Artigos Originais

Em nome do pai: movimentos na penumbra do discurso

In the name of the “father”: movements in the dimness of discourse

Lucília Maria Sousa Romão 1
Universidade de São Paulo, Brasil
Soraya Maria Romano Pacífico 2
Universidade de São Paulo, Brasil

Em nome do pai: movimentos na penumbra do discurso

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 10, núm. 1-3, pp. 91-101, 2008

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Resumo: Nesse trabalho investigamos, à luz da Análise do Discurso de filiação francesa, como os sentidos de/sobre pai são inscritos sócio-historicamente e são definidos pelo modo como a ideologia interpela o sujeito. A partir de uma coleta de dados com sujeitos-adolescentes, escutamos na materialidade lingüística alguns sentidos regularizados para o lugar de pai, quais sejam, o pai apenas provedor de dinheiro, o pai-deus encarnado e/ou o distante pai.

Palavras-chave: Discurso, Sujeito, Ideologia, Paternidade, Adolescência.

Abstract: The study investigated, from the perspective of the French Discourse Analysis, how meanings related to the notion of “father” are socially and historically constructed as well as how they are defined by the influence of ideology on individuals. Discourse data from a survey with teenagers point to different meanings of “father” such as: the family provider, the god-incarnated and/or the distant “father”.

Keywords: Discourse, Subject, Ideology, Paternity, Adolescence.



Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos num lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser.

Fuente: Fernando Pessoa. Livro do Desassossego

“Meu pai montava a cavalo, ia para o campo./ Minha mãe ficava sentada cosendo./ Meu irmão pequeno dormia./ Eu sozinho menino entre mangueiras/ lia a história de Robison Crusoé,/ comprida história que não acaba mais”. Com tais versos, o poeta itabirano, Carlos Drummond de Andrade, lança um olhar sobre a família de sua infância, possivelmente datada do início do século XX, em que a ocupação do espaço doméstico recaía sobre os ombros da figura desenhada pela mãe, mulher e dona-de-casa. Com forte tonalidade de rigidez, o ambiente privado, os cuidados com a prole e o distanciamento das questões públicas eram relativos à ordem feminina. Vaitsman (1994, p. 31) expressa aquilo que o poeta coloca como fragmento da memória: “Desenvolvia-se, assim, a forma moderna de reclusão feminina a um domínio que se tornava doméstico e privado, reelaborando-se as antigas – e também hierárquicas - fronteiras do feminino e masculino em termos de socialização e comportamentos”.

Se à mulher coube tal expressão no contexto familiar, é certo que o homem se firmou como ator principal das atividades políticas, científicas, econômicas, empresariais e administrativas. Montada a cavalo, a figura paterna sempre exerceu o papel de provedor financeiro e autoridade sólida. Durante séculos, foi assim: a família se calava diante desse modelo “naturalmente” construído como autoridade, emprestando ao pai a representação imaginária de possuidor da verdade absoluta. Sobre isso, a Análise do Discurso francesa traz a contribuição de se pensar os dizeres que circulam socialmente e, no caso deste trabalho, sobre a família e seus atores em uma materialidade lingüística que compreende a sua exterioridade (PÊCHEUX, 1969) e, com base nesta teoria, buscamos investigar as condições sócio-históricas em que os lugares de pai, mãe e filhos foram tecidos.

