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Fome: concepção de uma cicatriz social
Hunger: conception of a social scar
Fome: concepção de uma cicatriz social
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 8, núm. 1-3, pp. 89-100, 2006
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Resumo: O presente trabalho propõe uma análise da fome enquanto fenômeno multideterminado por fatores econômicos e sociais, evidenciando suas características presentes na história da desigualdade e da pobreza. Destaca-se, nas reflexões, a alimentação como direito humano fundamental e a necessidade de conhecer e intervir na realidade das pessoas para que ocorra o reconhecimento dos mesmos enquanto sujeitos de direitos.
Palavras-chave: Fome, Desigualdade, Pobreza, Desnutrição, Alimentação.
Abstract: This article proposes an analysis of hunger as a phenomenon multidetermined by social and economical factors, emphasizing its features in the history of inequality and poverty. A major issue in this discussion is food as an essential human right and the necessity of knowing and interfering in people`s reality in order to acknowledge them as entitled to those rights.
Keywords: Hunger, Inequality, Poverty, Malnutrition, Nutrition.
Introdução
O interesse investigativo em torno do fenômeno da fome a fim de pesquisarmos, em específico, as possíveis semelhanças e diferenças entre os fenômenos da pobreza e da desnutrição serão o objeto das reflexões aqui propostas. Essa investigação resultou na construção deste artigo, no qual exploramos algumas dimensões dos fenômenos da pobreza, da desnutrição e da fome no país.
Abordaremos, assim, como o fenômeno da fome possui características distintas, e que, devido a este fato não pode ser visto apenas como sinônimo de desnutrição nem de pobreza.
Falar de fome é, sem dúvida, falar de uma questão complexa, sempre relevante, ao longo do desenvolvimento histórico do país. Igualmente complexa é uma discussão sobre a dimensão que as políticas sociais vêm assumindo, acarretando inúmeros desdobramentos para o cotidiano profissional do Serviço Social.
Assim, nosso objetivo foi construir algumas reflexões sobre o assunto proposto, visando criar novas possibilidades de enfrentamento do mesmo, sob a ótica de uma prática profissional, compromissada com políticas que atendam, realmente, à necessidade dos indivíduos que não podem ser vistos como “o bicho” tema da poesia de Manuel Bandeira, mas sim, como sujeitos de direitos que a cada dia repetem: “a gente não quer só comida”.
Compreendendo melhor o fenômeno da fome
“Desejo ou necessidade de comer; urgência de alimento [...] penúria, falta, escassez [...]” (DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA, p. 367).
“Conjunto de sensações provocadas pela privação de nutrientes [...]; a situação das populações que sofrem de insuficiência de alimentação em quantidade ou qualidade [...]; miséria, míngua de víveres” (GRANDE ENCICLOPÉDIA LAROUSSE CULTURAL, 1995, p. 2485).
Estas são algumas maneiras de definirmos a fome, o que nos leva a questionar: podemos concebê-la apenas como falta de alimento e sinônimo de pobreza?
Há uma certa dificuldade em se conceituar a fome, uma vez que se trata de um fenômeno muito complexo. Esta é, porém, uma discussão de fundamental importância, já que, como destaca Monteiro (2004), freqüentemente é realizada uma conceituação inadequada do fenômeno, equivalendo apenas à problemática da desnutrição e, também, como sinônimo da pobreza.
Esta tendência de considerar a fome como sinônimo de desnutrição ou de pobreza deve ser superada, já que estas últimas (desnutrição e pobreza), embora relacionadas à questão da fome, possuem características distintas. Maiores discussões acerca da pobreza e da desnutrição não serão nosso objetivo, mas cabe apontar algumas considerações sobre as mesmas.
Segundo Rocha (2003), a pobreza é um conceito complexo e genérico. Ela pode ser definida como a situação na qual as necessidades dos indivíduos não são atendidas adequadamente, sendo importante especificar que necessidades são estas e que nível de atendimento pode ser considerado adequado. Para a autora, a pobreza do Brasil é considerada absoluta, uma vez, que grande parte da população, não tem suas necessidades mínimas e vitais atendidas.
