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Paraíba de mim: uma leitura ecocrítica da obra de Lúcia Miners

“Paraíba de mim”: an ecocritical reading of Lúcia Miners' work

“Paraíba de mim”: una lectura ecocrítica de la obra de Lúcia Miners

Adriano Carlos Moura 1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense), Brasil
Ronaldo Henrique Barbosa 2
Brasil

Paraíba de mim: uma leitura ecocrítica da obra de Lúcia Miners

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 25, núm. 2, e25219090, 2023

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2023 pelos autores.

Recepción: 14 Diciembre 2022

Aprobación: 16 Junio 2023

Publicación: 11 Julio 2023

Resumo: Este trabalho versa sobre a obra Paraíba de mim (inédito), da poeta Lúcia Miners, sob a perspectiva da ecocrítica e da memória, considerando as interações espaciais e naturais apresentadas pela autora de acordo com suas vivências em Campos dos Goytacazes/RJ. Para realizar a análise dos textos, este artigo utiliza-se da revisão da bibliografia teórica sobre ecocrítica e memória com aplicação dos conceitos para interpretação dos textos que compõem o corpus. A discussão, portanto, passa por analisar o papel do rio Paraíba do Sul – principal bacia hidrográfica do Rio de Janeiro – com a finalidade de ampliar a bibliografia analítica acerca da literatura campista, contribuir com a linha de estudos ecocríticos e tornar pública a obra inédita de Lúcia Miners.

Palavras-chave: ecocrítica, literatura, memória.

Abstract: This article deals with the book “Paraíba de mim” (unpublished), by the poet Lúcia Miners, from the perspective of ecocriticism and memory, considering the spatial and natural interactions presented by the author according to her experiences in the city of Campos dos Goytacazes/RJ. To carry out the analysis of the texts, this article uses a review of the theoretical bibliography on ecocriticism and memory with the application of concepts for the interpretation of the texts that make up the corpus. The discussion, therefore, involves analyzing the role of Paraíba do Sul River – the main watershed in Rio de Janeiro – with the aim of expanding the analytical bibliography on Campista literature, contributing to the line of ecocritical studies and making the unpublished work by Lucia Miners public.

Keywords: ecocriticism, literature, memory.

Resumen: Este trabajo aborda la obra “Paraíba de mim” (inédita), de la poetisa Lúcia Miners, en la perspectiva de la ecocrítica y la memoria, considerando las interacciones espaciales y naturales presentadas por la autora según sus experiencias en Campos dos Goytacazes/RJ. Para llevar a cabo el análisis de los textos, este artículo utiliza una revisión de la bibliografía teórica sobre ecocrítica y memoria con la aplicación de conceptos para la interpretación de los textos que componen el corpus. La discusión, por lo tanto, pasa por analizar el papel del río Paraíba do Sul – principal cuenca hidrográfica de Río de Janeiro – con el objetivo de ampliar la bibliografía analítica sobre la literatura campista, contribuir a la línea de estudios ecocríticos y hacer público el trabajo inédito de Lúcia Miners.

Palabras clave: ecocrítica, literatura, memoria.

1 Considerações iniciais

Este trabalho tem sua nascente na busca por analisar poemas da escritora Lúcia Miners que apresentam a cidade e seus signos como protagonistas a fim de estabelecer relações entre elementos culturais, sociais e ambientais que afetam direta ou indiretamente os cidadãos e a produção literária do município fluminense de Campos dos Goytacazes. Inserido no âmbito do projeto de pesquisa “A cidade como signo na literatura de Campos dos Goytacazes: um estudo ecocrítico”, desenvolvido no campus Campos Centro do Instituto Federal Fluminense, os objetivos específicos que dão força à correnteza deste estudo são a busca por: 1) resgatar textos literários da autora Lúcia Miners a fim de contribuir para preservação da memória cultural da cidade; 2) contribuir para uma consciência de preservação do espaço natural e urbano por meio de uma investigação ecocrítica do texto literário; e 3) produzir material bibliográfico sobre a literatura campista disponibilizando-o física e virtualmente a estudantes, instituições e público em geral.