A dinâmica atual da família esboça um crescente movimento de reestruturação e mudança, em grande parte garantindo uma outra posição para a mulher que foi e está se constituindo a partir da sua ocupação dos espaços públicos. A autonomia e o desenvolvimento da carreira, a conquista do direito de voto e a ofensiva chegada ao mercado de trabalho, atreladas à participação crescente no orçamento familiar, foram conquistas ao longo dos últimos trinta anos e, com investimentos no plano pessoal, a mulher passou a se deslocar do lugar de dona-do-lar, alterando, substancialmente, o modo de dizer de si na vida familiar e criando condições materiais para que um outro lugar de dizer, saber e poder pudesse ser ocupado por ela. Nesse contexto, a figura paterna não pode ser conservada com aquele que montava a cavalo e saía em direção ao campo, certo de que a sua mulher estava dentro de casa, segura (e aqui vale a polissemia do significante) pelas paredes da casa e pelo aconchego do lar. O lugar de pai também discursivizou passos de uma nova coreografia, dividindo tarefas domésticas, assumindo responsabilidades dentro de casa, zelando, também, pela organização da prole e do espaço doméstico, ou seja, esse lugar também foi afetado na sua relação com os discursos das mulheres. O “novo pai” é uma posição discursiva (PÊCHEUX, 1969), em emergência e, nesse trabalho, buscamos investigar como os filhos vêem esse lugar de pai afetado pela historicidade e pelas condições de produção derivadas da emancipação feminina.

Para tal, propomos uma reflexão sobre a paternidade e a imagem de pai ontem e hoje para, em seguida, interpretar como os sujeitos dessa pesquisa descreveram o seu pai, observando, aí, o funcionamento discursivo e o jogo de posições e a antecipação das representações imaginárias (PÊCHEUX, 1975). Importante ressaltar que, para a Análise do Discurso, o que está em jogo, na construção dos sentidos, é um conjunto de formações imaginárias que colocam os interlocutores em determinadas posições (imaginárias), a partir das quais os discursos são produzidos e interpretados. Dessa forma, o sujeito-aluno (já que nosso corpus foi colhido dentro de uma escola) e o sujeito-filho, ao escrever sobre o pai, o faz a partir de um lugar social e imaginário determinado, assim como coloca o pai em uma posição que, pelo efeito ideológico da ideologia, parece-lhe óbvia.

É a partir do lugar imaginário, marcado pela posição social do sujeito e pelo mecanismo de interpelação ideológica, que se dá a produção, constituição e circulação dos discursos; dessa forma, alguns sentidos serão atribuídos e outros não, pois a ideologia faz com que a compreensão de alguns sentidos e, não de outros, pareça “natural” e esperada. No caso analisado, parece que, apesar do deslizamento de sentidos ocorrido sócio-historicamente, acerca do feminino e do masculino, conforme estamos discutindo, os sujeitos desta análise ainda estão presos àquela formação discursiva dominante, que naturalizava os sentidos de homem como provedor, trabalhador, que pode ficar fora de casa e longe dos filhos devido às exigências profissionais, enfim. Então, é com base nas formações ideológicas que as formações discursivas vão determinar o que pode e deve ser dito. Segundo Nunes:

Podemos dizer, contudo, que há condições que possibilitam o estabelecimento de um lugar, de uma posição para os leitores brasileiros. [...] Desta forma, para os mesmos textos temos condições imaginárias distintas. A materialidade histórica dá lugar a leituras e a leitores específicos, com posições distintas de sujeito-leitor (NUNES, 1994, p. 74).

Sabemos que tal trabalho com o discurso toca uma espessura inquietante, opaca e movediça, assim, ficamos com a impressão pessoana “do movimento na penumbra”. Considerando esse movimento com a linguagem como penumbra, como analistas de discurso, passaremos à discussão sobre o nascimento da parternidade e, posteriormente, à análise dos sentidos inscritos pelos sujeitos desta pesquisa.

O nascimento da paternidade

Para formular considerações sobre a paternidade, no presente, é necessário recuperar os fios discursivos da memória, que promove o retorno ao já-dito e já falado sobre o que é ser pai, derivado de condições sócio-históricas específicas, nas quais se trava a tensa luta pelos poderes e pelos espaços de dizer e poder. Segundo Orlandi (2003, p. 31), “A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente”. Por isso, é num retorno ao já-dito sobre o homem e a mulher que poderemos compreender o fio discursivo que sustenta, hoje, os sentidos sobre o homem, no dizer de seus filhos.

