Artigos Originais

Existência e linguagem em “Vidas Secas”: uma hermenêutica filosófica da obra de Graciliano Ramos

Existence and language in “Barren Lives” a philosophical hermeneutics of the work of Graciliano Ramos

Avelino Ferreira 1
Brasil

Existência e linguagem em “Vidas Secas”: uma hermenêutica filosófica da obra de Graciliano Ramos

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 10, núm. 1-3, pp. 7-23, 2008

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Resumo: O presente trabalho é um discurso sobre o não-dito em Vidas Secas, romance de Graciliano Ramos de 1938, hoje na 93ª edição. A pretensão é uma hermenêutica da obra. Como base para fundamentar o olhar hermenêutico, nosso dizer tem como pilares as falas dos filósofos Gadamer, Merleau-Ponty, Heidegger e Nietzsche e comentadores como Santiago Kovadloff, Ernildo Stein, Danilo Marcondes, entre outros. Deixamos claro que a intenção é apelar à razão para falar da des-razão, do vazio, de um silêncio primordial, da condição humana, tendo como pano de fundo a secura das vidas secas do escritor alagoano.

Palavras-chave: Linguagem, Sentido, Vidas Secas, Condição humana, Filosofia.

Abstract: The present study is about the not-said in “Barren Lives”, a novel by Graciliano Ramos (1938), now in its 93rd edition. The aim is a hermeneutic study of the work fundamented and enlightened by the concepts of philosophers such as Gadamer, Merleau-Ponty, Heidegger and Nietzche; and commentators as Santiago Kovadloff, Ernildo Stein, Danilo Marcondes, among others. Our intention is to appeal to reasoning to analyze the lack of reason, the reasoning emptiness, a primary critical silence due to the human condition having as background the bareness found in the novel by this remarkable writer from Alagoas.

Keywords: Language, Sens, Barren Lives, Human Condition, Philosophy.

Introdução



Ao filósofo cabe fazer a fusão do horizonte de mundo da obra com o horizonte de mundo do leitor. A filosofia tenta resolver a tensão entre o horizonte do texto e o horizonte do leitor. A compreensão de um texto tende a integrar o leitor no que diz o texto.

Fuente: Hanz Georg Gadamer (2002b, p. 405)

Sabemos que uma obra de arte tornada pública não é mais de seu autor. Ela tem vida própria, o que permite um diálogo entre a obra e o observador/leitor. Ela, tendo um mundo próprio, diz algo para além do que pensava seu criador. A obra de arte possui um dinamismo inerente de tal forma que configura e reconfigura vivências. No caso, de Vidas Secas, não cabe aqui analisar a literatura de Graciliano Ramos, mas sim dialogar com o romance, com suas personagens que, uma vez criadas, ganharam vida própria, liberdade. Por isso, este trabalho não se atém à análise literária de Graciliano Ramos; a pretensão é fazer a hermenêutica do mundo de sua obra no que tange ao não-dito, a saber, a voz do silêncio das personagens, o que não está dito explicitamente por elas, pelo narrador e, por detrás da criação, pelo autor.

Efetivamente as personagens de Vidas Secas expressaram pensamentos, em uma linguagem incomum, originária, radical, que merece ser pesquisada e compreendida. Uma voz que tem consciência de que ignora, que deveria saber; mas que só em alguma medida encontra meios para dizer o que sente. E é mesmo essa ignorância que nos interessa neste trabalho. Com efeito, é correto dizer que o drama da família de retirantes não consiste apenas na tortura provocada pela seca e pela pobreza financeira. Questões como essas estão afeitas à esfera das ciências, de interpretações sociológicas e de críticas literárias já tão exaustivamente bem feitas pelos que detêm tais saberes. Para além da dor causada pela aridez da terra e pela desigualdade social, há a dor e o sentimento de frustração causados pela secura de linguagem para expressar o que sentem.

Para falar sobre essa angústia, a secura dessas vidas secas, da existência crua das personagens e do vazio da obra de Graciliano Ramos, é imperativo que recorramos à filosofia. O leitor está convidado a ingressar na aridez de um discurso que pode ser mais seco que a seca do sertão onde Graciliano situa suas personagens. E constatará que a vida (não só a vida das personagens sobre as quais discursaremos) é seca de sentido, seca porque ser-aí (o Dasein heideggeriano) é uma condição humana. A vida é seca porque o ser humano está lançado no mundo. Um mundo de conflitos, de caos que precisa de ordenamento para que a existência tenha sentido. Um sentido nunca dado, mas sempre buscado pois, diferentemente dos outros entes, o homem, sendo um in-adaptado, vivencia o incômodo de tornar habitável o ambiente, enquanto os animais, ao contrário, adaptam-se ao ambiente. Seria cômodo, então, ser bicho e adaptar-se perfeitamente. Mas neste caso, não se trata de uma escolha. O ser humano, por mais que deseje ou tente ser bicho, será sempre humano. Esta é a origem do martírio de Fabiano, Sinhá Vitória, filho maior e filho menor. Estão eles no mesmo patamar da cadela Baleia, um membro da família cujos grunhidos se equivalem às falas dos seus parentes humanos; todavia, Baleia é um bicho, está-no-mundo (está-aí), não é um ser-aí e dela não se pode falar em condição humana. Fabiano, por mais que pense ser um bicho, jamais o será. Ele e sua família são humanos, têm linguagem. Arriscamos dizer, uma linguagem originária. O que nos interessa, fundamentalmente, não é a linguagem da fala articulada, verbalizada, a linguagem dizível, mas, antes, a fala primordial, aquela que está no não-dito, que está velada pelo expressado em linguagem simbólica, pela fala.

Fabiano sabe que não é um bicho. Ele, sua mulher e filhos sabem que não são bichos. São Humanos. Bichos humanos responsáveis por seus atos e que não encontram solução para as questões cruciais como a que responderia qual o sentido de suas vidas. Resposta que jamais terão.

