Artigos de revisão

Por trás das burcas de Cabul: Uma análise da condição das mulheres afegãs pela perspectiva do Gênero a partir de “O Livreiro de Cabul”

Behind the Kabul burqas: An analysis of the condition of Afghan women by the Gender perspective from "The Bookseller of Kabul"

Natália Soares Ribeiro 1
Brasil

Por trás das burcas de Cabul: Uma análise da condição das mulheres afegãs pela perspectiva do Gênero a partir de “O Livreiro de Cabul”

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 18, núm. 2, pp. 193-205, 2016

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Recepción: 27 Marzo 2015

Aprobación: 15 Julio 2015

Resumo: O presente trabalho se propõe a analisar a condição das mulheres afegãs e a divisão sexual do trabalho a partir do romance “O Livreiro de Cabul”, da jornalista norueguesa Asne Seierstad, escrito em 2002. Seierstad conviveu por três meses com a atípica família de um livreiro no Afeganistão e pôde acompanhar sua rotina. Revoltada com a condição de vida das mulheres, produziu um relato que pode ser compreendido a partir do gênero como categoria de análise sociológica. Dessa forma, este paper utilizará trechos do livro e os discutirá à luz de teorias.

Palavras-chave: Gênero, Divisão Sexual do Trabalho, Cultura Afegã.

Abstract: This paper aims to examine the condition of Afghan women and the sexual division of labor from the novel “The Bookseller of Kabul”, by Norwegian journalist Asne Seierstad, written in 2002. Seierstad lived for three months with the atypical family of a bookseller in Afghanistan and could follow its routine. Disgusted with the women’s living conditions produced a report that can be understood from the gender as a category of sociological analysis. Thus, this paper will use excerpts from the book and discuss them in the light of theories.

Keywords: Gender, Sexual Division of Labor, Afghan Culture.

1 Introdução

Historicamente, em culturas tanto orientais como ocidentais, as mulheres foram confinadas ao ambiente doméstico e tratadas como seres incapazes intelectualmente, frágeis, caseiras, passivas, dotadas pelo dom da maternidade; enquanto os homens, a seu oposto, foram tidos como fortes, viris, inteligentes. Isso se legitima através dos discursos simbólicos, que têm sua base num sistema de pares dualistas: alto e baixo, direita e esquerda, quente e frio, claro e escuro, ativo e passivo. Dessa forma, existiria um polo positivo (homem) e outro negativo (mulher). Para a Enciclopédia Einaudi (1989, p. 4), o discurso ideológico que tem por base os símbolos buscam

justificar a supremacia do homem aos olhos de todos os membros da sociedade, tanto aos das mulheres quanto aos dos homens, porque quer uns quer outros participam por definição da mesma ideologia, inculcada desde a infância.

Dessa maneira, as diferenças anatômicas percebidas entre homens e mulheres serviram para legitimar uma dominação masculina e fazer com que ela parecesse natural. As características imputadas a homens e mulheres não eram tidas, portanto, como construções históricas, sociais.

A fim de compreender o lugar atribuído às mulheres afegãs na divisão social do trabalho, bem como em termos de cidadania, torna-se imprescindível contextualizar um pouco o conceito de gênero, na medida em que fornece respaldo para uma análise da organização da vida social. Cabe ressaltar que essa categoria no presente trabalho é entendida enquanto a organização social da relação entre os sexos e estabelece sempre uma relação hierárquica de poder (SCOTT, 1989).

Scott (1994) considera que gênero, portanto, não se refere às diferenças físicas e naturais entre homens e mulheres, mas reflete os significados construídos histórica e socialmente sobre essas diferenças. Assim, é possível inferir que esses são variáveis no tempo e se modificam de acordo com as culturas e grupos sociais, da mesma forma como essa categoria é útil para analisar discursos e lutas pelo poder. A inserção dessa categoria na ciência possibilitou compreensão de que a história nunca foi escrita de maneira imparcial, mas antes tudo que a constituição das sociedades se apropriou e construiu um discurso que pudesse legitimar o homem, branco e heterossexual como medida de superioridade e normalidade.

