Artigos Originais
Significados da Casa e do Morar
Meanings of the Home and Living
Significados da Casa e do Morar
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 18, núm. 2, pp. 207-219, 2016
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 09 Abril 2015
Aprobación: 17 Septiembre 2015
Resumo: A proposta é tecer considerações sobre o significado do lugar de moradia, particularmente o da casa, cuja perspectiva recai sobre os processos socioculturais subjacentes a sua espacialidade. Trata-se de artigo essencialmente teórico pautado por pesquisa bibliográfica. Com o recurso de tal metodologia, a investigação foi conduzida no intuito de explorar fontes etnográficas relacionadas à antropologia do espaço. O eixo norteador das reflexões são as moradias e as relações nelas estabelecidas, com ênfase na interseção entre aspectos territorial, arquitetônico, cultural, sociodemográfico e psicológico. Para além de abstrações conceituais, o exercício é de apreensão do significado do e no espaço, para compreensão da importância da casa e das relações estabelecidas entre ela e os que nela habitam.
Palavras-chave: Lugar de moradia, Significado da casa, Espaço de relações.
Abstract: This study aims at making considerations about what homes mean to their residents, particularly the house, whose perspective lies with the approach related to the sociocultural processes underlying its spatiality. The article is essentially theoretical and based on the literature. Following this methodology, the research was conducted in order to explore ethnographic sources focused on the anthropology of space. Reflections were guided by the notion of homes as well as the relations established in them, with emphasis on the intersection between the territorial, architectural, cultural, sociodemographic and psychological aspects. In addition to conceptual abstractions, the investigation aims to understand the meaning of and in space, the importance of homes, and the relationships established between them and their residents.
Keywords: Dwelling place, Meaning the house, Relations space.
1 Introdução
As casas são feitas através de escolhas e decisões autoconscientes, propriedades estas que, em última instância, distinguem pessoas de animais. Tal construção tem início com a escolha de um território, o qual é também usado como locus simbólico, onde ocorrem específicas relações sociais (VASCONCELOS, 2000).
Na Antropologia, a categoria casa tem sido utilizada para delimitação dos espaços onde são constituídas práticas sociais entre diversos agrupamentos humanos. Como base analítica, tal categoria nos permite a identificação de elementos reveladores das concepções de mundo. Com essa premissa Levi-Strauss (1983), utilizando-se da Etnografia e da História, analisou distintas organizações sociais e identificou a casa como instituição comum entre elas. Com foco nas relações de parentesco (por consanguinidade ou aliança), escreveu a “Sociedade de Casas”.
Referenciados no trabalho de Lévi-Strauss (Ibid.), Carten e Hugh-Jones (1995) sugerem que os estudos sobre casas se voltem para as relações de parentesco, para a economia política e outras abordagens, mas que não descuidem dos significados a elas atribuídos, numa perspectiva de totalidade.
Nessa linha de raciocínio, mas com olhar fenomenologicamente direcionado, Merleau-Ponty (1962) dá destaque a casa, como o principal centro de habitação humana. Ela tem voz e alma (BACHELARD, 1964; BUTTIMER, 1980). Por isso, longe de ser algo inerte, a casa é manifestação concreta das experiências vividas, ainda que distintas entre homens e mulheres (VASCONCELOS, 2000).
Desse modo, é possível afirmar que as casas absorvem as histórias de vida de seus habitantes, no fluxo do seu desenvolvimento. Não raro, quando a família cresce, a casa também se estende, num movimento de incorporação das vivências de seus habitantes. São as experiências na casa que a qualificam como tal. Através delas nos sentimos ou não em casa.
Ponto de referência para apreensão do entorno, a casa dialoga com o mundo ao redor. Trata-se de uma fração do espaço da cidade, do bairro, da rua, que possibilita a comunicação entre público e privado, cuja fronteira tênue é produto de apropriações e práticas reveladoras de códigos sociais e culturais, com os quais as pessoas atribuem significados à moradia e, por sua vez, ao que lhe é exterior.
Na visão de Freitas (2001), são as oposições sociais tais como: público/privado, comunidade/identidade e as oposições espaciais: dentro/fora, casa/imediações, que permitem aos sujeitos a leitura de diferentes linguagens, num jogo dialético da casa como expressão territorial.