Secas não são apenas as vidas de Fabiano, Sinhá Vitória, filho mais velho e filho mais novo, mas todas as vidas humanas. Seres que se distanciaram da natureza mas que são frutos dela. Não estão-aí como o papagaio que mataram e comeram ou a cadela Baleia que era quase gente ou, ainda, as reses famélicas. Sim, Fabiano e sua família não são natureza, antes, são na natureza e sofrem por se saberem humanos nos quais a pulsão de vida leva-os a prosseguir. Não é apenas um instinto de sobrevivência que os fazem projetar o futuro e seguir em frente. É a condição humana tão bem exemplificada por Albert Camus em O mito de Sísifo, pois viver é empurrar uma pedra até o cimo de montanha. Sempre. Ou, como no dito popular, “matar um leão a cada dia”. As vidas de Vidas Secas são secas porque secas são todas as vidas. Fabiano e sua família estão prenhes de mundo, mas inadaptados. Precisam compreender o mundo, interpretar o que diz o mundo ao qual estão implicados.

A obra de Graciliano está prenhe de vazio; vazio ao qual se remete o leitor, que é arrebatado pelas vidas secas porque com elas se identifica de alguma maneira. Para consubstanciar esse novo olhar sobre uma obra tão bem analisada por críticos literários de renome como Oto Maria Carpeaux, Álvaro Lins e Antônio Cândido, recorro aos filósofos contemporâneos como Heidegger, Merleau-Ponty, Gadamer. Parafreaseando Eric Weil em seu Filosofia Política, conto com a benevolência do leitor que, por certo, não mais lerá Vidas Secas como (apenas) um romance sobre uma família de retirantes fugindo da seca nordestina. Saberá o benevolente leitor que Graciliano Ramos fala, no seu não-dizer, da miséria humana enquanto condição e não da miséria sócio-econômico-cultural como está no seu dito.

Identificação entre a obra e o leitor



Uma parte de mim
É só vertigem:
Outra parte,
Linguagem.
Traduzir uma parte
Na outra parte
que é uma questão
de vida e morte –
será arte?

Fuente: Traduzir-se Ferreira Gullar

Quando formulamos a proposta de analisarmos parte da obra do escritor alagoano Graciliano Ramos, principalmente o não-dito das personagens de seu romance Vidas Secas, é porque acreditamos que o silêncio promove uma identificação entre obra de arte e espectador (no caso específico, Vidas Secas e o leitor do romance); ou melhor, a voz que emana do silêncio das personagens nos diz muito, até porque nosso interesse em Vidas Secas consiste justamente no fato de que nessa obra as personagens quase não falam e, quando o fazem, não conseguem se expressar como desejam. Há um mar de coisas a dizer, mas apenas um córrego raso, quase seco em meio a tórrida caatinga é expressado, muitas vezes sem o nexo necessário, enquanto forma lógica da linguagem gramatical, para o entendimento do outro, tornando-se também fator importante para a angústia do protagonista do romance. Com efeito, a falta de signos lingüísticos capazes de expressar o que se passa em suas cabeças as fazem sentir-se como bichos, como qualquer animal de suas convivências. Aliás, a personagem central, Fabiano, diz sentir-se melhor entre os bichos que entre os humanos, com os quais não se entende, creditando o desentendimento à falta de conhecimentos lingüísticos que lhe permitissem a fala, possibilitando um diálogo compreensível e satisfatório.

Porém, o que nos interessa é captar o sentido do que não é dito pelas personagens. O que está justamente no silêncio de cada uma delas. Silêncio que, como co-autores, como intérpretes da obra, penetramos e buscamos significá-lo a partir de nosso entendimento. Para nós, o silêncio de suas personagens não é apenas a falta do que dizer por não saberem o que dizer. Para além da dificuldade de expressar o que sentem em palavras, o que está em causa é a condição humana, a nudez angustiante do ser humano que, sem os símbolos lingüísticos que iludem, criando significados para o mundo e as coisas do mundo, que explicam mas não dizem do essencial - os signos lingüísticos que expressamos significam o que queremos significar, mas não dizem o que é o mundo – sentem um vazio indefinível. Acredita Fabiano que, se soubesse se expressar, resolveria o problema/motivo de sua angústia. Mas a fala, que permite explicações, não dá conta do problema principal que é o sentido das suas vidas. Com efeito, falantes ou não falantes, como as personagens de Vidas Secas, estão na mesma ignorância de mundo e buscam um sentido para a existência. Sentido que não está no que é dito. Por outro lado, estaria no não-dito, no silêncio?

Aqui nos deparamos com um problema aparentemente insolúvel, pois como discorrer sobre o silêncio de quem não possui uma fala articulada, sendo, evidentemente (acreditamos), um silêncio que não gera pensamentos coerentes com a formalidade da linguagem simbólica, gramatical, com nexo necessário ao entendimento de quem pensa? Mas, no nosso entendimento, o silêncio é o porto seguro de Fabiano, o protagonista da obra. Na verdade, a fala é que é a perturbação, o lugar da insegurança e, por este motivo, ele se silencia. E este seu silêncio é perturbador para o espectador. De outro modo: enquanto o silêncio é apaziguador para Fabiano, pois ele se entende bem com a linguagem do mundo, é, por outro lado, perturbador para o leitor, afeito à certeza do discurso científico. O leitor, por certo (e, obviamente, mais cômodo) gostaria de que tudo lhe fosse explicado, dissecado, exposto; mas sente-se incomodado com o vazio, com o nada que o autor, Graciliano, lhe dá. Não entende ele, num primeiro momento, que esse vazio está prenhe, está cheio de mundo. Já Fabiano, embora admire o bom falante, admire quem sabe se expressar bem, se sente incomodado com o mundo da fala, do dito, do discurso que, muitas vezes, é enganador. Os falantes lhe propõem um jogo do qual ele não quer fazer parte porque não sabe/não quer jogar. Seu mundo é outro, mais original; é cru, como ele próprio. O “mundo dos humanos”, da linguagem artificial, verbalizada, é encantador, mas perigoso. As palavras dão outro sentido às coisas, tornam complexo o que é simples. Gadamer nos fala da “palavra interior”, o que lembra Santo Agostinho:

Segundo Agostinho, a universalidade da hermenêutica estaria situada na “palavra interior”, no “falar” da alma consigo mesma, na gestação das idéias que se dá no íntimo da mente humana, pois a fala que se exterioriza fica sempre aquém da palavra interior a ser expressa. Por isso, só se entende realmente o que é falado, quando se recupera a linguagem interior que espreita atrás dela (GRONDIN, 1999, p. 12). falante, admire quem sabe se expressar bem, se sente incomodado com o mundo da fala, do dito, do discurso que, muitas vezes, é enganador. Os falantes lhe propõem um jogo do qual ele não quer fazer parte porque não sabe/não quer jogar. Seu mundo é outro, mais original; é cru, como ele próprio. O “mundo dos humanos”, da linguagem artificial, verbalizada, é encantador, mas perigoso. As palavras dão outro sentido às coisas, tornam complexo o que é simples. Gadamer nos fala da “palavra interior”, o que lembra Santo Agostinho:

Segundo Agostinho, a universalidade da hermenêutica estaria situada na “palavra interior”, no “falar” da alma consigo mesma, na gestação das idéias que se dá no íntimo da mente humana, pois a fala que se exterioriza fica sempre aquém da palavra interior a ser expressa. Por isso, só se entende realmente o que é falado, quando se recupera a linguagem interior que espreita atrás dela (GRONDIN, 1999, p. 12).

Definitivamente, Fabiano não se relaciona bem com os humanos. Prefere viver com os bichos. O que perturba e angustia o protagonista de Vidas Secas é a compreensão dele próprio como ser deslocado e ferido por uma realidade, um mundo que diz muito, mas é um dizer que Fabiano não apreende ou, pelo menos, da maneira como gostaria. Por isso admira a mulher, Sinhá Vitória, pois a linguagem do mundo não é um problema para ela.

Observando a natureza, as plantas, animais, ruídos, Fabiano parece buscar essa apreensão da linguagem do mundo que o cerca. Por isso mesmo, talvez caiba aqui uma analogia com o silêncio da epifania, o silêncio auto-sugerido, o silêncio monástico auto-obrigado de Kovadloff (O silêncio primordial, 2003) pois aquele silêncio também não é fruto de uma trama verbal (embora sua referência seja de personagens dotados de linguagem, o que os diferenciam do silêncio dos confinados de Vidas Secas). Fabiano, diferentemente do apóstolo Mateus (citado por Kovadloff analisando um quadro de Rembrandt) em seu silêncio reflexivo, não recebe mensagem de nenhum anjo. A personagem central de Vidas Secas também, em seu silêncio, não recebe a inspiração da musa, como o poeta. Poderia se objetar que o poema não obedece, necessariamente, à linguagem oclusiva, habitual, prescindente (para continuar citando Kovadloff). Todavia, mesmo para poetar sem a prática da linguagem usual, faz-se necessário conhecê-la, ao menos o necessário para que o poeta formule seu dizer. Não é o caso de Fabiano ou das demais personagens que com ele compartilham as vidas secas, já que eles emitem grunhidos, onomatopéias e palavras cujo nexo não alcança o entendimento intelectivo do interlocutor. Fabiano existe, simplesmente. E não seria esse o destino de todos os homens, existir simplesmente? Um ser jogado no mundo, lançado no mundo, um mundo que já existe e no qual o homem se faz a partir de escolhas que é obrigado a fazer, pois está condenado a ser livre, na definição de Sartre?

É o mesmo Kovadloff que diz que o silêncio que o interessa “não pode ser alcançado”, mas pode ele “levar em consideração a conduta de quem foi subjugado por esse silêncio maior. Posso avaliar sua atitude” (KOVADLOFF, 2003, p. 10). Refere-se ao silêncio primordial, o silêncio extremo que jamais será objeto. É como que uma fala interior do sujeito para o sujeito. Mas uma fala que não diz e nem é traduzível em palavras, em símbolos e signos lingüísticos dos quais o silêncio de que fala Kovadloff prescinde. O silêncio da epifania ou o silêncio da musa inspirou sim, o autor, Graciliano Ramos, a escrever uma obra de arte que é Vidas Secas. Nela, o silêncio é um grito estonteante, uma fala primordial traduzida por sua poética. Ele próprio o diz, na carta que escreveu à sua mulher, Heloísa Ramos (que estava em Alagoas quando ele, Graciliano, se encontrava no Rio, num quarto de hotel). Num determinado trecho, escreve:

[...] no fundo todos somos como a minha cachorra Baleia e esperamos preás. É a quarta história feita aqui da pensão. Nenhuma delas tem movimento, há indivíduos parados. Tento saber o que eles têm por dentro. Quando se trata de bípedes, nem por isso, embora certos bípedes sejam ocos; mas estudar o interior duma cachorra é realmente uma dificuldade quase tão grande quanto sondar o espírito dum literato alagoano. Referindo-me a animais de dois pés, jogo com as mãos deles, com os ouvidos, com os olhos. Agora é diferente. O mundo exterior revela-se à minha Baleia por intermédio do olfato, e eu sou um bicho de péssimo faro [...] (Posfácio de Marilene Felinto para Vidas Secas, 2003, p. 129-130).

Com propriedade Marilene Felinto discorre sobre a obra de Graciliano Ramos tendo como referência a carta do escritor à sua esposa e a falta de linguagem das personagens que “[...] empreendem uma conflituosa busca por uma linguagem, como uma criança que precisa aprender a falar” (Posfácio de Marilene Felinto para Vidas Secas, 2003, p. 133). E é ela que cita Merleau-Ponty:

O artista lança sua obra como o homem lançou a primeira pedra, sem saber se passará de um grito, se será capaz de destacar-se do fluxo de vida individual onde nasce e presentificar a existência de um sentido identificável no presente ou no futuro (MERLEAU-PONTY, 1980 apud FELINTO, 2003, p. 133).

É evidente que o contato com os bichos e a experiência das personagens poderiam propiciar, como de fato ocorre, outras linguagens que não a fala, o uso da linguagem como a concebemos. Gadamer diz, acertadamente:

É verdade que nossa experiência de mundo não se produz apenas no aprendizado da fala e nos exercícios de linguagem. Existem experiências de mundo que são anteriores à linguagem [...] existe a linguagem dos gestos, das fisionomias, dos acenos, que nos unem, o riso e o choro (GADAMER, 1993, p. 240).

