Artigos Originais

Escolas públicas?: o difícil acesso ao ensino de qualidade no Brasil

Public Schools?: the difficult access to quality education in Brazil

Jennifer Perroni 1
Brasil
André Brandão 2
Universidade Federal Fluminense, Brasil

Escolas públicas?: o difícil acesso ao ensino de qualidade no Brasil

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 10, núm. 1-3, pp. 73-90, 2008

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Resumo: A desigualdade educacional atinge níveis alarmantes no Brasil. No ensino superior, é notório que instituições públicas apresentam difícil acesso para a parcela economicamente mais vulnerável da população. O presente trabalho pretende demonstrar, através de uma pesquisa empírica, que essa desigualdade também ocorre no acesso a instituições públicas de ensino fundamental e médio que se destacam pela excelência ou pela tradição. Nossa investigação se volta para o concurso realizado pelo Colégio Pedro II no início do ano de 2007 e tem, como pano de fundo, o Censo Educacional 2006 e os resultados do vestibular da UFF para o ano de 2005.

Palavras-chave: Seleção, Exclusão, Desigualdade educacional.

Abstract: Educational inequality reaches alarming levels in Brazil. In higher education, it is widely known that it is difficult for the most economically vulnerable portion of the population to be admitted in public educational institutions. This paper aims at demonstrating, through empirical research, that this inequality is also found in admission processes carried out by prominent public institutions of primary and secondary education. Our investigation focuses on admission examinations held by Colégio Pedro II in early 2007, and is also based on data from the Educational Census 2006 and results of the UFF entrance examination for the 2005 school year.

Keywords: Selection, Exclusion, Educational inequality.

Introdução

O presente trabalho pretende se debruçar sobre a desigualdade no acesso a intuições públicas de ensino. Partimos de dois pressupostos iniciais: primeiramente compreendemos que, embora gratuitas, algumas instituições apresentam um caráter muito seletivo de acesso que acaba recrutando em grande maioria aqueles melhor situados no espaço social. Com isso queremos dizer que, os processos de seleção tendem, potencialmente, a reforçar padrões sócio-econômicos, o que é particularmente verdadeiro nas instituições de ensino superior ou mesmo nos colégios de ensino regular que ao se notabilizarem, se tornam excludentes para as camadas mais vulneráveis da população.

Outro pressuposto fundamental é que, desigualdades materiais objetivas resultam não apenas em diferenças de oportunidade, como vão muito mais além e repercutem em práticas, disposições e representações que norteiam as ações individuais de forma a realimentar as causas estruturais dessa desigualdade. Nesse sentido, mesmo em um concurso público para uma instituição de ensino de excelência – a população mais pobre não apenas tem menor possibilidade de sucesso, como também menor incidência na tentativa de acesso.

Neste trabalho, voltamos nosso foco de análise para o concurso de seleção de novos alunos realizado pelo Colégio Pedro II (CPII), tradicional no Estado do Rio de Janeiro que, quando de sua criação (em 1837) estava destinado não apenas a se tornar um modelo de ensino para as demais instituições presentes no território nacional como também deveria servir como um, segundo Oliveira:

[...] instrumento capaz de transmitir valores e de formar o cidadão. Desta maneira, a instituição secundária teria o importante papel de fornecedora de homens capazes de compor a burocracia do Estado, que seria a base de sustentação do Império garantindo tanto a expansão da classe senhorial, quanto à do próprio Estado (OLIVEIRA, 1997, p. 24).

De fato, a análise da história do colégio revela que muitos dos alunos e professores foram personagens de destaque na política, na academia e nas artes. Se pretendêssemos elaborar uma lista com esses nomes de certo teríamos que dedicar um considerável número de páginas deste trabalho apenas para este fim. No entanto, para melhor ilustrar a história institucional (e correndo risco de sermos sucintos em nossa exposição) é possível mencionar nomes como os de Antônio Gonçalves Dias, Euclides da Cunha e Aurélio Buarque de Holanda que fizeram parte do corpo docente, enquanto que Washington Luis, Nilo Peçanha, e Oswaldo de Andrade são exemplos de alguns ex-alunos.

Ainda que tenha passado por inúmeras reformas educacionais e períodos em que a evasão dos alunos colocou em xeque a própria existência do colégio (OLIVEIRA, 1997, s. p.) o fato é que ainda hoje o CPII assume “[...] a incumbência de ser uma referência para a aplicação das políticas propostas pelo MEC na contemporaneidade” (ANDRADE, 1999, p. 81).