Considerando que o espaço antecede ao uso, e o uso, por sua vez, produz novos espaços, nos interessa pensá-lo em sua configuração sociocultural, com ênfase na esfera doméstica — enquanto lugar privilegiado de relações. Nesses espaços são construídas identidades individuais e sociais, num processo de significação do território que os sujeitos se apropriam e dominam.
Com essa noção, Schrijnemaekers (2006, p.209) afirma ser a casa um “cartão de visitas” que sempre revela seus moradores, de modo que nada é natural quando nos referimos a ela. Por essa razão, a proposta não é transitar por seus cômodos, mas por relações definidas por meio de conjuntos arquitetônicos, culturais, econômicos, sociodemográficos, psicológicos e políticos que mudam durante o tempo (BRANDÃO; HEINECK, 2003, p.36).
Convido você leitor (a) a uma incursão para explorar a casa, enquanto entidade complexa e categoria analítica, no intuito de realizar algumas apreensões desse espaço de relações.
2 A Casa: espaço de relações
É somente como seres habitantes que nós temos acesso ao mundo. A casa, corpo e cidade são lugares onde nós nascemos e renascemos e de onde nós saímos para o mundo afora [...] (JAGER, 1992 apud HIGUCHI, 2003, p.52)
A habitação receberá tratamento para além do aspecto territorial e de ordenação espacial. Objetiva-se destacar o caráter multidimensional e dinâmico dos significados da casa e do morar, cuja intenção é refletir sobre alguns pontos que possam auxiliar a definição da casa enquanto entidade complexa.
Ao tomar a casa e a rua para entender o comportamento, as relações e as contradições da sociedade brasileira, Da Matta (1997) refere-se a tais categorias como “entidades morais” diante da riqueza de seus significados. Considera que se deve levar em conta que não se trata apenas de espaços geográficos, mas de modos de ler, explicar e falar do mundo.
Do ponto de vista geográfico, a casa é uma porção do território assentada num espaço e se constitui enquanto um lugar, no momento que é apropriado e simbolizado pelos sujeitos que a habitam. Desse modo, a casa se torna casa pelo fato de se estar vivendo nela. Para Tuan (1983, p.198), lugar é onde a realidade se constrói por meio de práticas cotidianas. Trata-se de um espaço estruturado, “um mundo de significado organizado, onde espaço e tempo se misturam”.
Moreira (2000) em texto intitulado Adélia Prado: uma poética da casa se reporta à habitação como domínio do espaço e empenho civilizador, destacando-a enquanto elemento constituinte da história do homem, em seu esforço de adaptação ao ambiente.
A habitação foi deixando de ser apenas local de abrigo e proteção frente às condições e ameaças do ambiente, para ir se tornando o local privilegiado das relações familiais e do convívio (marcado por afeições interpessoais) e ambiente, não só da procriação e sustento da prole, como também da transmissão dos procedimentos e valores socioculturais (MOREIRA, 2000, p.83).
Esse registro revela o quanto o espaço não é indiferente às experiências dos sujeitos, cujos acontecimentos vividos no dia a dia fazem com que a casa seja um espaço vivo e construído não só com o erguer das paredes, mas através dos eventos da vida particular de seus moradores, o que caracteriza as experiências no lar.
No aspecto material e arquitetônico, a casa reflete noções de diferenciação social expressas na representação que suscita sobre seus habitantes em torno de algumas ideias como renda familiar, escolaridade, ocupação. Assim, ela se revela como objeto sinalizador e mediador das relações entre espaço residencial e espaço da rua (HUIGUCHI, 2003, p.50).
Através dessas relações, a casa se constitui como recurso a ser apropriado, a um só tempo, material e simbolicamente. Sugere uma interpretação territorial, cujo significado do morar revela “a territorialidade exercida pelos moradores por meio do controle sobre o espaço. Agir sobre a moradia e modificá-la, expressa territorialidade” (BRANDÃO; HEINECK, 2003, p.38). E é a territorialidade1 que desenha a identidade dos que nela habitam e permite que a casa dialogue com o bairro. Tal comunicação, mesmo não intencional, permite que seus moradores revelem sua posição social. Por essa razão, a casa representa e é representada. Sua aparência externa sugere status e estilo familiar.