Para Monteiro a pobreza é “[...] condição de não satisfação das necessidades humanas elementares como comida, abrigo, vestuário, educação, assistência à saúde entre várias outras [...]” (MONTEIRO, 2004, p. 82). Destarte, a alimentação é uma dimensão humana inalienável e, a não satisfação desta, é considerada expressão da pobreza.
Em estudo recente, o Instituto da Cidadania (2001) apresentou algumas estimativas da pobreza no Brasil, tendo como base os dados obtidos pela Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios de 1999 (PNAD). Essa pesquisa mostra que, em 1999, cerca de 27,8% da população vivia abaixo da linha de pobreza no país, o que equivaleria a 44.043 milhões de pessoas.
Quanto à desnutrição, Monteiro a conceitua como uma doença que decorre “[...] do aporte alimentar insuficiente em energia e nutrientes ou, ainda, com alguma freqüência, do inadequado aproveitamento biológico dos alimentos ingeridos [...]” (MONTEIRO, 2004, p. 82).
A Organização para Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO) realizou uma pesquisa entre os anos de 1996 a 1998, em que constatou que o Brasil, nesse período, possuía 10% de subnutridos, o que equivaleria a 15,9 milhões de brasileiros e corresponderia a cerca de 30% dos subnutridos na América Latina (FAO apud INSTITUTO DA CIDADANIA, 2001).
“A desnutrição nada mais é que [...] uma manifestação do nível biológico do processo social de exploração capitalista que nega o acesso dos trabalhadores ao produto do seu trabalho” (VALENTE, 2002, p. 31).
Como podemos perceber, há uma certa causalidade entre os fenômenos fome, pobreza e desnutrição, pois apesar de possuírem características distintas estão intimamente relacionadas, sendo a fome o fenômeno que nos interessa discutir no momento.
A fome é um dos mais relevantes fenômenos que alarmam a humanidade e vem assolando o mundo há muito tempo. A partir do aumento da desigualdade entre os indivíduos, ela vem se perpetuando cada vez mais, ou seja, uma pequena parcela da sociedade enriquece às custas do empobrecimento de parcelas cada vez maiores, acarretando, paralelamente, o agravamento do quadro da fome, segundo Marilda Villela Iamamoto:
A produção capitalista não é só reprodução da relação, é sua reprodução numa escala sempre crescente, e, na mesma medida em que, com o modo de produção capitalista se desenvolve a força produtiva social de trabalho, cresce também frente ao trabalhador a riqueza acumulada, como riqueza que o domina, como capital [...] e na mesma proporção se desenvolve por oposição sua pobreza, indigência e sujeição subjetiva. (MARX apud IAMAMOTO, 2003, p. 62).
“Socialmente produzida, politicamente reproduzida, a fome reflete a dificuldade de parcelas ponderáveis das famílias trabalhadoras proverem-se das condições básicas para sua subsistência” (ACSELRAD et al., 1993, p. 28).
Josué de Castro, médico e geógrafo, foi conhecido mundialmente por negar que a fome fosse meramente uma catástrofe natural e defendia a tese que compreendia o fenômeno como “produto das estruturas econômicas defeituosas” Magalhães ao comentar a obra do autor sinaliza que:
[...] ao demarcar a fome como objeto de análise, o escritor confronta-se com uma das questões centrais da produção científica no campo: a articulação entre o biológico e o social. É transcendendo a dimensão individual e alcançando o movimento mais amplo da sociedade que Josué de Castro constrói, nos seus textos o significado do conceito da fome. (MAGALHÃES, 1997, p. 10).
