Artigos Originais

A mulher, a mulher negra e o tempo dos homens: uma breve reflexão interseccional

The woman, the black woman, and the time of men: a brief intersectional reflection

La mujer, la mujer negra y el tiempo de los hombres: una breve reflexión interseccional

Andrea Rosa Bello 1
Brasil

A mulher, a mulher negra e o tempo dos homens: uma breve reflexão interseccional

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 25, núm. 3, e25319298, 2023

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2023 pelos Autores.

Recepción: 26 Marzo 2023

Aprobación: 30 Noviembre 2023

Publicación: 11 Enero 2024

Resumo: No Brasil colônia o pensamento que vigorava era o de que as mulheres eram criaturas más e com tendências demoníacas e, por isso mesmo, deveriam ser controladas pelos homens da família e do Clero. Com a modernidade o patriarcado foi institucionalizado e, a partir de então, além dos homens da família e da Igreja, as mulheres também deviam obrigações sobre si, suas vidas e corpos ao Estado. Ainda que a condição de inferioridade atingisse a todas as mulheres, às mulheres negras eram submetidas às avaliações e às condições de vida ainda mais degradantes, pois aos preconceitos de gênero somavam-se, e ainda se somam, os de raça. Indo ao encontro dessa percepção, os dados da Pnad contínua de 2021 demonstram que os piores indicadores socioeconômicos são aqueles que dizem respeito às mulheres negras. Diante de tais indicadores, o presente artigo propõe uma breve reflexão sobre as possíveis conexões de tais elementos com a conformação das desigualdades contemporâneas extremas que incidem sobre as mulheres e, mesmo entre elas, de modo desigual a depender de sua condição socioeconômica e da raça. Há urgência do desenho e implementação de políticas públicas que contemplem não somente as questões relativas ao gênero, como também a interseccionalidade com a raça.

Palavras-chave: gênero, raça, machismo, misoginia, interseccionalidade.

Abstract: In colonial Brazil, the prevailing thought was that women were evil creatures with demonic tendencies and for that very reason should be controlled by men in the family and by the clergy. With modernity, patriarchy was institutionalized and from then on, in addition to men in the family and the Church, women also owed obligations over themselves, their lives and bodies, to the State. Even though the condition of inferiority affected all women, black women were subjected to even more degrading evaluations and living conditions, because gender prejudices were added, and still are added, by race. In line with this perception, data from the “Pnad Contínua 2021” show that the worst socioeconomic indicators are those related to black women. Faced with such indicators, this article proposes a brief reflection on the possible connections of such elements with the formation of extreme contemporary inequalities that affect women and, even among them, unevenly depending on their socioeconomic status, race, and gender. There is urgency of designing and implementing public policies that address not only issues related to gender, but also the intersectionality of such issues with race.

Keywords: gender, race, male chauvinism, misogyny, intersectionality.

Resumen: En el Brasil colonial, el pensamiento que estaba en vigor era que las mujeres eran malas criaturas, con tendencias demoníacas y, por lo tanto, deberían ser controladas por los hombres de la familia y el clero. Con la modernidad, el patriarcado fue institucionalizado y, a partir de entonces, además de los hombres de la familia y la iglesia, las mujeres también tenían obligaciones sobre sí mismas, sus vidas y cuerpos para el estado. Aunque la condición de inferioridad alcanzó a todas las mujeres, las mujeres negras fueron sometidas a evaluaciones y condiciones de vida aún más degradantes, porque se agregaron prejuicios de género, y aún agregan, las de raza. Al cumplir con esta percepción, los datos de la “Pnad Contínua” 2021 demuestran que los peores indicadores socioeconómicos son aquellos que se refieren a las mujeres negras. Ante estos indicadores, este artículo propone una breve reflexión sobre las posibles conexiones de tales elementos con la conformación de las desigualdades contemporáneas extremas que se centran en las mujeres y, incluso entre ellas, de manera desigual dependiendo de su condición socioeconómica y de raza. Hay la urgencia de diseño e implementación de políticas públicas que contemplen no solo los problemas de género, sino también la interseccionalidad de tales problemas con la raza.

Palabras clave: género, raza, chovinismo masculino, misoginia, interseccionalidad.

1 Introdução

Além das barreiras da pobreza, da falta de acesso à educação e do modelo de sociedade e Estado patriarcais, os estigmas da escravidão nos revelam as perversões e injustiças que existiram por trás dos três séculos de uma mestiçagem artificialmente celebrada como originária do povo brasileiro. Diante disso, é razoável afirmar que tais perversões e injustiças se fizeram ainda mais graves e deletérias para as mulheres e, entre essas, as negras. É desde esse tempo, um tempo dos homens, que anônima ou nomeadamente, as mulheres lutam individual ou coletivamente, seja na vida privada, seja na vida pública, contra o machismo, a misoginia, o sexismo e o racismo institucional e intersubjetivo (SODRÉ, 2023).

Ao longo do percurso histórico do povo brasileiro, como consequência de um contexto ancestral, as relações entre gênero, sexualidade e raça configuraram-se também como espaço de reflexão sobre as possíveis conexões das perversões e injustiças decorrentes da escravidão e do machismo estrutural com a conformação das desigualdades contemporâneas que incidem sobre as mulheres e, mesmo entre elas, de modo desigual a depender de sua condição socioeconômica e de raça. É razoável afirmar que as frágeis fronteiras entre a senzala e a casa grande passavam longe dos postulados freirianos da democracia racial e de uma nação que supostamente se orgulha da sua miscigenação originária, em verdade, fruto de violência, opressão e estupros de uma maioria de mulheres negras e indígenas.

Diante da necessidade de outro olhar para nosso passado colonial e da reverberação dele no presente, este trabalho propõe uma breve reflexão sobre a condição da mulher brasileira, contextualizando-a por meio de dados da genética, da economia, assim como alguns elementos culturais e religiosos no tempo histórico que parece ser ditado pelos homens. Para tanto, o artigo está dividido em três seções além desta introdução e uma breve conclusão.