Minha pretensão é mais modesta: é que gênero é tanto uma boa maneira para se pensar sobre a história, sobre os modos pelos quais hierarquias de diferença – inclusões e exclusões – foram constituídas, quanto de elaborar uma teoria (feminista) política. Tal admissão de parcialidade me parece, não significa reconhecer a derrota na busca de explicações universais: sugere, antes, que explicações universais não são, e nunca foram, possíveis (SCOTT, 1994, p. 26).

No Ocidente, a inclusão da categoria gênero na academia se deu atrelada à influência do movimento feminista, nascente nos anos de 1960 nos Estados Unidos e que se tornou enfático nos anos de 1970, expandindo-se para países europeus e latino-americanos. Movimentos sociais de liberalização das mulheres “introduziram novas perspectivas e novas interrogações aos diferentes saberes disciplinares e à ciência, à epistemologia e à filosofia enquanto tais. Reivindicaram, portanto, um caráter inovador em face à tradição dos saberes disciplinares” (MACHADO, 1997, p. 94).

No Oriente, no entanto, especificamente no caso a ser analisado por este trabalho, ou seja, no Afeganistão, os direitos e a cidadania das mulheres parecem não entrar em debate e nem ao menos serem discutidos e refletidos. O caso do Afeganistão é uma prova de que nem sempre a História caminha em direção ao progresso, mas, ao seu contrário, pode retroceder. Segundo Seierstad (2006), até meados da década de 1990, não era incomum ver as mulheres que trabalhavam fora de casa na capital Cabul, vestidas no estilo ocidental, da mesma forma como era possível frequentar a escola e o trabalho.

Interessante que, em seu livro, a autora conta como a burca (emblema da repressão das mulheres) surgiu e foi difundida no país a partir do regime do rei Habibullah entre 1901 e 1919. Tal rei impôs às duzentas mulheres de seu harém o uso da burca para que ninguém nos âmbitos externos do castelo pudesse ver seus rostos, o que acabou por se transformar num símbolo de status entre as classes mais pobres e fez com que nos anos de 1950 esse traje estivesse em tácita aceitação e legitimação. Porém, na década de 1960, o primeiro-ministro, príncipe Daoud, criticou o uso da burca e incentivou a criação de lei para bani-la do vestuário de funcionárias públicas, mas com a guerra civil imposta por diferentes grupos étnicos, religiosos e regime islâmico acirrado, cada vez mais as mulheres se cobriam e se afastavam da vida pública, o que se tornou inviável a partir do regime talibã (1996-2001). Segundo a autora, essa vestimenta prejudica a respiração e possui o cheiro de cada uma, acumula lixo e poeira, ao mesmo tempo que só conseguem olhar em uma direção, daí comparar as mulheres de burca a cavalos com antolhos. Isso demonstra que a cidadania que vinha sendo conquistada pelas mulheres do país sofreu um grande retrocesso, os direitos civis, políticos e sociais que nunca chegaram ser gozados de forma satisfatória foram precocemente banidos.

Os discursos que legitimam a opressão sofrida pelas mulheres no Afeganistão são os mesmos que o fazem no Ocidente. Claro, eles se manifestam de maneira diferenciada, mas possuem a mesma raiz e legitimam a dominação masculina, que se manifesta através dos símbolos, das instituições e até mesmo pela via dos sentimentos, ou seja, ela é da ordem de uma violência simbólica (silenciosa internalizada por homens e mulheres, o que faz com que ambos a reproduzam) (BOURDIEU, 2003). E é por isso que o presente trabalho utiliza o gênero como uma categoria privilegiada (não a única) para a compreensão da organização da vida social.