Essa história tão peculiar do Colégio Pedro II, na verdade faz com que, embora esteja garantido seu caráter gratuito, uma vez que pertence ao âmbito federal, se diferencie das demais instituições da educação básica. A análise do processo seletivo para novos alunos realizado no ano de 2007 reafirma ainda hoje o caráter socialmente excludente do acesso ao mesmo.

Nosso intento, no presente trabalho é contribuir para os estudos acerca das desigualdades presentes no sistema educacional brasileiro. De maneira mais específica, procuramos evidenciar as diferenças no acesso a instituições públicas de ensino, em especial naquelas que se notabilizam pelo ensino de qualidade, o que foi feito através da análise do processo seletivo realizado pelo colégio Pedro II, onde buscamos destacar: a) a sutil eliminação dos mais pobres já presente no edital do concurso; b) a desigualdade na proporção de inscritos entre alunos oriundos dos sistemas público e particular de ensino; c) a discrepância observada nos resultados nas duas etapas do processo a partir da instituição de origem dos alunos e; d) os resultados e a distribuição final das vagas.

Para alcançar os objetivos pretendidos tratamos, inicialmente da coleta e sistematização dos dados, que foram obtidos a partir do endereço eletrônico oficial do mencionado colégio. Assim, montamos um banco de dados onde constam as matrículas dos alunos, rede de ensino de procedência e as referidas notas obtidas em cada etapa do processo seletivo. As médias e as conclusões quanto à distribuição das vagas ao final da seleção foram calculadas com base nas indicações presentes no Edital, também disponível no referido endereço.

Além dessas informações, utilizamos como pano de fundo das análises, os dados estatísticos disponibilizados pelo Censo Educacional de 2006 e Sinopse do Ensino Superior referente ao ano de 2005. Ambos disponibilizados no endereço eletrônico do Ministério da Educação.

Assim, nossa intenção foi possibilitar uma leitura comparativa entre os dados encontrados no processo de seleção do referido colégio e aqueles referentes ao sistema educacional que opera nas áreas urbanas do Brasil.

O processo seletivo e a exclusão a priori

Nos primeiros dias do ano de 2006 o Pedro II divulgou o edital com as normas e os procedimentos para o preenchimento de 210 vagas oferecidas para a Unidade Escolar Descentralizada de Niterói. Segundo o edital, a distribuição das vagas se daria da seguinte forma: 50% (cinqüenta por cento) seriam destinadas ao Grupo I, composto por alunos oriundos da rede pública de ensino, enquanto que os 50% restantes seriam preenchidos por candidatos do Grupo II, que compreendia os alunos da rede particular.

Essa aparente democracia na distribuição do número de vagas já se constitui, por si só, em um objeto de reflexão, uma vez que não é comum que colégios públicos delimitem vagas para alunos da rede particular. Na verdade, essa especificidade é resultante da própria história da instituição mencionada anteriormente. Assim, embora o Pedro II não seja uma instituição privada, essa particularidade histórica o diferencia dos demais colégios da rede pública.

É importante ressaltar que, de acordo com o Censo Escolar de 2006 o Estado do Rio de Janeiro possui em sua área urbana 2.284.048 alunos inscritos no Ensino Fundamental, sendo que, deste universo, 80,36% se encontram na rede pública e o restante (19,64%) se encontrava na rede privada. A aparente democracia na distribuição do número de vagas para o Colégio Pedro II, na verdade se mostra muito pouco justa quando consideramos o universo acima mencionado. De fato, essa injustiça será ainda mais reforçada quando analisarmos o processo seletivo e a distribuição final das vagas. Assim, o oferecimento de vagas para ser equânime deveria reservar a proporção de 80% para alunos da rede pública e apenas 20% para alunos do ensino particular. Ainda assim, a proporção de 50% para cada segmento é melhor do que a inexistência de reserva – o que provavelmente levaria a uma situação de 100% das vagas ocupadas por egressos da rede privada. É preciso compreender essa divisão do número de vagas como uma tentativa de garantir o acesso dos alunos da rede pública à instituição, uma vez que reconhecendo a desigualdade educacional entre os sistemas público e privado, este segmento dificilmente conseguiria acessá-la.