2 A mulher no tempo do Brasil colônia

No Brasil colônia, a sexualidade feminina era vista como algo “ameaçador ao equilíbrio doméstico, à segurança do grupo social e à própria ordem das instituições civis e eclesiásticas” e cabia à Igreja o papel de principal força coercitiva a esta ameaça, tal qual uma “adestradora da sexualidade feminina” (ARAUJO, 2022, p. 45). A justificativa para tamanho gasto de energia social, política e religiosa era a de que, além da ameaça aos pilares da família e, por consequência, da sociedade em geral, os homens eram divinamente superiores às mulheres, cabendo a eles o direito de exercer autoridade, primeiro sobre a vida privada e, depois, sobre a vida pública, estabelecendo um modus operandi político e social opressor que tem sido identificado pelos movimentos feministas como patriarcado, definido por Cotta e Farage (2021, p. 48)1 como sendo um

mecanismo invisível que conecta uma miríade de práticas sociais e acontecimentos e que costura em uma mesma estrutura de opressão a experiência de várias mulheres. Ele se manifesta e se reproduz desde as trocas cotidianas e mais banais até eventos geopolíticos do mundo. Isso porque a opressão das mulheres é praticada de maneira multidimensional, desde o Estado até as relações interpessoais domésticas, sendo organizada em uma mesma estrutura.

Segundo a tradição judaico-cristã, as mulheres seriam a razão de ser de todos os males da humanidade, afinal, como descendentes e filhas de Eva, a primeira mulher criada por Deus, seriam imperfeitas e peçonhentas desde a origem dos tempos e carregariam em si a culpa pelo pecado original uma vez que Adão só teria rompido sua ligação com o Divino e perdido o direito de viver no Paraíso, livre de dor e sofrimento, por ter sido seduzido pela mulher que Dele recebera (BÍBLIA, GÊNESIS, 3:12)2. Assim, a mulher seria um misto de pecado e sedução3 (que não por acaso poderia ser o título de um livro ou de uma novela com reais chances de sucesso comercial, mesmo nos dias de hoje), essencialmente má, cuja sexualidade era associada à bruxaria, a estar possuída pelo demônio e por isso deveria ser permanentemente vigiada, controlada, tolhida, primeiro pelos homens da família – o pai, os irmãos, os tios, os primos e por fim, o marido – e, segundo, pelo Clero4.

A partir desse pensamento, preconizou-se, durante todo o período colonial, que o ideal era que a mulher saísse de casa apenas três vezes ao longo de sua existência: para ser batizada, para se casar e para ser sepultada, circunscrita ao ciclo da vida que era definido e controlado pela religião católica (ARAUJO, 2022).

Importa destacar que aquele modus operandi social e político opressor não se constituiu em um sistema homogêneo e hermético. Ainda que as mulheres tivessem diante de si inúmeros obstáculos sociais, culturais e legais à sua autonomia e independência (obstáculos esses que os homens não tinham) não se pode resumir a existência feminina no tempo do Brasil colônia à submissão pacífica e à inércia, pois isso significaria ignorar a capacidade emancipatória e o protagonismo femininos que emergiram das fissuras daquele sistema. Como afirmam Falci e Melo (2002, p. 169), ainda que

a sociedade brasileira, em meados do século XIX, preservava a herança institucional da cultura misógina ibérica, particularmente aguda no mundo lusitano, que demarcava os limites institucionais para a atuação das mulheres, fossem da elite proprietária, fossem do povo (…). No entanto, as pesquisas revelam que o universo das práticas sociais que envolviam a questão dos direitos da mulher é mais plástico do que os termos estritos da legislação.

Em verdade, a pesquisa histórica em documentos do período colonial (registros de batismo, contratos de casamento, testamentos e inventários, por exemplo), à luz da antropologia, vem revelando variantes do que se determinava à época como comportamento ideal da mulher. Houve mulheres que se tornaram chefes de família, gestoras de patrimônio – por herança ou pelos seus descendentes – que lançaram mão dos meios de que dispunham para promover reflexões pioneiras sobre sua condição na sociedade brasileira (SALADINO; BARATA; FIGUERÊDO, 2013)5 e, ainda, as mulheres pobres a quem se impunham a realidade da vida e suas dificuldades o que obrigava seus respectivos maridos a colocar em segundo plano seus direitos absolutos, divinos e seculares sobre suas esposas, face à necessidade da sobrevivência da família pelo trabalho, mesmo diante do que exigiam os rigores eclesiásticos (SILVA, 2008) e científicos daquela época.

Com efeito, não era somente a religião, notadamente a católica, que se autoproclamava detentora de saberes e poderes para definir o comportamento e a natureza das mulheres e como controlá-las. A ciência, em seus primeiros passos no mundo ocidental moderno eurocentrista, também se arvorava nesse objetivo. Dominada por homens, a medicina lusitana pautava-se por conceitos retrógrados, mesmo para a época6, que associavam a análise da constituição biológica das mulheres a valores morais e, até mesmo, metafísicos.

Contaminados pela fé católica, os doutores portugueses defendiam a tese de que o corpo feminino era mais suscetível à influência do demônio, associando doenças ao cometimento de pecados. Seu interesse e suas rudimentares pesquisas sobre o corpo feminino eram restritos ao processo de reprodução, pois, em associação com o pensamento da Igreja, tais médicos defendiam que procriar era o único e maior valor de uma mulher, sendo a maternidade o momento em que a mulher se distanciava da sua condição original de pecadora vil, imperfeita e demoníaca, tal qual filha de Eva, e se aproximava da perfeição sublime e celestial de Maria, também chamada de “Virgem Imaculada”. Em consonância com essa visão, as mulheres que detinham saberes e práticas sobre a saúde feminina foram perseguidas e mortas pelo Tribunal da Inquisição, com a aprovação da ciência médica da época, sob a acusação de bruxaria. Até mesmo o procedimento do parto – um momento ancestralmente dominado pelos saberes femininos – passou a ter a supervisão de um médico homem (DEL PRIORE, 2022).

