguinte, as universidades federais brasileiras começaram a implementar a reserva de vagas, tendo o prazo de quatro anos para ofertar, no mínimo, 50% de suas vagas para estudantes vindos de escolas públicas, e, entre essas, para pessoas em vulnerabilidade socioeconômica, negros, indígenas e, depois, pessoas com deficiência.

3 As transformações recentes nos sistemas Educacionais: Políticas Universalistas no Ensino fundamental, Ações Afirmativas no Ensino Superior

As últimas décadas foram marcadas por mudanças significativas no acesso das crianças, adolescentes e jovens no sistema educacional. Entre 1993 e 2019, o percentual de crianças de 4 a 5 anos estudando passou de 22,7% para 97%; na faixa de 6 a 14 anos, passou de 86,6% para 99,7%; entre os adolescentes de 15 a 17 anos, o percentual foi de 61,9% para 89,2%; e, na faixa de jovens entre 18 e 24 anos, de 24,5% para 32,4%. Não estamos aqui analisando a adequação série-idade, apenas sublinhando a ampliação de estudantes em todas as faixas etárias, um dado amplamente divulgado na literatura no campo da educação.

Muitos fatores parecem concorrer para essa ampliação: a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nº 9.394/96 (BRASIL, 1996); as mudanças subsequentes em relação à idade obrigatória para entrada na escola; a legislação que proíbe o trabalho das crianças e adolescentes até 13 anos, sendo permitida a contratação como menor aprendiz a partir do 14 anos; os programas sociais sucessivos que estabeleceram a frequência escolar das crianças e adolescentes como condicionalidade; bem como as mudanças nos valores em relação à educação.

Podemos considerar que, no período analisado acima, a educação foi a área que mais se dedicou a oferecer respostas às demandas das crianças, adolescentes e jovens e aos novos sujeitos de direitos tais como indígenas, quilombolas, portadores de necessidades especiais, residentes em regiões fronteiriças, população migrante, hospitalizados e em situação de privação de liberdade (PICANÇO, 2015).

Ainda assim, é importante salientar que os indicadores do acesso à escola são marcados por desigualdades expressivas quando se consideram aspectos como região do país, raça ou etnia da população, ou mesmo renda e rede de ensino. A quase universalização do acesso à escola entre os adolescentes passa nos últimos 7 anos por mudanças que merecem atenção. Em 2012, 85,7% dos adolescentes de 15 a 17 anos brancos, 85,2% dos negros, 85,4% das brancas e 85,3% das negras frequentavam escola. Em 2019, os percentuais se diferenciam passando para 91%, 88,8%, 90,9% e 87,4%, respectivamente, indicando que o aumento não se deu da mesma forma para os grupos por gênero e raça.

Enquanto o Brasil experimentava a ampliação do acesso dos adolescentes na escola, o sistema de ensino superior passava por mudanças significativas com a expansão de vagas, programas de financiamento para entrada nas IES privadas e as políticas de ação afirmativa nas IES públicas.

O primeiro momento de ampliação do acesso deve ser localizado ainda no final dos anos 1990 e no começo dos anos 2000, quando houve um estímulo ao preenchimento das vagas criadas no setor privado através de algumas iniciativas. A primeira iniciativa a ser destacada foi a criação do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES), instituído em 1999 pelo Governo Federal, ainda na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso. O FIES substituiu o programa de financiamento da década de 1970, o Crédito Educativo (CREDUC), e tem como objetivo conceder financiamento a estudantes em cursos em IES privadas. A segunda iniciativa foi a criação, em 2004, do Programa Universidade para Todos (PROUNI) pelo Governo Federal, na gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva. O Prouni tem como objetivo conceder bolsas de estudos a estudantes em cursos superiores privados.