Vejamos agora alguns elementos importantes para a compreensão do processo seletivo. Quanto à idade dos candidatos, o edital definia que:

Poderão candidatar-se às vagas da 1ª série do Ensino Médio no curso diurno (1º turno) os candidatos com data de nascimento a partir de 1º de janeiro de 1990 (inclusive) e que tenham concluído a 8ª série do Ensino Fundamental há, no máximo, 2 (dois) anos. (EDITAL n. 01/ 2006, Art. 5º).

Assim, um candidato poderia apresentar, no máximo dezesseis anos, quando da realização do concurso. Se pensarmos um indivíduo que, seguindo rigorosamente todos os anos de estudo no tempo previsto, conclui o Ensino Fundamental com quatorze anos, veremos que tal exigência elimina do rol de candidatos uma significativa parcela de alunos que, em algum momento de sua trajetória, tenham sido reprovados ou tenham evadido da escola.

O gráfico abaixo mostra, de acordo com o Censo Escolar de 2006, o número de alunos que evadiram do sistema de ensino e foram reprovados no Ensino Fundamental:

Evasão e reprovação no Ensino Fundamental*
Gráfico 1
Evasão e reprovação no Ensino Fundamental*

* Dados referentes apenas à área urbana.

Fonte: MEC/Inep, Censo Escolar, 2006.

Assim, podemos ver que dos 27.716.231 alunos inscritos no Ensino Fundamental no ano de 2006, nada menos que 11,08% (3.291.437) foram reprovados e 6,15% (1.705.004) evadiram. Queremos com esses dados demonstrar que, a estipulação de data de nascimento limite no edital, pode significar potencialmente a exclusão de uma significativa parcela de prováveis candidatos.

Tal exigência terá um efeito particularmente prejudicial para as camadas mais pobres da população que ocupam os bancos escolares do setor público de ensino, onde os índices de evasão e reprovação são notoriamente mais elevados. Os gráficos abaixo, elaborados a partir de informações coletadas pelo Censo Educacional de 2006, corroboram nossa hipótese.

Abandono e reprovação do Ensino Fundamental %*
Gráfico 2
Abandono e reprovação do Ensino Fundamental %*

* Dados referentes apenas à área urbana.

Fonte: MEC/Inep, Censo Escolar, 2006.

Segundo os dados acima, 13,11% dos alunos da rede pública foram reprovados no Ensino Fundamental. Enquanto que, para este mesmo segmento, o ensino particular contou com apenas 3,15% de reprovação entre os alunos. Quanto à evasão, o gráfico revela que 6,95% dos alunos da rede pública evadiram no ensino fundamental, enquanto que esse percentual não chega a 0,5% no âmbito privado. Se partirmos da hipótese que os alunos de rede pública são, em geral, mais pobres que os da rede privada, vemos que o edital de seleção aqui analisado promove uma nítida exclusão deste primeiro segmento da possibilidade de mesmo tentar o acesso a uma escola de qualidade.

As iguais chances dos desiguais

O Edital para o concurso do Colégio Pedro II definia que a primeira etapa consistiria em uma prova de matemática, sendo que os candidatos que obtivessem nota superior ou igual a 4,0 (quatro) estariam aptos a concorrer a segunda fase, onde seria aplicada uma prova de português. Nesse sentido, estariam habilitados os concorrentes que alcançassem média 5,0 (cinco) e, além disso, apresentassem uma nota mínima de 4,0 (quatro) em cada uma das etapas do processo.

Inscreveram-se ao total 1.622 candidatos para as vagas oferecidas. A análise desse universo a partir da instituição de procedência revela uma enorme diferença.

Total de candidatos
Gráfico 3
Total de candidatos
Fonte: Dados compilados a partir de informações do site do Colégio Pedro II.

Segundo representado no gráfico acima, dos 1.622 inscritos, 1.209 eram provenientes da rede particular (o que corresponde a 74,54%). Enquanto que apenas 413 alunos que cursaram o Ensino Fundamental exclusivamente na rede pública (e, portanto, 25,46% do total de candidatos) concorreram às vagas.

O mais importante nesse resultado é a evidente desigualdade na tentativa de acesso. Não se trata apenas de averiguar o percentual de candidatos aprovados de cada segmento (público e privado), mas de buscar evidenciar os operadores simbólicos que fazem com que alunos da rede pública sequer se inscrevam de forma significativa para este concurso de seleção.

Compreender como funcionam esses operadores pode também trazer o mérito de “[...] esclarecer de que modo disfarçado e intransparente instituições aparentemente neutras implicam, na verdade, na imposição subliminar de critérios particularistas e contingentes com seus beneficiários e vítimas muito concretas” (SOUZA, 2006, p. 39).

