Artigos Originais

Arte Popular Brasileira como possibilidade de um ensino multicultural das artes visuais

Brazilian Folk Art as a possibility of multicultural teaching of the visual arts

Amanda Cristina Figueira Bastos de Melo 1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense), Brasil
Bianka Pires André 2
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Brasil

Arte Popular Brasileira como possibilidade de um ensino multicultural das artes visuais

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 18, núm. 2, pp. 109-119, 2016

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Recepción: 10 Marzo 2015

Aprobación: 06 Noviembre 2015

Resumo: Traçando um breve panorama das relações entre a cultura e o ensino da arte no Brasil, este artigo faz uma reflexão sobre o multiculturalismo no ensino das artes visuais através da Arte Popular. Para tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e análise das obras de arte citadas no texto, relacionando-as com as questões multiculturais, com destaque para a importância da arte popular como fonte de estudos multiculturais e a necessidade de lidar com essas questões dentro do âmbito escolar. Percebe-se que o assunto ainda é pouco discutido, principalmente quando se envolve a cultura popular. Conclui-se que é possível um ensino de arte multicultural por meio da abordagem da Arte Popular, pois ela permite uma aproximação maior ao universo do educando e contribui para o desenvolvimento de suas habilidades críticas, reflexivas e estéticas.

Palavras-chave: Artes visuais, Multiculturalismo, Arte popular.

Abstract: The present article establishes an overview of the relationship between culture and the teaching of Art in Brazil, reflecting about multiculturalism in the teaching of Visual Arts through Folk Art. It is based on a literature review, analysis of works of art and their relation to multicultural issues. The study highlights the importance of Folk Art as a source of multicultural studies, as well as the need to deal with these issues within the school environment. There has not been much discussion about the topic, especially regarding Folk Art. The research concludes that it is possible to teach multicultural Art through an approach of the Folk Art, as it enables a better approximation to the learners’ universe and contribute for the development of their critical, reflexive and esthetic abilities.

Keywords: Visual Arts, Multiculturalism, Folk Art.

1 A inter-relação entre cultura e Ensino de Arte no Brasil

O ensino de Arte no Brasil vem sofrendo muitas mudanças no decorrer dos anos. De acordo com Martins, Picosque e Guerra (2009), vários desvios comprometem o ensino de arte no país, que mostra essa inconstância inclusive no nome da disciplina. Elas destacam que ainda é comum as aulas de arte serem confundidas com lazer, terapia, descanso das disciplinas “sérias”, decoração da escola, entre outros. A falta de formação do professor de Arte, visto que as licenciaturas nessa área são recentes no país, contribuiu para essa visão.

Porém, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9.394), aprovada em dezembro de 1996, estabelece o ensino de arte como componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, com o intuito de promover o desenvolvimento cultural dos alunos. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN): Arte, “são características desse novo marco curricular as reivindicações de identificar a área por arte (e não mais por educação artística) e de incluí-la na estrutura curricular como área com conteúdos próprios ligados à cultura artística, e não apenas como atividade” (BRASIL, 1997, p. 25). Os PCN destacam ainda que o aluno deve desenvolver sua competência estética tanto para produzir trabalhos pessoais e grupais quanto para que possa, progressivamente, apreciar, desfrutar, valorizar e julgar os bens artísticos de distintos povos e culturas produzidos ao longo da história e na contemporaneidade. Entre outros objetivos do ensino de Arte, citados nos PCN, podemos destacar:

- compreender e saber identificar a arte como fato histórico contextualizado nas diversas culturas, conhecendo respeitando e podendo observar as produções presentes no entorno,

- buscar e saber organizar informações sobre a arte em contato com artistas, documentos, acervos nos espaços da escola e fora dela (livros, revistas, jornais, ilustrações, diapositivos, vídeos, discos, cartazes) e acervos públicos reconhecendo e compreendendo a variedade dos produtos artísticos e concepções estéticas presentes na história das diferentes culturas e etnias. (BRASIL, 1997, p. 39)

Observa-se, portanto, que o termo “cultura” aparece com frequência tanto nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) quanto na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). A arte, como manifestação cultural, deve contribuir, também, para o desenvolvimento integral e cultural do aluno. E a escola, como espaço cultural, deve estar inserida nesse processo.