O corpus será a obra poética Paraíba de mim1, escrita por Lúcia Nogueira de Carvalho, que assinava seus textos como Lúcia Miners. A autora nasceu em Barbacena, Minas Gerais, em 8 de junho de 1934. Mudou-se para Campos dos Goytacazes com a finalidade de iniciar trabalhos pedagógicos no município, onde viveu até seus últimos dias. Segundo registro do jornalista João Nogueira (2012), Lúcia trabalhou no extinto jornal campista “A Cidade”, assim como na “TV Norte Fluminense” e no jornal “Folha da Manhã”. Publicou os livros infantis Aninha e João e Juca das Rosas, além de escrever poemas e atuar em projetos teatrais. Faleceu em 8 de junho de 2012 em Campos dos Goytacazes sem ter publicado a obra Paraíba de mim. Até o presente momento, o público da cidade teve acesso aos poemas de Lúcia somente por meio de apresentações teatrais e saraus, nos quais os textos foram lidos por atores e atrizes.

As reflexões da obra de Lúcia Miners apontadas neste artigo advêm do trabalho literário da autora no sentido de representar diversas faces do rio Paraíba do Sul em seus versos. Ao fazer isso, Lúcia demonstrava a importância de repensar as relações humanas com a natureza. Propõe-se, nas análises dos poemas sob uma perspectiva ecocrítica, que, como preleciona Maria do Carmo Mendes (2020), a literatura possa atuar na tomada de consciência sobre os impactos das ações humanas sobre o meio ambiente com vistas à mudança de postura, considerando que as ações destrutivas sobre os seres não humanos podem culminar na destruição da própria humanidade. Desse modo, o ensino de literatura, como nas demais áreas de conhecimento, deve ser engajado no projeto de um mundo mais sustentável.

Além disso, tal discussão encontra lastro em uma possível conceituação da atual era geológica vivida no planeta, baseada em estudos do professor João Ribeiro Mendes (2022), que analisa o Antropoceno, conceito ainda sem consenso que se baseia no fato de o ser humano possuir impacto central sobre a geologia e a ecologia terrestres. Tal conceito observa que, a partir da Revolução Industrial, passou a ocorrer uma real alteração do metabolismo planetário e uma perigosa influência humana sobre o desequilíbrio da terra.

Partindo do princípio de que a atual era geológica pode ser assim classificada, é preciso enfatizar que a ideia da existência do Antropoceno deve criar um alerta sobre a relação entre humanidade e natureza, já que os impactos da ação humana podem ultrapassar a própria existência, exaurindo fontes de vida por não compreender que a humanidade é parte da natureza, sujeita aos efeitos decorrentes de sua degradação. Como enuncia o ambientalista Ailton Krenak (2020), isso ocorre porque os seres humanos colocam-se como superiores, exploradores do meio ambiente, não como coabitantes.

Como será possível observar nos poemas analisados ao longo deste trabalho, a autora articula elementos que envolvem a transição da memória individual para a memória coletiva, considerando que a questão ambiental provoca reflexões sobre a relação do ser humano com o tempo e os impactos das ações humanas na natureza. Para isso, considera-se memória enquanto “um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 1990, p. 423).

A metodologia utilizada para realizar a análise dos textos baseia-se na revisão da bibliografia e na leitura dos poemas de Lúcia Miners com base nos conceitos de ecocrítica e memória – individual, coletiva e ambiental. A bibliografia utilizada engloba textos de James Engelhardt, Jacques Le Goff, Maria do Carmo Mendes, Danielle Cristina Mendes Pereira, entre outros.

2 Paraíba de mim

Muitas são as possibilidades de análise da obra de Lúcia Miners, mas o ponto de vista de interesse neste artigo é construído por meio da perspectiva ecocrítica, brevemente apresentada na introdução. Desse modo, os poemas de Paraíba de mim podem ser lidos com enfoque na discussão atual acerca da habitação responsável do planeta, ideia que, partindo das proposições dos pesquisadores Francisco Pinto e Hilda Magalhães (2013), permite alcançar dimensões políticas e filosóficas na análise literária.

Isso se dá porque levantar o debate sobre questões relativas à natureza é uma forma de debater o próprio significado da existência humana, o que demonstra a amplitude do conceito de ecocrítica, que exorta estudiosos e escritores a participarem da construção de uma alfabetização ecológica (MENDES, 2020). Para isso, a ecocrítica posiciona-se por meio da análise literária com base na relação humana com a natureza, tanto que, conforme aponta o escritor e literato James Engelhardt (2008), a ecocrítica tem, entre suas preocupações, a natureza não humana, sobretudo ao questionar como se pode conectá-la aos seres humanos.