Observando as sociedades primitivas, a subsistência era garantida pela coleta de frutas e, também, pela caça de animais de pequeno porte. As tribos eram, constantemente, ameaçadas pelas forças da natureza: o medo e a intimidação eram esboçados em raios e tempestades. A mulher tinha um papel de destaque dentro do grupo, o que era garantido pela sua capacidade reprodutora. A autoridade, em certa medida, era experimentada pela mulher: o útero era a metáfora desse poder e, em torno dele, tudo girava. Com o crescimento das tribos e com as novas exigências para prover alimento, as sociedades passaram a ter, na caça, a sua principal atividade. O homem precisava correr, alcançar e capturar uma presa grande: o que não era tarefa fácil. Além disso, o confronto entre grupos diferentes fez com que a guerra se tornasse algo vivo nas lutas pela demarcação do território e na disputa pelo alimento. A força física e o vigor atribuídos ao masculino estavam associados à liderança no grupo: “o homem começa a sentir inveja da capacidade de parir da mulher e, embora ainda desconheça seu papel na reprodução e não possa por isso controlar a sexualidade feminina, começa a dominar a mulher, sobrecarregando-a de trabalho. Está inaugurada assim a supremacia masculina” (RAMIRES, 1997, p. 17). A agricultura veio alavancar esta supremacia. A sociedade de então contava com feições sedentárias, de nômade não havia mais nada. Rudimentares instrumentos de trabalho foram inventados a partir da fundição de metais.

Com o arado na mão, o homem incrementou o seu trabalho na lida com a terra, tornando-o mais ágil e eficaz. Surgiram as primeiras fazendas, que cresceram dando espaço às aldeias e cidades. Os grandes impérios foram gestados na reviravolta de tais transformações. Com o intuito de conquistar novas terras, guerras eclodiam e os perdedores se tornavam escravos, forçados a trabalhar no campo. Dupuis (1989, p. 97) afirma que: “[...] juntamente com as famílias, os conquistadores fundam reinos, apoiados num poderio militar organizado. A religião e a moral vão se transformar progressivamente para tornarem-se expressões da dominação masculina”. Pela primeira vez na História, o homem conhece o excedente e o dinheiro; com isso, foi necessário estruturar o exército para proteger a propriedade privada.

Tais alterações no plano econômico cimentaram a ideologia como processo de naturalização dos sentidos (ORLANDI, 2003): o patriarcado, cujo princípio básico se sustentava no controle à vida e à sexualidade femininas. A virgindade, a condenação do adultério e o casamento monogâmico nortearam a forma de tratamento destinado à mulher. Foi nesse momento histórico que o homem percebeu a relação entre o ato sexual e a procriação. Conseqüentemente, tomou consciência da paternidade. Essa descoberta reformulou a essência da família e das relações que nela nasciam. A figura materna, que foi tecida com forte representação positiva, desde as primeiras comunidades, ganhou um contraponto novo. Como afirma Ramires, “O reconhecimento da idéia da paternidade é ganho cultural importante, que permite a fundação da família-social sobre as bases do parentesco biológico, e constituída pela mãe, o pai e os filhos/filhas de ambos” (RAMIRES, 1997, p. 27).

Saboreando tal poder, o homem assumiu o controle do espaço privado, mantendo subjugados os demais componentes da família. Veyne oferece uma rica contribuição sobre o assunto:

A esposa não passa de um dos elementos da casa, que compreende igualmente os filhos, os libertos, os clientes e os escravos. ‘Se o teu escravo, teu liberto, tua mulher ou teu cliente ousam replicar, tu te enraiveces’ escreve Sêneca. Os senhores, chefes de uma casa, resolvem as coisas entre si como de poder a poder, e se um deles deve tomar uma grave decisão, reúne o conselho de amigos, em vez de discutir com a mulher (VEYNE, 1991, p. 50).