Nessa linha de raciocínio, estudos sobre tipologia das habitações buscam considerar que as formas construídas são componentes essenciais na experiência do homem com o lugar. As perspectivas sobre flexibilidade e adaptabilidade habitacional (DESPRES, 1991; COHEN, 2004) não se tornaram, por acaso, objeto de reflexão na literatura habitacional. Trata-se de respostas às transformações do espaço doméstico e suas características funcionais num entendimento de que a estrutura física da casa deve oferecer possibilidade para se moldar às necessidades de seus moradores.
Foi nessa perspectiva de adaptação que os “puxados” se tornaram uma realidade comum à arquitetura popular. Referem-se a habitações geralmente autoconstruídas num processo lento e contínuo, de acordo com as necessidades e possibilidades financeiras da família (KOWARICK, 2009).
Ocorre que independente do aspecto arquitetural, as casas são pontos de apoio para a satisfação das necessidades básicas, e sua funcionalidade permite ou deveria permitir acessar condições essenciais de habitabilidade e ambiência (COHEN, 2004).
Isso sugere que a casa seja um lugar para dormir, comer, conversar, descansar, arejado, iluminado, salubre e em condição térmica adequada, cuja mobília seja compatível com o espaço e a demanda de objetos de seus moradores. Isso, aliado ao direito à privacidade, configura o que a estrutura física de uma casa deve oferecer.
As moradias populares, comuns às autoconstruções, são erguidas de modo rudimentar e sem planejamento (KOWARICK, op. cit., p.169), o que acarreta aspectos desfavoráveis quanto ao usufruto das condições básicas de habitabilidade e ambiência. Destaque nesse sentido deve ser dado também ao direito à privacidade.
A privacidade depende da divisão do espaço. Significa ter possibilidade de ficar sozinho num cômodo, ter o direito de fechar uma porta e escolher quem pode ou não entrar, mas também quando pode entrar (SCHRISJNEMACKERS, 2006, p.226).
O não acesso à privacidade, no dialeto popular, diz mais respeito à falta de espaço que determina um convívio muito mais próximo entre pessoas e objetos. Também se relaciona a valores e atitudes e à possibilidade financeira de concretização. É nesse sentido que, para Schrisjnemackers (2006), privacidade é mais do que “os pais confiarem nos seus filhos e no que podem vir a fazer de portas fechadas” (Idem). É, de fato, o direito de ter um espaço e um lugar para ocupar.
Na falta de privacidade, sobretudo na perspectiva do espaço, estabelecesse uma convivência acentuadamente estreita. Tal proximidade gera e potencializa conflitos na demarcação da identidade individual e do grupo familiar. Para Simmel (1983, p.124) “os conflitos que surgem nada mais são do que fatores de ajustamento e de mudança neste equilíbrio”.
Conflitos esses inerentes às relações sociais, na medida em que as experiências de vida vão sendo construídas, sob a marcação e demarcação de lugares, por parte dos sujeitos. Nesse caso, há disputa por lugares físicos e identitários, visto que são as pessoas que dão vida às casas a partir dos significados que a elas atribuem.
Desse modo, as vivências no espaço da casa são ordenadas e orientadas por projetos. A ideia de projeto, na visão de Gilberto Velho (1994), está vinculada à noção de “indivíduo-sujeito” por tratar-se de “alguém que faz escolhas dentro de um campo de possibilidades dado pela realidade”. Sendo esse alguém, reconhecido como um indivíduo ou grupo social, que se organiza para atingir uma dada finalidade.
Embora a consciência do projeto dependa da memória em sua dimensão cognitiva racional, esta deve ser compreendida na articulação com elementos definidores da identidade social dos indivíduos. Donde a memória e o projeto dão significado à trajetória, na perspectiva de algum tipo de consciência, que mesmo não linear, envolve valores, noções e emoções enquanto expressão do sentimento de necessidade em dar sentido às experiências pessoais.