No segundo momento de expansão, o protagonismo foi das IES públicas e da Educação a Distância nas IES privadas. Nas universidades públicas, é necessário destacar a política de expansão de vagas e instituições e as políticas de ação afirmativa. A política de expansão de vagas foi marcada pela criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). Iniciado em 2007, o Reuni criou 14 novas universidades, mais de 100 novos campi, novos cursos e ampliou o número de vagas de cursos já existentes. O foco da expansão esteve voltado não apenas para a oferta de novos cursos e vagas, mas também para a interiorização do ensino superior público federal, fazendo chegar o ensino superior público federal a regiões distantes de polos metropolitanos.

A expansão do ensino superior e as políticas de inclusão somadas à ampliação ao acesso ao ensino médio foram fundamentais para a ampliação das chances de os jovens ingressarem no ensino superior e para a redução das desigualdades de gênero e raça nesse ingresso. Entre os jovens de 18 a 24 anos, as jovens brancas têm maiores chances de estar cursando o ensino superior, mas, nos anos analisados, as diferenças entre as jovens brancas e as negras diminuem, sendo, porém, ainda elevadas. Mesmo que o percentual de jovens negros estudando no ensino superior quase tenha dobrado, os brancos têm duas vezes mais chances (Tabela 1).

Tabela 1.
Jovens de 18 a 24 anos por gênero e cor, segundo o que estão estudando
Jovens de 18 a 24 anos por gênero e cor, segundo o que estão estudando
Fonte: PNAD/IBGE (2012) e PNAD-C/IBGE (2019), Tabulação própria

4 Mudanças no perfil dos estudantes no ensino superior no Brasil

Embora a expansão das matrículas de graduação tenha sido impulsionada pelas instituições privadas, as matrículas na graduação das IES públicas federais que, em 1980, somavam 316.715, tiveram ampliações graduais. Quando o REUNI é criado, em 2007, o número de matrícula totalizava 641.094. Cinco anos depois, em 2012, os matriculados eram 1.087.413; chegando, em 2019, a 1.335.254.

Matriculados no ensino superior por ano
Gráfico 1.
Matriculados no ensino superior por ano
Fonte: Censo da Educação Superior 1980 a 2018, Inep/Mec, tabulação própria

Já em relação as políticas de ação afirmativa, destacamos anteriormente que a primeira iniciativa de implementação de ação afirmativa foi nas universidades estaduais do Rio de Janeiro, seguida pela UNB, UNEB e UFBA. Ao longo da década foram dezenas de instituições públicas a adotar diferentes modalidades até a promulgação da Lei n.º 12.7111(BRASIL, 2012), em 2012, para as instituições de ensino superior federais.

Os programas e políticas voltadas para o ensino superior privado e público somados à ampliação do acesso ao ensino médio afetaram a composição econômica e racial dos universitários. Muitas pesquisas vêm consolidando tais resultados. Em geral, os estudos concluem que a expansão do ensino superior, junto com a política de Ação Afirmativa, possibilitou a ampliação do acesso de estudantes de escola pública, pretos, pardos e indígenas, pessoas com origem de menor capital socioeconômico e capital cultural (HERINGER, 2014; SENKEVICS; MELLO, 2019). Ao longo do tempo, então, observa-se que o ensino superior deixa de ser voltado para sua tradicional e restrita clientela de elite e passa a agregar parcelas de grupos que anteriormente não tinham acesso a essa modalidade.

Essas mudanças serão aqui apresentadas em linhas gerais através da análise descritiva do perfil da população de pessoas que frequentavam o ensino superior no Brasil, tendo como fonte de dados a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Anual (1993, 2003 e 2012) e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (2016 e 2019). O ano de 1993 foi o escolhido como marco zero para identificar o ano anterior à implementação do plano de estabilização econômica da presidência de Itamar Franco, no qual Fernando Henrique Cardoso era ministro. O ano de 1998 representa a consolidação da gestão do governo de Fernando Henrique Cardoso, eleito em 1994 e em 1998. O ano de 2003 é o início do mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva, quando o ensino superior experimentava as suas primeiras iniciativas de ação afirmativa e acumulava as iniciativas do Governo Federal anterior. O ano de 2012 foi escolhido por ser o anterior à implementação da Lei n. 12.711 (Lei de Cotas) (BRASIL, 2012), e os demais anos selecionados para acompanhar as mudanças ou identificar permanências após a implementação da Lei de Cotas.