Tanto no âmbito público como na esfera do espaço privado, o homem se firmou como referência absoluta. Isso revela, com clareza, a posição de alguém que começou a ser representada no discurso e na realidade pela voz do outro. A mulher deixou de ser autoridade e entrou para a era do eco, ocupando o lugar daquela que repete o que a voz masculina enuncia.

A certidão de nascimento da figura “pai” está aqui anotada e, juntamente com ela, construiu-se uma formação ideológica sobre algumas atividades, tidas como exclusivas para homens; certos programas tidos como destinados para eles; algumas profissões e competências atribuídas como que naturalmente associadas ao universo masculino. O senso comum aponta formulações sobre o que estamos dizendo, posto que circulam hoje sentenças tais como “homem não chora”, “é competitivo”, “homem não faz fofoca”, “homem dirige melhor que mulher”, “homem é durão, forte, racional”. Tais sentidos, interpretados porque temos acesso ao interdiscurso, são veiculados a todo instante e indicam o que é permitido ou proibido para cada sexo: de que modo esboçar sentimento? Como expressar medo? O que dizer e como fazê-lo? Que posição se espera de um homem ou de uma mulher? Quais regiões de sentido estão disponibilizadas para ambos? Quais zonas da memória estão proibidas ou autorizadas para serem acessadas por eles? De acordo com Orlandi:

A compreensão se instaura no reconhecimento de que o sentido é sócio-historicamente determinado e está ligado à forma-sujeito que, por sua vez, se constitui pela sua relação com a formação discursiva. A partir desse reconhecimento pode-se levar em conta o chamado ‘domínio’ de saber, o da constituição do sentido (ORLANDI, 1993, p. 115).

Além disso, a ideologia vai mostrando suas placas simbólicas com os semáforos apontando os sinais verde e vermelho, ora de modo sutil, ora explicitamente marcados:

Assim, por exemplo, ao gênero feminino são atribuídas as características de passividade, afetividade, dependência assim como o papel de responsável exclusivo pelo cuidado das suas crias. Quanto ao gênero masculino compete a atividade, a racionalidade, a independência (RAMIRES, 1997, p. 40).

As tentativas de diferenciar a fronteira entre as representações de homem e mulher entram em movimento quando interpretamos enunciados tais como “homem não chora”, “cuidado para não parecer mulherzinha”, “faça igual homem”, “seja forte ou, então, vão pensar que você é maricas”. Constrói-se, sobre a figura masculina, o culto ao vigor físico, o abafamento às manifestações de medo e carinho, a vestimenta da fantasia de “corajoso, conquistador, esperto, forte, imune à fragilidade, inseguranças e angústias. Os meninos crescem achando que os outros são assim, e quando são repreendidos por não estarem se comportando como deveriam, se sentem problemáticos em relação ao modelo” (NOLASCO, 1995, p. 42).

A tentativa de compreender o lugar da figura masculina, a partir de uma memória do dizer sobre o homem e sobre o pai, reclama a interpretação de como o prestígio, o patrimônio e o poder são ingredientes picantes de que o homem se nutre para se firmar enquanto tal. Acostumado a viver a competição desde a infância, é o adulto que sofrerá os desdobramentos da pressão e cobrança no trabalho e na vida sexual. Para ter uma noção prática do que foi colocado, é fácil identificar, no dia-a-dia, o quanto o discurso masculino registra indícios sobre a importância e o valor do trabalho. As conversas diárias giram em torno do ambiente e dos colegas da empresa ou do escritório. Não é raro ouvir comentários sobre o trabalho alheio: elogios e críticas aos diretores de certo departamento. Assim, o trabalho e o falar sobre ele definem o primeiro marco, quase um ritual de passagem: o status de independência e produção é assegurado. Essas características, tão naturalizadas pela ideologia dominante e tão enraizadas na representação do imaginário na nossa sociedade, refletem-se nas produções textuais de adolescentes ao falarem de seu pai e indiciam uma posição-sujeito que dialoga com o que apresentamos até aqui.