Os projetos são construídos a partir dessas experiências e se alteram nos momentos em que as pessoas vão adquirindo novas experiências. Se elas mudam, seus projetos também se modificam. O importante é pensar a casa como uma entidade não petrificada em sua construção. Ela nada tem de estática, e aqui cabe a pergunta: Como os moradores se relacionam com o espaço da casa, seja material ou simbolicamente?
No convívio com os espaços da casa, os moradores se relacionam de formas diferenciadas e lhes atribuem sentidos diversos. Esse é o pressuposto semiótico segundo o qual as relações são construídas por uma teia de significados2 que mudam não só de pessoa para pessoa, mas da mesma pessoa ao longo dos ciclos de vida. Portanto, significado não se conjuga no singular e é a partir deles que os projetos de seus habitantes se alteram.
Tais características são reveladoras das variadas interpretações que a casa pode suscitar. Ela pode a um só tempo ser um refúgio, um lugar onde seus membros se sentem acolhidos e seguros, como também alimentar sentimentos de insegurança e estranhamento. Ao longo do tempo a relação com a casa se altera e o que era pequeno pode tornar-se grande, a casa que esteve alegre com o nascimento do filho fica triste após a morte de um familiar, a casa que era perto também pode tornar-se distante (SCHRISJNEMACKERS, 2006, p.225).
No interior das moradias há a conformação de dimensões que se integram, proporcionando uma dinâmica própria no modo de viver e conviver dos que nelas habitam. Entre essas dimensões, na visão de Lawrence (1990, p.124), destaca-se a cultural, sociodemográfica e psicológica.
Do ponto de vista cultural, a casa reflete o estilo de vida dos moradores, através de regras expressas nos rituais domésticos e sociais. Regras explícitas ou tácitas, ancoradas em valores impostos e/ou compartilhados. Para Lawrence (1990) a casa é também uma categoria reveladora da linguagem, pois demarca e comunica relações do tipo público e privado, sujo/limpo, frente/fundos.
No aspecto psicológico destaca-se a influência que a casa exerce na personalidade de quem nela vive e convive. Ela é por excelência o lugar onde os habitantes buscam satisfação das necessidades básicas, sendo reconhecida como espaço de apoio, além de ser a representação da necessidade psicológica de reconhecimento e status social (BRANDÃO; HEINECK, 2003, p.38).
Espaço de convívio entre pessoas diferenciadas por sexo, idade, raça, etnia, religiosidade, a casa na dimensão demográfica simboliza uma porção dinâmica do espaço societário devido à interseção que estabelece entre as esferas macro e microssocial.
Déspres (1991), na busca de compreensão da casa enquanto modo de viver e conviver, pesquisou modelos de habitação, relacionado à cultura norte-americana nas décadas de 70 e 80 do século passado. Em sua investigação, o objetivo foi identificar aspectos definidores do significado da moradia, cujos elementos que mereceram destaque foram:
[...] a noção de segurança e controle; uma expressão de si mesmo; um ambiente de ações e relacionamentos com família e amigos; um lugar de lazer e necessidades fisiológicas; um refúgio; um indicador de status social; uma referência estética e um lugar para se apropriar (DÉSPRES,1991, p.99).
Alguns desses significados da casa e do morar também mereceram atenção por parte de Michael de Certeau, Luce Giard e Pierre Mayol (1998) no livro A invenção do cotidiano (2): morar, cozinhar, onde apresentam pesquisa sobre práticas cotidianas. Práticas familiares ritmadas por espaços e relações, onde o bairro, a rua e a casa se interligam num cotidiano repleto de história e memória. Memória dos lugares, do corpo, olfativa, gustativa... Dão ênfase às “artes do fazer” e aos “modos de ação” ao revelarem que o que interessa ao pesquisador do cotidiano, é o invisível...
No capítulo nove dessa coletânea, intitulada “Espaços Privados”, De Certeau e Giarg (1998) referem-se a casa como um espaço territorializado pelo fazer doméstico.