Mas, se essa visão da realidade da grande maioria das mulheres brancas pode causar estupor a ingênuos olhos contemporâneos, o que dizer da visão dedicada às mulheres negras? Recorrendo à literatura do século XIX, pode-se ter uma ideia bastante fidedigna da imagem que a sociedade machista, misógina e racista reforçava, na mesma medida em que era reforçada por meio de livros de autores muito populares daquela época. De fato, diversos autores, de diferentes estilos, dos mais românticos aos mais sarcásticos, não economizavam palavras e figuras de linguagem para associar as mulheres negras e seus corpos ao que havia de mais corrupto e imoral nos aspectos sociais e religiosos. Recursos linguísticos e imaginação também não faltavam para associar essas mulheres às patologias desconhecidas que poderiam colocar em risco a saúde da população do país que estava emergindo.

Assim como em outros momentos da história da humanidade, a mistura de ciência e religião causaram dor, assassinatos, estupros, injustiças e um passado histórico que nos assombra até os tempos atuais. Potencializadas por uma falsa moralidade e um Estado moderno eurocentrista e patriarcal, aquela associação de poderes espirituais, científicos e políticos, contribuiu para a criação de uma ambiência que de um lado exaltava a mestiçagem como estratégia de poder e controle e, de outro, atribuía rótulos e características que ora reduziam homens e mulheres negros à condição de objetos sexuais, ora às características animalescas e moralmente corrompidas, tendo como resultado a constituição de um vasto glossário de termos inferiorizantes dedicados à população negra na mesma medida em que construíam a ideia da superioridade dos brancos7, sendo que alguns desses vocábulos são usados até o presente8 (XAVIER, 2012).

No caso da mulher negra, como afirma Gonzales (1984, p. 230), foi no contexto do colonialismo que se engendraram (a partir de um personagem fundamental para a constituição do povo brasileiro, a saber, a mucama) a imagem da mulata (a mulher negra objetificada) e da doméstica (a mucama permitida), uma dupla imagem que persiste até o tempo presente9.

E, assim, a família, a Igreja, a sociedade, a ciência e a literatura foram institucionalizando a misoginia associada ao racismo no mundo colonial em que as próprias mulheres eram impelidas a competir moral e esteticamente entre si, introjetando a imagem e o juízo de valor do ethos machista, aceitando viver em um ambiente contaminado por preconceitos, injustiças e mecanismos formais e informais de coerção, tais como a fofoca que, não raro, estavam na origem das injustiças e dos linchamentos físicos e morais das mulheres muitas vezes feitas vítimas por outras mulheres.

Importa destacar que a institucionalização da misoginia na sociedade que emergia no Brasil colônia, assim como ocorreu nos demais países da América Latina e da África, foi concomitante aos testes e aperfeiçoamento das mais diversas tecnologias de manipulação da vida e tortura de seres humanos macabramente praticadas em larga escala na dominação e extermínio dos povos africanos e americanos e depois replicadas pelo Nazismo e pelo Fascismo na Europa (CESAIRE, 2020).

Assim, havia a condição institucionalizada de opressão claustrofóbica da mulher branca, tutelada por homens brancos – leigos ou clérigos10 – não raramente inseguros e violentos diante de qualquer ensaio de insurreição feminina, do lado de quem estavam a Igreja e o Estado, e havia a condição ainda mais desfavorável e vulnerável – a das mulheres negras, escravizadas ou alforriadas cujo valor simbólico e material era semelhante ao de um objeto de uso e descarte ou mesmo de um animal. As mulheres negras não somente eram vítimas pela condição de mulher como também sofriam os efeitos da ideia de raça, o que somava duas poderosas formas de opressão – o sexismo (potencializado pelo machismo e pela misoginia, institucionalizados e legitimados pela religião, pela sociedade, pela ciência e pelo Estado) e o racismo.

Destarte, vale evidenciar que a ideia de raça foi responsável pela construção de novas identidades históricas e, a partir dela, ergueu-se uma nova estrutura global de controle do trabalho, não como uma extensão das práticas que já existiam entre os povos originários latinoamericanos e africanos, mas inventadas e desenvolvidas para produzir mercadorias que atendessem ao emergente mercado mundial, o que traria consequências de gravidades diferentes para homens e mulheres, brancos e negros. Como explica Quijano (2005, p. 118),

na medida em que aquela estrutura de controle do trabalho, de recursos e de produtos consistia na articulação conjunta de todas as respectivas formas historicamente conhecidas, estabelecia-se, pela primeira vez na história conhecida, um padrão global de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. E enquanto se constituía em torno de e em função do capital, seu caráter de conjunto também se estabelecia com característica capitalista. Desse modo, estabelecia-se uma nova, original e singular estrutura de relações de produção na experiência histórica do mundo: o capitalismo mundial.

A modernidade e o capitalismo foram fenômenos resultantes de uma mesma potestade de caráter econômico e cultural simbióticos, que se manifestaram e se manifestam sem a roupagem das liberdades individuais e da igualdade formal perante a Lei, consideradas conquistas capitalistas, porém ainda assim ancoradas em uma falaciosa ideia de meritocracia. O capitalismo, como modelo global de exploração e controle do trabalho, tem sua origem em cinco fatores: 1) a colonialidade agregada ao seu principal instrumento, a violência em todas as formas possíveis; 2) a invenção e o controle do trabalho não remunerado e, posteriormente, a constituição do capital-salário; 3) os novos modelos de exploração, produção e comercialização que se materializaram na “desintegração dos padrões de poder e de civilização” de milhões de seres humanos que viviam sob sofisticados arranjos sociais, culturais, econômicos e políticos e que foram dizimados e/ou escravizados; 4) a ideia de raça, e; 5) a divisão sexual do trabalho (QUIJANO, 2005, p. 118-119).