Com efeito, essa linguagem articulada, verbalizada, sonora, lógica, formal, está na esfera do dito, do expressado simbolicamente e não necessariamente diz o mundo. Gadamer compreendeu bem as experiências da linguagem não verbalizada e, ao discorrer sobre Homem e linguagem (Verdade e Método II, p. 173) expõe, com propriedade, o significado que damos à linguagem quando nos referimos à experiência de mundo das personagens de Vidas Secas:

[...] em todo saber de nós mesmos e em todo saber do mundo, encontramo-nos sempre já pegos pela língua que é própria a nós. Nós crescemos, aprendemos a conhecer o mundo, aprendemos a conhecer os homens e ao fim, a nós mesmos, na medida em que aprendemos a falar. Aprender a falar não significa ser iniciado no uso de um instrumento já existente para a designação do mundo a nós íntimo e conhecido, mas significa ganhar a intimidade e o conhecimento do próprio mundo e do como ele nos vem ao encontro (GADAMER, 1993, p. 117).

Um exemplo do que acreditamos compreender das sábias palavras de Gadamer podemos encontrar em Vidas Secas, quando a mulher de Fabiano, Sinhá Vitória, olha para um bando de aves no céu e diz que elas, as aves de arribação, matam o gado já maltratado pela seca. Fabiano ouve a leitura que a esposa faz dessa linguagem do mundo e, calado, passa a observar as aves, matutando, sem conseguir decifrar o que para ele é um enigma. Horas depois, ao ver as aves bebendo a pouca água de um depósito, num estalo, entende o que disse a mulher. Sorri de alegria e satisfação por ter compreendido a metáfora. As milhares de aves rumo ao Sul bebem a água e o gado, em conseqüência, morre sedento. Fala consigo mesmo da admiração que sente pela mulher, por sua inteligência. E sente-se um homem feliz por tê-la como esposa e companheira e, claro, gostaria de ler e compreender (o mundo) como Sinhá Vitória.

É com um mundo de pouca fala, de pouco dizer das suas criaturas, que Graciliano Ramos costura sua obra de arte. Ele coloca suas personagens em situação tal que os gestos, o choro, o olhar são falares que muito dizem sem que ele mesmo, como autor, discorra sobre esse dizer no texto. O próprio título - Vidas Secas - não revela apenas a aridez da terra esturricada pelo sol escaldante, mas sim, a própria condição humana, vazia de sentido. Sentido que todos os seres humanos buscam mas que, verdadeiramente, não encontram, segundo Ruiz:

A tentativa de aproximação ao ser humano está perpassada sempre por um sentimento complexo em que se imbricam a impotência de explicar quem ele é e a necessidade de buscar sentido para sua existência. Não é possível realizar uma definição do ser humano, já que toda definição denota uma clausura de sentido. (RUIZ, 2003, p. 53).

Ou ainda:

[...] Qualquer conhecimento do mundo implica uma construção de sentido. As coisas não se apresentam para ele de forma imediata, natural ou objetiva. Ele as recria por meio de sentido, transformando-as de elementos insignificantes em objetos carregados de significação cultural. O mundo do ser humano é sempre um sentido do mundo [...] (RUIZ, 2003, p. 59).

Na busca de sentido, os artifícios da linguagem enganam e Graciliano captou bem essa ilusão ao despir suas personagens de fala e cujas vidas são tão secas quanto a vida dos letrados. Não é seca a vida dos dotados de linguagem Luis da Silva (Angústia) e Paulo Honório (São Bernardo)? Não foi seca a vida de seu Tomás da Bolandeira, personagem admirada e sempre lembrada por Fabiano? Mesmo sendo homem de linguagem, que sabia “falar difícil” fugiu da seca (ou das amarras daquele mundo que o impediam de realizar-se?) abandonando tudo; ao lembrar-se dele, Fabiano diz para si mesmo: “um homem tão direito sumir-se como cambembe”. Mesmo um iletrado como Fabiano compreende que o sentido não está na fala. Ela não explica o ser, que não se revela na palavra. Ao contrário, como foi dito acima, a linguagem falada vela o ser, enclausura-o, pois essa linguagem é a da oclusão. Heidegger propõe outro paradigma para a linguagem, reduzida pela ciência: a hermenêutica do Dasein ou do “eis-aí-ser como ser no mundo” (OLIVEIRA, 2001, p. 207). Para Heidegger, Da (aí) sein (ser) significa “aí onde o ser reside”, sendo “onde” como o aí da morada do ser. Dasein não é o homem, mas um relacionamento com o ser que o homem adquire e que pode perder (INWOOD, 2002, p. 29).

O mundo fere Fabiano, um ser-no-mundo, um Dasein, segundo Heidegger, cuja filosofia da existência tematiza o homem a partir de um mundo, o que faz com que ele, como ser-aí (Dasein) seja determinado e forçado a construir-se. Só há mundo e idéia de mundo porque existe o homem como ser-aí, como pré-sença, como ser des-velado. Sim, porque o homem, como Da-sein, como ser-aí, é fundamentalmente existência; existência que é “o modode ser de Dasein e não o fato de que ele é” (INWOOD, 2002, p. 58). Ele, o Dasein, é responsável pelo seu “ser-como e não por seu ser-o-que” (Ibidem). Existência que se articula no mundo mediado pela linguagem. “Nosso ser-no-mundo é, portanto, sempre lingüisticamente mediado, de tal maneira que é por meio da linguagem que ocorre a manifestação dos entes a nós” (OLIVEIRA, 2001, p. 206). Citando Humboldt, para quem toda linguagem é uma visão de mundo, Manfredo Oliveira diz que a “[...] linguagem só é linguagem na medida em que nela o mundo se apresenta. A mundaneidade originária da linguagem significa igualmente a lingüicidade originária do ser-no-mundo: ter mundo significa relacionar-se com o mundo” (OLIVEIRA, 2001, p. 237). A linguagem não é simplesmente um instrumento, pois ela está em nós que somos sua morada e é ela que propicia o desvelamento do ser. E é nesse sentido que Manfredo Oliveira situa a linguagem:

A linguagem é um dizer, dizer no sentido original da palavra, isto é, mostrar, deixar aparecer, ver, ouvir. A linguagem deixa aparecer o ser como sentido; ela é, por isso, a casa do ser. Se o ser emerge enquanto linguagem, a linguagem é o caminho necessário de nosso encontro com o mundo, já que é o sentido que funda e instaura todo o sentido (OLIVEIRA, 2001, p. 215).