Este território privado é preciso protegê-lo dos olhares indiscretos, porque cada um sabe que o mínimo apartamento ou moradia revela a personalidade de seu ocupante. [...] O jogo das exclusões e preferências, a disposição do mobiliário, a escolha dos materiais, a gama de formas e de cores, as fontes de luz, o reflexo de um espelho, um livro aberto, um jornal pelo chão, uma raquete, cinzeiros, a ordem e a desordem, o visível e o invisível, a harmonia e as discordâncias, a austeridade e a elegância, o cuidado e a negligência [...] A maneira de organizar o espaço disponível, tudo já compõe um ‘relato de vida’, mesmo antes que o dono da casa pronuncie a mínima palavra (Idem, p.203-204).
Na visão dos referidos autores, a casa confessa, ainda que involuntariamente, a maneira de ser e viver de seus ocupantes. Constitui-se lugar personificado onde é possível identificar os níveis de renda, supor os costumes e as relações de poder...
Abrigo para o corpo e para o espírito, a casa conforma uma rede de significados construídos através da vivência daqueles que fazem dela o seu lugar. Nela o corpo pode “esticar-se, dormir, fugir do barulho, dos olhares, da presença de outras pessoas, garantir suas funções e seu entretenimento mais íntimo” (DE CERTEAU et al., 1998, p.205). Fora dos lugares coletivos, a casa é construída numa linha tênue entre o corpo social e o corpo individual. Material e afetivamente, ela é “o território onde se enraíza o microcosmo familiar, o lugar mais privado e mais caro” (Idem, p.206).
De Certeau e Giard (Idem) referem-se ao espaço privado como lugar do corpo e da vida e utilizam a categoria “convivialidade” como “forma humana à sucessão de dias e à presença do outro”. Para Bonemaisom (2000, p.126), a noção de ‘convivialidade’ refere-se ao processo de humanização decorrente da mediação cultural, supondo associação a lugares e, com eles, a um grau de intimidade.
Numa interpretação geossimbólica, Bonemaisom (2000, p.115) toma a casa como espaço de comunhão. Definindo-a como lugar de enraizamento onde se ancoram signos e valores e onde se fixa o espaço familiar ao espaço vivido. Isso porque “os lugares são criados pelas pessoas que habitam os lugares” (GONÇALVES, 2009, p.9) e a casa, elo material e simbólico entre o privado e o público, sugere “uma convivialidade eletiva e uma sociabilidade obrigatória” (DE CERTEAU et al.,1998, p.206). De tal modo que a definição dos lugares e o fato de quem na casa pode entrar e quem dela pode sair é determinado pelas territorialidades que se constituem.
A casa sugere uma convivialidade ora harmoniosa ora conflituosa, enquanto lugar de invenção dos “modos de fazer”, por isso
[...] é onde as famílias se reúnem para celebrar os ritmos do tempo, confrontar as experiências das gerações, acolher nascimentos, solenizar as alianças, superar provas, todo aquele longo trabalho de alegria e de luto que só se cumpre “em casa”, toda aquela lenta paciência que conduz da vida à morte no correr dos anos (Idem).
Com essas palavras, De Certeau (Idem) faz lembrar o trabalho de Zahidé Muzart (2008) em Uma casa sem cor. Trata-se de uma literatura infantil, embora não se destine apenas a esse público, na medida em que histórias de solidão, morte e ausência não têm idade.
Zahidé, através da protagonista-narradora, uma menina de oito anos que sente a falta do pai, embora desconheça o motivo de sua ausência — a morte —, observa a casa, os objetos e as pessoas que a cercam para compreender essa “falta”. A quietude e os “olhos eternamente vermelhos” de sua mãe, as mudanças na rotina da casa, como a “ausência de música” e só receberem “gente triste” ou não ter mais “bolo e arroz doce aos sábados” aguçam o sentimento de perda experimentado pela menina.
De “portas sempre fechadas”, a casa revela também uma “alma fechada”. “Se eu tivesse que dizer qual a cor de nossa vida, Dona Zefa, diria que é cinza”. Sobre a metáfora da ausência, o livro é ilustrado em cores sombrias até o momento em que a protagonista, através de Dona Zefa, descobre o motivo da partida do pai e compreende a morte no movimento da vida. A partir dessa fase na narrativa, as páginas do livro vão clareando.