2 Cultura Afegã, lugar atribuído às mulheres na divisão sexual do trabalho e controle do corpo feminino

Asne Seierstad conviveu durante três meses com a família de Sultan Khan (livreiro em Cabul) na primavera em 2002, fazendo parte de sua vida cotidiana e compartilhando alguns dos seus costumes, como utilizar a burca. Essa família poderia, segundo a autora, ser classificada como atípica, pois alguns de seus membros, incluindo as mulheres, possuíam estudo e não passavam fome, apesar da situação de escassez que assolava o Afeganistão. Entretanto, pôde observar acirradas assimetrias de poder entre homens e mulheres e a maneira como as famílias se organizavam, na medida em que como jornalista ocidental era vista como “criatura bissexuada” e por isso podia transitar perfeitamente entre o mundo das mulheres e o dos homens. Uma noite, durante um jantar,

Sultan contava histórias, os filhos riam e contavam piadas. O tom era descontraído, ao contrário das refeições simples com os comandantes nas montanhas. Mas percebi logo que as mulheres pouco falavam. A bela esposa adolescente de Sultan ficava sentada quieta perto da porta com seu bebê sem dizer uma palavra. Sua outra esposa não estava presente nesta noite. As outras mulheres respondiam perguntas, recebiam elogios pela comida, mas não tomavam a palavra para iniciar uma conversa (SEIERSTAD, 2006, p.10)

A cisão era tão profunda nessa cultura que era possível imaginar dois mundos distintos, sendo que o das mulheres se encontrava subordinado ao dos homens. A dominação masculina era de tal forma legitimada que raramente se viam questionamentos. “Em discussões ficava claro que, para a maioria deles, as mulheres são de fato mais burras que os homens, que o cérebro delas é menor e que não podem pensar de maneira tão clara quanto os homens” (SEIERSTAD, 2006, p. 13).

O que existe nesse caso é uma relação hierárquica entre casa e família. A mulher está relacionada a casa, assim como o homem à família. Segundo Sarti, em “Família como espelho” (1996), a casa e a família são complementares, mas hierárquicos, na medida em que a casa se insere na família. Dessa forma, o homem seria o chefe da família e o responsável por estabelecer todas as relações externas, nesse sentido, mediando as relações da casa com o mundo externo. Ele é quem garante respeito e faz da família uma unidade positiva de moralidade.

Dessa forma, era Sultan Khan, o patriarca da família que impunha respeito, principalmente pela sua condição econômica e por ser o primogênito. Todos da família deveriam obediência ao mesmo, que, embora se considerasse um libertário, era autoritário e assumia para si as nítidas benesses do patriarcado.

O casamento no Afeganistão é, antes de tudo, um contrato econômico entre duas famílias ou entre o mesmo clã, não existindo espaço para escolha norteada por sentimentos, os noivos não se conhecem e não podem trocar palavras até o dia do casamento. Nessa relação, mulheres são vistas como objetos que podem facilmente ser comercializadas num negócio rentável para suas famílias. Nesse sentido, cultivar a beleza e a juventude, torna-se fundamental para o estabelecimento do contrato. Os homens escolhem e pagam por suas noivas, são eles que têm o poder de decisão e escolha, nunca elas.

Giddens (2000) evidencia dois modelos de família, quais sejam: a tradicional na qual haveria uma assimetria de poder entre homens e mulheres, adultos e crianças e significava essencialmente uma unidade econômica; e a família moderna, cujas relações deixariam de ser hierarquizadas, havendo direitos para crianças e mulheres e a base seria a confiança, os laços de afeto e de amor. Assim, pode-se perceber que no país citado permanece a configuração da família tradicional, na qual impera o fator econômico como preponderante e a mulher se torna propriedade de seu marido e tratadas como “bens móveis”. Tal desigualdade, obviamente, reflete na vida sexual, ou melhor, no controle da sexualidade da mulher, sendo enfatizado nas moças “para casar” a virgindade e o recato; enquanto nas casadas, a fidelidade. As mulheres compradas pelos maridos tinham por obrigação a reprodução da linhagem viril, masculina e também a manutenção das obrigações do lar, a arrumação escrava e sem nenhum reconhecimento (GIDDENS, 2000).

Segundo Zanotta (2001), no mundo ocidental a partir dos anos de 1960 houve uma mudança da ordem de importância da família para a valorização dos membros do grupo familiar e da concepção de que o amor seria a base para a permanência do casamento, o que não pôde ser evidenciado no Afeganistão, bem como em outros países orientais, como o Paquistão, Nepal, Índia e tantos outros que impedem que as mulheres escolham, até mesmo, seus maridos. Apesar de o Ocidente ter avançado nesse sentido, pode-se perceber, ainda, uma clara divisão sexual do trabalho. Divisão essa que se manifesta amplamente ao redor do mundo.