A sociologia de Bourdieu, em na sua tentativa de compreender como os condicionantes estruturais produzem efeitos na subjetividade individual, aponta um caminho para pensarmos essa desigualdade. Segundo Bourdieu (1998) cada indivíduo adquire, ao longo de sua trajetória, um conjunto de leituras da realidade que se condensa na sua subjetividade, trata-se de um aprendizado que irá refletir em representações, práticas e disposições individuais. Mais especificamente, as condições materiais de existência impostas objetivamente aos indivíduos são:

[...] apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estrurantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações... (BOURDIEU, 1983, s. p.).

O habitus seria, portanto a objetividade interiorizada e condensada subjetivamente. Em outras palavras, conforme Souza:

[...] seria um sistema de estruturas cognitivas e motivadoras, ou seja, um sistema de posições duráveis inculcadas desde a mais tenra infância que pré-molda possibilidades e impossibilidades, oportunidades e proibições, liberdades e limites de acordo com as condições objetivas. Nesse sentido, as disposições dos habitus são, em certa medida, ‘pré-adaptadas’ as suas demandas. (SOUZA, 2003, p. 45).

O habitus,portanto, corresponde a sistemas simbólicos socialmente erigidos, que se aprofundam na subjetividade dos agentes sociais e que operam como disposições estruturadas através da objetividade no mundo social. Estas disposições têm como característica básica, predispor para representações, classificações, ações e escolhas que tendem a ser adequadas às estruturas materiais e culturais com as quais tais agentes se relacionam.

Dentro dessa perspectiva, o percentual muito menor de candidatos da rede pública que busca acesso ao CPII revela uma complexidade muito maior do que a desigualdade de oportunidades. Trata-se, portanto muito menos de uma escolha individual, e muito mais o resultado de uma leitura e aprendizado da realidade social adquirido coletivamente, que conforma um senso prático fundamental para definir as escolhas realizadas pelos indivíduos.

A noção de senso prático equivale a formação de um “mapa” do possível que faz parte da subjetividade individual, sendo criado a partir do embate diário e continuo dos agentes sociais com as estruturas materiais e culturais da realidade. Mais especificamente, o senso prático:

Pode garantir uma adaptação mínima ao curso provável deste mundo, por meio das antecipações razoáveis, ajustadas em largos traços (à margem de qualquer cálculo), as possibilidades objetivas. (BOURDIEU, 1999, p. 284-285 – tradução livre dos autores).

Nesta perspectiva, o senso prático é o que permite aos alunos mais pobres, oriundos da rede pública, uma avaliação de possibilidades através de exemplos de “insucesso” de pessoas próximas, de representações sobre suas condições intelectuais e sobre os lugares que “lhes cabem”, de produção de expectativas educacionais e etc.

Neste sentido, é possível levantar a hipótese de que a baixa inscrição de candidatos oriundos de escola pública se explica pelo fato de que os alunos das camadas mais pobres reconhecem que o Colégio Pedro II se encontra em um campo no qual suas chances de sucesso são mais reduzidas. De fato, quando comparamos esses dados com aqueles encontrados no Vestibular de 2005 da Universidade Federal Fluminense veremos que, entre as duas instituições existe uma proximidade estatística que as coloca em um campo simbólico relativamente próximo, ainda que elas se destinem a níveis educacionais diferentes.

Inscritos no Vestibular UFF 2005 por instituição de origem%
Gráfico 4
Inscritos no Vestibular UFF 2005 por instituição de origem%
Fonte: COSEAC, 2005.

Segundo as informações demonstradas no gráfico acima, mais da metade dos alunos que se inscreveram no processo de seleção para a Universidade Federal Fluminense de 2005 eram provenientes do ensino particular.

Analisando comparativamente esses dados com aqueles obtidos pelo Censo Escolar de 2006, veremos que os alunos da rede pública correspondem a 87,81% do total dos alunos do Ensino Médio. Assim, é no mínimo curioso que esse segmento não represente a maioria dos que tentam acessar uma universidade também pública.