Com base na afirmação deste autor, pode-se inferir que a fome não é somente um problema de escassez de alimentos, mas sim, como a pobreza, um fenômeno generalizado e estrutural, não se restringindo apenas a uma região ou país. Ela atinge o mundo inteiro, porém, em índices mais acentuados, em determinadas localidades, segundo Vieira e Mello:
A questão da fome e da segurança/insegurança alimentar passa pelo problema da incapacidade de acesso aos alimentos, que pode ir do indivíduo até a nação, seja por incapacidade de produzilos e ou adquirí-los. É um problema de dupla face, onde de lado está a disponibilidade e o custo dos alimentos, e de outro, a disponibilidade de renda para adquirí-los (salário/emprego/ desemprego). (VIEIRA; MELLO, 1997, p. 47).
Para melhor explicar os determinantes da fome, o Instituto da Cidadania (2001) elaborou a figura abaixo, que nos mostra o Círculo vicioso da fome.
Como podemos ver, a fome é um problema que advém de condições diversas e que possui determinantes estruturais. Desde a colonização, nosso país vem passando por um processo de exploração que, primeiro se deu por parte dos colonizadores e agora, perpetua-se por meio daqueles que possuem maior concentração de renda, e, portanto, é um fenômeno ligado ao processo dinâmico de acumulação de capital, segundo Valente:
A fome, a desnutrição e o analfabetismo são facetas de uma vida de miséria imposta a uma parcela significativa da população brasileira pelo processo histórico de exploração econômica imposto por um sistema colonialista e imperialista e que conta com a participação ativa das classes dominantes locais e submissas que se beneficiam com o processo. (VALENTE, 2002, p. 29).
A partir do momento em que passa a existir um contingente de pessoas que não possuem condições de satisfazerem suas necessidades fisiológicas, inicia-se o processo que os leva a atingir o seu grau máximo de incapacidade de alimentar-se. Surge, então, o fenômeno da fome, fome intensa, que é a dimensão extrema da pobreza e privação, sinônimo de desequilíbrio social, que tem causas estruturais e construção histórica.
A fome não é só efeito. Também é causa da miséria, uma vez que atrofia o corpo, reduz a capacidade de aprendizado, estreita a esperança e causa variados déficits, no futuro.
Um fator importante e que não pode ser esquecido é a visão reducionista acerca do fenômeno da fome. Adotou-se, oficialmente, um termo médico “desnutrição” para descrever o problema, como se a questão fosse mais de fundo biológico do que de política econômica, quando na verdade, a desnutrição é apenas o sinal da fome social. Uma só existe porque a outra aterroriza as civilizações, segundo Acselrad:
A fome, fato biológico entre homens que habitam um mundo potencialmente capaz de suprir as necessidades alimentares de todos os seus habitantes, é uma produção dos próprios homens. Resultante do modo de como a sociedade é organizada, a fome é reproduzida também pelos mecanismos da política-expressão das relações de poder que estabelecem entre si os diferentes atores sociais. (ACSELRAD et al., 1993, p. 28).
Analisar a fome somente sobre o aspecto reducionista biológico, abstraindo as razões pelas quais muitos não se alimentam, é afirmar que a fome não possui história, mas biologia.
Também não podemos concebê-la como conseqüência de fatores meramente climáticos como a seca, por exemplo, quando, na verdade, se a analisarmos, mais de perto teremos um mosaico de carências sociais: “Exclusão das condições de acesso à terra ou a trabalho, exclusão do usufruto dos direitos, exclusão do exercício da política - este é o círculo vicioso da produção da fome e da miséria social”1(ACSELRAD et al., 1993, p. 28).
Fome não é apenas falta de alimentação adequada para a sobrevivência física e orgânica dos indivíduos. A fome é, sobretudo, uma trama simbólica. Acabar com a fome não é só dar comida; extinguir a pobreza não é só gerar emprego. Suprir a fome, ao contrário, é incorporar os milhões de excluídos no mapa da cidadania. O direito à alimentação é direito básico à vida e ponto de partida para se discutirem os demais direitos de cada indivíduo ou grupo social em situação de precariedade. Por isso, o dever dos que detêm o poder é assegurar que o enfrentamento da fome seja entendido como um princípio universal da cidadania. Direito para saciar, mas, sobretudo, para libertar.