Em cada texto de Paraíba de mim, é possível ter contato com o que a autora denomina como “linguagem” do rio, sua forma de expressão natural, fluida e espontânea. Tal noção demarca a visão de Engelhardt (2008) ao destacar os elementos da natureza por si mesmos, sem que precisem estar contrapostos ou associados à existência humana. Isso torna explícito, através dos poemas, que a natureza representada pelo rio possui impacto sobre todas as vidas ao redor.

A partir de tal construção, Lúcia apresenta um Paraíba do Sul que não é apenas bacia hidrográfica capaz de alimentar o sistema de distribuição residencial de água ou mesmo funcionar como bioma para prover inúmeras formas de vida: ele possui identidade própria, linguagem, autonomia, semblante, reputação e personalidade – o que não está ligado à sua humanização, mas à compreensão de sua natureza.

Como afirma Ailton Krenak (2020), uma montanha é capaz de dizer se um dia vai ser próspero ou bom mesmo sem se expressar com palavras, pois possui “vocabulário” próprio. Para o escritor indígena, quando determinados atributos da natureza são considerados domínio dos seres humanos, ela perde sua dimensão expressiva e se torna tão somente objeto de exploração, “recurso”, como costuma ser denominada (KRENAK, 2020).

Lúcia percebe e expõe esses atributos em seus versos, como se pode ver neste trecho do poema que dá título à obra:

Paraíba de mim

[…]
Ah, Paraíba,
meu Paraíba,
te conheço há tão pouco
e já sei falar
tua linguagem,
clara
para os ouvidos
de quem te ama.

Com variações temáticas, a autora cria os poemas dando voz ao rio Paraíba do Sul, expondo suas visões acerca das relações sociais em Campos dos Goytacazes, um dos municípios atravessados pelas águas da bacia do Paraíba, que é a principal do estado do Rio de Janeiro. Destaca-se, ainda, a forma dialogal dos textos, que muitas vezes apresentam o vocativo para referir-se ao rio como a alguém próximo.

Segundo a professora Silvana Carneiro (2015), os rios possuem importante papel no surgimento de grupos populacionais, posto que oferecem desde sobrevivência até deslocamento aos seres humanos. Para a pesquisadora, é possível observar o surgimento da área urbana de Campos dos Goytacazes ao redor do Paraíba do Sul, criando, com isso, uma divisão entre bairros que pode ser entendida como obstáculo para a circulação de pessoas e mercadorias, com destaque para a divisão entre o Centro e Guarus, margens direita e esquerda, respectivamente.

Essa segmentação da malha urbana expõe seu impacto quando se analisa o contexto sócio-histórico do município, que demonstra que a margem esquerda do rio Paraíba do Sul é menos privilegiada, considerada como periférica em relação ao centro urbano (CARNEIRO, 2015).

Essas relações são abordadas no poema “Do outro lado”, em que a autora apresenta o rio como um elemento de divisão espacial que, por conseguinte, funciona como um fator de exclusão social, separando os bairros e expondo a relação entre o urbano e o natural e a forma como os seres humanos são impactados, o que fica demarcado nos versos:



Lado direito,
descendo à tua foz, Paraíba,
chamam cidade.
Do outro lado,
margem-guarus,
cidade-não?

Que outras gentes
existirão
após tuas pontes,
se tudo o que,
novidadeiro,
não sabe
a margem esquerda,
o que a direita cria?

Cortas em duas
tua cidade,
que mandrake
moisés,
te sonhas.
[…]

A mesma expressão fica demonstrada no poema “Paraíba, outro de mim”, em que a autora expõe a noção de que o fluxo aquático traz consigo “novidades” vindas dos outros tantos municípios cortados pelo Paraíba do Sul – que tem sua nascente no município de Areias/SP e sua foz no município de São João da Barra/RJ –, passando por cento e oitenta e quatro municípios; por centros urbanos, industriais, fazendas e plantações (CARNEIRO, 2015). Com isso, em seu poema, Lúcia Miners apresenta a extensão do rio e os tantos impactos de sua passagem ao longo dos territórios banhados por suas águas:



[…]
Tu, rio,
me trazes novidades
de outras águas
mais longínquas
do que alcança
meu repórter faro
citadino.