De outro ponto de vista, Cabral (2007) em seu texto A Casa e a Vida narra a experiência de Leite Vasconcelos, um etnógrafo português do período republicano. Refere-se ao trabalho desse etnógrafo em uma aldeia ao se reportar aos “anjinhos” que morriam antes de serem batizados e eram enterrados junto à parede da casa. Ressalta o etnógrafo: “Aquela parede não é uma parede qualquer, ela é quase humana, possui força vital”. Cabral (2007, p.202), ao fazer uso desse relato, cita experiência parecida na Ilha de Pico3, quando em visita a uma casa antiga deparou-se com uma lápide cravada na parede cujos dizeres eram: “Estas paredes erguidas, pelas mãos de nossos avós. São muitas vidas vividas, que falam dentro de nós” (D. MELO4 apud CABRAL, 2007, p.202).
Paredes assentadas na memória, herança e vínculo afetivo. A essa capacidade de imaginação humana de construir identificações que superem a realidade, e, por exemplo, transformar uma parede inerte numa parede viva, é o que Claude Lévi-Strauss5 (1983 apud CABRAL, 2007, p.2002) qualificou como “mediação simbólica”.
Num outro enfoque, destaca-se o ensaio intitulado Da Casa à Nação, de João Manuel Sobral (1999), que analisou a construção identitária das famílias da elite portuguesa (séc. XVIII) a partir de dois âmbitos: a casa (entidade definida por relações entre família e patrimônio) e a nação (pertença a um coletivo sociocultural), onde constatou analogias entre esses dois coletivos. Partiu do pressuposto de que “na história dos estados-nações da Europa-Ocidental, o modelo de casa foi uma das fontes que permitiu imaginar a nação” (SOBRAL, 1999, p.71). Nessa linha de análise, Albuquerque (1974, p.17) argumenta que “o sangue e o solo definem vínculos de pertença”. O “sangue” se refere ao parentesco próximo e o direito a casa e o “solo” é posse de todos, donde se constitui a noção de nação (ALBUQUERQUE6 1974 apud SOBRAL, 1999, p.82).
Para construir a analogia entre casa e nação, Sobral (Idem) se inspirou em Lévi-Strauss (1983) ao definir as casas nobres medievais europeias como “pessoa moral, detentora de um domínio que se perpetua pela transmissão do seu nome, de sua fortuna e de seus títulos em linha real ou fictícia...” (LÉVI-STRAUSS7 1983 apud SOBRAL, 1999, p.83).
A importância social da casa e do parentesco, analisada pela lente das famílias da elite portuguesa, revelou-se enquanto modelo de integração de uma comunidade política. Seja numa analogia da casa à nação ou da casa a um pequeno agrupamento organizado em torno de redes sociais, a noção de identidade e pertencimento se estabelece por meio de vínculos de ordens variadas e combinadas, sejam eles geográficos, econômicos, políticos, sociais, culturais, familiares... O fato é que independente do tempo, espaço e condição social, a casa é território onde relações se materializam e também lugar de onde é possível compreender o espaço ao redor.
Para Higuchi (2003, passim, p.52), “a casa é uma manifestação concreta das experiências vividas, mesmo sendo distintas entre homens e mulheres. O recorte de gênero é necessário para a compreensão da delimitação dos lugares da casa, pois esta abriga “padrões socialmente estabelecidos para atitudes, comportamentos e ações correspondendo ao que se espera de homens, mulheres, crianças, adolescentes e idosos” (PINHEIRO et al., 2009, p.22).
Nessa perspectiva, a apropriação de determinados espaços na geografia da casa permite que as pessoas definam seus territórios através do uso desses espaços e construam lugares específicos. É recorrente a referência ao espaço da cozinha como “lugar da mulher”; isso não é novidade, visto que historicamente são as mulheres as principais responsáveis pelo trabalho doméstico. Por essa razão, é fácil imaginar uma mulher mexendo uma panela no fogão ou com o pano, pá, vassoura, conforme anúncios publicitários exibidos na TV. Difícil é assistir um homem no desempenho desse papel na mídia ou no interior das casas.
