Artigos Originais

Luis Antônio Verney e as reformas culturais portuguesas:uma questão pedagógica

Luis Antonio Verney and the Portuguese cultural reforms: a pedagogical issue

Claudia Cristina Azeredo Atallah 1
Faculdade Machado de Assis, Brasil

Luis Antônio Verney e as reformas culturais portuguesas:uma questão pedagógica

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 8, núm. 1-3, pp. 55-66, 2006

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Resumo: O processo político e cultural que se observou durante o século XVIII adquiriu características específicas, sendo impossível uma análise generalizadora. Em Portugal, as reformas que se processaram a partir do ministério pombalino vieram atender aos anseios centralizadores do marquês. Neste sentido, este artigo analisa a influência que a pedagogia do jesuíta Luís Antônio Verney exerceu neste período, em Portugal, bem como as dimensões assumidas no ambiente intelectual e tradicional da Companhia de Jesus, do qual Verney se afastaria para desenvolver suas teorias acerca do ensino.

Palavras-chave: Reformas, Iluminismo, Portugal.

Abstract: The cultural and political process observed during the 8th century presents specific characteristics which do not allow a generalized analysis. In Portugal, reforms which took place as from the Pombaline ministry met the centralized wishes of the marquis. From this perspective, this article analyses the influence the pedagogy of the Jesuit priest Luis Antônio Verney had over that period in Portugal as well as the impact it had within the intellectual and traditional circle of the Society of Jesus, which Verney left to develop his theories on teaching.

Keywords: Reforms, Age of Enlightenment, Portugal.

Um “Mundo Novo”

Muito se tem estudado sobre o século XVIII no âmbito da História de Brasil e de Portugal, principalmente no que diz respeito às transformações que se processaram no ambiente intelectual e acadêmico do reino português. Porém, ainda se faz necessária uma profunda análise em relação à interpretação dos recursos utilizados pelo governo na tentativa de promover tais mudanças sem alterar a razão de estado absolutista.

No decorrer do século XVIII, toda a conjuntura político-filosófica, então em voga, na Europa, iria sofrer abalos determinantes. Uma renovada concepção de mundo tomaria forma a partir de questionamentos relativos a questões de poder e de soberania. Tais transformações apresentaram-se demasiadamente profundas, posto que atingiriam as sociedades, encaminhando-as para movimentos que marcariam para sempre a humanidade.

Todo este contexto estaria inserido numa razão maior que seria justamente a passagem de uma visão tradicional1 do pensamento político e econômico, caracterizado principalmente pelo absolutismo monárquico, para o pensamento liberal, processo iniciado com o advento do Iluminismo e que vem influenciar as discussões sobre o liberalismo tão caro aos pensadores do século XIX.

Neste contexto, o estudo do Iluminismo e de suas dimensões torna-se essencial, na medida em que suas características assumem especificidades que vão determinar sua disseminação por todo continente europeu. De modo geral, o movimento ilustrado não subentendia a revolução, o próprio enciclopedismo não a profetizava, vinha antes legitimar as propostas filosóficas de alguns homens, que não eram anônimos, e que resolveram pôr em questão a ordem social moderna: D’Alembert, Diderot e Holbach defendiam a linhagem intelectual e nobre dos filósofos, condenando quase tudo da filosofia medieval. Portanto o que se intentou foi justamente pôr em questão a sociedade de então, principalmente no que se refere à natureza do poder real.

Encontrar fundamento para a revolução no pensamento ilustrado foi trabalho para os ideólogos revolucionários, sobretudo da época do terror. A Revolução francesa deveria, portanto, representar o início de uma nova era que vinha pôr fim a uma época de tristeza e de injustiça. Assim ficava para traz o Antigo Regime2. Destarte, foi a partir da década de 1780 que o estado revolucionário passou a integrar o ideário ilustrado, sendo difícil enxergar os filósofos da Enciclopédia da mesma forma que antes e criando uma representação para a ilustração que não fora prevista pelos seus ideólogos: o ideal de revolução3. Em contrapartida, esta razão revolucionária introduzida nos meios filosóficos a partir do acontecido francês funcionaria como inspiração para as revoluções nacionalistas ocorridas na Europa durante o século seguinte e, mais abrangentemente, estaria presente na formação do neoliberalismo que se estrutura, já no século XX, e que, apesar de duros golpes, como a ascensão de regimes autoritários, representa ainda hoje uma hegemonia política e econômica para o mundo.