Novamente, a desigualdade educacional se mostra presente na tentativa de acesso. A inscrição dos alunos no processo seletivo para a universidade pública é um exemplo de como opera esse sistema de representações que permeia as escolhas individuais. Ao se relacionar com a estrutura, um indivíduo aprende a traçar um mapa de suas possibilidades e a reconhecer onde há maior chance de sucesso. É o que Bourdieu (1999) caracteriza como transformar a necessidade em virtude. Assim, um aluno oriundo da rede pública de ensino, mesmo que nunca tenha tentando o vestibular para uma instituição publica sabe que suas chances de sucesso são menos tangíveis do que as chances de um aluno oriundo da rede particular. De fato, quando analisamos os resultados do vestibular, reconhecemos o quão verdadeiramente cruel é essa leitura.

Aprovados no vestibular da UFF 2005 por instituição de origem %
Gráfico 5
Aprovados no vestibular da UFF 2005 por instituição de origem %
Fonte: CONSEA, 2005.

Do total de aprovados para a Universidade Federal Fluminense no ano de 2005, 63,18% são oriundos da rede particular de ensino. Esses dados reafirmam a discussão realizada acima. Os alunos do ensino particular não apenas se inscrevem mais, como também correspondem aos mais aprovados. Novamente é importante ressaltar que esse segmento corresponde à minoria dos jovens brasileiros.

De fato, o ensino superior ainda se apresenta como um campo de difícil acesso para as camadas economicamente mais vulneráveis. Um exemplo disto encontra-se no número de matrículas no período noturno que em tese acomoda melhor os indivíduos que precisam trabalhar: em 2003 nada menos que 2.270.466 matrículas no ensino superior brasileiro estavam no turno da noite (o que representava 58,41% da matrícula total), no entanto, as instituições públicas eram responsáveis por somente 17,93% destas (o que totalizava 407.257 alunos).

Voltemos agora ao processo seletivo do Colégio Pedro II.

Alunos aprovados na 1ª fase %
Gráfico 6
Alunos aprovados na 1ª fase %
Fonte: Dados compilados a partir de informações do site do Colégio Pedro II.

Como havíamos visto antes, 1209 alunos da rede privada de ensino realizaram a primeira etapa do processo seletivo (e que consistia em uma prova de matemática). Do total de alunos do ensino particular que se inscreveram, 28,62% (o que corresponde exatamente a 346 candidatos) alcançaram média superior ou igual a quatro; enquanto que na rede pública esse percentual foi de apenas 11,14% (46 candidatos entre 413 inscritos).

Isso significa dizer que dos 1.622 alunos inscritos, 392 se habilitaram a realizar a segunda etapa do concurso. No entanto, uma análise uma pouco mais detalhada revela que, desses 392 alunos 88,27% eram candidatos da rede particular e apenas 11,73% eram oriundos do ensino público.

Aprovados na 2ª fase %
Gráfico 7
Aprovados na 2ª fase %
Fonte: Dados compilados a partir de informações do site do Colégio Pedro II.

Dos 392 alunos habilitados para realizar a segunda fase apenas 250 foram aprovados. Somente 10,80% dos aprovados nessa etapa do concurso eram oriundos do Grupo I – composto por candidatos da rede pública – enquanto que 89,20% pertenciam à rede particular.

Isso significa que dos 413 candidatos da rede pública apenas 6,54% obtiveram média final superior ou igual a 5,0 (o que corresponde a apenas 27 candidatos). Enquanto que no Grupo correspondente a alunos da rede privada esse percentual foi de 18,44% (o que representa um total de 223 candidatos).

Conforme determinado no Edital:

Caso o total de vagas estipuladas para um dos grupos previstos no Art. 1º não seja totalmente preenchido, segundo os critérios estabelecidos, as vagas disponíveis serão providas por candidatos do outro grupo, desde que estejam habilitados conforme fixado no Art. 29. (EDITAL n. 01/ 2006, Art. 31).

Assim, a reserva de 50% das vagas disponíveis para a rede pública não significou muita coisa para aqueles oriundos deste sistema de ensino. Com isto, a distribuição final das vagas obedeceu a seguinte lógica:

Distribuição final das vagas Pedro II%
Gráfico 8
Distribuição final das vagas Pedro II%
Fonte: Dados compilados a partir de informações do site do Colégio Pedro II.

Das 210 vagas oferecidas 87,14% foram preenchidas por alunos oriundos da rede particular de ensino, enquanto que o restante (12,86%) foi preenchido por alunos da rede pública (o que, em termos absolutos significa respectivamente 183 e 27 vagas para cada grupo).