Em tal alicerce, foram estabelecidas as bases sociais e materiais sobre as quais se construíram os sistemas coloniais modernos e a “ideologia de uma divisão internacional do trabalho” em que os povos e os continentes não brancos foram submetidos às nações da Europa ocidental diante da naturalização das “desigualdades sociais e históricas determinadas entre as raças, as classes e as nações” em que a ideia de raça é sócia fundadora da ideia de classe que ao longo do tempo não apenas legitimou, mas justificou o sequestro, a dominação social, política e religiosa, assim como, a exploração de seres humanos por outros seres humanos (BASSO, 2000, p. 59 apud Villen11, 2013, p. 52).

É o que Mbembe (2018) chama de coisificação dos seres humanos que privados dos direitos sobre seus corpos e espíritos foram transformados em mercadorias e, desse modo, banidos de sua humanidade para se tornarem propriedade de alguém simplesmente porque a cor de sua pele era diferente da cor da pele do colonizador. Não eram vistos como vítimas, muitas vezes sequer eram considerados humanos ou dotados de competências cognitivas, capazes de produzir história e cultura. Nesse movimento, que variava entre a coisificação, a paganização e a bestificação, os povos andino-amazônicos, mesoamazônicos, norte-americanos e africanos foram subjugados, um após outro, século após século, por causa de uma ficção chamada raça, que surgiu sob as bênçãos das igrejas católicas e protestantes como “uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados” (QUIJANO, 2005, p. 118), só que em escala global, tornando-se a arma mais poderosa de naturalização das novas relações de poder necessárias tanto para viabilizar os projetos coloniais quanto, posteriormente, o capitalismo.

E foi justamente o capitalismo que inventou o termo negro (MBEMBE, 2018) para identificar os indivíduos sequestrados de suas nações (arrastados para as Américas invadidas, em condições que tornam a sobrevivência dos que aqui chegaram com vida, ao mesmo tempo, um milagre, em meio a uma situação macabra, e uma prova de resistência, ambos impressionantes) para serem os pilares daquele novo modelo econômico que estava sendo gestacionado no âmago do colonialismo, de uma modernidade que aqui nascia criminosa e atrasada do ponto de vista moral, ético, espiritual e também, econômico.

Ainda mais relevante para o tema aqui proposto é o fato de que a modernidade foi marcada pelo instrumento de dominação universal mais antigo do que a própria ideia de raça, a saber, aquele que se opera pelo sexo e pelo gênero. Também como consequência da vida rebaixada à categoria de mercadoria e sob forte influência da Igreja como legitimadora e promotora do modelo de dominação patriarcal, a divisão sexual do trabalho emergiu da modernidade eurocentrista ocidental com a imposição do que deveria ser o papel da mulher na sua vida privada, na família, no mundo do trabalho, no sistema produtivo, na vida política, ou seja, nos novos papeis históricos que os homens brancos da modernidade permitiram ou não ao sexo feminino em um tempo que parecia pertencer somente a eles (QUIJANO, 2005).

A ideia da modernidade eurocentrista, que foi imposta aos povos subjugados e colonizados e ao restante do mundo como verdade absoluta e universal, construiu-se a partir da concepção de que a modernidade nascida do ventre da Europa, ou seja, no norte daquilo que hoje é reconhecido como sendo a parte ocidental do continente europeu, podia se autointitular herdeira direta e natural do mundo helênico (DUSSEL, 2005), o que também implicou amalgamar um elemento estrutural daquela cultura nas demais instituições formais e informais de poder e dos novos arranjos sociais e políticos para além da Igreja, a saber, o patriarcado que foi resgatado da antiguidade greco-romana e que na prática significou a submissão da mulher tanto na vida privada quanto na pública (COTTA; FARAGE, 2021).

Dito de outra maneira, a partir da modernidade a responsabilidade pelo controle, dominação e adestramento da mulher deixou de ser responsabilidade apenas dos homens da sua família e do Clero e passou a ser também do Estado. Como explicam Cotta e Farage (2021, p. 54), o controle sobre as mulheres

é a um só tempo uma forma de consolidar o poder dos homens e uma necessidade diante da ameaça que as mulheres lhes representam. A antiga ideia patriarcal de que a subjugação das mulheres tem base em sua natureza é institucionalizada pela teoria do contrato social, a qual consolida a afirmação de que os corpos das mulheres precisam ser governados pela razão do homem.

Assim, a modernidade concebida como o resultado de um conjunto de fenômenos históricos encadeados de forma linear, em uma espécie de linha de produção do conhecimento, contados a partir da visão eurocêntrica dos homens brancos, foi uma manipulação com fins racistas e sexistas que resultou na ideia de raça como elemento articulador de dominação e hierarquização universal dos seres humanos tendo como alguns dos seus nefastos resultados o modelo de superioridade ariana (DUSSEL, 2005) e o da inferioridade do sexo e do gênero feminino.

Mesmo com a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos12, os direitos das mulheres e as especificidades da violência e dos abusos por elas enfrentados não eram objetivamente abordados. Foi preciso muita luta e ativismo das mulheres provocando e ocupando espaços de discussão, por meio de movimentos organizados da sociedade civil e conferências, por exemplo, para que a necessidade do detalhamento do que significava o princípio da igualdade de gênero fosse compreendido como fundamental para a expansão da concepção de direitos humanos para além do que fora inicialmente conceituado baseado nas experiências dos homens. Afinal, os passivos e desafios históricos e culturais, as vulnerabilidades e os obstáculos enfrentados pelas mulheres, desde antes de seu nascimento, são muito diferentes daqueles enfrentados pelos homens. Sendo assim, era fundamental que ao se abordar a questão dos direitos humanos, os abusos sofridos pelas mulheres apenas por serem mulheres não fossem tratados de forma marginal e, ainda, tão importante quanto, que a questão da raça se somasse à questão do gênero, pois a desigualdade, o preconceito e a violência se potencializam quando à questão do gênero soma-se a ideia de raça13, desde o Brasil colônia até o tempo presente (CRENSHAW, 2002).