Portanto, se existe um sentido, este não está na existência, está na linguagem, “sentido que instaura o sentido”. Mas ela, a linguagem, embora nos permita a compreensão do mundo, a revelação dos entes, não revela o sentido do ente que somos nós quando, ao mesmo tempo, somos ser ou a essência desse ente. Por isso mesmo não há linguagem que explique e dê um sentido ao ser-no-mundo, ao ser-aí.

A tentativa de aproximação ao ser humano está perpassada sempre por um sentimento complexo em que se imbricam a impotência de explicar quem ele é e a necessidade de buscar sentido para sua existência. Não é possível realizar uma definição do ser humano, já que toda definição denota uma clausura de sentido. (RUIZ, 2003, p. 53).

A Obra



Resistir, à sombra
a ferida aberta no ar.
Resistir-por-ninguém-e-por-nada.
Irreconhecido,
para ti
somente.
Com tudo o que aí tem lugar,
mesmo sem
linguagem.

Fuente: Quem sou eu, quem és tu Paul Celan

Diferentemente de Antônio Cândido, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins e tantos outros críticos literários que, na esfera de uma interpretação não filosófica, fizeram a crítica da obra de Graciliano com muita propriedade do ponto de vista do narrador e das pretensões literárias do autor, queremos nos ater ao não-texto de Vidas Secas, àquilo que diríamos (ou, simplesmente, dizemos) como co-autores. E é nessa condição, privilegiada por sinal, que vemos a secura das vidas criadas por Graciliano Ramos como in-adaptação do homem ao mundo. Para nós, o silêncio das personagens diz muito e apreendemos (sentimos, também) a angústia, a aflição de Fabiano por não saber dizer o que deseja dizer. O mundo das gentes de fala verbalizada é assustador para Fabiano. Cala-se diante de seus interlocutores porque não sabe expressar o que sente. Quando tentou falar, foi mal interpretado, surrado e preso. Foge de gente, evita qualquer diálogo e só fica à vontade entre os bichos. Sente admiração pela mulher, Sinhá Vitória, pois esta entende o mundo que os cerca, consegue até fazer contas de adição e subtração. Fabiano parece idealizar que, se soubesse se expressar, não estaria naquela situação de miséria, pois se sentiria bem no mundo da linguagem articulada verbalmente, como a de “seu Tomás da Bolandeira” já que poderia se entender com os outros, não seria enganado pelo patrão nem tomaria surra de um soldado de polícia.

Fabiano sabe, por outro lado, que as palavras são perigosas. Tem consciência que o mundo é muito maior que o que percebe, mas não sabe ou não pode transpor as fronteiras de seu mundo, cujo horizonte situa-se no plano em que a vista alcança. O curto espaço que lhe é imposto pelo autor visa caracterizar uma realidade dada, geograficamente especificada. Mas a arte de Graciliano em Vidas Secas consiste no fato de que, mesmo que a realidade mude, sua ficção permanecerá atual, pois, como Zola e Dostoievsky, o valor maior de sua obra reside na subjetividade, no drama da existência humana. E esta não é limitada por espaço-tempo.

Segundo Yves, “a estética realista insistiu na importância das categorias de espaço e tempo” (REUTER, 2002) com os autores apresentando suas narrativas como se fossem elas “pedaços de vida”, extraídas de “histórias pessoais”, pertencentes ao nosso “universo”. Com efeito, em Graciliano essa estética está presente. Melhor, faz parte da construção de toda sua obra (Angústia, Caetés, São Bernardo, Vidas Secas etc.). O leitor é convidado a entrar em seu mundo, é arrebatado por ele. De fato, o leitor faz parte dele, sente o drama das personagens, se vê ali, de alguma maneira, pois também está jogado ali, faz parte do jogo proposto (intencionalmente?) pelo autor, compartilha as alegrias e tristezas das personagens, sofre com suas aflições.

Mas, para além da história, do enunciado, do texto, há um outro universo a ser explorado, há a enunciação, o não-texto, o não-dito. E só a reflexão filosófica pode dar conta desse vazio que arrebata, que causa uma espécie de vertigem no leitor que consegue ler o que não está dito. Tomado pelo vazio, o leitor se identifica com a obra. Ao ler o vazio de Vidas Secas somos tomados por algo que, mesmo não sendo definível em palavras, ressignifica nosso horizonte de mundo. A identidade entre o nada da obra e nada do leitor causa a ressignificação de sua vida. Esse algo que arrebata o leitor é impossível de ser recusado. Ele é tomado por esse algo que está por detrás do que a obra explicita. O leitor sabe, por intuição, que existe um universo na obra no qual ele constrói seu próprio texto, dialogando com o texto lido, participando daquele universo que está no não-dito. Este diálogo entre a obra e o leitor, em Vidas Secas, é fundamental para que façamos da aflição das personagens nossa própria aflição ante a realidade (e aí já não afeita apenas ao que é dito pelo narrador, mas qualquer realidade na qual estejamos inseridos). Sim, porque menos do que o autor nos diz do que o que não é dito nos revela. Des-velar o que está velado pelo silêncio, pelo não-dito, eis o nosso papel como co-autores, como dialogantes da narrativa, como intérpretes da obra. É, inclusive, o que nos sugere Álvaro Lins, ao dizer que cabe ao leitor “compreender e sentir o que está além das palavras e dos episódios” (LINS in Vidas Secas, p. 148). Não no sentido de preencher esses vazios nem ir em busca da intenção do autor ou de uma suposta justificativa para a vacância da obra. E sim para a possibilidade de dar forma, fazer aparecer, pela mediação do reflexivo, um espaço que “nos dá o que pensar”.

“Você é um bicho, Fabiano”, murmurava Fabiano. Tornando-se vaqueiro, Fabiano parecia o próprio animal ao qual grudava-se, confundia-se com ele. “Você é um bicho, Baleia”, dizia Fabiano para a cadela Baleia, quando esta o acariciava. Era um membro da família. Fabiano sentia-se bem entre os bichos. Na presença dos homens, encolhia-se, julgava-se um nada. Mas Fabiano é um homem, não um bicho. No dizer de Theodor Litt:

O homem é uma totalidade destotalizante, pois se tende a unir-se ao mundo, este o rejeita. A consciência torna o mundo objeto. Se o homem pudesse se despossuir e integrar-se ao mundo, não seria ele o que é, seria uma coisa entre coisas (LITT apud BORHEIM, 1998, p. 44).