Voltando à composição dos casamentos no Afeganistão, pode-se tomar como exemplo o casamento de Sultan Khan com Sonya, sua segunda esposa, que possuía apenas 16 anos na época do compromisso. O pedido de casamento deve ser feito a família da noiva por uma das mulheres do noivo, pois são elas que devem avaliar se a escolhida é boa dona de casa e recatada, ou seja, se cumpre as tarefas privadas decentemente e com destreza. No caso de Sultan Khan, que desejava se casar com uma moça do seu próprio clã, as mulheres de sua família não aceitaram fazer o pedido em consideração a Sharifa, sua primeira esposa, a qual ele julgava velha para cumprir as atribuições de esposa. Por isso mesmo resolveu fazer ele próprio o pedido, precisando voltar várias vezes à casa dos parentes. Quanto menos ansiedade a família da noiva demonstrasse e quanto maior fossem as insistências do noivo para que o casamento se realizasse, maior se tornava o preço da mulher. A família de Sonya era pobre e o pai não podia mais trabalhar pela paraplegia adquirida numa briga com facas e sabia que o dote que podiam conquistar seria grande, pois quanto mais velho fosse o homem mais teria a pagar pela filha jovem e bonita. Depois dos pais terem aceitado a oferta, o tio de Sonya foi conversar com ela:

- É tio Sultan o pretendente – ele disse. – Você aceita?

- Seus pais já o aceitaram – disse o tio. – Esta é a única chance de dizer o que você quer.

Ela estava petrificada, assustada e paralisada. Sabia que não queria aquele homem, mas sabia também que era obrigada a aceitar os desejos dos pais. Como esposa de Sultan ela subiria vários degraus na sociedade afegã. O dote valioso solucionaria muitos problemas de sua família. O dinheiro que os pais iam receber ajudaria os irmãos a comprar boas esposas. Sonya continuou calada. Assim seu destino se selava: quem cala consente. O acordo foi concluído e o dia do casamento marcado (SEIERSTAD, 2006, p. 23)

Todos os destinos das mulheres de Cabul são selados da mesma forma. Numa sociedade na qual não há lugar para a ascensão social por outros meios, como a educação, alcança-se status pelo casamento, já que o homem é quem garante a respeitabilidade e o casamento funciona como unidade econômica. Quanto a Sharifa, ela chorou por vários dias, não conseguia entender por que o marido não estava satisfeito com ela, preferindo trocá-la por uma analfabeta. Assim, teve que engolir seu choro, pois o marido ordenou que aparentasse apoiá-lo na decisão. E como não podiam falar e questionar uma ordem masculina, as mulheres da família Khan (como forma de resistência) não compraram roupas novas para o casamento, como era de costume, tendo Sharifa se ausentado dessa comemoração.

As esposas vendidas nas transações comerciais, ou seja, nos casamentos passam a residir na casa do noivo e devem conviver com a família dele, não podendo visitar a sua quando desejar, apenas quando o marido permitir, da mesma forma que seus parentes só poderão entrar em sua nova casa com a ordem do patriarca, a partir desse momento a mulher se torna propriedade do homem. O casamento é consumado quando se envia o pano sujo de sangue à família da noiva, comprovando a virgindade e castidade da mesma. Do contrário, é a noiva que é enviada à sua família e punida, muitas vezes com a própria vida.

Na casa de Sultan Khan moravam 13 pessoas, seus cinco filhos, duas esposas (Sharifa e Sonya), um irmão (Yunus), três irmãs (Leila, Bulbula e Shakila), sua mãe (BibiGul) e o próprio. Posteriormente suas irmãs foram dadas a um casamento e passaram a morar com a família do noivo. As histórias dessas mulheres se assemelham e intercruzam, em nenhuma delas há espaço para a autonomia e realização pessoal. As mulheres são criadas e educadas para servir aos homens, nunca para questionarem suas decisões. Impulsionarem seus sonhos não é uma opção. Todas foram dadas em casamento pelas suas famílias em troca de dote, exceto as duas meninas, crianças ainda, e filhas de Sultan Khan. Mulheres e homens têm funções muito distintas e delineadas nessa sociedade. Enquanto as mulheres são confinadas ao ambiente doméstico e trabalham sem parar, os homens trabalham fora de casa até 12 horas diárias e seis dias por semana. As atribuições imputadas a cada gênero são aprendidas desde a infância.