A questão do impacto geográfico e social do rio também é repercutida em outros textos, nos quais é enfatizada a relação histórica entre cidade e rio, nas dicotomias de compreender o fluxo, o nível das águas e o espaço de habitação e exploração humanas. Para construir a imagem dessa relação urbana com o rio, Lúcia lança mão de elementos do texto literário enquanto produtor de significados e memórias diante do resgate de imagens do rio Paraíba do Sul capazes de gerar percepções e vivências nos leitores. Isso faz com que o texto literário seja significativo para determinado grupo de acordo com suas memórias, como analisa a pesquisadora Danielle Cristina Mendes Pereira (2014).

Diante disso, é possível considerar a construção de lugares de memória pela literatura, “[…] isto é, lugares simbólicos que dariam a sensação de garantir a permanência da memória e da identidade coletiva.. (PEREIRA, 2014, p. 348). Para além do conceito de lugar de memória, os poemas de Paraíba de mim compõem o que o antropólogo Rafael Vitorino Devos (2008) chama de memória ambiental, isto é, a imagem construída pelos habitantes de uma cidade acerca das transformações urbanas e as interações ambientais que delas decorrem.

Isso acontece porque refletir sobre as transformações ambientais é também refletir sobre o tempo e sobre os arranjos tomados pela paisagem urbana (DEVOS, 2008). No caso do corpus aqui apresentado, Lúcia acaba por criar um retrospecto memorialístico do rio enquanto elemento a partir do qual a malha urbana foi formada, compondo imagens que trazem à tona vivências provavelmente transmitidas de geração para geração de campistas que observaram a formação da cidade a partir do rio.

Isso se percebe no poema “De amor”, no qual o leitor se depara com a imagem do rio no horizonte, remetendo a uma visão que pode vir à memória de quem conhece o Paraíba do Sul:



[…]
Alfa e Ômega
desta cidade
em ti plantada,
são infinitos

os horizontes
que ofereces, dadivoso,
se olhos te sabem
ver,
caleidoscópio.
[…]

A questão do desequilíbrio entre o meio ambiente e a humanidade também merece destaque, considerando o fato de a autora apresentar o rio como fator de instabilidade que deve ser debatido e preservado, incluindo-o na dinâmica social, num patamar em que raramente a natureza se encontra, dada a suposta superioridade do homem que, por vezes, ignora que sequer existiria humanidade sem os seres não humanos. Com isso, conforme disserta o ecocrítico William Rueckert (1996), o problema atual reside em encontrar meios para impedir que os seres humanos destruam a natureza não humana e, com ela, a própria humanidade, o que é visto pelos ecologistas como ação autodestrutiva, paradoxal quanto ao meio ambiente.

Isso pode ser constatado a partir do alto volume de rejeitos e resíduos lançados no Paraíba do Sul. O principal rio de abastecimento de água potável e energia do estado do Rio de Janeiro recebe esgoto doméstico e poluição industrial por toda a sua extensão – da nascente à foz –, além de sofrer o constante risco de rompimento de barragens e reservatórios ao longo de seu leito (PARAÍBA…, 2015).

Nas últimas décadas, ao menos três catástrofes alcançaram o Paraíba: em 2003, o rompimento do reservatório da Indústria Cataguazes de Papel causou o derramamento de cerca de vinte milhões de litros de soda cáustica no Paraíba. Poucos anos depois, houve o derramamento de rejeitos de bauxita vindos de outra barragem, lançando quatrocentos milhões de litros de lama no leito do rio em 2006 e, no ano seguinte, dois bilhões de litros de lama (PARAÍBA…, 2015).

A questão da poluição e seus consequentes riscos para o Paraíba é tema do poema “Degredo”, com destaque para os seguintes versos, nos quais a autora utiliza imagens de poluição para ilustrar e criticar a questão da degradação ambiental:



[…]
Sobrará bem pouco:
em afluentes
te divides
pela cidade,
gorgolejando espumas fétidas
e óleos industriais.
[…]

Lúcia, com sua poesia, acaba por ressaltar também as diversas formas de debater a existência por meio da natureza, evidenciando que sabia ouvir a voz do Paraíba, expressando as discrepâncias relativas à convivência homem-rio, considerando que o homem não compreende a “linguagem” com que as águas se expressam, a qual se manifesta na força implacável das águas, conforme os versos do poema “Canto de Jó”:



[…]
Grito e ninguém me responde:
meu corpo derramo pelas ruas
à procura dos homens
e todos fogem de mim
porque vil é o meu rolar
pela cidade e mato,

Senhor,
mato e destruo
o que está à minha frente,
de dor e medo
e ninguém me entende.
Se Paraíba sou,
assim rio,
que outra linguagem
posso falar?
[…]

A incompreendida impetuosidade do Paraíba do Sul é também enfatizada em outros textos, nos quais fica demonstrada uma visão selvática atribuída ao rio enquanto fluxo de água incivilizado e forte que corta o município, capaz de levar casas, famílias e histórias consigo, intempestivo e, por vezes, imprevisível.

Tal imagem provavelmente ganhou corpo com as memórias da autora sobre as cheias do rio, que costumam gerar insegurança nos habitantes de Campos quase anualmente, quando o nível das águas sobe ao longo do período de chuvas de verão (CARNEIRO, 2015).

Destaca-se a cheia do rio datada de 1966, quando Lúcia tinha pouco mais de trinta anos de idade. Por não haver dique de contenção das águas em Campos, a enchente ocorrida naquele ano foi a maior de todos os tempos no imaginário da população, chegando a desabrigar mais de dez mil pessoas e destruindo toda a safra de cana-de-açúcar, dada a magnitude da invasão das águas registrada na época (CARNEIRO, 2015).

Além das enchentes possivelmente vividas por Lúcia, o professor e jornalista Horácio Sousa (2014) apontou, no início do século XX, que muitas outras foram as incursões do rio Paraíba do Sul sobre o município ao longo dos últimos dois séculos, sendo as piores consequências para o subdistrito de Guarus, causando mortes e alagando diversas casas.

Com tais informações, é possível ver na obra de Lúcia Miners as nuances da força do rio com base em suas memórias, mas sempre fazendo o contraponto entre a selvageria e a docilidade, com destaque para este trecho do poema “Amor”, em que ela apresenta o rio como animal selvagem, mas logo em seguida utiliza a figura de um pássaro para expressar brandura e leveza:



[…]
Se animal,
cataria teus piolhos
e os morderia
simiesca,
em ternura ancestral.

Te limparia, pássara,
bicando tuas penas,
até que, modorrento,
escondesses a cabeça
sob a asa
quando a noite viesse.
[…]

A diversidade de visões de Lúcia Miners sobre o rio Paraíba do Sul a levaram a observar um rio travesso, inclinado a meninices e malandragens que o caracterizam enquanto malicioso personagem do município de Campos dos Goytacazes. Isso fica nítido no poema “Tartufagens”, que carrega no título a noção de dissimulação e travessura:



[…]
Bem tartufo és,
Paraíba,
mas isto é segredo
para a espectadora gente,
mas que eu,
tartufamente,
sei e escondo,
divertida,
cúmplice,
pecadora como tu.

O rio enquanto tartufo provoca a reflexão de que Lúcia maneja suas memórias e sentidos acerca do rio Paraíba do Sul de modo a reconstruir um sentimento social sobre ele. Isso ocorre porque a autora exerce um importante papel de articular memórias, pois,

na tecelagem da memória da escrita, o escritor agencia memórias ou, como queira, informações, lembranças, carências, desejos, por meio de suas leituras de mundo. A memória, tecelã da escrita, estende seus tentáculos ampliando seu repertório, por meio do diálogo que o escritor estabelece com outros sujeitos, ao longo de suas leituras textuais, desencadeando uma memória partilhada que pode influenciar tanto a si como a seus leitores, possibilitando-lhes concatenar as suas teias a outros contextos, outras culturas, outros mundos, decorrentes dos mecanismos intertextuais que, voluntariamente ou não, se processam (SANTOS, 2013, p. 20).

Isso se evidencia de forma similar no texto “Menino”, que expõe uma visão pueril sobre o rio, trazendo à tona memórias afetivas construídas pela autora, compartilhadas com os leitores que vivenciam o rio de tal forma. Para isso, ela utiliza a imagem de uma criança que necessita de cuidado e ajuda, mais uma vez enfatizando a doçura e o sentimento de amor:



[…]
Mas te olho tanto
e tão dentro,
que percebo
seres, apenas,
uma criança
perdida
e pedindo socorro.