Assim, chegamos ao final do processo seletivo de uma instituição pública de ensino, onde quase 90% das vagas se destinaram a alunos da rede particular. Bourdieu, ao estudar o sistema educacional da França e o acesso às grandes universidades naquele país, chegou a conclusões que podem ser aplicadas ao resultado final do concurso realizado pelo Pedro II:

[...] os concursos das grandes escolas, a ‘agregação’ e, sobretudo, o concurso geral cuja função exclusiva é estabelecer uma classificação puramente honorífica, operando, destarte, e em função de critérios puramente universitários, a pré-seleção dos noviços mais aptos a integrar-se na instituição justamente por serem os mais ajustados ao ideal da excelência universitária e os mais convictos do valor universal dos valores universitários. (BOURDIEU, 2005, p. 233).

A análise do processo seletivo do qual tratou o presente trabalho reafirmou não apenas o quão distante uma instituição pública de ensino pode se colocar para jovens oriundos de camadas mais populares, mas indicou também que essa realidade já se encontra profundamente interiorizada na subjetividade daqueles que tentam o acesso. Assim, a diferença na procura pelo concurso de seleção entre candidatos oriundos do ensino particular e do ensino público não deve ser encarada como o simples resultado de escolhas individuais. Mais do que isso esses dados representam bem o reconhecimento de que nem sempre as instituições públicas são para todos.

É interessante chamarmos a atenção para o fato de que ao final da elaboração do presente trabalho o Colégio Pedro II realizou novo concurso de seleção para o preenchimento de 544 vagas da 1ª Série do Ensino Médio Regular oferecidas para quatro unidades descentralizadas no ano letivo de 2008. Desse número total de vagas, 162 se destinavam a Unidade Descentralizada de Niterói1. Para esse novo processo seletivo não apenas foram mantidos alguns procedimentos, como também a incorporação de outros tornou, potencialmente, o acesso de jovens das camadas mais vulneráveis ainda mais restrito.

Assim, observa-se que o oferecimento do quantitativo de vagas obedeceu à mesma lógica presente no concurso anterior, de tal forma que 50% do total seriam destinadas ao grupo composto por candidatos da rede particular de ensino e o restante (50%) se voltaria para candidatos provenientes da rede pública. Novamente foi definido que, o não preenchimento do número total de vagas por um grupo implica que “[...] as vagas disponíveis serão providas por candidatos do outro grupo, desde que estejam habilitados” (EDITAL n. 19/ 2007).

Conforme tivemos a oportunidade de acompanhar ao longo do presente trabalho, esta medida por mostrar-se insensível à notória diversidade que se observa entre o ensino ministrado nas instituições públicas e aquele encontrado nas instituições particulares tem como resultado uma absoluta disparidade no que tange a distribuição final de vagas.

Nesse sentido, podemos considerar que a definição de cotas para cada segmento é fundamental, porém deve vir acompanhada de outros procedimentos que garantam sua efetividade (como por exemplo, definir patamares de nota mínima diferenciados). Dessa forma, o não preenchimento do número total de vagas por um grupo não pode resultar simplesmente na transferência dessas vagas para alunos oriundos de outro grupo.

Prosseguindo em nossa análise comparativa entre os editais encontramos ainda algumas significativas diferenças que podem influenciar no resultado do concurso e, por isso mesmo, merecem ser destacadas. Para o concurso realizado ao início do ano de 2007, conforme exposto anteriormente, um candidato poderia ter, no máximo, dezesseis anos. Já para o concurso do ano letivo de 2008 o edital definia que poderiam se candidatar os nascidos a partir de do ano de 1992, que estivessem cursando o 9º ano (antiga 8ª série) do Ensino Fundamental ou que o tivessem concluído há, no máximo, dois anos. Ou seja, segundo a definição um candidato não poderá apresentar idade superior a quinze anos.

Dessa forma, em comparação ao edital anterior, a idade limite de acesso foi diminuída em um ano. O possível impacto da definição de uma idade máxima para candidatos já foi debatido anteriormente, cabe apenas chamar a atenção para o fato de que uma diminuição dessa idade pode atingir de forma potencialmente negativa os candidatos oriundos do ensino público. Nesse sentido, se no concurso anterior já foi possível apontar uma exclusão a priori, esta agora se torna ainda mais aprofundada.