Esses novos ventos abrangeriam toda a Europa, contudo não soprariam da mesma forma em todos os reinos. As questões que defendiam a laicização do pensamento e a individualidade do homem, enquanto um ser racional, adquiriram um caráter muito específico no mundo lusitano e, antes de tudo, vão substanciar reformas culturais que foram desde cedo controladas pelo governo absolutista.

E soprariam novos ventos em Portugal...

É a partir da Restauração em 1640 que Portugal vai integrar-se às primeiras reformas culturais, numa tentativa de reconstruir a dignidade nacional e de acompanhar o que se passava no resto do continente. Mais à frente, durante o reinado de D. João V (1707-1750), a nação lusa passa por novas experiências culturais, sob o comando de uma aristocracia religiosa interessada em controlar o desenvolvimento do país. A importação de artistas estrangeiros vai justamente incentivar os primeiros surtos de crescimento cultural e se tornará uma característica da ilustração lusa em todos os seus estágios. A posição deste monarca seria importante para a estruturação das concepções sobre cultura no ambiente português, já que seria a partir daí que as primeiras mudanças iriam ocorrer. O próprio D. João fazia parte da Arcádia Romana, academia literária que reúne alguns intelectuais no retorno a algumas características da cultura grecoromana4.

Em 1746 é publicado o Verdadeiro Método de estudar, de Luís Antônio Verney, um ataque voraz ao ensino ministrado em Portugal, que era dominado pelos padres inacianos. Verney, que fazia parte da Companhia de Jesus, entendia que os métodos utilizados nos colégios portugueses eram extremamente ultrapassados para a época. A primeira edição esgotou-se rapidamente e, com o aval de D. João V, os métodos de Verney iriam ser de grande importância para o futuro do ensino em Portugal e até mesmo para o ensino contemporâneo, já que representava uma ruptura com os métodos pedagógicos tradicionais.

Contudo, é durante o reinado de D. José I que algumas das propostas culturais ensaiadas anos antes são de fato experimentadas sob o comando do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal (1750-1777). Com o desejo de fortalecer a economia e de rever as instituições, Pombal assume a direção do reino português. No entanto, faz-se necessário compreender os sentidos que estas reformas adquiriram, para justamente não interpretá-las como liberais ou revolucionárias, no caminho dos acontecimentos franceses dos próximos anos. Seria uma proposta mais lenta e profunda, visando as bases institucionais políticas e sociais portuguesas.

A intenção do ministro seria, desde a sua posse, reorganizar a economia e fortalecer o Estado nacional. Para tal empreendimento, segundo o seu ponto de vista, seria necessário reforçar a razão autoritária de poder, razão mais geral que abrangia o reino português há muito, criando uma doutrina que justificaria a afirmação da autoridade do rei frente à sociedade e às instituições.

Desde o início de seu ministério preocupou-se com a organização do comércio para fortalecer a economia frente às grandes potências européias: o que Pombal desejava era diminuir a influência inglesa nos mercados lusitanos, principalmente nas colônias, fonte de lucro para a metrópole. Para isto, criou as companhias de comércio, com o objetivo de controlar tudo o que era comercializado nos domínios ultramarinos. Neste momento, os mercadores ingleses que obtinham vantagens nos litorais atlânticos, bem como os padres da Companhia de Jesus, se vêem duramente prejudicados com o rígido controle imposto e se tornaram ameaças ao projeto pombalino5: os pequenos mercadores ingleses seriam uma ameaça constante, mas os jesuítas foram expulsos de todo o território lusitano em 1759.

A ameaça que os jesuítas representavam para os projetos do marquês iria muito mais além do campo econômico. Com o objetivo de anular a influência religiosa nos meios decisórios e, ao mesmo tempo, assegurar um governo autoritário e fortalecido, conseguiu entender que os padres da Companhia exerciam um poder que transcendia o campo espiritual: que dominavam o saber e, a partir daí, apresentavam condições de controlar as instituições decisórias do poder, ameaçando as intenções de soberania real absoluta pregadas por ele.

As transformações culturais foram intensas nesse período. Pombal empreendeu uma reforma estrutural no ensino, não somente no superior; desde o início de seu ministério as escolas regulares vinham passando por alterações não só pedagógicas, mas sobretudo administrativas e isto implicava principalmente o afastamento dos padres jesuítas da liderança educacional. Neste sentido, Pombal compreendeu que deveria desestruturar toda a base teórica e filosófica utilizadas por eles, somente deste modo construiria uma razão pedagógica em sintonia com a ordem estabelecida.