E, então,
te tomo em meus braços,
e canto uma canção de ninar
que te faça dormir,
que te faça sonhar.

Teus medos são os meus.
Meus medos, também os teus.

Te adivinho,
me consolo
e o teu peso no meu colo
é o peso de uma flor.

E me inundo, Paraíba,
deste teu pesar de amor.

Os textos de Paraíba de mim, aqui apresentados de forma reduzida com o audacioso intuito de captar sua essência, desvelam, portanto, um rio Paraíba do Sul presente no cotidiano dos habitantes de Campos dos Goytacazes, mas que nem sempre é notado pelos que o atravessam ou mesmo por aqueles que o circundam nas avenidas XV de Novembro e Francisco Lamego. Trata-se de uma obra que lê o rio para muito além do aspecto da exploração para abastecimento de água, alcançando suas dimensões poética, social e afetiva.

3 Aspectos interdisciplinares dos estudos ecocríticos

Vale ressaltar a importância do presente debate no ensino da literatura, o qual, uma vez desprendido das análises estruturalistas, formalistas ou focadas na história literária, torna-se cada vez mais interdisciplinar. Isso se deve, dentre outros fatores, à natureza polifônica do texto literário, capaz de abarcar mundos de diferentes categorias. Poemas, contos e romances são constantemente atravessados por discussões sobre racismo, feminismo, homofobia, pobreza, violência, gênero; questões que, embora sempre presentes no cotidiano, passaram a adentrar o universo escolar de forma mais sistematizada nos últimos vinte anos, na esteira de leis como a 10.639 de 2003.

O enfoque de leitura e interpretação do texto literário já se voltou para sua organização estética, no início do século XX. Em seguida, para problemas relacionados à noção de autoria. A Estética da Recepção trouxe o leitor para as discussões críticas sobre as possibilidades de sentido do texto nos anos 70. Em termos da abordagem do presente trabalho, vale ressaltar que o termo “ecocrítica”, cunhado em meados da década de 1970, foi incluído como parte dos Estudos Literários apenas na década de 1990 por seu criador, William Ruckert (1996). Tal perspectiva, conclui-se, aponta para a tendência de afastar a noção antropocêntrica em prol da perspectiva ecocêntrica.

De acordo com o artigo 225 da Constituição Federal Brasileira (BRASIL, 1988), é obrigação do Poder Público e da sociedade em geral promover educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização para a preservação do meio ambiente. No entanto, tal tarefa se reduz a eventos isolados em datas comemorativas, contrastando com a noção de que educar para um mundo ambientalmente habitável deve fazer parte do cotidiano das instituições de ensino.

É possível, no esteio da presente discussão, aventar as tantas possibilidades que os estudos ecocríticos trazem ao contexto pedagógico, uma vez que se trata de um campo interdisciplinar, que lança mão de conceitos dos estudos ambientais e os associa aos estudos literários, evidenciando, como ressalta Maria do Carmo Mendes (2020), as interseções entre áreas como ecologia, filosofia, antropologia e literatura. Isso explica o fato de a ecocrítica permanecer conceitualmente aberta, distante de uma significação definitiva, posto que opera de modo difuso, com múltiplos sentidos (MENDES, 2020).

Deve, portanto, ser considerado que os estudos ecocríticos ampliam a forma como o texto literário é concebido, uma vez que a fruição de conceitos em diálogo permite abordagens diversas do texto literário em sala de aula, sobretudo sob a égide da representação de tais conceitos e de seus traços evolutivos. A ecocrítica permite, como analisam os estudiosos Francisco Pinto e Hilda Magalhães (2013), que a literatura seja vista enquanto sistema complexo, composto por um conjunto de realidades amplas e abrangentes. Isso porque,

[d]entro dessas perspectivas, a formação do leitor de literatura deve operar a incerteza e a perturbação, o insólito e o imprevisível. Formar o leitor exige, portanto, um navegar pelas brechas, que abrem caminho para a complexidade. Isso significa, do ponto de vista da obra literária, dar importância, na relação direta entre o texto e o aluno, à plurissignificação. Já do ponto de vista do leitor, isso significa valorizar a interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade, a afetividade, a imaginação e a formação de sentidos, com vistas a desenvolver a sensibilidade e a capacidade de fruição do leitor (PINTO; MAGALHÃES, 2013, p. 47).