Vejamos como se apresentam alguns dados associados à fome no Brasil, pesquisados no ano de 2003: “[...] calcula-se que haja no Brasil cerca de 44 milhões de pessoas em estado de subnutrição, o que equivaleria a quase dez milhões de famílias. O fato é que morrem, todo ano, cerca de 180 mil crianças por subnutrição” (BETTO, 2003, p. 54).
Quase dois anos depois, a Organização das Nações Unidas (ONU) lança o mapa-mundi interativo para mostrar onde há mais fome. Nele constata que 800 milhões de pessoas no mundo enfrentam esse problema e a América Latina responde por 6,5% das pessoas que passam fome no mundo, ou seja, 54,8 milhões de pessoas. O Brasil aparece em situação considerada como moderada: de 5% a 19% de sua população enfrentam o problema (O GLOBO, 2004, p. 41).
Tendo por base esses dados, podemos questionar qual o sentido do artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que estabelece o direito da humanidade de viver em um quadro de segurança alimentar. Isto porque o fenômeno da fome é considerado, na atualidade, como expressão da insegurança alimentar, ou seja, a segurança alimentar possui importantes componentes para combatê-la. Sendo assim, cabe conceituá-la melhor.
A segurança alimentar surgiu na Europa, após a Primeira Guerra Mundial no início de século XX, como forma de enfrentamento da fome. Esse conceito está diretamente ligado ao de segurança nacional e à capacidade do país de produção da sua própria alimentação, ou seja, o país também tinha que ter capacidade de auto-suficiência na produção e formação de estoques de alimentos, como diz Valente:
Segurança Alimentar e Nutricional consiste em garantir a todos condições de acesso a alimentos básicos de qualidade em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis, contribuindo assim para uma existência digna em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana (VALENTE, 2002, p. 121).
O conceito de Segurança Alimentar ganhou espaço internacional no âmbito da VII Sessão da Conferência da FAO em novembro de 1953. Nesta conferência, promoveu-se a discussão a respeito da assistência alimentar, que mais tarde passou a ser vista como um componente da segurança alimentar (LEHMAN apud VALENTE, 2002, p. 41).
Com a crise de escassez de estoques de alimentos do ano de 1970, os países começaram a reforçar a criação e manutenção de suas reservas, perpetuando a capacidade de produção agrícola. Essa idéia foi exposta na conferência que a FAO promoveu em 1974.
A partir de 1983, o conceito de Segurança Alimentar passou por uma transformação, sendo estruturado de uma forma diferenciada, incluindo componentes de oferta estável e a garantia da qualidade dos alimentos. Essa qualidade abrangia tanto aspectos nutricionais e biológicos, quanto práticas de assistência básica à saúde e à higiene do lar.
A incorporação desses componentes ao conceito reafirmou a necessidade de redistribuição dos recursos materiais, da renda e de redução da pobreza como premissa para a segurança alimentar (VALENTE, 2002).
No final da década de 1980 e início de 1990, o conceito tornou-se mais abrangente: passou a dizer respeito à garantia de alimento seguro sem contaminação biológica ou química por meio da monitoria da qualidade do alimento de forma nutricional, sanitária e tecnológica. Também se relaciona à divulgação de informações sobre dietas balanceadas e à manutenção da cultura alimentar de cada região (SILVA apud MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003, p. 4).
No Brasil, o conceito de Segurança Alimentar foi introduzido pelo Ministério da Agricultura e enfatizava o atendimento às necessidades alimentares e à auto-suficiência nacional. Suas características relacionavam-se com as idéias expostas pela conferência da FAO de 1974.
As pesquisas do Instituto da Cidadania (2001) comprovam que, na década de 90, houve um grande progresso para a questão da Segurança Alimentar. A iniciativa ocorreu por meio do Partido dos Trabalhadores que elaborou a proposta de uma política de Segurança Alimentar, apresentada para Collor, presidente na época, o qual não demonstrou nenhum interesse. Entretanto, depois de seu “impeachment”, a proposta novamente foi apresentada e aceita.