A filosofia jesuítica há muito enraizada no mundo luso, significava base para qualquer ensaio pedagógico nestes domínios e adquire força durante o Quinhentos, no Concílio de Trento. A Reforma Protestante levou a igreja Católica a reformular seus dogmas, traçando diferentes caminhos para a fé apostólica, o que viria a provocar um grande avanço destas idéias, sob a orientação de dominicanos e, especialmente, dos padres da Companhia de Jesus, no que diz respeito à revisão do pensamento filosófico de Santo Tomás de Aquino. A filosofia escolástica vinha propor a adequação da lógica às discussões teológicas, baseando-se em um método dialético que pretendia ordenar os acontecimentos da natureza hierarquicamente, levando a filosofia aos meios educacionais e desorientando as propostas de caráter herético da época. Tal didática pautava-se em novas visões com relação ao estudo filosófico, já que os padres acreditavam ser preciso transformar o ensino em algo mais acessível ao estudioso, justamente com o objetivo de continuar exercendo o controle sob o campo educacional6.

O ressurgimento do aristotelismo por meio do estudo das obras de Tomás de Aquino durante o século XVI é uma característica do envolvimento dos jesuítas com a filosofia escolástica. Os padres filósofos desenvolveram a teoria moderna de Estado com bases no direito natural atacando a reforma protestante e exercendo grande influência durante o Concílio de Trento, portanto, ditando algumas bases da reforma católica.

Era, portanto, importante para os tomistas combater com voracidade as idéias protestantes, pois estas mesmas idéias “[...] perturbavam toda a proposta de fundamentar a conduta política no direito natural [...]”. Segundo elas, o homem não teria o privilégio de conhecer a natureza divina devido à sua natureza mundana e decaída, por isto mesmo estava fadado a viver miseravelmente no desconhecido, sem poder organizar a sua vida “como um reflexo da justiça divina [...]”. Toda autoridade viria diretamente de Deus, com o objetivo depurador para as imperfeições morais dos humanos7. Ficaria, assim, difícil defender qualquer tese baseada no direito natural a partir de tais concepções. A teologia tomista defendia a autonomia das causas segundas em relação ao seu criador (neste caso a causa primeira). Por isso mesmo, a natureza seria independente da graça divina, ao mesmo tempo que a humanidade estaria integrada na ordem natural e cósmica dependendo acima de tudo da associação entre os seres, necessitando-se de uma análise dos fatos da experiência humana para se poder elaborar os ditames do direito natural. A fé estaria desvinculada do poder temporal, a natureza levaria o homem à associação política, sem necessariamente passar pela forçosa ordenação divina, pois esta seria naturalmente política8.

Algumas idéias humanistas também foram condenadas pelos tomistas. Uma característica do pensamento de Erasmo foi atacada ferozmente justamente por assemelhar-se ao pensamento luterano: a idéia de um estudo das Escrituras mais próximo de todos os fiéis, o que implicaria a tradução da Bíblia para a língua nacional e a educação religiosa para os leigos. Aí, fica claro o desejo por parte dos filósofos da Segunda Escolástica em restringir o conhecimento religioso ao ciclo estreito da Igreja. Seria perigoso deixar as idéias humanistas de Erasmo virem à tona. Todavia, defendiam a compreensão da bíblia, alegando que ninguém poderia levar uma vida cristã estando fora dos preceitos divinos estudados.

Para tal seria preciso, segundo eles, a tradução das obras de Aristóteles do grego para o latim. Neste caso, quem deveria possuir o acesso aos estudos seriam os próprios padres, encarregados de transmitir aos fiéis os princípios religiosos de forma cautelosa9.

Sob esse contexto o aristotelismo foi desenvolvido, muitas vezes assumindo características próprias da época e fugindo da fidelidade aos estudos de Tomás de Aquino, desdobrando-se em variadas vertentes. Estas seriam, na verdade, as bases do direito natural moderno que viria a se desenvolver no final do século XVII, assumindo um caráter laicizado, combatendo a universitas do pensamento escolástico. Perante tal perspectiva, a filosofia de Tomas Hobbes seria o ponto de partida para um estudo mais aprofundado e independente sobre a existência humana. A partir de uma ruptura com a religião e tomando por bases alguns pontos da filosofia de Maquiavel e justamente do tomismo, vem levantar o contratualismo como base para as monarquias modernas10. Assim, o final do século XVI torna-se palco de uma discussão que tem como centro o direito natural, discussão esta que vai enfocar a liberdade do homem frente ao cosmos e a soberania da razão no discurso político. Este contexto é parte do movimento maior de alteração das concepções medievalistas que invadiram a época moderna.