Atualmente, a cultura vem sendo entendida por estudiosos como Chalmers (2005), Santaella (2004) e Richter (2003) como um código simbólico, que possui dinâmica e coerência interna. O significado original da palavra deriva da palavra latina cultura, que significa o ato de cultivar o solo. A cultura, como entendemos hoje, é, de acordo com Santaella (2004), uma metáfora da vida, cuja tendência é crescer, desenvolver-se, proliferar. Assim, ao encontrar condições favoráveis ao seu desenvolvimento, a cultura floresce. Santaella diz também que:

Outra importante metáfora para compreensão da cultura, menos biológica do que a da vida, é a metáfora da mistura. Se a mistura é o espírito, como dizia Paul Valéry, e a cultura é a morada do espírito, então cultura é mistura. Embora se apresente como uma simples brincadeira silogística, aí está enunciada uma condição fundamental para se entender o que está acontecendo com a cultura nas sociedades pós-industriais, pós-modernas, sociedades globalizadas deste início do século. (SANTAELLA, 2004, p.30)

Chalmers (2005) fala sobre culturas e identidades híbridas, que caracterizam a contemporaneidade. Além das interferências de outras culturas, devemos considerar o fator tempo, pois há uma tendência em tratar as culturas como algo sólido, imutável. Em vez de explorar como uma cultura pode reconverter seu fazer artístico, tende-se a retratar as chamadas “culturas tradicionais” como se estivessem fixas, imaculadas em um tempo/espaço imaginado. Chalmers acrescenta ainda que:

Nos estudos culturais a noção de hibridade é quase antiga, mas na educação visual de Arte nas escolas, só raramente os/as alunos/ as estudam esse fenômeno, a não ser quando, talvez, considerem a influência das máscaras africanas em Picasso ou a relação entre o trabalho de Van Gogh e as gravuras japonesas. As fronteiras físicas podem ter permanecido intactas, mas as fronteiras culturais ficam cada vez mais porosas. [...] É importante e crítico que os educadores procurem compreender o conceito de que as culturas são simultâneas e diferentes internamente e estão em constante mudança. (CHALMERS, 2005, p. 258)

Sem uma concepção clara do que é cultura, sem conteúdos e objetivos definidos, os professores acabam por ignorar aspectos muito importantes da cultura e da arte de um povo. Trabalham apenas com a dimensão afetiva da arte. Ignoram que, no homem, três dimensões estão presentes – a afetiva, a cognitiva e a social – e devem ser consideradas no processo de ensino e aprendizagem. (BARBOSA, 2002).

Na era da globalização, as questões sobre diversidade cultural se tornam cada vez mais pertinentes. As relações virtuais entre indivíduos de diferentes culturas são muito comuns nos dias de hoje devido ao acesso a informações em tempo real, possibilitado pelos meios de comunicação, em especial pela Internet. Por isso, termos como “multiculturalismo” estão sendo discutidos nos estudos mais recentes, já citados anteriormente, que envolvem as relações entre educação, arte e cultura.

2 Arte Popular Brasileira: algumas considerações

A arte popular brasileira é um território fértil e amplo para as discussões culturais. No Brasil, encontram-se os mais diversos tipos de manifestações: da música e do cancioneiro aos shows de habilidade; da literatura de cordel às invenções e bricolages1; das festas comunitárias ao folclore; do teatro às brincadeiras de rua; das artes plásticas ao artesanato. Sobre os produtores dessa arte, também chamados de artistas populares, Mascelani (2006) comenta que:

Seus autores são gente do povo – qualificativo que, em geral, indica mais do que a origem sócioeconômica de um grupo –, remetendo a um conjunto de valores que identifica um modo de ser nativo, de criar e transformar a partir do que se tem em torno, de iluminar os valores da nacionalidade, de sintetizar aspectos do pensamento coletivo. (MASCELANI, 2006, p. 21)

Essas pessoas, sem jamais terem frequentado escolas de arte, criam obras repletas de valor estético e artístico. Obras que encontram sentido e revelam importantes aspectos da cultura na qual se inserem.