Para compreender como se dá a estruturação dos trabalhos femininos no Afeganistão, é imprescindível a utilização do conceito de divisão sexual do trabalho. Segundo Hirata e Kergoat (2007), o conceito surgiu atrelado ao movimento feminista da França dos anos de 1970 e trata-se não apenas de denunciar as desigualdades como refletir o trabalho em si. Interessa às autoras compreender que as diferenciações nas funções e trabalhos de homens e mulheres são sistemáticas e servem para criar um sistema de gênero, ou seja, tarefas hierarquizadas, como tratar as do homem como principais e mais importantes e as das mulheres a seu oposto como simples e sem importância. Busca, portanto, compreender a raiz das desigualdades e considerar o trabalho doméstico tanto quanto o profissional. Assim:

Foi com a tomada de consciência de uma “opressão específica” que teve início o movimento das mulheres: torna-se então coletivamente “evidente” que uma enorme massa de trabalho é efetuada gratuitamente pelas mulheres, que esse trabalho é invisível, que é realizado não para elas mesmas, mas para outros e, sempre em nome da natureza, do amor e do dever materno (HIRATA, KERGOAT, 2007, p. 597)

O trabalho doméstico tende a ser obscurecido, na medida em que a divisão sexual do trabalho expressa a forma como se dão as relações sociais baseadas no sexo e é fundamental para a manutenção e legitimação dessas relações assimétricas, ou seja, da permanência dos homens enquanto sujeitos dotados de poder de decisão e ocupantes de cargos de maior peso e notoriedade.

Dessa forma a divisão sexual do trabalho estipula que existem dois tipos de trabalho: um de homem e outro de mulher, e que o primeiro vale mais que o segundo.

Essa divisão está clara no Afeganistão e é passível de ser analisada, por exemplo, em passagens do livro, como as citadas a seguir.

Sultan Khan havia levado Sharifa e Sabnam (sua filha) para cuidar e morar na casa no Paquistão, onde se encontravam seus livros mais preciosos, tinha internet, computador, telefone e correio, serviços que não funcionavam em Cabul. Foi levada para morar lá porque era prático para o marido e ficaram por um ano. Tal casa foi abrigo para a família Khan durante a guerra em Cabul, um refúgio para as bombas e balas e não oferece condições adequadas de moradia. Como Sultan nunca avisava quando iria vê-la todos os dias ficava a esperar por ele com as seguintes tarefas:

Todas as refeições são preparadas para a chegada do marido. Um frango especialmente gordo, o espinafre de que ele tanto gosta, o molho caseiro de pimenta verde. Roupas limpas e passadas na cama. A correspondência bem arrumada numa caixa. As horas passam. O frango é novamente guardado, o espinafre pode ser requentado e o molho de pimenta volta para o armário. Sharifa varre o chão. Lava as cortinas. Limpa a eterna poeira (...). Faz 18 anos que Sultan e Sharifa se casaram, e dois anos desde que ele se casou com uma segunda esposa. Sharifa vive como uma mulher divorciada, mas sem a mesma liberdade. É Sultan quem ainda toma as decisões por ela. (...) O divórcio nunca foi uma alternativa para Sharifa. Quando uma mulher pede o divórcio, ela praticamente perde todos os seus direitos. Os filhos seguem o marido e ele pode até impedi-la de vê-los. A mulher se torna uma vergonha para a família, é muitas vezes expulsa, e todos os seus bens cabem ao marido. Sharifa teria que mudar para a casa de um dos irmãos (SEIERSTAD, 2006, p. 42)

No primeiro ano do casamento de Sonya e Sultan, era Sharifa que tinha as tarefas mais pesadas: preparava as comidas, servia-os, limpava, arrumava as camas e também ensinou Sonya a preparar os pratos favoritos do marido, “a temperatura da água para se banhar, e outras coisas que uma esposa deve saber sobre o marido” (idem, 2006, p. 44).