É possível reconhecer nessas determinações uma possível tentativa de captar alunos que apresentem o que é comumente denominado como “boas trajetórias”, ou seja, aqueles que seguiram o caminho educacional sem percalços o que, conforme já foi apontado, é mais observado em alunos inscritos no sistema particular de ensino. No entanto, para além desta fixação de uma idade limite que é dirigida a todos os candidatos, há ainda mais uma a ser apontada e que se volta exclusivamente para àqueles provenientes do ensino público. Corresponde a um bônus a ser aplicado na nota final de matemática para alunos que comprovarem ter participado com êxito da Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas. O valor do bônus obedecerá a seguinte lógica: os alunos que ganharam Medalha de Ouro farão jus a um bônus de 15%; Medalha de Prata, bônus de 10%; Medalha de Bronze, bônus de 8%; Menção Honrosa , bônus de 5%.

Com isso, é possível considerar que aqueles alunos que comprovadamente já apresentam proficiência na disciplina em questão são “incentivados” a ingressar mais facilmente através da concessão do bônus.

Através dos gráficos abaixo é possível comparar o número de inscritos nos processos seletivos observados para os anos letivos de 2007 e 2008:

Inscritos no processo seletivo 2007 - 2008
Gráfico 9
Inscritos no processo seletivo 2007 - 2008
Fonte: Dados compilados a partir de informações do site do Colégio Pedro II.

Observando primeiramente o número de inscritos em cada processo, vemos que àquele realizado para o ano letivo de 2008 apresenta uma queda no número de inscrições quando comparado ao concurso anterior. Assim, enquanto o primeiro processo contou com um total de 1622 inscritos, o segundo apresentou apenas 1407, ou seja, ocorreu um decréscimo de 13,26%.

Não fugindo à configuração anteriormente observada é possível novamente apontar uma gigantesca diferença na tentativa de acesso. Assim, enquanto que para o ano de 2007 os candidatos oriundos da rede pública de ensino corresponderam a 25,46% do total e os da rede particular representavam 74,54% para o ano de 2008 esses percentuais correspondem respectivamente a 21,04% e a 78,96%.

Ou seja, não apenas os alunos da rede particular continuam se inscrevendo em maior quantidade como também se observa que esse percentual aumentou entre os dois anos observados e foi acompanhado pela diminuição da tentativa de acesso dos alunos da rede pública.

A tabela abaixo traz alguns resultados mais animadores no que tange ao número de candidatos habilitados para a segunda fase:

Aprovados na 1ª fase 2007-2008
Gráfico 10
Aprovados na 1ª fase 2007-2008
Fonte: Dados compilados a partir de informações do site do Colégio Pedro II.

Assim, ao compararmos os processos seletivos encontramos um significativo aumento no número de alunos oriundos da rede pública que conseguiram nota suficiente que os permitisse chegar a segunda fase do concurso, e que consiste em uma prova de português. É importante apontar a queda no percentual de candidatos egressos de instituições particulares de ensino que se habilitaram para a fase seguinte.

Nesta comparação entre 2007 e 2008 é preciso antes de tudo, fazer uma ressalva. O concurso para o ano letivo de 2008 de fato representou um avanço quando pensamos nos resultados acima expressos. Há de se considerar, porém, que embora os candidatos da rede pública tenham conseguido maior sucesso na primeira fase, ainda assim, eles já se encontram em número inferior ao total de vagas definidas para este segmento através da reserva de 50%. Assim, mesmo que todos esses candidatos sejam aprovados na segunda fase (o que é improvável), ainda haverá, de acordo com o estabelecido pelo edital, uma transferência de vagas remanescentes para alunos egressos do ensino particular.

Nesse sentido, embora não tenhamos disponível no presente momento o resultado final do concurso realizado para o ano de 2008 é necessário reconhecer que houve avanços, uma vez que maior número de candidatos oriundos do ensino público se habilitaram para a segunda fase, mas também se observam recuos, visto que esse mesmo segmento se inscreveu em menor número do que observado no concurso anterior.

Segundo Bourdieu “[...] não é jamais possível, em todo caso, dizer com segurança quem, entre o agente e a instituição, escolhe realmente; se é o bom aluno que escolhe a escola ou se é a escola que o escolhe” (BOURDIEU, 1999, p. 198 apud BRANDÃO, 2007a).

A análise dos processos seletivos realizados no âmbito do Colégio Pedro II ilustra bem essa passagem. Talvez o CPII não tenha dito exatamente quem ele queria, mas ao traçar nos editais exigências tão específicas e, ao mesmo tempo incomuns para uma instituição pública de ensino, deixou implícito quem eram os alunos que não queria. Da mesma forma, o alto percentual de candidatos oriundos da rede particular observado nos dois concursos revela que a mencionada instituição ainda ocupa lugar de destaque no contexto educacional brasileiro.