O dizer do sujeito-adolescente

Consideramos que a linguagem é palco de tensos confrontos e que a posição-sujeito é determinada pela ideologia; assim, trabalhar com o discurso é interpretar o jogo de imagens e a tensa relação de poder que o texto materializa, percorrendo os caminhos de múltiplos sentidos e a possibilidade de o sentido vir a ser outro. “É pensar diferentes gestos de interpretação [...] Os sentidos não se fecham, não são evidentes, embora pareçam ser” (ORLANDI, 1996, p. 9).

Grande parte dos dizeres dos jovens e da posição em que colocam a figura masculina apontam a manutenção do pai como pilar de sustentação da vida, ligado ao trabalho e ao sucesso profissional e financeiro. Sempre cheio de ocupação na esfera pública, o pai é representado pela sua agenda cheia de compromissos objetivos, o que acentua aquilo que os autores estudados já mostraram, no plano teórico. O recorte da redação escolar de um adolescente1, apresentado abaixo, confirma isso que estamos sustentando:

A tarefa de um pai não é fácil, tem que trabalhar para sustentar os filhos. Tem que dar conforto e educação [...]. Hoje sei das dificuldades que meu pai passou para sustentar eu e meus irmãos, trabalhando muito para dar-nos conforto, sem nunca ter deixado faltar carinho (A. M. S.).

Para uma clientela abastada, o bem-estar material, o conforto e a ‘vida boa’ são objetivos perseguidos a todo instante em uma sociedade capitalista como a nossa, em que tudo é comprado e/ou medido por um valor. O pai é o principal provedor de dinheiro para sustentar a família; com isso, está criado um efeito de sentido que se repete em outras produções textuais de modo parafrástico (ORLANDI, 2003), pois o filho se coloca como um peso a ser carregado. Para Maingueneau:

O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é levada [...] a incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos (MAINGUENEAU, 1993, p. 113)

Algo similar pode ser compreendido no recorte de outra redação que coletamos em sala de aula com adolescentes. Nesse caso, o sujeito inscreve-se no seguinte dizer:

Trabalhador. Começou do zero na vida e foi conquistando espaço, estima e respeito [...] Trabalha muito. Estou escrevendo essa redação no dia 12 (quarta) e não o vejo desde de domingo. Viajou para resolver umas coisas de uma usina de cana. Foi bem longe, lá na República Dominicana. Eu me orgulho de ter um pai tão trabalhador assim. Tudo o que ele tem hoje, ele merece (P. M. L.).

É clara a representação simbólica que o trabalho confere ao pai: status e ascensão social, poder para constituir o patrimônio, além de fonte de respeito no núcleo familiar. A moeda do esforço garante que o pai seja merecedor de orgulho e ganhe a posição de autoridade legítima pelas suas conquistas suadas. De acordo com Pêcheux:

A análise de discurso não pretende se instituir em especialista da interpretação, dominando “o” sentido dos textos, mas somente construir procedimentos expondo o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito (tais como a relação discursiva entre sintaxe e léxico no regime dos enunciados, com o efeito do interdiscurso induzido nesse regime, sob a forma do não-dito que aí emerge, como discurso outro, discurso de um outro ou discurso do Outro) (PÊCHEUX, 1999, p. 14).

Vejamos o recorte de uma outra produção textual de adolescente, em cujas marcas lingüísticas percebemos o atravessamento de outros discursos na voz do sujeito:

Ama bastante a sua profissão, médico. Gosta de ajudar as pessoas e disso eu me orgulho muito. Dificilmente reclama da vida, pois conseguiu tudo o que sonhara ter, conseguiu sair das condições precárias que viveu na infância e adolescência e tudo isso com seu esforço [...] O meu herói é muito trabalhador e tudo isso em prol dos filhos (M. L. C. F.).