A história de Leila, a irmã mais nova de Sultan com 19 anos, representa a total invisibilidade do trabalho doméstico e da exploração que os homens exercem sobre as mulheres, é ela quem se levanta primeiro e dorme por último na casa, executa diversas tarefas para que o conforto, principalmente, dos homens esteja garantido.

De manhã, acende o fogo na estufa da sala com gravetos, enquanto os outros ainda estão roncando. Depois acende o fogo na estufa do banheiro e ferve água para cozinhar, lavar roupas e louças. Nunca há eletricidade nessa hora do dia e Leila já se acostumou a andar no escuro. Às vezes ela carrega uma lâmpada pequena. Depois ela prepara o chá. Deve estar pronto quando os homens acordarem lá pelas seis e meia, senão tem encrenca. Enquanto há água, ela fica enchendo as bacias, porque nunca se sabe quanto tempo tem até o abastecimento ser interrompido, às vezes uma hora, às vezes duas (...). Em geral Sultan fica a sós com Sonya tomando chá e café-da-manhã. Sonya cuida dele, Leila faz o resto. Enche as bacias de água, pega as roupas, serve o chá, frita ovos, busca pão, escova sapatos. Os cinco homens da casa estão saindo para trabalhar. Com grande resistência ela ajuda os três sobrinhos, Mansur, Eqbal e Aimal, a se aprontarem para sair. Nunca ouve um obrigado, nunca a ajudam. “Crianças malcriadas”, Leila resmunga consigo mesma quando os três rapazes, poucos anos mais jovens do que ela, lhe dão ordens (SEIERSTAD, 2006, p. 191)

Os meninos desde crianças aprendem a dar ordens às mulheres e essas a acatar, nunca manifestando uma posição contrária ou sua opinião. Leila é a última a tomar o café da manhã, depois varre os quartos e a casa inteira várias vezes por dia. Quase todas as tarefas são dadas a ela por fazer tudo muito bem, ela “foi criada para servir e virou uma criada. Todos mandam nela” (idem, 2006, p. 201). O trabalho das mulheres não é visto como tal. Por vezes, durante as refeições, não há carne para todos, apenas para Sultan e seus filhos homens, talvez para sua mãe. Segundo o livreiro, isso se justifica na seguinte frase: “- Vocês não trabalham para merecer. Vocês vivem do meu dinheiro” (idem, 2006, p. 200). Os sobrinhos cresceram com Leila, mas não como amigos e irmãos, senão como patrões. Ela possui estudo e fala inglês fluentemente, possui sonhos de se tornar uma professora de inglês e pelo menos economicamente deixar de depender do irmão. Porém, as barreiras são muitas para que isso se torne realidade, além de precisar da permissão dele para seguir em frente. Como nunca esteve acostumada a lutar por algo que deseja, acaba desistindo.

Durante o Regime Talibã, as mulheres foram proibidas de sair de suas casas desacompanhadas de um homem da família, os estudos e trabalhos lhes foram vetados, o uso da burca foi estipulado como obrigatório, entre outras obrigações. Foi um Regime severo para as mulheres e de muitas proibições, cuja desobediência poderia ser punida com a vida (SEIERSTAD, 2006).

Uma das irmãs de Leila, Shakila (já passava dos 30 anos) se formou como professora de biologia e matemática e apesar dos numerosos pretendentes que recebia, sua mãe sempre adiava o casamento por valorizar que estudasse e trabalhasse, o que um marido certamente não desejava. “Shakila queria ler e aprender, e nenhum dos pretendentes via nada de útil numa esposa obstinada e instruída. Além disso, muitos deles eram analfabetos” (SEIERSTAD, 2006, p.91).

Na década de 1980, Shakila trabalhou e se vestia conforme os costumes ocidentais. No entanto, depois que o Regime talibã se impôs ao Afeganistão e que as guerras civis eclodiram, na década de 1990, ficou reclusa ao ambiente doméstico, tarefa que lhe caía bem, pois a vida inteira foi ensinada a cumprir as “obrigações domésticas”. Um dia, lhe arrumaram um casamento com um cinquentão viúvo e pai de dez filhos chamado Wakil, mas Shakila tinha outras preocupações além das tarefas domésticas.