Ou ainda, como ensina Rilke:

O fato de não poder distanciar-se do meio que o cerca, de não poder reconhecê-lo como heterogêneo e de não lhe ser possível, em consequência, adotar um comportamento indicativo, constitui precisamente o abismo que separa o animal do homem, abismo que se impõe como um fato irrefutável. O animal apenas age. O homem age e sabe que age (RILKE apud BORHEIM, 1998, p. 41).

O narrador diz que Fabiano emitia sons em tom de exclamações, onomatopéias. Falava pouco e admirava as palavras compridas e difíceis do pessoal da cidade. Às vezes, tentava reproduzir algumas, mas em vão. Sabia, no entanto, que elas eram ‘inúteis e perigosas’. Desejava dar ensinamentos aos dois filhos, mas não sabia como e se angustiava. Pensava entender-se com a mulher sobre a educação dos filhos, pois eles estavam “perguntadores, insuportáveis”. Mas, afinal, ele, Fabiano, também não era assim, não apoquentava os pais com perguntas que, lembrava-se, nunca tiveram respostas? Também ele, Fabiano, não recebera uns cocorotes? Mas Fabiano angustiava-se com a própria ignorância. “Tinha o direito de saber? Tinha?” Perguntava-se e respondia: “não tinha”. Se aprendesse qualquer coisa – pensava – necessitaria aprender mais e mais e nunca ficaria satisfeito. Saber para quê? Que sentido teria o saber para um bicho como ele?

Fabiano sonhava. Um dia iria correr mundo, conhecer outras terras, gente importante. Mas como, se vivia ali escondido como tatu? Porém tinha que sair dali. Um dia, “quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito”, livre dos perigos, iria se estabelecer, os meninos poderiam estudar e perguntar o que quisessem, encher-se de caprichos”. Mas espantava tais pensamentos com a sentença: “agora tinham de comportar-se como gente da laia deles”. Mesmo assim, estava disposto a conversar com Sinhá Vitória sobre a educação dos meninos. Está constatada, em diversas passagens da ficção, a aflição de Fabiano quanto à questão do saber/não-saber. Sabe que a linguagem verbalizada, gramatical, é fundamental mas, paradoxalmente, não se vê numa relação com ela. Porém, definitivamente Fabiano não é nem nunca será um bicho.

Graciliano, ao criar o narrador que conta a história dessas vidas secas, pretendia, ao nosso ver, passar essa angústia ao leitor. E consegue, com o relato do drama humano, universal, através de personagens que mal se expressam. Aliás, a figura central da obra não aparece: é o narrador. Este fala, expõe, conduz a história e se comunica com o leitor, que se sente personagem. E, como também é co-autor, o leitor interpreta aquele mundo e sente de acordo com suas convicções, sua educação, sua cultura. Marilena Felinto acredita que o leitor possa se apiedar de tais seres sofredores, injustiçados, pois ele, o leitor, possuidor dos códigos da linguagem simbólica, pensa saber da existência humana, já que expressa o que sente e, porque sabe, encontra soluções para o sofrimento das personagens. Contudo, a linguagem simbólica mascara a verdade. Ela remete ao “silêncio da oclusão”, no dizer de Kovadloff, para quem:

As palavras da prescindência procuram constantemente uma brecha: a brecha que frustra a homologação entre realidade e significado. A freqüente adesão, quase sempre generalizada, que elas suscitam não se explica a não ser pelo íntimo imperativo que satisfazem. Elas sustentam a ilusão de que no compreensível esgota-se a ordem de tudo que tem sentido. As palavras da prescindência confundem, obstinadas, o que podem fazer com o que querem fazer [...] (KOVADLOFF, 2003, p. 22).

O leitor acredita que sabe e que, portanto, escapou do sofrimento das personagens das quais se apieda. Porém, o silêncio dos protagonistas de Vidas Secas é o silêncio do leitor e de todos que, com o recurso da linguagem, velam o que há para além do que podemos enunciar e também a angústia causada pelo vazio de vidas sem sentido, ou cujo sentido, se houver, é o de estar jogado no mundo com a certeza da finitude. Fabiano não sabe disso, ele sente. Repete a todo momento que é um bicho talvez tentando convencer-se que, sendo bicho, estaria ligado à natureza e não se importaria com seu destino. Sua angústia vem de sua certeza de que não é um bicho e, como ser humano, busca, peregrinando, restaurar o equilíbrio natural perdido sem saber, como no dizer de Castor Ruiz, “[...] que esse equilíbrio natural jamais poderá ser reconstituído do mesmo modo” (RUIZ, 2003, p. 62). É-lhe impossível retornar à condição de animal. E nisto reside a fratura da qual nos fala Castor Ruiz, fratura aberta entre o ser humano e o mundo e que jamais será religada. O máximo que poderá conseguir em sua caminhada de retorno a si mesmo é construir pontes (sentidos) para ligá-los às coisas. Ou, de outro modo, “[...] soldar essa fratura entre ele e o mundo, entre sua consciência e o outro, sem que nunca chegue a suturá-la plenamente” (RUIZ, 2003, p. 62). Isso porque o mundo lhe nega o acesso à junção plena. O mundo “[...] se lhe opõe como alteridade inalienável que frustra as fugazes experiências de integração prazenteira” (RUIZ, 2003, p. 62). Desligado da natureza por uma fissura abissal, o homem é forçado a ser livre. Ser livre não é uma escolha; é, antes, uma imposição antropológica e existencial, motivo maior de sua angústia. Para tentar fugir dela, refugia-se afirmando um sentido para as coisas. Mas as soluções racionais que parece encontrar para explicar o mundo e seu papel nele não satisfazem. Não raro é tomado por um sentimento de impotência. O homem, distanciado do mundo, sabe-se inserido nele. E é nesse paradoxo que vive, sabendo-se mortal, tendo plena consciência que lhe espera o abraço da morte.