As IES públicas são diversas em termos de mantenedora: Governos Federal, Estaduais ou Municipais. A rede pública de ensino tem um decréscimo de 2003 para 2008, antes do Reuni, a partir do qual há um leve crescimento, que não chega, porém, a alcançar o patamar do começo dos anos 2000. Vale dizer que a PNAD não coletava a informação sobre a rede de ensino nos anos 90, por isso não podemos comparar com o marco zero estabelecido nessa série temporal. De qualquer forma, ¼ dos universitários brasileiros estão nas instituições de ensino superior pública; os demais, nas IES privadas (Tabela 2).

Tabela 2.
Universitários segundo rede de ensino
20032008201220162019
Pública27,4%23,6%25,3%26,5%25,8%
Privada72,5%76,4%74,7%73,5%74,2%
100,0%100,0%100,0%100,0%100,0%
Fonte: PNAD/IBGE (2003 e 2008) e PNAD-C/IBGE (2012 a 2019), Tabulação própria

Décadas de medidas direcionadas à inclusão no ensino fundamental, expansão do ensino superior e promoção de inclusão e democratização no acesso ao ensino superior privado e público acabaram impactando fortemente o perfil geral do estudante universitário. O perfil racial da população universitária no Brasil mudou de forma consistente em quase três décadas. As pessoas brancas, que somavam 79,9% dos universitários em 1993, reduzem seu número para 52,5%. Os pardos ampliaram de 16,1% para 37,8% e os pretos, de 2,1% para 8,6%, tornando os negros quase 47% dos universitários. Os indígenas passam de 0,1% para 0,4%, o que termina representando uma grande ampliação para esse grupo (Tabela 3).

Tabela 3.
Universitários segundo cor/raça
199319982003201220162019
Indígena0,1%0,2%0,1%0,2%0,3%0,4%
Preta2,1%80,7%3,3%5,6%6,9%8,6%
Parda16,1%2,1%21,4%32,9%36,0%37,8%
Branca79,9%1,8%74,2%60,5%55,9%52,5%
Amarela1,8%15,2%1,0%0,8%0,9%0,7%
100,0%100,0%100,0%100,0%100,0%100,0%
Fonte: PNAD (1993 a 2003) e PNAD-C/IBGE (2012 a 2019), Tabulação própria

Se, de um lado, a rede pública tem oferecido oportunidades de ingresso para a população sub-representada no ensino superior, de outro, a rede privada tem ofertado cursos EAD a preços cada vez mais acessíveis em cursos de menor custo, sendo, portanto, a capilaridade desta rede grande. A questão é saber se o perfil racial da rede pública é diferente do da rede privada de modo que possamos identificar um possível impacto das políticas de ação afirmativa na rede pública. Por meio dos dados da Tabela 4, observa-se que a rede pública tem um pouco mais de pretos e pardos que a rede privada, numa vantagem muito pequena, o que permite sugerir que as ações afirmativas públicas concorrem com outras políticas de ingresso na rede privada, como o Prouni, e torna o perfil racial muito próximo.

Tabela 4.
Universitário por cor/raça segundo a rede de ensino
Pública20032008201220162019
Indígena0,2%0,2%0,3%0,5%0,3%
Preta3,5%5,7%6,0%7,0%9,7%
Parda28,7%30,8%35,8%38,7%38,3%
Branca66,3%62,0%56,9%52,7%50,6%
Amarela1,3%1,4%1,0%1,1%1,0%
100,0%100,0%100,0%
Privada20032008201220162019
Indígena0,1%0,1%0,1%0,2%0,4%
Preta3,2%5,1%5,5%6,8%8,2%
Parda18,6%27,1%31,9%34,4%37,0%
Branca77,2%66,7%61,6%57,7%53,8%
Amarela0,9%1,0%0,8%0,8%0,6%
100,0%100,0%100,0%
Fonte: PNAD (2003 e 2008) e PNAD-C/IBGE (2012 a 2019), Tabulação própria