Nesse olhar aparecem, de novo, costurados os temas que Nolasco (1995, p. 58) já apontava como recorrentes em relação à figura masculina: “a posse, o poder, a competição, a valorização e a busca do status social definem tanto a dimensão neocapitalista do trabalho quanto os apelos pelos quais um homem deve deixar-se seduzir”. A figura masculina é abarrotada pela condição do ser produtivo, pelo fato de pertencer a uma profissão e muitas vezes ser capturado por ela; assim, dentro da formação discursiva que estamos analisando, o pai esbarra no limiar máximo da potência e do poder por sustentar sua prole, vulgo “não deixar faltar nada em casa”. Esse último item cria uma dívida impagável que o filho atribui a si mesmo por conta de ser dependente da conta bancária do pai, o que nos lembra a relação pai-filho roseana, em A terceira margem do rio, na qual o filho pergunta-se “de que era que tinha tanta, tanta culpa”? (ROSA, 1995, p. 412). Segundo Pêcheux:

A forma-sujeito (pela qual o “sujeito do discurso” se identifica com a formação discursiva que o constitui) tende a absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, isto é, ela simula o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece como o puro “já-dito” do intra-discurso. (PÊCHEUX, 1975, p. 167).

No entanto, outro sentido instalado e regularizado pela repetição, por estes sujeitos-adolescentes, é o orgulho de ser filho e a supervalorização do pai-herói. O fragmento do texto a seguir indicia isso:

Minha primeira célula veio de um homem: alto, forte, cabelos castanhos, grandes mãos. Ele é o verdadeiro Hércules [...]. Sempre um guerreiro que proporcionou tudo a sua família [...]. Ele foi perfeito para conduzir seu passado, teve uma grande decepção e sofrimentos, mas superou. Hoje tem uma vida decente, com saúde e amor (M. B. T. R.).

Nesse lugar interpelado pela ideologia, o pai aparece mais forte que tudo como um super-herói, um guerreiro invencível, um ser dotado de poderes extraordinários. O herói invencível que toma as tristezas e as converte em realização; como o aluno declara, ele conduz o presente e o passado compondo o quadro que lhe parece mais satisfatório. Capaz de superar todos os obstáculos com sua própria força e vigor, com seu corpo perfeito de divindade grega. A virilidade, a força física e a capacidade de superação das dificuldades colocam em evidência essa figura poderosa para o imaginário filial. De modo mais poético, a voz de uma adolescente materializa:

Um peixe. Quando pequena, minha psicóloga me pediu para definir meu pai. Disse que o assimilava como um peixe. Lembro-me de ter justificado esta assimilação ao fato dele estar sempre viajando. Assim como os peixes, qualquer coisa que surge é motivo para saírem nadando. Mesmo estando freqüentemente viajando a trabalho, sempre esteve presente, em todos os meus passos (O. N. V.)

A metáfora usada indica movimento constante do corpo e a mudez absoluta do discurso paterno: as atividades e tarefas fora do âmbito privado têm importância muito acentuada, o que faz do pai verdadeiro turista na sala de visitas. Daí, o distanciamento da convivência com os filhos e com a rotina da casa. Nesse caso, a voz de menina é de cumplicidade e compreensão, não há culpa nem devedores, muita embora faça questão de registrar as distâncias entre os passos dela e os dele. Segundo Maingueneau:

A parafrasagem aparece em A D como uma tentativa para controlar em pontos nevrálgicos a polissemia aberta pela língua e pelo interdiscurso. Fingindo dizer diferentemente a ‘mesma coisa’ para restituir uma equivalência preexistente, a paráfrase abre, na realidade, o bem-estar que pretende absorver, ela define uma rede de desvios cuja figura desenha a identidade de uma formação discursiva (MAINGUENEAU, 1993, p. 96).