Entretanto, as consequências desse modelo de dominação, eurocentrista, machista, sexista, misógino e racista foram muito além dos reflexos e passivos históricos, culturais e econômicos que as mulheres, notadamente as negras, enfrentaram e ainda enfrentam até os dias de hoje. Em verdade, as consequências dele estão no nosso DNA e se antes a ciência estava a serviço dos homens e da superstição ignorante e tacanha, hoje a partir dela pode-se comprovar aquilo que muitas mulheres tentaram denunciar e foram caladas tanto pelo Estado quanto pela religião durante séculos.

3 O DNA do povo brasileiro

Desde os anos 2000, o Brasil tem presenciado o avanço das pesquisas no campo da genética que muito têm contribuído não somente com o desenvolvimento e aperfeiçoamento do tratamento de muitas doenças como também para ampliar a compreensão sobre nossos antepassados e como se deu a formação do povo brasileiro revelando o que, muitas vezes foi omitido ou modificado pelo relato eurocentrista das invasões ao continente americano e da escravização dos povos nativos e africanos, que, em grande medida, comprometeram a precisão dos registros oficiais e dos livros de história.

Uma dessas pesquisas, cujos resultados preliminares obtidos por meio de 1.247 voluntários foram divulgados no ano de 2020, foi o estudo “DNA do Brasil” – desenvolvido por pesquisadores da USP (XAVIER, 2020). Os testes de DNA mitocondrial da população brasileira revelaram que mais de 70% da nossa herança paterna (cromossomo Y) são de origem europeia em oposição aos 14,5% de africanos e 0,05% de indígenas (SILVA, 2020). Em relação à nossa herança materna (DNA mitocondrial), o estudo revelou o predomínio das populações africanas e indígenas, ambas em torno dos 30%. Dito de forma resumida e simplificada, a maioria dos nossos antepassados “pais” eram europeus e das antepassadas “mães”, pretas e indígenas.

Essa revelação nos impõe, pelo menos, duas reflexões. A primeira, de caráter político e social, diz respeito à necessidade da vigilância para que tais pesquisas genéticas não venham a ser manipuladas politicamente e usadas como falsas premissas científicas na justificação e na reafirmação do mito da democracia racial (SANTOS; MAIO, 2004) e a segunda, grave e perturbadora, emerge da comparação entre o número de europeus que desembarcou no Brasil entre 1500 e 1850, aproximadamente 750 mil indivíduos, com os cerca de 2,430 milhões de indígenas e 4,8 milhões de africanos, nesse último caso o que significa dizer que “em cada cem pessoas desembarcadas no Brasil” durante aquele período, “86 eram escravos africanos e catorze eram colonos e imigrantes portugueses” (ALENCASTRO, 2019, p. 60).

Sendo assim, considerando o baixo percentual de homens brancos em comparação com os homens africanos e os indígenas e que tanto as mulheres dos povos originários quanto as negras não tinham o mesmo valor humano das mulheres brancas, uma vez que, como afirma Xavier (2012, p. 67), “alvo de diferentes projetos de intervenção durante a escravidão africana nas Américas, o corpo da mulher negra foi visto como um misterioso pedaço de carne a ser dissecado”, seria razoável concluir que o mapeamento genético do DNA do povo brasileiro aponta, com possíveis raras exceções, na direção de uma população miscigenada gerada a partir de, pelo menos, três séculos de estupros tolerados ou, no mínimo, invisibilizados pela sociedade, pelo Estado e pelas Igrejas que se dizem cristãs.

4 A mulher e o tempo presente

Os pilares que estruturam a modernidade e seu modelo econômico capitalista hegemônico, a saber, os recortes de raça e sexo, mantêm-se firmes e fortes nos tempos atuais. Um recente estudo sobre a mulher no mundo do trabalho, com suporte dos dados da PNAD Contínua 2021, demonstra que mesmo diante de alguns avanços e conquistas das mulheres nos últimos trinta anos, notadamente a partir de 2012, os indicadores (FEIJÓ, 2023), estão longe de apontar na direção da equidade entre os gêneros no mundo do trabalho, sobretudo diante dos efeitos da pandemia de covid-19 – muito piores para as mulheres do que para os homens, como demonstram os dados.

A pandemia de covid-19 não apenas interrompeu a trajetória ascendente de participação das mulheres no mercado de trabalho, notadamente a partir de 2012 com 51,4%, mas também a diminuiu no 4º trimestre de 2022 com 52,7% em comparação com os 54,3% do 4º trimestre de 2019. Por outro lado, a participação dos homens nos mesmos recortes de tempo, além de permanecer maior (72,1% no 4º trimestre de 2022), voltou para sua tendência após a pandemia com 72,1%, enquanto a das mulheres caiu 1,6 p.p., no mesmo período. No que tange ao recorte por escolaridade, também se revela uma expressiva desigualdade (Tabela 1).