Mas as personagens de Vidas Secas são bichos humanos. Quando a família mata o papagaio de estimação para comer, quando ninguém suportava mais tanta fome, o fato não foi repudiado pelo narrador e, obviamente, pelo autor, porque estavam todos na condição de bicho e, neste caso, eliminar o outro é natural. Não é uma ação boa ou ruim. Até a cadela Baleia comeu os restos do papagaio. Os mais fortes sobrevivendo devorando os mais fracos. Havia outra saída? O mesmo Graciliano não perdoa Luis da Silva, personagem principal de Angústia que, em dado momento, diz: “um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo. Afinal, já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos”. Paulo Honório, em dado momento, conclui, ao final de suas memórias: “a verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que me deram lucro”. Mas o que têm em comum essas duas personagens marcantes (que, à primeira vista, são tão distintas das personagens de Vidas Secas), com Fabiano? O que há em comum e que une todos os homens é a condição humana, é a crueza da vida. É um ser finito que tem consciência de sua finitude e que se depara com um mundo ao qual está inserido mas que não tem sentido, a não ser o que lhe é dado por ele próprio, pelo homem. Talvez por isso Álvaro Lins constate que Vidas Secas “é o mais comovente e o mais humano” dos livros de Graciliano.

Sim, Vidas Secas é uma obra otimista. O otimismo talvez se encontre no fato de que uma expressão de mundo só possa, verdadeiramente, nascer da carne, da dor, do sofrimento, da boca seca e, ao mesmo tempo, desejosa. Frente a esse mundo, a única linguagem legítima é o silêncio, o balbucio, as onomatopéias e a solidariedade/solicitude. Otimista porque, sem os conceitos que produziram o homem letrado atual, infeliz, estressado e sem perspectiva, as personagens cruas, rudes (o sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos), ainda podem criar um mundo melhor (elas acreditam numa terra promissora e para ela são tangenciadas devido a impossibilidade de continuar onde estão). Às letradas personagens de outras obras de Graciliano não há saída. Mas às rudes personagens de Vidas Secas ainda resta a possibilidade de um mundo novo.

Com efeito, há esperança num mundo novo por parte de Fabiano e Sinhá Vitória. Mas que mundo novo se os retirantes encontrarão (talvez) em outro lugar a ciência e a técnica que nos fizeram, a nós letrados, como somos? Nosso dizer está impregnado de verdades fabricadas por nós ou que nos foram legadas e que, a rigor, nos transformaram no que somos: seres angustiados, em busca de uma simplicidade que não queremos de fato, em busca de uma “igualdade na diversidade” que não passa de retórica. Enfim, em busca de uma utopia que nos atrai ao mesmo tempo que nos repugna. Não, definitivamente, não é este mundo novo que Fabiano e sua família desejam. Na verdade, o novo é o devir, é o vir-a-ser, movimento originário que faz com que estejamos sempre em busca de (algo). Conseqüentemente, insatisfeitos ou inadaptados.

Graciliano Ramos é um mestre quando se trata de despir o ser humano de todas as máscaras que a cultura letrada lhe proporcionou. Por isso mesmo não podemos discordar de Álvaro Lins quando tece elogios à Vidas Secas, o único romance do autor cujas personagens apenas são, existem simplesmente, sem cultura letrada e, portanto, sem máscaras, pois o vazio da não-fala desmascara. Mas se é um problema para as personagens a falta de linguagem letrada, não o é para o leitor, contagiado pela pureza de sentimento daquelas vidas, às quais imagina compreender a partir do não-dito, do que não é expressado em linguagem simbólica. A identificação entre o leitor e Vidas Secas ocorre entre as lacunas da sua compreensão e o não-dito da obra. Todavia, o leitor, como intérprete e co-autor da obra, se por um lado é capaz de compreender aqueles sertanejos a partir da fala do narrador, por outro não é capaz de decifrar os pensamentos das personagens. Como elas, as personagens, ele é tocado por aquele mundo, no qual as palavras podem provocar sua oclusão, podem velá-lo. Poderia o leitor conjecturar sobre os pensamentos das personagens, mas dificilmente, ou melhor, parece-nos impossível que consiga decifrá-los, apesar de reconhecermos que uma “linguagem do silêncio” para ser expressiva e nos tocar precisa patrocinar índices textuais e lógicos ao longo da obra, reconhecível por qualquer falante médio da língua. O leitor, como ser de linguagem verbalizada (caso contrário, não seria um leitor, um intérprete, um co-autor) não estaria, jamais, na mesma condição de possibilidade de entendimento das personagens para supor, o mais próximo possível, o que seria o pensamento delas. Poderia discorrer sobre o não-dito a partir de sua própria cultura, de seu próprio entendimento, porém, seria pisar em terreno desconhecido, o qual o próprio Graciliano talvez não ousasse querer revelar. Mas poderá o leitor, isto sim, ser tocado pela obra e conseguir enxergar seu próprio vazio no vazio do mundo da obra e, com isso, com essa identificação, ressignificar seu próprio mundo.

Com efeito, a obra de arte ressignifica o sentido das pessoas e, por isso, deve estar aberta ao mundo, ao outro. Mas, para além da obra e do artista, seu autor, existe o que nos interessa que é o mundo da obra. É a obra enquanto lugar que fala, sujeito que fala. E ela só fala intersubjetivamente, com o “outro”. O que toca o espectador/leitor da obra de arte não é o que ele vê e, com base nas ciências, descreve. O que o toca é o silêncio, o vazio, o não-lugar. A obra, como nós, está cheia de nada, em geral (ela e nós) velada pelas palavras, pelo dito, pelas análises e explicações que a descrevem, dissecam, explicam. Mas o que fere o leitor/ouvinte/espectador é o nada, do qual a obra está cheia e que faz-nos re-conhecermo-nos, identificarmo-nos com o seu vazio.

Conclusão

O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. O que há de grande no homem é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso.