Ainda de acordo com Mascelani (2006), a arte popular guarda uma dupla referência - o individual e o coletivo -, pois mesmo que sejam determinantes os vínculos que a arte possui com a cultura onde tem origem, é por meio da valorização da individualidade, das características particulares de cada artista, que a produção popular ganha destaque contemporaneamente.

É importante também destacar a diversidade da arte popular brasileira, visto que ela se desenvolve altamente relacionada com a cultura local. Desse modo, podemos encontrar manifestações diferenciadas de acordo com a região. Em Minas Gerais, por exemplo, visto a grande influência da Igreja Católica e da tradição do entalhe em madeira, muitos artesãos criaram suas obras dentro do tema religioso. Assim como na Bahia e em outros estados do nordeste brasileiro, a temática religiosa também se apresenta através da cerâmica. Alguns deles utilizam ainda a areia da praia em suas criações.

Além do tema religioso, temos uma valorização do imaginário popular e do cotidiano presentes nas obras. A riqueza e a diversidade de técnicas deixam claro que, mesmo que haja um estilo próprio em cada região, isso não significa que haja homogeneidade entre os artistas. Há vários exemplos de artistas que vivem em uma mesma região e apresentam estilos totalmente diferentes, como podemos observar nas Figuras 1 e 2, ambas do estado de Pernambuco. Primeiramente podemos notar a diferença entre o material e, consequentemente, a técnica utilizada. A obra Enterro na rede é uma escultura entalhada na madeira, e a obra Aula, uma escultura de argila feita através de modelagem. O primeiro artista prefere colorir o trabalho, enquanto a segunda artista trabalha com a cor natural do material utilizado. Essas diferenças no fazer artístico constituem a poética de cada um e demonstram a diversidade dentro da unidade. Ambos representam cenas do cotidiano pernambucano, mas cada qual à sua maneira.

Enterro na rede – Benedito José dos Santos
Figura 1:
Enterro na rede – Benedito José dos Santos
Fonte: Museu Casa do Pontal

Aula – Maria Amélia
Figura 2:
Aula – Maria Amélia
Fonte: Museu Casa do Pontal

Podemos ainda refletir sobre muitas questões relacionadas aos trabalhos citados. A obra Enterro na rede nos remete aos ritos funerários presentes em cada cultura. Apesar de diferentes, todas as culturas apresentam uma espécie de culto aos mortos, representada pelos ritos funerários. A escultura apresenta um colorido lúgubre, com tons terrosos que também remetem às questões de vida de morte. Na obra Aula, vemos uma simples representação da escola, de uma forma até matemática e harmoniosa na organização dos alunos, que formam um quadrado; além da divisão exata em dois meninos e duas meninas, identificados pelo tipo do cabelo. A artista preferiu trabalhar com a argila em sua cor natural, utilizando pigmentos pretos apenas para fazer os detalhes. Em ambos os trabalhos, como mencionado, notamos a aproximação com a vida cotidiana e a simplicidade do povo na qual está inserida.

O espaço dedicado à arte popular nos espaços expositivos ainda é pequeno, mas alcança gradativamente representatividade em todo o país. O Museu Casa do Pontal, localizado no Rio de Janeiro, é considerado o maior e mais significativo museu de arte popular do país. Seu acervo é resultado de quarenta anos de pesquisas e viagens por todo o país realizado pelo designer francês Jacques Van de Beuque, com cerca de 8.000 peças de 200 artistas.

Jacques Van de Beuque não só reuniu todas essas obras como também as classificou através de temas, nos quais a exposição permanente do museu está organizada. Ao abranger as atividades cotidianas, festivas, imaginárias e religiosas, o museu oferece um rico panorama da cultura brasileira.

Entre os artistas populares brasileiros, destaca-se o trabalho de Vitalino Pereira dos Santos, conhecido como Mestre Vitalino. Em 1947, Augusto Rodrigues, criador da Escolinha de Arte do Brasil, apresentou os trabalhos de Mestre Vitalino em uma exposição coletiva juntamente com os trabalhos dos também pernambucanos Zé Caboclo e Manuel Eudócio.