No entanto, Portugal assiste ao desenvolvimento cada vez maior (isto até o Setecentos) da chamada filosofia tomista. Todo ensino ministrado então iria beber em tais fontes, influenciando o desenvolvimento cultural a partir da Restauração. Seria um panorama peculiar ao mundo ibérico que deve ser entendido como a estruturação de uma concepção pedagógica vinculada aos interesses do poder soberano e de uma aristocracia desejosa em construir bases para a implantação de novas idéias surgidas durante o século XVII e que Portugal não podia mais ignorar.

Por outro lado, a primeira metade do século XVIII foi de significativa importância no que concerne às primeiras modificações empreendidas com relação ao rumo intelectual que a nação iria então tomar. Neste sentido, algumas idéias que buscaram bases em concepções modernas foram essenciais. As primeiras propostas de mudanças para a filosofia dos jesuítas viriam à tona, principalmente no que diz respeito às discussões sobre o direito natural e a religião. Neste contexto, as idéias utilitaristas inglesas desenvolvidas ainda durante o século XVII iriam substanciar uma obra que veio justamente rever a filosofia até então instituída nos meios acadêmicos.

Verney e seu método

A obra de Verney é uma referência obrigatória para se compreender as dimensões adquiridas pelas discussões pedagógicas em Portugal setecentista, isto dentro das transformações culturais que então se processavam na Europa. Porém é preciso, antes de tudo, analisar como Verney constrói seus pensamentos e quais foram as bases críticas que utilizou para considerar a filosofia jesuítica como ultrapassada e falível, posto que ainda hoje se considera a obra desse jesuíta como revolucionária, munida de um grande teor político.

Luis Antônio Verney, membro da Companhia de Jesus, viveu quase toda a sua vida intelectual na Itália onde chegou a ser admitido na Arcádia Romana, utilizando o pseudônimo de Verenio Orgiano11. Reconhece os métodos utilizados nos colégios portugueses como sendo extremamente ultrapassados para a nova época.

O jesuíta constrói seu método com bases no sistema cultural que fundamentou as obras de John Locke, nas quais a importância dos sentidos para a elevação da inteligência humana seria fundamental, afastando as discussões políticas das esferas religiosas, legitimando uma moral de caráter utilitário e pragmático. Portanto, a pedagogia de Verney aborda antes de tudo a razão como fundamento para a construção de uma ética baseada no direito natural de Grotius, longe da metafísica, baseada no próprio comportamento humano12.

Ao assumir este tipo de abordagem tem consciência de que estava fugindo dos preceitos pregados pela Companhia, bem como da gravidade de sua postura. Para esclarecer tais atitudes, principalmente do que diz respeito à utilização de obras condenadas pela Igreja, ele se explica defendendo a linhagem erudita e intelectual destes ditos hereges, afastando toda e qualquer relação religiosa de suas propostas13.

Assim, não adota conceitos condenados pela Igreja Católica em função de uma postura radical ou de ataque, mas sobretudo por acreditar que os métodos racionais do filósofo inglês seriam úteis para a revisão da pedagogia há muito dominante na educação portuguesa.

No primeiro volume do seu trabalho Verney redige uma carta aos companheiros jesuítas, exaltando os seus métodos pedagógicos e esclarecendo as críticas que havia feito: “Que eu não acuso ou condeno pessoa alguma deste Reino, se às vezes não me agradam as opiniões, nem por isso estimo menos os sujeitos e autores.” Portanto, estas criticas se apresentavam com o intuito de se propor uma alternativa pedagógica mais sintonizada com as mudanças que estavam sendo então empreendidas. Exalta, inclusive, a “religião da Companhia de Jesus”, explicando o quanto esta se apresentou de forma fundamental para a construção de sua postura religiosa e cultural, ao mesmo tempo em que afirma ter aprendido com os autores lidos e ensinados nas escolas jesuíticas14.