Friedrich Nietzsche (1989, p. 31)

Como está exposto no escopo deste trabalho, nossa pretensão foi decifrar o não-dito a partir do que nos diz o silêncio das personagens em Vidas Secas. O que não está dito explicitamente pelo narrador. Se nosso objetivo não foi alcançado, pelo menos acreditamos ter aberto uma janela para outras interpretações da obra, até agora situadas no campo do que é dito. A nós, interessou o silêncio, as onomatopéias, os ruídos, as vozes do mundo. Exemplo dessa experiência de mundo, dessa leitura das vozes do mundo, foi dado quando Sinhá Vitória viu as aves de arribação no céu e disse que elas matavam o gado. Fabiano, depois de muito pensar e de se perguntar como as aves tão pequenas poderiam matar o gado, compreendeu o que dissera a mulher e riu e admirou-a mais ainda: “as arribações bebiam a água, o gado curtia sede e morria. Muito bem, as arribações matavam o gado”.

Fabiano, enfim, entendia Sinhá Vitória que, por sua vez, entendia o mundo, a linguagem do mundo que sabia decifrar e, por isso, Fabiano a admirava: “sim, senhor, tinha (Sinhá Vitória) idéias, tinha muita coisa no miolo”. E Sinhá Vitória é prenhe de mundo ao qual parece compreender e, diferentemente de Fabiano, não está inadaptada, embora sua adaptação, como ser humano que é, jamais será completa. Como exemplo de incômodo, de motivo de angústia, Graciliano interpõe entre ela e o mundo, metaforicamente, os calombos das varas do forro de sua cama que a incomoda permanentemente. E seu sonho é adquirir um forro de couro para a cama, sobre o qual poderá dormir tranqüila, perfeitamente adaptada. Mas o autor não permite que ela obtenha o forro, justamente porque os calombos no velho forro é o que nos diz que Sinhá Vitória, embora prenhe de mundo não está-aí como bicho, mas é um ser-aí, um humano que sente o mundo ao qual pertence, mas do qual está distanciado e consciente de que jamais será a ele religado. Por mais adaptada que esteja ao mundo, algo a incomoda. Sempre a incomodará. A metáfora do calombo no forro da cama de Sinhá Vitória significando o elo perdido (e que jamais será achado) do homem com a natureza traduz bem esse incômodo. Por isso, por essa impossível religação ao mundo, o homem jamais estará plenamente adaptado, como entendeu Gerd Borheim, ao dizer que: “Por estar o homem distanciado da natureza, embora ela esteja nele e ele nela, pode-se afirmar que a vida humana é como que atingida por uma inadaptação profunda” (BORHEIM, 1998, p. 44).

Outra metáfora o Graciliano Ramos dá ao leitor, quando começa e termina o romance com uma caminhada. Não há o ponto de onde vieram Fabiano, Sinhá Vitória e os dois filhos, nem há um ponto de chegada. Há uma identificação de Fabiano com a corda estendida (a corda do malabarista do Zaratustra). Queremos crer que Fabiano é a própria corda estendida, tensionada. Não importa muito o início dela, menos ainda seu final. O que importa é o meio, o processo, o constante caminhar. Já para Sinhá Vitória, que está sobre a corda, esta é apenas uma passagem, pois ela espera chegar ao outro lado, a um porto seguro, com seus dois filhos, cujo futuro, pensa, está em suas mãos e nas mãos de seu marido. Sinhá Vitória sente a tensão de Fabiano, mas acredita pisar em terreno firme, “confia” em Fabiano.

Rezas de Sinhá Vitória e impropérios de Fabiano não mudam a realidade. O que fazer? Ficar ali, num mundo que não satisfazia, mas que eles conheciam ou prosseguir, rumando para o desconhecido? Seres inadaptados que, a exemplo do malabarista de Nietzsche, sabiam que o destinoera prosseguir, andar na corda bamba com a perspectiva sombria de que, a qualquer momento, poderiam cair e se despedaçarem. Não importava o começo nem o final da corda pois, mesmo atingido, o final seria um começo. Novamente lembramos de Camus e o mito de Sísifo, cujo destino é carregar uma pesada pedra. Esta é a vida, um re-começar. Sempre. Até que a morte cumpra seu papel e venha lembrar aos que ficam que somos finitos. Mas até esse momento, o que fazer? Voltar ao porto seguro que um dia conheceram? No caso das personagens de Vidas Secas, a casinha protegida pela bolandeira de seu Tomás. Mas aquela vida não valia a pena, concluíram. Restava então, como fizeram até ali, continuar. Haveriam de achar morada. Sinhá Vitória sonhava com um mundo melhor, “se agarrava a fantasias. Coitada”, pensava consigo Fabiano que também precisava acreditar. Afinal, conquanto só conhecesse aquele pedacinho insignificante de mundo, sabia que “o mundo é grande”. E, como as aves de arribação, trilhavam o caminho do Sul. A diferença é que as aves, como bichos, vivem na certeza e seu rumo é determinado. Já Fabiano e sua família são obrigados a escolher e, qualquer que seja a escolha, a única certeza é a de que estarão sempre na corda-bamba.

Referências

BORNHEIM, Gerd. Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais. 9. ed. São Paulo: Globo, 1998.

CÂNDIDO, Antônio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34, 1999.

CARONE, Modesto. A poética do silêncio, João Cabral de Melo Neto e Paul Celan. São Paulo: Perspectiva, 1979.

CARPEAUX, Otto Maria. Visão de Graciliano Ramos. Disponível em: www.olavodecarvalho.org/textos/carp4.num. Acesso em: 25 abr. 2004.

FELINTO, Marilene. Posfácio. In: RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 89. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 129-139.

GADAMER, Hanz Georg. Verdade e Método II. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002b.

GADAMER, Hanz Georg. Verdade e Método I. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002a.

GADAMER, Hanz Georg. Quem sou eu, quem és tu? Rio de Janeiro: Eduerj, 2005.

GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 1999.

HAAR, Michel. A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.

INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

KOVADLOFF, Santiago. O silêncio primordial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

LINS, Álvaro. Valores e misérias das vidas secas. Posfácio à 93ª edição. de Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2004.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

NUNES, Benedito. No tempo do niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1993.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 93. ed. Rio de Janeiro. Record, 2004.

REUTER, Yves. A análise da narrativa. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.

RUIZ, Castor Bartolomé. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 2003.

STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

Notas de autor

1 Jornalista. Pós-graduando em Ensino de Filosofia. Graduando em Filosofia.
HTML generado a partir de XML-JATS4R por