Tabela 1.
Composição educacional dos desempregados por gênero – 2021.T4 e 2022.T4
Nível EducacionalHomensMulheresTotal (Brasil)
QuantidadeTaxaQuantidadeTaxaQuantidadeTaxa
4º Trimestre de 2021
Até o Fundamental II Completo2.695.69410,3%2.504.55417,8%5.200.24813,0%
Médio Completo2.338.5919,5%3.311.95615,9%5.650.54712,4%
Superior Completo ou mais429.0034,3%429.0035,9%1.159.8415,2%
Total5.463.2889,0%6.245.51413,9%12.010.63611,1%
4º Trimestre de 2022
Até o Fundamental II Completo1.940.7157,7%1.805.67013,4%3.746.3859,7%
Médio Completo1.652.4396.6%2.249.34710,8%3.901.7868,5
Superior Completo ou mais316.4043,0%607.2594,7%923.6633,9%
Total3.909.5586,5%4.662.2769,8%8.571.8357,9%
Fonte: Feijó (2023); FGV/IBRE

Conforme demonstrado no Gráfico 1, a taxa de desemprego é maior entre aqueles e aquelas que têm até o Fundamental 2 e o Ensino Médio, ainda que completos. Porém, as taxas de desemprego no recorte do nível educacional são maiores entre as mulheres do que entre os homens, independentemente do nível de escolaridade analisado, sendo que dos 8,6 milhões de indivíduos desocupados, 54,4% são mulheres. Não bastasse isso, a remuneração média dos homens, no período do 4º trimestre de 2022 foi 28,3% acima da remuneração média das mulheres, a saber, R$ 3.099, 00 e R$2.416,00, respectivamente. Para além desse dado, o estudo aponta que, segundo os microdados da Pnad Contínua 2021, na última década, ainda que a lacuna salarial entre homens e mulheres tenha diminuído aproximadamente 10 p.p. (era 33,4% no 4º trimestre de 2012 e fechou em 23,4% no 4º trimestre de 2022), ela continua muito expressiva, mesmo quando se comparam pessoas cujas formações, responsabilidades e atribuições no mundo do trabalho são semelhantes (FEIJÓ, 2023). No Gráfico 1 está demonstrado o quanto percentualmente os homens recebem a mais do que as mulheres que fazem parte do mesmo grupo produtivo.

Lacuna de gênero - rendimento habitual de todos os trabalhos - 4º trimestre de 2012 a 2022 – Brasil
Gráfico 1.
Lacuna de gênero - rendimento habitual de todos os trabalhos - 4º trimestre de 2012 a 2022 – Brasil
Fonte: Feijó (2023); FGV/IBRE

Por fim, a questão da sub-representatividade das mulheres em posição de liderança se mantém, apesar de diversas ações promovidas tanto pelas empresas privadas quanto pelo Estado, materializada tanto na disparidade entre os percentuais de homens e mulheres em posições de tomada de decisão quanto na evolução lenta dos indicadores de participação nessas mesmas posições (Gráfico 2).

Composição de Gênero em Cargos de Gerência - 2012 a 2022.T4
Gráfico 2.
Composição de Gênero em Cargos de Gerência - 2012 a 2022.T4
Fonte: Feijó (2023); FGV/IBRE

Há outro fator que pode explicar essa lacuna de oportunidades e participação entre homens e mulheres no mercado de trabalho: a maternidade. Ainda que os efeitos na carreira das mulheres sejam diversos em função de sua escolaridade, raça e posição socioeconômica, em geral a chegada da maternidade afeta significativamente a trajetória profissional e acadêmica das mulheres. Em um estudo realizado em 2016 (MACHADO; PINHO NETO, 2016), identificou-se que aproximadamente 50% das mulheres ficam fora do mercado de trabalho no período de vinte e quatro a quarenta e sete meses após o término da licença-maternidade. Em verdade, as trabalhadoras que possuem maior escolaridade apresentam uma queda de 35% no primeiro ano pós licença, enquanto aquelas com menor escolaridade (nível fundamental e médio) apresentam 51% e, ainda, quanto maior o tempo de licença pós nascimento dos filhos, maior também a probabilidade dessa mulher perder o emprego, o que aponta na direção de que ainda que a licença de 120 dias seja um direito da mulher e do bebê, isso não tem sido suficiente para impedir que as mulheres percam seu espaço no mundo do trabalho quando se tornam mães, sobretudo as mulheres das classes mais populares, notadamente as negras.

Há vasta comprovação de que as mulheres negras são aquelas que persistem sendo o recorte mais vulnerável da sociedade sobre quem, assim como ocorria no tempo do Brasil colônia, incidem os preconceitos de raça e de gênero com mais intensidade e frequência, com todos os seus derivados deletérios e nefastos possíveis. É o “duplo fenômeno do racismo com o sexismo”, ao qual se refere Lélia Gonzales (1984, p. 224), que em articulação entre si “produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular”.

E foi justamente a partir da análise da articulação entre racismo e sexismo que a professora Kimberlé Crenshaw formulou o conceito de interseccionalidade como uma lanterna para jogar luz sobre as especificidades da condição da mulher negra cujos desafios em um mundo ainda dominado por uma maioria de homens, brancos, que se autodeclaram cristãos e heterossexuais, transcendem aos desafios enfrentados pelas mulheres brancas. Sendo assim, quando se aplica o conceito de interseccionalidade, somando ao recorte de gênero a raça, constata-se que a situação da mulher negra no mercado de trabalho é ainda mais precária e preocupante se comparada com os demais grupos demográficos, o que legitima a necessidade de políticas públicas específicas para essa parcela da população.

A Pnad Contínua 2021 é um bom exemplo da interseccionalidade ao nos subsidiar com dados que apontam na direção de uma tendência de maior precarização e menor participação no mercado de trabalho, apresentando uma taxa inferior para mulheres negras em relação às brancas que, por sua vez, como demonstrado anteriormente, estão em desvantagem em relação aos homens brancos, como demonstram os dados organizados por Feijó (2023). No ano de 2012 registra-se uma taxa de desemprego de 12,4% das mulheres pretas e pardas, em contraponto, no mesmo ano as mulheres brancas registram 8,5% e no ano de 2022 essas taxas chegam a 16,3% e 10,5%, respectivamente.