Por meio das obras de Mestre Vitalino, a dura realidade do sertanejo nordestino da década de 1940 passou a ser conhecida e abordada pela via das artes através dos seus atores, ou seja, um olhar de dentro da própria comunidade como pode ser visto na Figura 3.

Lavoura – Mestre Vitalino
Figura 3:
Lavoura – Mestre Vitalino
Fonte: Museu Casa do Pontal

Mestre Vitalino tornou-se uma importante figura dentro do universo da arte popular, até então pouco divulgado, talvez inclusive pelo pouco reconhecimento artístico do olhar da realidade nordestina. Por outro lado, Mascelani (2006) afirma que

De certa forma, o impacto dessas imagens vem justamente de sua banalidade. Eram um verdadeiro “achado” – fatos e coisas que estiveram sempre ali, às vistas de qualquer um, extraindo da simplicidade sua beleza. Sob esse prisma, a consagração de Mestre Vitalino é, sobretudo, a consagração de um gosto e de um tipo de olhar sobre a realidade. Daí ter sido a sua criação legitimada quase que instantaneamente como “arte”: por sua fulgurante capacidade de ultrapassar as fronteiras do óbvio, indicando a poesia que está presente na aparente monotonia da vida comum. (MASCELANI, 2006, p. 24.)

A importância de Mestre Vitalino se dá no fato de sua produção e ele próprio terem atuado como mediadores entre os mundos cultos e populares. Seu reconhecimento como artista possibilitou que amplos setores sociais qualificassem positivamente, pela via das artes plásticas, um amplo território popular até então ignorado.

3 Arte Popular na escola: contribuições para um ensino de arte multicultural

No Brasil, o ensino da arte tem contemplado pouco as questões relativas à diversidade étnica e cultural, os diferentes modos de aprendizagem e outras características dos diversificados grupos culturais que compõem a sociedade e a cultura brasileira. Uma das primeiras arte-educadoras a mencionar a abordagem multicultural para o ensino das artes visuais foi Ana Mae Barbosa. No livro A imagem no ensino da arte (2001), eixo fundamental da Proposta Triangular2, a autora menciona uma visão multicultural para o ensino das artes.

A necessidade de se propor um enfoque multicultural na Proposta Triangular já havia sido enfatizada por Nascimento (1996). O autor propôs um diálogo metodológico entre a Proposta Triangular e a multiculturalidade no ensino da arte, amparado nos posicionamentos defendidos por Bugus Fatuyl, no artigo - O ensino da arte nos países do terceiro mundo. Para Fatuyl:

Não existe arte pela arte, ao contrário do que muitas culturas consideram. A arte tem uma funcionalidade e um propósito. Ela é dialética e comunicativa [...]. A arte tem muitas linguagens. Como existem muitas culturas, há muitas formas de arte que devem se relacionar reciprocamente nos programas educativos nos países de terceiro mundo [...], a arte representa os símbolos de uma cultura, de um povo ou valores de um grupo e a forma de vida social das comunidades. (FATUYL, 1990, p. 159)

Um aspecto interessante destacado por Valente (1999) é o caráter ambíguo das relações interétnicas no nosso país, que se caracteriza por uma realidade movediça, cheia de meios-tons e contradições. A autora comenta ainda que as discussões multiculturais eclodem com uma força ainda mais significativa no Brasil. O país, que é visto lá fora como exemplo de convivência, de miscigenação, de mestiçagem, de assimilação e reelaboração de culturas que deram “certo” e se “entrosam”, aqui dentro ainda precisa enfrentar a vergonha da desigualdade e da discriminação que impede o reconhecimento de tantas obras populares e urbanas das diversas culturas existentes em seu solo brasileiro.

Em sua atuação como diretora do MAC/USP e nas atividades desenvolvidas, como arte-educadora, Ana Mae Barbosa realizou diversas experiências multiculturais, destacando-se as realizadas no período entre 1987 e 1993, no MAC/USP, denominado Estética das Massas. O projeto consistia em trazer para o museu, pelo menos, uma exposição por ano sobre os códigos estéticos das minorias. Segundo Barbosa, o projeto foi realizado “[...] contra o desejo dos historiadores tradicionais de arte e curadores da Universidade, mas muito bem aceito pelos antropólogos e muitos críticos de arte” (BARBOSA, 1998, p. 81).