Deste modo não era objetivo de Verney atacar aos jesuítas, de forma que isto viesse a provocar sua exclusão do foro pedagógico e acadêmico português. Em um trecho de seu Verdadeiro Método de Estudar o padre intelectual ressalta a presença, em Portugal, de outros grupos que ministravam o ensino, na tentativa de esclarecer que suas propostas não estavam direcionadas exclusivamente para a crítica à pedagogia dos jesuítas, afirmando que muitos outros mestres, inclusive seculares, ensinam em Portugal e que seus escritos poderiam auxiliar muitas outras pessoas15.

Não se pode negar que o ensino jesuítico se tornou seu principal alvo, posto que era o que predominava nas escolas portuguesas da época. Contudo, segundo o próprio Verney, existiam outros métodos que necessitavam de algumas modificações, tivessem eles ou não bases religiosas. Neste caso, a obra de Luís Antônio Verney desdobra-se a partir de uma crítica genuinamente pedagógica e não se pode negar que, nesse momento, Portugal já tinha conhecimento das novas idéias e a maior prova disto foi a sua aceitação por D. João V e o rápido esgotamento da primeira edição, a de 1746.

Com a instituição do ministério de Pombal, em 1750, todo o conteúdo dos escritos de Verney adquire grande importância, principalmente, no que diz respeito ao seu conteúdo pedagógico; as propostas vinham justamente de encontro ao ensino ministrado e à filosofia jesuítica que Pombal tanto desejava combater.

Em Roma, durante o reinado de D. José em Portugal, o jesuíta recebe alguma ajuda por parte do rei para a publicação de seus primeiros volumes. No entanto, após estes volumes o financiamento português foi se tornando difícil, as correspondências que mantinha com um certo fidalgo português, que em nenhum momento é identificado por Verney, foram diminuindo e, com isto, o interesse do governo por suas obras16.

Portanto, o projeto pombalino, em nenhum momento, adotou como oficial a obra de Verney e se ele a utilizou em algum momento da reforma educacional que empreendeu, foi no sentido de combater os rastros da filosofia jesuítica que há muito se enraizara em Portugal. Pombal a utilizou como utilizou obras de outros filósofos que discutiam outras questões que interessavam, principalmente, no que diz respeito às concepções acerca do direito natural, outra base para as reformas educacionais. Neste sentido, tanto quanto as obras de Verney, interessavam ao governo as obras de Pufendorf e Grotius, pensadores do século XVII que discutiram a questão do direito natural sob uma perspectiva moderna, suplantando a discussão tomista, até então dominante nos meios educacionais lusitanos.

Sobre as bases do pensamento tomista, principal suporte da pedagogia inaciana, Verney assume uma postura peculiar. Defende, desde o início de seus trabalhos, uma razão baseada nos limites da experiência e, para isto, contou, principalmente, com o pensamento de Locke, em que o caráter empírico da natureza era fundamental e a moral recebia um suporte utilitário, já que voltava-se para um processo de entendimento e origem das idéias. Neste caminho, seria natural encontrar grandes incertezas e contradições no aristotelismo. Para ele, as obras de Aristóteles eram mal interpretadas e erroneamente associadas à igreja Católica, já que tinham sido incorporadas às suas verdades e aos seus costumes e há muito assim vistas.

Tais aspectos, ainda segundo seu pensamento, fizeram com que os estudos em Portugal ficassem, por um longo período, fechados para influências externas, limitando-se aos conhecimentos dos nacionais e prejudicando o desenvolvimento científico então operante no continente17.

No apêndice a um de seus volumes, Verney fala sobre o valor da obra do padre Vieira. Diz que Vieira conformou-se com o “[...] estilo corrupto de seu século”, procurando agradar ao público com seus sermões, onde quase sempre o criticava”18. Mais especificamente, tece um comentário sobre a obra de Antônio Vieira publicada em 1718, História do Futuro, e sobre as suas idéias milenaristas, que também existiam nos meios religiosos da época e vêm influenciar projetos messiânicos principalmente no mundo luso.