Este “fingir dizer diferentemente a ‘mesma coisa’ ” aparece nos recortes analisados, nos quais o sujeito usou de relações sinonímicas para construir este efeito de sentido de “bem-estar”, pois podemos entender que, ou o sujeito se identificou com a formação discursiva dominante, ou então, não queria instalar uma polêmica com o sentido legitimado sobre o que é ser um bom pai, provedor, aquele que não deixa faltar nada para a família, mesmo que isso custe a sua falta na família.

Grande parte das narrativas oscilaram em torno de sentidos já naturalizados como evidentes, a saber, o pai apenas provedor de dinheiro, o pai-deus encarnado e/ou o distante pai. A voz desses sujeitos-alunos inscreveu conflitos, tensões, contradições e ambivalências, visto que eles configuram o que a teoria abordada apresenta sobre o mito da masculinidade.

Considerações finais

Procuramos mostrar, ao longo desse trabalho, alguns processos de representação simbólica, que estão circulando na atualidade a respeito do masculino em relação à figura paterna. Focalizamos a construção do mito da masculinidade e as formações e imagens, por vezes nebulosas, desse universo imaginário e simbólico, no qual as senhas de acesso são tão cifradas quanto a vida humana. O mundo do trabalho e a força de tal elemento na vida do homem foram temas recorrentes e indagamo-nos sobre o porquê de os homens (e dos pais) falarem tanto do seu emprego, de suas conquistas no espaço público, de seu papel no universo público em detrimento do relato de suas relações afetivas e vivências emocionais. Para completar, vimos que se trata de uma formação ideológica dominante que se deixa indiciar nas produções textuais de adolescentes.

Registramos uma inquietação: não houve um aluno que relatasse o cuidado paterno em momentos de doença ou de fragilidade; poucos esboçaram lembranças da infância tendo o pai como protagonista da cena; menor ainda foram os sentidos de amor em relação ao pai. O que mais apareceram foram gestos de admiração pelo desempenho masculino no mundo do trabalho, das finanças, dos negócios, da autoridade e do saber. Certo é que o olhar adolescente teve dificuldade de ver o pai com suas fragilidades, medos; bem como apresentou igual transtorno ao registrá-lo nos momentos mais informais dentro do espaço privado. O pai não foi desvestido da sua fantasia profissional: ainda segura a maleta, o bisturi, a pasta e o livro e isso aponta um universo simbólico construído, ideologicamente, em um sistema que privilegia o consumo, as finanças e o poder.

Referências

ANDRADE, C. D. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988.

DUPUIS, J. Em nome do pai. Uma história da paternidade. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. 2. ed. Campinas, SP: Pontes, 1993.

NOLASCO, S. A desconstrução do masculino. In: NOLASCO, S. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

NUNES, J.H. Formação do Leitor Brasileiro: imaginário da leitura no Brasil colonial. Campinas, SP: UNICAMP, 1994.

ORLANDI, E. Discurso e leitura. Campinas, SP: UNICAMP, 1993.

ORLANDI, E. Interpretação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

ORLANDI, E. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas, SP: Pontes, 2003.

PÊCHEUX, M. Sobre os contextos epistemológicos da Análise de Discurso: escritos. Campinas, SP: Laboratório de Estudos Urbanos. LABEURB – NUDERCI – UNICAMP, n. 4, maio, 1999, p. 7-16.

PÊCHEUX, M. Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: UNICAMP, 1969.

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: UNICAMP, 1975.

PESSOA, F. Livro do Desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

RAMIRES, V. R. O exercício da paternidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.

ROSA, G. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S/A, 1995.

VAITSMAN, J. Flexíveis e plurais. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

VEYNE, P. (Org.). História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

Notas

1 Os nomes dos alunos autores dos textos aqui analisados são indicados por suas iniciais.

Notas de autor

1 Doutora. Professora de Graduação e de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
2 Doutora. Professora de Graduação e de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
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