Aqui, a aparente democracia do processo seletivo perde sua força frente ao caráter elitista notoriamente observado na instituição analisada. Muitas dúvidas emanam da produção deste estudo. Na verdade seria importante a partir deste ponto conduzir um estudo investigativo mais qualitativo para determinar quem são os alunos da rede pública que conseguiram ingressar no CPII.

Considerações finais

A gratuidade de uma instituição pode não se traduzir na garantia do acesso público. De fato, ao longo deste trabalho tivemos a oportunidade de observar o quão difícil pode ser o acesso de jovens de camadas populares a um colégio que, embora gratuito, carrega em seu histórico a tradição e a excelência. Estamos mostrando que o fenômeno amplamente conhecido nas universidades públicas – de ocupação majoritária das vagas por alunos oriundos do sistema privado – se reproduz também na escola básica, quando está em jogo o acesso a escolas públicas de alta qualidade. O que nos indica a determinação das elites em se apropriar dos melhores espaços de formação educacional independente do caráter publico ou privado destes.

Por outro lado, este estudo mostra através de dados divulgados pelo próprio Colégio Pedro II que o edital de seleção ao priorizar a idéia abstrata de mérito acaba por transformar em letra morta a tão festejada reserva de vagas para a escola pública. Na seleção de 2007, dos 50% reservados para os oriundos desta rede, nada menos que 37,14% foram amealhadas pelos oriundos da rede privada. De fato o processo de exclusão dos alunos da rede pública no caso do Colégio Pedro II é ainda maior do que o verificado em média nas Instituições Federais de Ensino Superior (BRANDÃO, 2007, s. p.).

Frente a conhecida e reconhecida qualidade das redes públicas municipais e estaduais de ensino no conjunto do país, a exigência da mesma nota mínima para alunos da rede pública e privada soa como uma falácia que de fato não garante o acesso igualitário. O resultado do processo seletivo exposto acima opera e reproduz uma profunda e concreta desigualdade: os mais pobres são condenados mais uma vez a ocupar os piores lugares sociais; os mais ricos ao contrário, poderão ocupar os melhores bancos escolares e se preparar para alçar nichos cada vez mais elevados no espaço social – e isto com financiamento integral dos recursos públicos.

Por fim, nossa análise, muito mais do que uma simples crítica a instituição educacional em pauta, busca evidenciar – ainda que de forma inicial – parte dos mecanismos que perpetuam a desigual realidade do sistema educacional brasileiro.

Referências

ANDRADE, V. M. C. Q. O Colégio Pedro II – História e Identidade. In. Colégio Pedro II: um lugar de memória. Tese defendida junto ao Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS/UFRJ, 1999.

BRANDÃO, A. Cotas raciais no Brasil: a primeira avaliação. Rio de Janeiro: DP&A, 2007.

BRANDÃO, Z. A produção das elites escolares: escolas, famílias e cultura. Caderno CRH, v. 20, n. 49, p. 15-22, jan./abr., Salvador, BH: 2007a.

BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.

BOURDIEU, P. La Distinción: criterio y bases sociales del gusto. Madrid: Taurus, 1999.

BOURDIEU, P. Escritos de Educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

BOURDIEU, P. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

COSTA, M. V. A. Construindo a história da educação musical no Colégio Pedro II. Décimo quinto congresso - ANPPOM, 2005.

IBGE. Disponível em: www.ibge.gov.br.

INEP. Disponível em: www.inep.gov.br.

MEC. Disponível em: www.mec.gov.br.

MEC. Edital n. 01/ 2006. Admissão à 1ª série do Ensino Médio da unidade escolar descentralizada de Niterói. Rio de Janeiro, jan., 2006.

MEC. Edital n. 19/ 2007. Admissão à 1ª série do Ensino Médio regular – curso diurno. Rio de Janeiro, set., 2007.

MICELI, S. A força do sentido. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

OLIVEIRA, R. S. O imperial Colégio Pedro II: o Ensino Secundário e a construção da cidadania (1880-1889). Trabalho de Conclusão de Curso. UFF, 1997.

SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma Sociologia da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2006.

Notas

1 Informações e dados aqui contidos estão disponíveis no site do Colégio Pedro II.

Notas de autor

1 Mestranda em Política Social pela Universidade Federal Fluminense.
2 Doutor em Ciências Sociais. Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense.
HTML generado a partir de XML-JATS4R por