A teoria do Quinto Império profetizava a vinda de um salvador que, na maioria das vezes, humanizava-se na figura do príncipe que iria transformar Portugal na terra prometida pelas Escrituras19. Para Antônio Vieira, o império temporal do Quinto Império seria personificado na figura de algum príncipe ligado à dinastia portuguesa (no princípio apontava-se D. João IV) e a Restauração anunciava os tempos de ouro para o povo português e o início da sua redenção. O fato de Vieira escrever tão bem sobre a prosperidade portuguesa está inserido no contexto de sentimento de nacionalidade frente à União Ibérica e, mais à frente, na tentativa de sobrepor ao domínio colonial todo o poder da metrópole, já que, segundo ele, todas as colônias deveriam curvar-se a El-Rei, pois, só assim estariam cumprindo os ditames da providência20.

Luís Antônio Verney exaltava as aparências de comédia da obra de Antônio Vieira, elaborada com o intuito de divertir o tempo, já que o tom messiânico e profético que assume não vem propor nenhuma análise racional. Critica-o quando utiliza somente as Escrituras para provar o que escreve, lamentando a falta de provas mais bem fundadas que viriam legitimar tal questão, já que no documento sagrado faltaria a transparência necessária para isto21.

Deste modo, para o jesuíta ilustrado, toda a discussão em torno do pensamento do padre Antônio Vieira estaria fadada ao vazio, já que não havia sido fundamentada em uma discussão lógica.

No geral, a filosofia dos jesuítas possuía um caráter tradicional e não estaria preparada para avançar no século XVIII, um século que seria marcado pelas discussões acerca da existência humana baseada na razão. Verney compreendeu tal questão e, como conhecia tão bem tudo o que era estudado pelos inacianos, resolveu buscar um conhecimento mais aprofundado na razão, que era o sentido geral da época. Tanto Vieira como os outros padres filósofos eram fruto de um contexto que remetia às discussões teológicas do século XVI que foram muito utilizadas nas matérias referentes à fé e à soberania da Igreja e até mesmo da nação lusa. Em outro sentido, os novos caminhos seguidos pela filosofia do final do Seiscentos beberam em fontes diferentes, acompanhavam as diretrizes seguidas pelo racionalismo político e pedagógico. Verney estaria aí inserido.

Neste sentido, torna-se mais clara a dimensão das idéias dos padres da Companhia de Jesus e o fato de atrapalharem as pretensões autoritárias e unificadoras do Marquês de Pombal e, mais ainda, de que modo as concepções inovadoras de Luís Antônio Verney iriam colaborar na estruturação do projeto reformador, a partir do desejo de reconstruir toda uma dinâmica com o intuito de organizar uma nova razão de Estado. Somente neste sentido se torna possível compreender os esforços em banir os inacianos dos domínios portugueses e em implantar uma ordem pedagógica laicizada e baseada em conceitos diferentes.

Pombal não adotaria a obra de Verney em sua íntegra, muito menos faria dela o exemplo de seu projeto reformador, não a tinha como modelo chefe para a reforma na Universidade de Coimbra em 1772 e não era seguidor das concepções racionais do jesuíta. Antes de tudo, tinha consciência das necessidades de transformação para o fortalecimento da nação portuguesa e de que algumas persistências culturais estariam ameaçando tais intenções, bem como alguns grupos poderosos que eram contrários às suas medidas. Neste sentido, compreendia que estava em Coimbra todo o cerne desta transformação e procurou ali estabelecer os princípios que poderiam completar suas pretensões.

Por outro lado, as intenções de Luís Antônio Verney nunca almejariam as esferas políticas ou administrativas. Ele era um jesuíta acostumado com a vida religiosa e com os estudos acadêmicos e, considerando o seu contato com a filosofia inglesa, percebeu o quanto estava defasado o ensino pedagógico português, elaborando um método voltado para as transformações que estariam por iniciar nas primeiras décadas do século XVIII.

Conclusão

Seria complexo discutir a especificidade do Antigo Regime português e das atitudes de ruptura do Marquês de Pombal sem citar a obra de Luís Antônio Verney. Isto porque a sua obra colabora para minimizar o risco de lançarmos um olhar sobre tais questões em comparações com o modelo da Europa do Norte.

É certo que as transformações ocorridas em Portugal durante o século XVIII fazem parte de toda uma conjuntura pertencente às implicações teórico-metodológicas do Iluminismo, que vêm marcar a fase inicial do capitalismo e do liberalismo. Porém, as especificidades, aqui abordadas, sublinham o quão este processo apresentou-se híbrido e possibilitou, inclusive, a identificação de algumas persistências tradicionais no âmbito de todas estas mudanças.