Você tem fome de quê? Outras possibilidades
Comida
Bebida é água.
Comida é pasto.
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comer,
A gente quer comer e quer fazer amor.
A gente não quer só comer,
A gente quer prazer pra aliviar a dor.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer dinheiro e felicidade.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer inteiro e não pela metade.
Fuente: (ANTUNES; FROMER; BRITTO)
A canção do Titãs supera a visão da fome sobre seu aspecto biológico, ultrapassando também a percepção limitada do significado da comida.
Para Maciel e Menasche (2005, p. 1) a letra da música estabelece disjunção ente o ato de “só comer” e aqueles associados ao amor, ao prazer, à felicidade, à plenitude humana. A satisfação das necessidades nutricionais é condição indispensável para a sobrevivência de seres humanos. No entanto, a fome não pode ser compreendida apenas a partir de indicadores nutricionais.
O ato alimentar implica também valorização simbólica: “O homem é um onívoro que se alimenta de carne, de vegetais e de imaginário: a alimentação conduz à biologia, mas, é evidente, não se reduz a ela; o simbólico e o onírico, os signos, os mitos, os fantasmas também alimentam e concorrem nossa alimentação” (FISCHLER apud MACIEL; MINASCHE, 2005, p.1).
A comida expressa o status do indivíduo em uma sociedade, apontando, assim, para a identidade de um grupo social. Ao se pensar no indivíduo que não possui meios de garantir seu alimento, logo imaginamos as condições sobre as quais esse indivíduo vive. Ou seja, se esse indivíduo não possui o mínimo básico para sua existência é porque ele já não tem mais como suprir suas outras necessidades, quaisquer que sejam.
Vejamos o que as autoras acrescentam sobre a ampliação para além da satisfação das necessidades biológicas e emergenciais:
Na alimentação se traduz a identidade de um grupo social, no centro do debate sobre as políticas públicas voltadas para a superação da falta de comida deverá estar posta a idéia da eliminação da fome como inclusiva em uma perspectiva mais ampla que a imperativa satisfação das necessidades biológicas. Dessa forma, deve-se buscar que o combate à fome seja construtor de cidadania. (MACIEL; MINASCHE, 2005, p.4).
Para negar que somente a satisfação das necessidades biológicas é capaz de suprir a carência do indivíduo, recorreremos mais uma vez à canção dos Titãs que nos diz:
A gente não quer só comida,
A gente quer comida, diversão e arte.
A gente não quer só comida,
A gente quer saída para qualquer parte.
A gente não quer só comida,
A gente não quer só comida,
A gente quer bebida, diversão balé.
A gente quer a vida como a vida quer.
Você tem fome de que?
Nós, enquanto assistentes sociais, temos fome de justiça. Fome de um país mais igualitário, fome de uma melhor distribuição de renda, fome de emprego, de educação, de saúde, de uma paisagem sem pedintes, fome de direitos sociais. Só com esta fome poderemos exercer nossa profissionalidade. Nosso fazer profissional é um importante passo na garantia dos direitos sociais de nossos usuários, isso porque, como diz Magalhães:
Sem a presença de partidos políticos fortes e instituições representativas da sociedade civil capazes de encaminhar demandas mais amplas, a política social não foi capaz de forjar projetos consistentes em direção à equidade. Pelo contrário, historicamente, o clientelismo e a competição por privilégios no âmbito das políticas públicas obstacularizaram a conquista de níveis aceitáveis de justiça social. A privatização da lógica estatal e o baixo nível de responsabilização social foram associadas à condução seletiva e particularista das ações, construindo um fosso, um verdadeiro abísmo entre os trabalhadores dos setores formais e mais dinâmicos da economia e o restante da sociedade. (MAGALHÃES, 2002, p. 3).
Na busca de maior eqüidade, e conseqüentemente, da efetivação dos direitos sociais, teremos que exigir medidas mais amplas e mais eficazes. Para isso, é necessário conhecer, de fato, o fenômeno da fome: suas causas e seus possíveis desdobramentos.