A escola é a instituição pública que pode tornar o acesso à arte possível para vasta maioria dos estudantes. Isso não só é desejável como também necessário para o desenvolvimento de uma identidade nacional. Barbosa (2001) fala que:

Sem conhecimento de arte e história não é possível a consciência de identidade nacional. A escola seria o lugar em que se poderia exercer o princípio democrático do acesso à informação e formação estética de todas as classes sociais, propiciando-se na multiculturalidade brasileira uma aproximação de códigos culturais de diferentes grupos. (BARBOSA, 2001, p. 33)

Barbosa (2001) fala também sobre o apartheid cultural existente na sociedade brasileira entre a cultura da elite e a cultura da massa. Ela comenta que a elite já se apropriou da cultura da massa, visto o crescente número de teses sobre a arte popular ou ainda a elite econômica desfilando nas escolas de samba no carnaval. As massas também têm direito de ter a sua própria cultura e se apropriar da cultura de elite.

Dentro desse contexto, as vantagens de se trabalhar com arte popular nas aulas de arte tornam-se evidente. A variedade de técnicas e de estilos, que refletem uma cultura diferente em cada lugar, pode ajudar o aluno a entender a multiculturalidade existente em nosso país e propiciar o acesso à valorização desse conhecimento. Ela se aproxima mais do aluno por fazer parte do seu cotidiano, com temas que são também comuns a ele, mas tratados de forma diferente em cada época e região.

Em seu livro A Imagem no Ensino da Arte (2001), Ana Mae Barbosa ressalta a importância de se levar em consideração a herança artística e estética dos alunos com base em seu ambiente. Porém, ela adverte que, se não for bem conduzida, pode criar guetos culturais e manter grupos amarrados aos códigos de sua própria cultura, impossibilitando a decodificação de outras culturas.

Richter (2003) também fala do multiculturalismo no ensino de arte ao trabalhar com a cultura e a arte popular. Ela comenta que é importante incluir a arte de outras culturas no currículo escolar e acrescenta que:

Um aspecto que considerei dos mais importantes para que a multiculturalidade fosse tratada de forma positiva na escola foi a mudança e ampliação do conceito de arte usualmente trabalhado na disciplina Educação Artística, que passou a incluir a arte de outras culturas, seu contexto, não sofrendo nenhuma hierarquização em termos de erudito e popular. [...] este é sempre um dos pontos mais difíceis de serem aceitos e modificados pelas/ os professoras/es de arte, gerando sempre a questão: e o artesanato, como cultura popular, é ou não é arte? (RICHTER, 2003, p. 87)

De acordo com Barbosa (2002), sem uma concepção clara do que é arte, sem conteúdos e objetivos definidos, os professores acabam deixando de lado a questão cultural das obras de arte. Trabalham apenas com a dimensão afetiva da arte. Ignoram que no homem, como já foi dito, três dimensões estão presentes – a afetiva, a cognitiva e a social – e devem ser consideradas no processo de ensino e aprendizagem.

Valorizar os diferentes códigos, a variedade de expressão e o pluralismo de manifestações culturais deveria ser o grande compromisso do arte-educador competente. A reflexão sobre qual é a função da Arte-Educação é imprescindível, e essa está diretamente relacionada à concepção que se tem de Arte. A partir do momento em que se trabalha com o sujeito que lê e aprende, deveriam ser pensadas distintas possibilidades de inseri-los também no universo artístico. Isso porque tal universo não é aquele julgado como Arte Maior, mas como um universo plural e original em suas expressões.

4 Conclusões

O Ensino de Arte é um campo fértil para as discussões multiculturais, visto que o termo “cultura” é usado com frequência em todos os documentos que legitimam e oficializam essa disciplina, como os Parâmetros Curriculares Nacionais e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, mencionados no início deste artigo. Contribuir para o desenvolvimento cultural do aluno é um dos objetivos do ensino de arte, porém nesses documentos não fica claro como isso deve ser feito.