Embora não possamos acompanhar os dados de renda para o período de 2015 a 2019 em função da metodologia utilizada pela PNAD Contínua, podemos identificar que o período de 1993 a 2014 foi marcado pela entrada das pessoas com rendas baixas e redução das rendas mais elevadas. Medido em faixa de renda per capita em salários mínimos, observamos que houve um crescimento significativo dos universitários de famílias mais pobres (até 1 salário mínimo) e uma drástica redução das famílias acima de 5 salários mínimos (Tabela 5).

Tabela 5.
Universitários segundo Faixa de Renda Per Capita
199319982003200820122014
s/rendimento6,4%5,9%5,3%6,2%8,2%6,2%
até ¼0,4%0,1%0,3%0,5%1,0%1,3%
+ 1/4 a 1/21,5%0,9%1,6%3,0%4,5%4,7%
+ 1/2 a 17,2%3,6%7,6%12,4%16,4%18,8%
+ 1 a 220,2%13,0%22,3%29,2%32,7%33,9%
+2 a 316,4%12,8%18,2%18,5%16,0%16,3%
+3 a 520,8%22,9%21,9%16,9%12,8%12,0%
+5 a 1018,6%25,0%16,4%10,5%6,9%5,3%
108,5%15,7%6,3%2,8%1,5%1,5%
100,0%100,0%100,0%100,0%100,0%100,0%
Fonte: PNAD/IBGE (1993 a 2014), Tabulação própria

A distribuição dos universitários segundo a faixa de renda mostra que, ao longo do tempo, os estudantes de famílias de baixa renda estão mais presentes nas duas redes de ensino, mas as IES públicas apresentam percentuais um pouco mais elevados de universitários nas faixas mais baixas de renda familiar (Tabela 6).

Tabela 6.
Universitários por Faixa de renda segundo tipo de instituição
2003200820122014
Públicas/rendimento4,8%5,6%7,6%7,1%
até 1/40,5%0,9%1,9%2,5%
+ 1/4 a 1/22,8%4,8%6,8%6,2%
+ 1/2 a 111,7%15,8%19,5%20,7%
+ 1 a 226,2%27,4%29,3%29,7%
+2 a 316,3%15,7%14,2%14,9%
+3 a 519,0%15,9%11,4%11,3%
+5 a 1012,9%11,2%7,8%5,9%
105,9%2,7%1,6%1,8%
100,0%100,0%100,0%100,0%
Privadas/rendimento5,5%6,3%8,4%5,9%
até 1/40,2%0,3%0,7%0,9%
+ 1/4 a 1/21,2%2,4%3,7%4,2%
+ 1/2 a 16,1%11,4%15,4%18,2%
+ 1 a 220,9%29,8%33,9%35,3%
+2 a 318,9%19,4%16,7%16,7%
+3 a 523,0%17,2%13,2%12,3%
+5 a 1017,7%10,4%6,6%5,1%
106,5%2,8%1,5%1,4%
100,0%100,0%100,0%100,0%
Fonte: PNAD/IBGE (2003 a 2014), Tabulação própria

As mudanças apresentadas acima mostram que, impulsionados por diferentes processos, tanto nas IES públicas quanto nas privadas houve a inclusão dos grupos raciais e de renda sub-representados no sistema de ensino superior. Enquanto nas públicas a expansão e as políticas de ação afirmativas podem ter sido decisivas; nas privadas, o PROUNI, a redução dos valores das mensalidades e o ensino a distância podem ter sido elementos fundamentais.

5 Considerações Finais

Um dos pontos fulcrais para os processos de promoção de equidade social nas sociedades contemporâneas reside no acesso à Educação. Entende-se que, neste campo, estão dadas as condições para a produção, reprodução e adensamento de capitais fundamentais para mobilidade social ascendente.