Já pensaram se ele se mostrar um tirano, se não for gentil, se não me deixar sair? – As irmãs ficaram em silêncio com os mesmos pensamentos tristes. – Já pensaram se ele não me deixar visitar vocês, se me bater? (SEIERSTAD, 2006, p. 96)

Um dia na casa de sua irmã Mariam, sem os mais velhos por perto, os noivos puderam conversar. Apesar de Shakila não manter contato visual com o noivo, pois não era permitido pelas tradições, ele expõe, deixando claras as tarefas que terá que assumir depois de casada, explicitando suas ordens:

- Imagine quando estivermos casados e você tiver a minha comida pronta quando eu chegar em casa. Você sempre estará em casa me esperando – sonha Wakil. – Nunca mais vou ficar só. (...) Shakila se cala, mas depois toma coragem e pergunta se ele vai permitir que ela continue trabalhando depois do casamento. Wakil diz que sim, mas Shakila não confia nele. Ele pode mudar de ideia assim que casarem. Mas ele assegura que se trabalhar a deixa feliz, deve continuar. Além de cuidar dos seus filhos e da casa. (...) – Você deve usar o véu. É obrigação da mulher usar a burca. Pode fazer como quiser, mas se não usar a burca, vou ficar triste. Você quer me ver infeliz? – Wakil pergunta em tom ameaçador.

- Mas se houver mudanças em Cabul e as mulheres começarem a andar de roupas modernas, eu também vou querer – Shakila rebate.

- Você não vai andar de roupas modernas. Você vai querer me ver infeliz? Shakila não responde (SEIERSTAD, 2006, p. 98)

Interessante notar, a partir da história de Shakila, como a divisão sexual do trabalho estabelece o lugar da mulher no âmbito privado, ou seja, no lar e o homem na vida pública, ainda que ela possa trabalhar, deverá manter suas obrigações na esfera que “lhe pertence”, o que lhe acarretaria múltiplas jornadas de trabalho. No entanto, o trabalho remunerado é apontado por variadas correntes feministas como o meio fundamental para propiciar a libertação feminina, dadas as dificuldades para se construir autonomia estando vinculado economicamente a alguém. (SARTI, 1997).

No Ocidente também continua a predominar uma invisibilidade do trabalho da mulher no lar. Esse trabalho no âmbito doméstico, não pago, tende a ser visto como não trabalho, conforme já explicitado anteriormente, devido a não possuir valor de troca (o que mais importa na sociedade capitalista, pois garante a acumulação), mas valor de uso, ou seja, trabalho para suprir as necessidades de sua família. Isso faz com que o trabalho executado por mulheres seja considerado inferior; enquanto o dos homens superior. Para Helena Hirata (2009), a divisão sexual da precarização do trabalho não pode ser estudada sem que se reflita também a dimensão extratrabalho, ou seja, a relação entre homens e mulheres na esfera doméstica. O que no caso de Shakila, não seria alterado.

Assim, a quebra do isolamento do lar e a participação da mulher no espaço público, mesmo que incipiente no Afeganistão, como se pôde observar, deram-se por um processo de reações e conquistas que se arrastam por décadas pós-regime Talibã. E mesmo quando existe participação da mulher no mercado de trabalho remunerado, isso se dá em condições visivelmente desiguais e excludentes em relação aos homens. Elas tendem a ocupar os cargos ligados às funções historicamente concebidas como femininas, como setores relacionados ao cuidado e à educação, e os trabalhos mais precários e destituídos de direitos sociais (NOGUEIRA, 2008).

Da mesma forma que Nogueira (2008), Londa Schienbinger (2001), em o “Feminismo mudou a Ciência”, demonstrou através de pesquisas empíricas que as mulheres em diversos países se concentram em atividades desprovidas de status, que não estão ligadas ao poder nem ao privilégio. Assim, em muitos países do Ocidente, nos quais as áreas exatas (matemática, física e outras) são valorizadas, é notório perceber que a participação das mulheres é pouco significativa, o que demonstra que mulheres e homens recebem educações muito diferentes e que as aptidões e construções da masculinidade e feminilidade estão sendo inculcadas desde tenra infância.