5 Conclusão

A Igreja impingiu ao que viria a ser o povo brasileiro, desde o seu esboço durante o período colonial, o temor da sexualidade da mulher. Nomeadas como filhas de Eva, as mulheres eram vistas como seres inferiores, peçonhentos, com tendências malignas e, por isso, necessitavam do controle masculino desde a mais tenra infância – fosse de parentes de sangue, fosse do Clero.

Com a constituição dos Estados modernos, o controle das mulheres deixou de ser somente no âmbito privado e passou a ser também no público. Com isso, além dos parentes do sexo masculino e da Igreja, agora a mulher também estava submissa ao Estado que se ergueu sobre a lógica machista, sexista e misógina vigente no período colonial, institucionalizada e organizada sob o mecanismo do patriarcado. Esse sistema patriarcal moderno manteve a ideia de divisão racial das pessoas e do trabalho, o que resultou em desigualdades e iniquidades ainda mais graves a serem enfrentadas pelas mulheres negras. É sobre isso que pretende lançar luz o conceito de interseccionalidade, a saber, sobre o quão frágil é a condição da mulher negra em todos os espaços onde ela precisa circular para viver.

As vulnerabilidades e as desigualdades extremas de onde partem as mulheres negras podem ser traduzidas nos indicadores da Pnad Contínua 2021 apresentados no artigo que reforçam a necessidade do desenho de políticas públicas que não somente contemplem aquele que é o maior estrato da sociedade brasileira, notadamente, as mulheres, mas que sejam pensadas para atender às especificidades das mulheres negras. Ademais, é razoável propor que tais políticas públicas vão além da garantia aos direitos humanos assegurando a proteção e direitos à gestante, à mulher puérpera e à criança, tais como a manutenção da extensão da licença-maternidade por seis meses, a regulamentação da concessão da licença paternidade como sendo obrigatória e a ampliação de vagas em creches e escolas de educação infantil em tempo integral como estratégia de melhoria da qualidade da educação e do combate à pobreza intergeracional.

É razoável propor, também, que a execução dessas políticas públicas priorize as periferias e regiões densamente povoadas e inclua a melhoria das condições do transporte público, além de se somarem à implementação de ações afirmativas de acesso às universidades, programas de iniciação científica, de ingresso e permanência no mercado de trabalho e de permanente combate ao racismo institucional e intersubjetivo. Transversalmente a todas essas políticas públicas e em consonância com o direito de todas as mulheres, é fundamental a denúncia e o combate rigorosos por parte do Estado e da sociedade civil de qualquer tipo de violência contra a mulher – seja ela branca, indígena, preta, rica, pobre, cristã, islâmica, judia, muçulmana, do Axé, ateia, heterossexual, lésbica, transexual… enfim, que sua condição de mulher seja respeitada de modo que o tempo presente não seja mais o tempo dos homens e sim o tempo de todos, todas e todes – o tempo das pessoas, o tempo da pluralidade.