Se o trabalho doméstico tem sido um espaço territorializado pelas mulheres, isso ocorre porque assim convencionou-se, quando ao se estabelecer determinados papéis, elas se apropriaram da esfera privada. A expressão “dona de casa” reflete o poder nesse território onde “galo não canta” (NEVES, 1982). Ao cuidar para que tudo fique no lugar, para que as pessoas se sintam “em casa”, mantendo a unidade da família, a mulher, também conhecida como “patroa”, tem poder de mando.
Já ao homem “compete” zelar pela moral dos membros da família. Sua presença impõe respeito, ainda que possa não ser o principal provedor econômico (SARTI, 1996, p.43)8.
Independente dos tipos de arranjo familiar que qualificam o perfil dos moradores, as relações que desenham o universo da casa são dinâmicas e, por essa razão, as moradias não são de modo algum entidades imparciais. Os significados que conformam sua estrutura a transforma em casa no contexto do dia a dia, onde se dá a interseção entre tempo, espaço e relações.
3 Considerações Finais
Os argumentos desse texto foram construídos no intuito de compreender alguns dos significados atribuídos aos espaços, por meio dos quais as pessoas constroem suas relações sociais. Com o recurso da pesquisa bibliográfica, voltada para fontes etnográficas, partiu-se do pressuposto de que, inerente à materialidade do espaço, está sua imaterialidade, visto que todo significado tem implicações materiais e de que não se trata de aspectos isolados, mas dialeticamente relacionados.
É nessa via de mão dupla, que o significado do espaço antecede sua forma de apropriação e uso que, uma vez estabelecida, gera novos espaços. É isso que nos permite afirmar que toda configuração do espaço é social, pois implica num protagonismo de atores que dão significado aos cenários onde desenrolam a trama reveladora das condições de sua existência.
Tendo como eixo norteador a moradia e as relações nela estabelecidas, buscou-se compreender a interseção entre os aspectos territorial, arquitetônico, cultural, sociodemográfico e psicológico, na busca do significado sociocultural subjacente a sua espacialidade. Além das paredes as casas tem portas. Não se trata de entidade estática, ela se abre em diversas perspectivas. Mesmo sendo uma porção do território no espaço, do ponto de vista geográfico, a casa se constitui como lugar onde espaço e tempo se misturam. Reflete também noções de diferenciação social em sua arquitetura, o que, por sua vez, sinaliza para relações que se estabelecem entre seu espaço e o da rua.
Como objeto mediador, do ponto de vista cultural, a casa comunica o estilo de vida de seus moradores, ao mesmo tempo em que se revela enquanto espaço de convívio entre pessoas diferenciadas por sexo, idade, raça, religiosidade, nível educacional. Ao expressar seus aspectos demográficos, a casa, simboliza uma porção dinâmica do espaço societário na forma de interseção entre as esferas macro e microssocial.
Capaz de influenciar a personalidade de seus moradores, a casa, enquanto espaço de relações, representa a necessidade psicológica de reconhecimento e status, enquanto se constitui como ponto de apoio.
A interseção entre esses aspectos dão significado a casa e ao morar, isso porque, no centro da casa, figura o sujeito, o morador, o habitante — aquele que lhe dá vida, que a molda a partir de seus códigos e estilos, que a sustenta através de um campo tenso e diverso de relações, cujos principais marcadores são as questões de gênero, classe e geração.
Esse sujeito em relação habita não só a casa, mas seu entorno. Dela ele constrói a leitura do mundo, sob o ângulo que sua geografia de oportunidades permite avistar e alcançar. É desse lugar central ou marginal, em termos de acesso a condições de cidadania, que o sujeito-habitante toma seu lugar na sociedade e é por ela reconhecido ou ignorado. Com essa visão, não é sem razão que a casa enquanto meio comunicacional expressa uma linguagem sobre quem nela habita. A casa fala por nós e de nós.
É na casa que alterações socioculturais e demográficas se deitam e se levantam num movimento ritmado do dia a dia. As mudanças na estrutura social impactam seu espaço e suas relações, por isso a moradia não pode ser reduzida a um único modelo. Ela deve ter condições de assentar em sua materialidade as demandas e requisições de seus habitantes. É isso que faz da casa uma entidade complexa.
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Notas
Notas de autor