No Brasil, especificamente, a educação sempre foi apresentada como um dos principais gargalos, com nítidos processos de exclusão, seja na educação básica, seja, sobretudo, no ensino superior, no qual o acesso de grupos integrantes de estratos sociais com menos capital econômico e jovens definidos a partir de seu pertencimento étnico-racial foi ainda mais restrito.

Neste sentido, a adoção de ações afirmativas vem sendo apresentada como uma das principais estratégias para a desconstrução do padrão de reproduções de assimetrias historicamente verificado.

Ações afirmativas integram um grande processo de democratização do ensino superior que, para o caso brasileiro, foi iniciado no setor privado, a princípio pelo incentivo ao financiamento ao estudante através do FIES e, em seguida, com o PROUNI.

Subsequentemente, tais políticas ganham força entre IES públicas, quando universidades com o protagonismo da UNEB e UERJ iniciam seus processos institucionais de políticas de inclusão. Tais medidas ajudaram a ampliar os debates sobre acesso e inclusão no ensino superior e, quando conjugadas com o projeto REUNI, pavimentaram o caminho para que, mais tarde, fosse finalmente implementada a Lei de Cotas.

A adoção de tais medidas associada a um histórico de políticas públicas de massificação do ensino básico implementadas desde os anos 1990 e as recentes medidas de cotas no ensino médio foram fundamentais para transformar profundamente o campo da Educação.

No ensino superior, especificamente, um dos maiores efeitos foi a inegável expansão de matrículas de graduação, ainda que impulsionada pelas instituições privadas, associada à substancial modificação no perfil geral do estudante universitário.

Neste quadro, uma das primeiras evidências a serem ressaltadas diz respeito à ampliação do acesso de estudantes de escola pública, pretos, pardos e indígenas, pessoas com origem de menor capital socioeconômico e capital cultural; e, concomitantemente, da redução da elitização do acesso a este segmento.

Destacam-se, especialmente, as mudanças do perfil racial e de renda ao longo de três décadas. Como apresentado neste trabalho, entre 1993 e 2019, as carteiras universitárias foram transformadas: de 79,9% de universitários brancos, chegou-se, em 2019, a 52,5%. Em dimensão inversa, de 16,1% de pardos, chegou-se a 37,8%; e, entre pretos, de 2,1% para 8,6%, alcançando os negros a porcentagem de quase 47% dos universitários. Os indígenas, por sua vez, ainda que tenham passado de 0,1% para 0,4%, vivenciaram mudança significativa.

Assim, acompanhar a conjugação entre as medidas que foram estabelecidas a partir do marco zero de 1993 até os efeitos das ações afirmativas na Educação revela simultaneamente: a potencialidade das políticas de democratização do ensino superior; a efetividade de tais ações; a importância da associação entre políticas de expansão, especialmente o REUNI, e as políticas de ação afirmativas; e, por fim, permite que sejam verificados os mecanismos para sua manutenção e os caminhos para a ampliação.

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Notas

1 Como forma de compreender as possibilidades de aplicação de ações afirmativas podemos diferenciá-las como políticas (originando das diferentes esferas e instituições vinculadas ao Estado) ou iniciativas (quando organizadas e articuladas por setores da sociedade civil).

Notas de autor

1 Doutora em Sociologia (2005) pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: felicia@uol.com.br.
2 Pós-doutorado em Sociologia (2018) pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Ciência Política da Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO) – Rio de Janeiro/RJ – Brasil. E-mail: andrea.lcosta@uol.com.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): PICANÇO, F.; COSTA, A. L. Revisitando ações afirmativas. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 25, n. 1, e25118089, 2023. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n12023.18089. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/18089.

COMO CITAR (APA): Picanço, F., & Costa, A. L. (2023). Revistando ações afirmativas. Vértices (Campos dos Goitacazes), 25(1), e25118089. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n12023.18089.

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