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Notas

1 As autoras se referem a patriarcado como um conceito ainda instável, mas que tem sido útil pelo seu potencial mobilizador e destacam que ele remonta à organização da antiguidade sendo mais forte do que todas as instituições políticas desde então, incluindo a democracia, absorvido na Idade Média como práxis pela Igreja no desempenho do seu papel como estrutura central de poder sobre a vida social, política e econômica (COTTA; FARAGE, 2021).
2 O mais curioso nesse relato bíblico, historicamente usado no ocidente para comprovar a culpa e a maldade da mulher e associar sua sexualidade ao que poderia haver de pior para a humanidade, é que o protótipo de todos os homens, Adão, que segundo a tradição judaico-cristã recebeu de Deus a ordem de não comer do fruto da árvore, poderia ser encarado como um ser fraco e de caráter duvidoso, uma vez que não fora sequer capaz de manter uma promessa feita àquele que na crença cristã seria apenas e tão somente o Criador de todas as coisas. Dito de outra forma, que tipo de ser humano era esse que diante de uma argumentação – carregada ou não de sedução – foi incapaz de manter sua palavra? Entretanto, essa perspectiva que poderia atribuir ao homem a pecha de ser essencialmente suscetível e incapaz de manter acordos parece ter sido invisibilizada, pois tornou-se conveniente aos interesses da Igreja e dos homens colocar na primeira mulher a culpa pela fraqueza de caráter que poderia ser atribuída ao primeiro homem e, quem sabe delegada aos seus descendentes do sexo masculino. Ainda segundo o relato do livro de Gênesis, Adão não assumiu sua responsabilidade pelo distrato do pacto feito com Deus nem mesmo quando perguntado por Ele sobre o que ocorrera. “E o homem disse: a mulher que tu me deste para estar comigo, ela me deu da árvore e eu comi” (BÍBLIA, GÊNESIS 3:12, grifo meu).
3 De acordo com a tradição judaica, Adão teve uma esposa antes de Eva, feita junto com ele e que, segundo a tradição, não quis ser submissa a ele em nenhum sentido que se chamava Lilith. Segundo Laraia (1997, p. 149), ela foi “expurgada do texto, hoje conhecido, pela censura dos editores bíblicos que procuraram adequar o livro sagrado aos valores e padrões morais de suas épocas”, porém “esses cortes não foram suficientes para apagar totalmente a figura de Lilith da tradição oral e, muito menos, de alguns textos rabínicos. No decorrer deste mito fica claro que, ao consumir o fruto proibido, Adão adquiriu o conhecimento do bem e do mal e não apenas o da sexualidade. Mas, o mais importante é o fato que Lilith representa a primeira reação feminina ao domínio masculino”.
4 A Igreja estava acima do poder do marido em relação à sua mulher e regulava, inclusive, a intimidade dos casais que jamais deveriam se reconhecer como amantes, visto que o prazer nas relações conjugais era o que afastava a humanidade da sua comunhão com Deus (ARAUJO, 2022), isto porque se atribuiu às relações sexuais mantidas entre Adão e Eva, por proposição dela, a razão de ser do pecado original e de todos os males que sobrevieram aos seres humanos depois que ambos foram expulsos do Paraíso. Trata-se de uma reinterpretação do livro de Gênesis feita por Santo Agostinho que delegou às mulheres a posição de criaturas traiçoeiras que arruínam vidas incitando aos desejos da carne. Até então, atribuía-se à curiosidade de conhecimento e à desobediência ao que fora pactuado com Deus a expulsão do Paraíso, algo desassociado do casal ter ou não ter mantido relações sexuais (COTTA; FARAGE, 2021). De todo modo, seja em uma versão ou em outra, atribui-se à Eva o primeiro passo na direção do rompimento do acordo com Deus (que só seria retomado por ocasião da morte do Cristo dada como resgate ao pecado do casal), assim como a responsabilidade pelas dores do parto que seriam uma punição pelo ato pecaminoso dela.
5 Exemplo disso é “a obra da brasileira Dionísia Gonçalves Pinto (codinome Nisia Floresta Brasileira Augusta), responsável, em 1833, pela livre tradução de A Vindication of the rights of woman, 8 da inglesa Mary Wollstonecraft”. (SALADINO; BARATA; FIGUERÊDO, 2013, p. 49). Outro exemplo é a trajetória de Eufrásia Teixeira Leite, única herdeira de uma fortuna que hoje a posicionaria como bilionária e que se notabilizou pela desenvoltura e sucesso no mundo dos negócios, incluindo o emergente e até hoje predominantemente masculino, mercado financeiro, usando de forma muito inteligente as fissuras do machismo institucionalizado no século XIX, Eufrásia trabalhou e foi bem-sucedida em ser senhora do seu destino, indo além de sua condição de herdeira em vida como também por ocasião de sua morte em que destina todo seu patrimônio à população pobre de sua cidade natal no interior do estado do Rio de Janeiro (FALCI; MELO, 2002, p. 180).
6 A medicina portuguesa estava atrasada em relação ao progresso intelectual e científico que nações como França, Inglaterra e Holanda já experimentavam desde a primeira metade do século XVI. Diversos fatores contribuíram para que isso ocorresse, o mais nefasto deles, a Inquisição que perseguiu médicos e intelectuais entregando as escolas e universidades aos Jesuítas (DEL PRIORE, 2022).
7 “Mulata bonita”, “preta limpinha”, “negrinha safada”, “escrava fiel”, entre outros, foram termos largamente utilizados na literatura para se referir a personagens negras que foram imortalizados na cultura popular e no inconsciente do povo brasileiro (XAVIER, 2012).
8 Sobre a objetificação dos corpos negros femininos no período colonial, Bell Hooks (2021) descreve um tipo de voyeurismo socialmente aceito, doentio e humilhante, quando se tratava de expor mulheres negras cujos corpos eram expostos tanto nos balcões de venda de pessoas escravizadas nos EUA, quanto nos elegantes salões parisienses. Essas mulheres não eram vistas como um ser humano com alma e sentimentos, e sim como vários pedaços de carne. O interesse restringia-se somente a algumas partes daquele Outro, objetificado. Projetava-se “nos corpos negros uma narrativa sexual dissociada da branquitude” (2021, p. 129), uma sexualidade desviante, algo muito próximo do que ocorria na mesma época no Brasil e, em certa medida, ainda ocorre nos dias de hoje, reproduzindo a lógica do aparato racista dos séculos coloniais passados sob a égide de cultura popular.
9 Gonzales (1984, p. 224) menciona ainda outra imagem da mulher negra que emergiu da figura da mucama – a mãe preta da cultura brasileira.
10 Contrapondo-se à realidade dos ambientes seculares por onde as mulheres brancas transitavam, a reclusão dos conventos constituiu-se, por vezes, em oportunidade de liberdade para que elas pudessem exercer outras funções sociais. Segundo Georgina Silva dos Santos (2013, p. 31), “as comodidades oferecidas pelos cargos da hierarquia conventual e a manipulação dos poderes inerentes a cada função facultava-lhes mais liberdade do que a maioria das mulheres da época, apesar de estarem enclausuradas”, possibilitando que elas pudessem ocupar posições de mando (abadessas) e desenvolver habilidades diversas, além de se dedicarem à literatura, à música, à botica – essa última uma atividade exclusivamente masculina no mundo secular.
11 BASSO, Pietro. Razze schiave e razze signore: vecchi e nuovi razzismi. Milano: Franco Angeli, 2000.
12 Ainda que não seja objeto do presente trabalho, importa destacar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, adotada com o objetivo de promover a universalização dos direitos humanos, foi redigida a partir da ideia da superioridade dos países do ocidente que seriam civilizados e, portanto, teriam a missão de levar suas práticas e seus valores civilizatórios aos outros povos que estavam atrasados ou subdesenvolvidos. Além disso, enquanto a carta era elaborada na Europa, na África e na América Latina, nações europeias mantinham suas práticas e lógicas coloniais, inclusive com a inovação do colonialismo missionário, uma forma contemporânea de evangelização das nações consideradas pagãs (VILLEN, 2013).
13 Segundo Crenshaw (2002, p. 177), “a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Diante disso, a interseccionalidade trata da forma como as ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento”.

Notas de autor

1 Historiadora com pós-graduação e mestrado em Administração Pública (EBAPE/FGV). Doutora em Políticas Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói/RJ - Brasil. E-mail: belloar@gmail.com.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): BELLO, A. R. A mulher, a mulher negra e o tempo dos homens: uma breve reflexão interseccional. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 25, n. 3, e25319298, 2023. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n32023.19298. Disponível em: https://essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/19298.

COMO CITAR (APA): Bello, A. R. (2023). A mulher, a mulher negra e o tempo dos homens: uma breve reflexão interseccional. Vértices (Campos dos Goitacazes), 25(3), e25319298. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n32023.19298.

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