3 Considerações Finais

Os fragmentos das histórias acima demonstram que a divisão sexual do trabalho está vinculada ao domínio do corpo feminino pelos homens. Manter a mulher na esfera reprodutiva se tornou condição necessária para que os homens no Afeganistão pudessem participar da esfera produtiva, uma vez que é o trabalho delas que propicia o trabalho deles no âmbito público. Aquelas que se atrevem a resistir e tentar se unir a um homem, não escolhido pela sua família, por amor, são muitas vezes punidas com a própria vida. Existe uma violência de ordem simbólica que se manifesta pelos discursos e pelas instituições sociais, principalmente pela família tradicional e a religião, no Afeganistão, fazendo com que até mesmo as mulheres a reproduzam (BOURDIEU, 2003). No entanto, existe também uma violência coercitiva que se impõe pela força física, pois na medida em que a partir do casamento a mulher se torna propriedade do homem e tem todos os seus direitos negados, a agressão se torna comum.

A família como defensora básica da moral feminina e o Estado Afegão atrelado à religião fazem com que a conquista de cidadania por parte das mulheres do país seja dificultada. A cidadania é entendida no presente trabalho como aquisição de direitos políticos, civis e sociais que possibilitam igualar o status das pessoas de uma comunidade para que possam mobilizar recursos e negociar seus direitos (MARSHALL, 1967). No país em questão, as mulheres não conquistaram nem os direitos civis, compreendidos como liberdade individual, direito de ir e vir, de locomoção e de se expressar livremente. Os direitos civis são os básicos de qualquer sujeito, o que significa que, se não podem se manifestar, pouco poderão se fazer representar politicamente e lutar para que direitos sociais venham ao encontro das suas necessidades específicas.

No Ocidente, o que fez com que as necessidades das mulheres fossem publicizadas e demandassem uma intervenção pública foi o movimento feminista, trazendo à tona que masculino e feminino são construções sociais e históricas (SORJ e HEIBORN, 1999). Da mesma maneira como tornaram pública a questão das políticas sociais servirem ao longo dos anos, em sua maioria, para legitimar a privatização da mulher a espaços considerados femininos e à família, pois dessa forma as medidas econômicas adotadas pelo Estado poderiam ser postas em prática. A família e a sobrecarga do trabalho da mulher não pago funcionaram como parceiros do Estado (CAMPOS e TEIXEIRA, 2010).

Percebe-se, portanto, que as culturas também são construções humanas, ou seja, sociais e não dadas naturalmente. As culturas devem ser compreendidas como um processo que estão em contínua transformação. No livro também é demonstrado que existe resistência por parte de grupos de mulheres, que começam a reivindicar seus direitos enquanto sujeitos políticos e históricos. Após a queda do regime talibã no Afeganistão surgiram diversas organizações de mulheres e mesmo durante o regime, Asne Seierstad (2006) aponta que havia associações organizando escolas para mulheres às escondidas e que foi lançada também uma revista feita para e por mulheres. A autora alega que durante a assembleia em 2002 elas marcaram presença, uma delas até exigindo um ministro de defesa feminino. Ainda que ridicularizadas pelos homens, isso demonstra que as mulheres do Afeganistão não estão inertes, o que pode culminar futuramente em um consolidado movimento feminista com inserção em vários âmbitos da vida social, modificando assim, a estrutura do sistema afegão.

Dessa forma, é preciso refletir o contexto em que as mulheres se inserem e compreender a raiz dos discursos simbólicos, o que significa dizer que, para romper com a aparente submissão das mulheres aos homens não basta a tomada de consciência por parte dos atores envolvidos, mas uma ação política que busque desconstruí-la e que, por isso mesmo, possa levar em conta todos os determinantes e efeitos desse processo de naturalização.

Referências

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Notas de autor

1 Assistente Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF, polo de Campos dos Goytacazes) e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Campos dos Goytacazes/RJ-Brasil. E-mail: natysoaresribeiro@hotmail.com
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