Percebe-se que o ensino de arte é mal interpretado quando comparado com as disciplinas de cunho mais técnico, como Português e Matemática, por exemplo. A esfera da arte ocupa um lugar distinto das disciplinas formais do currículo fundamental. Ela habita o espaço da construção do conhecimento estético, devendo, coerentemente, analisar a produção estética existente e, simultaneamente, permitir uma produção local, individual e coletiva. Tal produção só pode existir amparada pelo estudo da produção que já existe e que representa a história e a cultura de diferentes manifestações artísticas.

Portanto, podemos perceber a variedade de propostas e temas para trabalhar o multiculturalismo através do ensino de arte. Ao utilizar imagens da arte popular, as discussões sobre esse tema podem ser enriquecidas, considerando não só as culturas do artista e as retratadas nas obras, mas também a do próprio leitor que se relaciona com essas imagens.

A expressão artística pode ser estimulada a partir da análise da expressão do “outro”, seja ele configurado dentro de uma obra analisada e interpretada, assim como a produção de arte de uma tribo, dentro de um espaço informal ou até mesmo na produção artística realizada na sala de aula. Ler uma obra de arte e deter seus códigos de interpretação supõe não só um conhecimento intelectual, mas uma outra capacidade de ler e interpretar o mundo, através do contato com diferentes culturas, modos distintos de dar significado estético a sensações e emoções que a arte provoca.

Falar de Arte é falar de cultura. As escolas poderão contribuir ainda mais para o desenvolvimento cultural do aluno quando o multiculturalismo estiver presente não só nas aulas de arte, mas em todas as disciplinas.

Referências

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BARBOSA, Ana Mae. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. 198 p.

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. 134 p.

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CHALMERS, Graham. Seis anos depois de celebrando o pluralismo: transculturas visuais, educação e multiculturalismo crítico. Tradução de Belidson Dias. In: BARBOSA, Ana Mae. (Org.) Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2005. p. 245-263.

FATUYL, R. B. O ensino da arte nos países do terceiro mundo. In: BARBOSA, A. M. (Org.). O ensino da arte e sua história. São Paulo: MAC/USP, 1990.

MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa. GUERRA, M. Terezinha Telles. Teoria e Prática do Ensino de Arte: a língua do mundo. Volume único, livro do aluno. São Paulo: FTD, 2009. 208 p.

MASCELANI, Angela. O Mundo da Arte Popular Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Museu Casa do Pontal, 2006. 110 p.

NASCIMENTO, Erivaldo Alves. Perspectivas multiculturais na Proposta Triangular. Arte & Educação em Revista, Porto Alegre, n. 3, jul./dez, p. 7-11, 1996.

RICHTER, Ivone Mendes. Interculturalidade e Estética do Cotidiano no Ensino das Artes Visuais. São Paulo: Mercado de Letras, 2003. 215 p.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004. 360 p.

VALENTE, A. L. Educação e diversidade cultural: um desafio da atualidade. São Paulo: Moderna, 1999. 112 p.

Notas

1 Palavra de origem francesa que significa fazer “pequenos trabalhos” por um amador com pouco conhecimento e sem ferramentas profissionais.
2 A Proposta Triangular foi desenvolvida por Ana Mae Barbosa em 1987 e consiste em três abordagens para se construir conhecimentos em arte: ler (realizar leitura de imagens em obras artísticas); contextualizar (conhecer a sua contextualização histórica) e fazer (realizar atividades práticas de criação artística).

Notas de autor

1 Especialista em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas (UnB) e Mestranda em Cognição e Linguagem (UENF). Professora de Artes no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) campus Avançado São João da Barra, São João da Barra/RJ – Brasil. E-mail: amanda.melo@iff.edu.br.
2 Doutora em Educação pela Universidade de Barcelona. Pesquisadora colaboradora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NIEM/UFRJ) e do Grupo de Pesquisa em Educação, Migração e Infância da Universidade Aberta do Brasil (EMIGRA/UAB). Professora Associada da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Campos dos Goytacazes/RJ - Brasil. E-mail: biankapires@gmail.com.
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