A obra de Verney sinalizaria para um plano de intervenção não somente no ensino português, mas também em toda uma lógica de ensino que se estruturou durante, pelo menos, dois séculos em todo o império ibérico e vem ditar novas regras para o mundo contemporâneo. Seus escritos, ainda hoje atuais, aproximam a educação das teorias utilitárias, desvalorizando a metafísica e idealizando uma razão científica nos rumos da obra de Newton e do holandês Boerhaave. Seria a desmistificação de uma pedagogia religiosa, numa tentativa de racionalização da educação22. Deste modo, poder-se-ia afirmar, com margens mínimas de erro, que à revolução mental que se descortina durante a era contemporânea vem se somar uma série de propostas que se perpetuariam como modelo para as gerações seguintes. O Verdadeiro Método de Estudar se enquadraria neste universo. Apontando mudanças de caráter didático e pedagógico, a obra iria mais além, acompanhando os rumos tomados pela filosofia e até mesmo pela política durante os próximos séculos. Até os dias de hoje, os métodos propostos pelo inaciano apresentam-se ainda como atuais e perfeitamente aplicáveis.

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Notas

1 Utilizo aqui o termo tradicional para caracterizar as discussões acerca do político e da questão do poder até, pelo menos, meados do século XVIII, quando se defendia a presença forte do Estado e o pensamento religioso assumia um caráter preponderante defendendo a supremacia do direito divino sobre a sociedade. Ver, como fonte para se compreender a evolução do pensamento moderno: SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
2 Termo que surgiu nos debates da Assembléia Constituinte Francesa, por ocasião da Revolução de 1789, a fim de se caracterizarem as instituições e o estilo de vida que se pretendia extinguir, “[...] e, portanto, inseparável da dupla que forma com a idéia francesa de Revolução, [...]” (FURET, François. Antigo Regime. In FURET, François; OZOUF, Mona (Orgs.). Dicionário Crítico da Revolução Francesa. São Paulo: Nova Fronteira, 1989).
3 DARNTON, R. O iluminismo como negócio: história da publicação da enciclopédia (1775-1800). São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
4 SALGADO JÚNIOR, Antônio. Prefácio. In: VERNEY, Luiz Antônio. Verdadeiro Método de Estudar. V. I. Lisboa: Lisboa, 1949, p. XVIII.
5 Utilizo aqui a expressão projeto pombalino com o sentido dado pelo historiador José V. Serrão, que a entende como reflexo das intenções políticas empreendidas por Pombal no sentido de revitalizar o Estado Nacional, sob o comando de “[...] um conjunto de homens e de entidades institucionais unidos numa espécie de redes de solidariedades políticas e pessoais, que tinha por centro a figura do Marquês de Pombal.” Ver: SERRÃO, José V. Sistema Político e funcionamento institucional no pombalismo. In: COSTA, F. M.; DOMINGUES, F. C.; MONTEIRO, N. G.(Orgs.). Do Antigo Regime ao Liberalismo (1750-1850). Documenta Histórica. Lisboa: Veja, 1998, p. 12.
6 SERRÃO, Joel (Org.). Dicionário da História de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1963.
7 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p. 73.
8 HESPANHA, Antônio Manuel. Panorama histórico da cultura européia. 2. ed. Fórum da História. Lisboa: Publicações EuropaAmérica, 1998.
9 SKINNER, op. cit.
10 Ibid.
11 SALGADO JÚNIOR, op. cit., p. XVIII.
12 Ibid., p. XVI/XVII.
13 VERNEY, Luis Antônio. Verdadeiro Método de Estudar. V. I. Edição organizada por Antônio Salgado Júnior, op. cit., p. 25.
14 VERNEY, op. cit., p. 17
15 Ibid.
16 SALGADO FILHO, op. cit., v. II, p. XXXIII.
17 VERNEY, op. cit., p. 16.
18 Ibid. p. 178.
19 ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: Revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Humanitas. Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 75.
20 Ibid.
21 VERNEY, op. cit., p. 183.
22 CARDOSO, Luis Miguel de B. Luís Antônio Verney e o Verdadeiro Método de Estudar: um pensamento inovador entre Portugal e Europa. Portugal: Escola Superior de Educação de Viseu. Disponível em: www.ipv.pt/millenium/miguel11.htm. Acesso em: 29 jan. 2007

Notas de autor

1 Mestre em História Política /UERJ. Professora assistente da Faculdade Machado de Assis, na cidade do Rio de Janeiro.
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