Ao voltar os olhos para o corpus do presente estudo, nota-se que poemas como os de Paraíba de mim, lidos sob a perspectiva ecocrítica, podem contribuir para uma análise do texto literário que permita ao leitor refletir sobre o papel dos seres humanos na preservação do meio ambiente do qual fazem parte, uma vez que, sob tal enfoque, os ambientes sociais e naturais são inseparáveis.

Isso porque, a partir dos poemas de Paraíba de mim, é possível colocar em debate temas gerais, como estudos hidrográficos próprios da geografia, e também abordar temas locais, como as marcas de desigualdade social dentro do município de Campos dos Goytacazes, ou mesmo debater a história socioeconômica do município de Campos, marcada, como destaca a professora Arlete Sendra (2010), pela transição entre a exploração econômica da cana-de-açúcar e a exploração do petróleo. Nas palavras da acadêmica, “[s]e ontem, os ventos desta planície fizeram dançar os canaviais, alimentando nossa região com o ‘ouro verde’, hoje, a paisagem econômica nos vem – e nos chega? – do ‘ouro negro’, do petróleo, que antes da descoberta do pré-sal, tinha seu óbito decretado para vinte anos” (SENDRA, 2010, p. 239).

Por fim, é necessário dizer que estudos interdisciplinares cumprem um papel pedagógico fundamental: o da ruptura – de fronteiras e paradigmas –, alcançando não apenas os conteúdos programáticos de uma disciplina escolar, mas também a descontinuidade capaz de fazer com que o indivíduo olhe para si próprio e para a complexidade das relações entre o ser humano e a natureza não humana.

4 Considerações finais

Longe ainda de encontrar sua foz, dadas a profundidade e a vastidão das águas que banham a temática abordada, este trabalho cumpriu o intuito de resgatar os textos ainda inéditos de Lúcia Miners e lê-los sob a ótica dos estudos ecocríticos. Isso só foi possível pelo fato de a obra da autora comportar reflexões e vivências sobre o rio Paraíba do Sul, contendo nuances de sentimentos e memórias que constroem a visão social acerca do rio, bem como as contradições e histórias que o cercam.

Além disso, vale dizer que o presente estudo alcançou seus objetivos de refletir sobre a obra poética de Lúcia, resgatando seus textos e produzindo material bibliográfico sobre literatura campista para fins didáticos, a partir do que se pode apontar também a importância do debate interdisciplinar dos estudos ecocríticos e seu papel formativo ao vincular diferentes áreas do conhecimento. Ao ampliar a consciência sobre a preservação do ambiental, a ecocrítica considera a natureza não um mero pano de fundo da obra literária, mas um elemento fundamental para sua construção e compreensão.

Indo além dos objetivos alcançados, este trabalho suplantou as margens que direcionam seu fluxo ao trazer à tona, dentro do projeto de pesquisa em que está inserido, a publicação da obra inédita de Lúcia, considerando sua importância para a cena cultural local e regional. Embora seja uma autora publicada nacionalmente para o público infantil, sua obra poética acaba por ser uma lacuna que este trabalho tentou preencher. Utilizá-la como corpus dos estudos ecocríticos do projeto desenvolvido pelo Instituto Federal Fluminense contribui, portanto, para o preenchimento dessa lacuna bibliográfica da produção da poeta.

Referências

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Notas

1 A obra, ainda inédita, terá publicação póstuma vinculada à realização deste projeto, para o qual os textos escritos por Lúcia Miners foram cedidos por seus familiares e amigos.

Notas de autor

1 Doutor em Estudos Literários (UFJF). Professor de Língua Portuguesa e Literatura no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: adriano.moura@iff.edu.br.
2 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Fluminense (UNIFLU). Licenciado em Letras, Português e Literaturas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: ronaldo.junior@gsuite.iff.edu.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): MOURA, A. C.; BARBOSA JÚNIOR, R. H. Paraíba de mim: uma leitura ecocrítica da obra de Lúcia Miners. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 25, n. 2, e25219090, 2023. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n22023.19090. Disponível em: https://essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/19090.

COMO CITAR (APA): Moura, A. C., & Barbosa Júnior, R. H. (2023). Paraíba de mim: uma leitura ecocrítica da obra de Lúcia Miners. Vértices (Campos dos Goitacazes), 25(2), e25219090. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n22023.19090.

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