Josué de Castro em seu livro Geografia da fome aponta que “[...] um dos mais graves erros de nossa civilização é sem dúvida, este de termos deixado centenas de milhões de indivíduos morrendo à fome em um mundo com capacidade quase infinita de aumento de sua produção, dispondo de recursos técnicos adequados à realização desse cumento (sic!)” (CASTRO, 1948, p. 17).
Se temos meios de solucionar o problema, por que não o fazemos? O autor também apresenta o que seria um dos grandes obstáculos que acaba impedindo o planejamento das soluções, segundo Castro:
Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao problema de alimentação dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de manifestações simultâneamente biológicas, econômicas e sociais. A maior parte dos estudos científicos sobre o assunto se limita a um de seus aspectos parciais, projetando uma visão unilateral do problema. (CASTRO, 1948, p.18).
Como apontamos durante o trabalho, o fenômeno da fome é extremamente complexo. Portanto não será um único programa social que dará conta de garantir a Segurança Alimentar para todo o país.
Para Monteiro (2003, p. 18) ações governamentais de combate à pobreza deveriam ter máxima prioridade no país e devem perseguir, essencialmente, o aumento da renda dos mais pobres. Ações que resultem em maior crescimento econômico, com melhor distribuição de renda e que levem à reativação da economia, à criação de empregos e ao aprofundamento da reforma agrária são vistas como soluções consensuais para o aumento de renda dos mais pobres do país.
Trazendo essas reflexões para a prática, percebemos que as ações realizadas para combater a fome não possuem nenhuma articulação com os demais programas existentes. Outra dificuldade é a falta do olhar interdisciplinar sobre a fome. Profissionais de diversas áreas poderiam estar contribuindo para que se efetivasse o direito humano à alimentação. Desta forma o programa acaba por focalizar a fome apenas sob aspecto biológico, não contribuindo para que os sujeitos possam adquirir meios de garantir por si próprios seu sustento.
Considerações finais
Como exposto neste trabalho, o fenômeno da fome apresenta diferenças entre os fenômenos da pobreza e da desnutrição e, dada sua complexidade e amplitude, é de difícil conceituação e aferição nas condições em que se apresenta em nosso país.
Parte do problema decorre da própria dificuldade de conceituação. Os conceitos em que se baseiam as estimativas sobre a fome são muito restritos e não revelam a complexidade e amplitude do fenômeno da fome no país.
O fato de o fenômeno, hoje, ser considerado como expressão mais nefasta do estado de insegurança alimentar contribui para entendê-lo de uma forma mais ampla e tratá-lo dentro de uma concepção de Segurança Alimentar, que preconiza o direito à alimentação, assim como a superação da dicotomia entre o econômico e o social e entre medidas estruturais e emergenciais.
O histórico da trajetória das políticas de combate à fome no Brasil que antecederam o Programa Fome Zero revelou que, mesmo a concepção de Segurança Alimentar tendo ampliado a noção de fome, responsabilizando o Estado frente à insegurança alimentar, o fenômeno ainda não foi tratado com a amplitude que merece, sendo enfrentado pelo Estado, sobretudo, por meio de políticas compensatórias e fragmentadas.
Foi possível identificar que, nos dois primeiros anos de implementação do Programa Fome Zero, houve avanços na compreensão e forma de enfrentar o problema. Entretanto, pode-se perceber, também, que o programa tem se restringido quase exclusivamente ao processo de execuções de ações específicas e emergenciais, relegando a um segundo plano as ações estruturais como, por exemplo, programas de reforma agrária e de geração de emprego e renda.
Contudo, nenhum programa homogêneo leva em consideração que a fome é sentida e expressada por diferentes sujeitos em seus contextos sociais específicos, não atingindo o sujeito concreto, o ser humano genérico, único e singular, até mesmo no que se refere às suas necessidades de sobrevivência.
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Notas
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